ISRAEL ANDRADE ALVES[1]
(orientador)
RESUMO: A busca pessoal é considerada uma rotina praticada de forma normalizada no contexto do policiamento ostensivo, fundamentada na ação policial preventiva. Entretanto, essa forma de aplicação do instituto da busca pessoal é carecedora de permissão legal. Analisando a dogmática legislativa e revisando criticamente a doutrina relativa como metodologia, tem-se como objetivo aclarar nesse trabalho que a prática da busca pessoal como mecanismo de policiamento massivo ostensivo-preventivo não possui provisão legislativa e está inserida em um panorama de deficitária racionalização dogmático-jurídica da medida. Busca-se sustentar que a busca pessoal está descrita pela doutrina entre duas espécies no direito brasileiro: podendo objetivar à obtenção de prova no processo penal (busca probatória, regida pelo artigo 244 do CPP), ou à inibição de ocorrência de dano ou perigo iminente (busca preventiva, amparada pelas causas de exclusão de ilicitude do estado de necessidade ou da legítima defesa, descritas nos artigos. 24 e 25 do CP). Sendo a busca pessoal um elemento de suma importância no controle do crime no Brasil, mas deve-se atentar que a prática da busca pessoal com objetivo de prevenção geral, sendo a mesma negativa ou positiva, pode expressar uma função punitiva latente do Estado de tal atividade de busca e se apresenta como uma medida ilegal.
PALAVRAS-CHAVE: busca pessoal; abordagem policial; seletividade penal.
INTRODUÇÃO
A atividade policial no Brasil é prevista no artigo 144 da Constituição Federal, ao qual é dever do Estado e direito e responsabilidade de todos cuidarem da segurança pública. Dentre as atribuições encontra-se as abordagens policiais, que são realizadas através das buscas pessoais, independente de mandado, quando assim houver a incidência da fundada suspeita, guarida no artigo 244 do Código de Processo Penal – CPP.
Conforme parágrafo 5° do artigo 144 CF, “Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; (...)”. Sendo esta, responsável por inibir e prevenir a ocorrência de delitos através do policiamento ostensivo pelo uso de viaturas caracterizadas e policiais devidamente fardados, de modo que sua presença se torne nítida para a sociedade, e possa trazer a sensação subjetiva de segurança de cada cidadão.
Neste sentido, a atuação constitucional da polícia militar se dá de maneira estratégica, por meio de estudos estatísticos que demonstram as zonas urbanas aonde se tem a maior incidência de criminalidade. Deste modo, direcionando o policiamento ostensivo munido de informações e horários aos quais ocorrem mais delitos, e bem como as características físicas, comportamentais, e tipo de veículos utilizados pelos infratores da lei.
Por intermédio das informações supracitadas se inicia o policiamento ostensivo, e com a observação dos elementos que caracterizam a fundada suspeita, os policiais do rádio patrulhamento realizam as buscas pessoais à transeuntes e veículos, onde são verificados, objetos, documentos, e informações passadas pelos abordados afim de verificar sua veracidade e ou a incidência de algum ilícito cometido.
Ocorre que o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que tomou forma através do provimento do Habeas Corpus nº 158.580 BA, ao qual decidiu pelo trancamento da ação penal do réu, suspeito pelo de crime de tráfico de drogas, em que teve o entendimento por unanimidade do Tribunal da Cidadania pela nulidade das provas advindas da busca pessoal realizada pela Polícia Militar da Bahia, tendo em vista que os Ministros entenderam que não haviam elementos sólidos suficientes para ensejar à busca pessoal, mesmo que por meio dela foram encontrados objetos capazes de materializar a pratica do crime de tráfico de entorpecentes.
Nesta lógica, tal decisão tem gerado certa insegurança jurídica na atividade policial, uma vez que certos padrões utilizados para identificar a fundada suspeita não são mais suficientes, como por exemplo o “tirocínio policial”, que é uma expertise para identificação de delitos, que advém da pratica e experiência de anos exercendo o serviço de policiamento nas ruas, uma vez que o start para abordagem parte por vezes de uma simples mudança de comportamento do indivíduo ao ver a viatura, detalhes perceptíveis aos olhos de quem tem anos de atuação, mas que para o STJ são insuficientes para se prosseguir à uma busca pessoal, e bem como também a passível responsabilização dos agentes que efetuaram a abordagem.
Portanto este trabalho acadêmico tem o intuito de expor a atual relação entre a atividade policial no exercício de sua função constitucional, ao realizar buscas pessoais sem mandado embasadas pela fundada suspeita, e o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto, sendo um tema bastante recente e pertinente à segurança pública e sociedade.
A metodologia empregada na realização deste trabalho acadêmico foi a de pesquisa bibliográfica, em que foram estudados a literatura por meio de autores, doutrinadores, artigos científicos e jurisprudências sobre o assunto ora mencionado, afim de verificar o impacto das atuais decisões do STJ na atividade policial.
1 BUSCA PESSOAL: DEFINIÇÃO, ESPÉCIES E HIPÓTESES LEGAIS DE CABIMENTO.
Caracteriza-se Estado Democrático de Direito como sendo, de forma recorrente, a moderna sociedade geralmente necessitada de segurança, proteção e tranquilidade. Essa necessidade, propagada, suplanta qualquer divisão que possa ser observada por grupos, categorias ou classes sociais. Entende-se como uma sociedade que se organiza exponencialmente na procura rotineira e árdua por proteção, por segurança e controle, onde existe uma predominante sensação de insegurança, cabe citar, a crença de que o perigo mora em cada esquina (BAUMAN, pp. 15-16, 2009).
Aponta Jean-François Lyotard (1984, p 15), que tal fenômeno é decorrente da própria condição pós moderna, quer dizer, o esvaziamento da grand narrative, o desmoronamento do roteiro dominador pelo qual cada cidadão é colocado dentro da história como protagonista de um passado permanente e de um futuro que se pode antecipar. De outra forma, é este mesmo processo assimilado por Anthony Giddens como a óbvia conclusão de uma radicalização e de uma universalização dos resultados da modernidade e não como uma condição pós-moderna.
De acordo com as palavras de Giddens (1991, p. 12), a sensação que o sujeito possui de fazer parte de um universo de acontecimentos que não são possíveis de se compreender totalmente e dos quais se tem a impressão de estarem além do controle próprio cria uma desorientação que é típica da modernidade, onde é provável se ter a sensação de não se poder atingir o aprendizado a respeito da ordem social.
A fanática e ávida obsessão em se ter segurança surge, assim, na companhia de uma poderosa propensão ao sentimento de medo, ao sentimento compartilhado de um perigo inevitável (BORGES, 199, p. 119). O revés dos grandes, requintados e complexos mecanismos de segurança e de punição, alçados ao cume das prevalências sociais, nutre, dessa forma, envolto em um ciclo vicioso, as necessidades de indivíduos que são mais propensos ao pavor, que se sentem constantemente sob ameaça, com medo e vivendo em insegurança (CAMUS apud ARONE, 2008, ps. 93-94).
Dentro deste contexto, Zygmunt Bauman adverte que o Estado Moderno arca com a tarefa, desesperançada, de ser o administrador deste medo (BAUMAN, 2009, p. 17). Como resultado, a impressão de incerteza e da falta de segurança leva a uma legitimidade deficitária e a um desgaste institucional inevitável, o que conduz à tomada de inúmeras intervenções do Estado com a finalidade de ultrapassar a barreira do medo instaurada (WANDERLEY, 2014, p. 13).
A busca pessoal é eleita, não raramente, como um instrumento fundamental para prevenção contra a criminalidade nos ambientes urbanos públicos. Por causa dessa perspectiva, é usado como expediente legítimo de rotina o ostensivo policiamento.
São admitidas incursões de prevenção e, inclusive, coletivas, que são possíveis de comparar com absolutas devassas, que são exercidas geralmente com a finalidade de fazer inspeção, monitoramento e controle do deslocamento público. Estas intervenções acabam implicando no cerceamento da liberdade de ir e vir, assim como também na violação da privacidade daqueles que são abordados, dentre os quais se consegue identificar uma predominância absolutamente desproporcional e massiva de adolescentes de classes menos afortunadas e afro-descendentes (WANDERLEY, 2017, ps. 115-149).
Diante deste panorama, é necessário que se compreenda o tratamento dado à busca pessoal pelo direito brasileiro, com a finalidade de identificar as bases dogmático-jurídicas que alicerçam a prática recorrente dessa medida policial que restringe direitos.
Em uma conotação material, se entende busca como a ação de procurar, rastrear, farejar, tentar encontrar pessoas, coisas ou vestígios. MARINONI E Arenhart (2011, p. 239) destacam que a busca caracteriza-se pela “maneira que inúmeros mecanismos judiciais de apreensão e remoção de pessoas e bens assume para diversos fins”, razão esta pela qual não existe “uma medida que represente busca e apreensão, mas com certeza, uma modalidade que é utilizada genericamente para qualquer hipótese onde seja necessário encontrar, apreender, ou retirar pessoas ou bens na intenção de um processo com caráter civil”. Dentro do Direito Processual Penal, se considera que a busca “não aparece aleatoriamente, indeterminável ou indeterminada, mas acaba se vinculando ao que importa para a original persecução penal que originou a ordem de busca” (PITOMBO, 2005, p. 109).
Dessa forma, torna-se procedimento de rastreamento e procura de pessoas ou objetos que estão relacionados ao fato que aparentemente é punível ao qual se refere o processo penal. Se faz oportuna a retomada da definição de Pitombo (2005, p. 109):
“Ato do procedimento persecutório penal, restritivo de direito individual (inviolabilidade da intimidade, vida privada, domicílio e da integridade física ou moral), consistente em procura, que pode ostentar-se na revista ou varejamento, conforme a hipótese: de pessoa (vítima de crime, suspeito, indiciado, acusado, condenado, testemunha e perito), semoventes, coisas (objetos, papéis e documentos), bem como de vestígios (rastros, sinais e pistas) da infração.”
Nesse andamento, a busca se caracteriza como um procedimento que tem a orientação de encontrar vestígios, pessoas ou objetos no interesse de um processo penal. Para o Código de Processo Penal (CPP), a busca é subdividida em domiciliar e pessoal e deve ser tratada em conjunto com a apreensão (arts. 240 a 250), no Capítulo XI (Da Busca e da Apreensão) do Título VII do Livro I.
Entretanto, normalmente ressalta a doutrina, que a busca e apreensão caracterizam-se institutos com autonomia, mesmo sendo a apreensão a finalidade da busca (MARCÃO, 2014, p.568).
Caracteriza-se a busca domiciliar por ser aquela que se realiza na casa, objeto protegido constitucionalmente como sendo local inviolável do indivíduo. Por sua vez, a busca pessoal caracteriza-se como sendo a procura realizada “na própria pessoa ou na esfera de custódia que o acompanha” (MISSAGGIA, 2002, p. 202), onde estão incluídos o corpo, as vestimentas, e os bens de seu pertencimento, incluindo-se aí eventual veículo de tração automotiva (que não seja usado como residência).
Dessa maneira, para o Código de Processo Penal Militar (CPPM), a busca pessoal caracteriza-se como sendo a “procura material realizada nas vestimentas, malas, pastas e outros objetos que, porventura, estejam de posse do indivíduo revistado e, quando a situação exigir, no próprio corpo” (art. 180). As hipóteses nas quais a busca domiciliar é cabível tem como limitantes as possíveis finalidades da medida, e que estão enumeradas nas oito alíneas (“a” a “h”) do parágrafo primeiro do art. 240 do CPP. Com relação à busca pessoal, em concordância com o parágrafo segundo do mesmo art. 240 do CPP, é possível ser realizada quando uma fundada suspeita existir que leve a crer que o indivíduo esteja ocultando consigo uma arma que seja proibida ou um objeto mencionado nas alíneas “b” a “f” e “h” do parágrafo primeiro. Por sua vez, o art. 244 preconiza que a busca pessoal não dependerá de mandato expedido previamente caso seja determinada eventualmente durante o decurso de prisão ou de busca domiciliar. Ou, ainda, na hipótese de haver suspeita fundada de que o indivíduo esteja portando uma arma proibida ou esteja de posse de objetos ou papéis que caracterizem corpo de delito. Sendo esta última (busca pessoal sem mandado prévio e não incidental a outra medida) configura-se na modalidade mais comum e é a mais polêmica também.
O conceito de busca como um mecanismo de procura e localização de vestígios, objetos e pessoas no que diz respeito ao interesse de um processo penal, permite que a classifiquemos como um ato processual.
Em conformidade com o art. 244 do CPP, a busca pessoal sem mandado prévio – exceto nas hipóteses em que a busca domiciliar ou a prisão for simplisticamente incidental – possui um objetivo delimitado: a apreensão de uma arma não permitida ou de algum objeto, ou documento que se caracterizem como sendo corpo de delito.
Em se tratando de objetos com um valor de prova, a busca pessoal, nestes casos, sempre tem uma natureza jurídica e constitui-se em medida probatória/instrutória (meio de se obter a prova).
Entende-se a partir disso que, o art. 244 do CPP desautoriza buscas pessoais que tenham objetivo preventivo. Buscas com a intenção de intimidação de potenciais criminosos para garantir a sensação de segurança, para reafirmar a presença policial, dentre outras finalidades com intenção de prevenção, não fazem parte do art. 244. A realização de buscas com estes fins demonstra uma não tolerável perda de funcionalidade da medida, usada de forma errônea no decurso do policiamento ostensivo (PITOMBO, 2005a, p.3).
Existe de fato, uma perda de funcionalidade e, por isso, configura-se ilegalidade em todos os casos nos quais se insiste em praticá-la com a finalidade de prevenção geral. De outro modo, a apresentação rotineira do art. 244 do CPP, que acaba reduzindo o requisito da busca pessoal a uma simples suspeita fundada (que não é provida de complemento), acaba impedindo que se identifique os objetivos da medida, uma vez que a “suspeita fundada” pode ser referente a um complemento qualquer. Dessa forma, a incompleta leitura do art. 244 do CPP possibilita a sustentação de que haveria duas modalidades de busca pessoal: a processual (instrutória) e a preventiva (LIMA, M., 2014, p. 630):
Na primeira modalidade, a busca pessoal está vinculada a um objetivo probatório e depende de indício da posse de algum elemento procurado que constitua prova (condição limitante). É a hipótese que está prevista no art. 244 do CPP.
Na segunda modalidade, a busca pessoal pode ser executada com o objetivo de prevenção ampla e depende da simples rotulação de um indivíduo ou atitude como sendo suspeito na interpretação do policial (condição preventiva). [...] Dessa maneira, passamos a admitir sua execução diante de qualquer “atitude suspeita”, mesmo que não sejam possuidoras de vínculo direto com alguma conduta que caracterize delito (WANDERLEY, 2017, p. 122-123).
Assim, a não completa leitura do art. 244 do CPP está relacionada com a admissibilidade do desvirtuamento do objetivo da busca pessoal, que se transforma, de medida probatória em medida preventiva policial.
Entretanto, o art, 244 do CPP não engloba possibilidade qualquer de busca que seja meramente preventiva. Visando a apreensão da prova, presume uma prática anterior ou atual do crime, tornando assim excluída a possibilidade de que a medida vise apenas uma prevenção de futuros crimes. Dessa forma, mirando-se no fato de que a busca processual penal se caracteriza pela instrumentalidade e através do seu referencial, adverte-nos, Cleunice Pitombo, que a busca pessoal, que está regulamentada nos arts 240, parágrafo segundo, e 244 do CPP, acaba não se confundindo com uma eventual busca oriunda de finalidade preventiva.
Entretanto, expõe a autora que, mesmo que a legislação processual penal não confira suporte às medidas que são preventivas meramente, a execução de buscas administrativas por parte da polícia estaria alicerçada no poder-dever de estar vigilante, que é inerente aos órgãos de polícia.
Porém, não se deve confundir a diligência praticada pela polícia judiciária, ao executar atitudes que vão poder fazer parte de um processo penal, complementada por todas as legais formalidades, com o poder-dever do estado de vigilância que é inerente aos órgãos da polícia (art.144, parágrafo quarto, da Constituição da República). A ação de prevenção, pela polícia exercida, de acordo com Vicenzo Manzini,
“não possui o escopo processual, muito menos de polícia judiciária, a perquisizione personali, realizada de ofício e por agentes de segurança pública. As finalidades dessa atividade são de segurança ou de vigilância e não tem o destino de procurar algo relativo ao já cometido ou conhecido delito, ou que seja, pelo menos suspeito”. (MANZINI, 2005, p. 155).
Dessa forma, para a garantia da paz pública, os órgãos policiais conseguem executar busca administrativa, sem implicar em conotação processual.
Sendo assim, mesmo que a diferença entre “busca processual” (regida pelo CPP) e “busca preventiva” esteja bastante esclarecida pela autora, limita-se Pitombo (2005, p. 155) a citar o art. 144 da Constituição Federal de 1988 como sendo a fundamentação normativa da “busca preventiva”, que se caracterizaria por possuir caráter administrativo. Este posicionamento é defendido também, especialmente, por autores que possuem um vínculo com as corporações de polícia militar.
Dessa maneira, Nassaro (2003, p. 46-56; 2005), defende a ideia de que a busca pessoal preventiva encontra permissão no parágrafo quinto do art. 144 da Constituição Federal de 1988, que deu a atribuição de preservar a ordem pública às polícias militares estaduais.
2 NATUREZA JURÍDICA E FINALIDADE DA BUSCA: MEDIDA PROCESSUAL PROBATÓRIA OU MEDIDA DE POLÍCIA PREVENTIVA?
A conceituação de busca como sendo um procedimento de procura de objetos, pessoas ou vestígios quando do interesse de um processo penal possibilita dar-lhe a classificação de um ato processual (THEODORO JÚNIOR, 2011, p. 227).
Na amostragem de motivos do CPP (item VII), de maneira mais específica, se faz estabelecer que a busca constitui um mecanismo de alcance da prova. Além disso, sua normatização está incluída no Título VII (Da Prova) do Título I (Do Processo em Geral) do CPP.
Seguindo essa direção, a doutrina dominante sublinha que a busca é um mecanismo de instrução, voltado para a aquisição ou para a preservação de provas dentro de um processo penal, e parte considerável ainda acrescenta que se trata de um mecanismo de instrução cautelar (LOPES JR., 2012, p. 717).
Depois de serem feitos estes esclarecimentos, é cabível notar que as finalidades possíveis da busca são assinaladas por duas características essenciais: a referibilidade ao caso penal que está sendo apurado e a instrumentalidade relacionada análoga à perseguição penal. Verdadeiramente, a busca se caracteriza por ser uma medida instrumental, que não objetiva ela própria nem a satisfação e nem a pretensão acusatória (objeto do processo penal), muito menos a pretensão punitiva (cujo exercício é dependente do processo penal prévio), mas somente dar viabilidade a efetivação de sua tutela, sem diretamente satisfazê-las.
Por outro caminho, a busca constitui-se em uma medida referida ao caso penal, já que, ao objetivar assegurar a execução de uma tutela que faz referência a um determinado fato que é punível aparentemente, com este encerra uma relação de referibilidade. O caso penal, então, constitui a causa de solicitar remota da busca (MARINONI; ARENHART, 2011). Por este motivo, ao tratar da busca pessoal, Pitombo acrescenta que apesar da variabilidade de coisas que são possíveis de serem procuradas através da medida, o importante é a relação entre as coisas que se busca e a infração penal” (2005b, p. 136). A instrumentalidade e a referibilidade constituem-se características opostas à satisfação da tutela e ressignificam o vínculo da busca com o processo penal.
Estas características se destacam da própria definição de busca, visto que, como já citado, a busca é, dentro do direito processual penal, conceituada como sendo uma ação de procura e localização de objetos, pessoas ou vestígios que tenham relação com o fato que está sendo apurado no processo penal e de interesse do processo penal respectivo. Salientam-se nesta conceituação, a referibilidade ao caso penal e a instrumentalidade (direta ou indireta) relacionada à tutela desejada no processo penal. Sendo assim, a saliência da referibilidade e da instrumentalidade possibilita esclarecer que uma eventual busca que não tenha relação com um fato que seja aparentemente punível e que não esteja atrelada com a tutela desejada no processo penal não deve qualificar-se como uma busca processual penal e não contém fundamento no direito processual penal.
2.1 BUSCA PROCESSUAL E REVISTA PREVENTIVA: UMA DISTINÇÃO NECESSÁRIA
Na atualidade, sem exceção, as revistas policiais a indivíduos em espaço público de acesso livre, independentemente de sua fundamentação e de suas finalidades, é caracterizada como busca pessoal, e está regulada nos artigos 240, parágrafo segundo, e 244, do Código do Processo Penal.
Será nosso objetivo a seguir dar esclarecimento sobre a impropriedade de classificar-se qualquer revista a um indivíduo em um espaço público como uma busca pessoal, tal como estipulada no Código de Processo Penal. Partindo-se de um limite mais preciso das revistas que com efetividade constituem buscas pessoais, nos ditames do CPP, existe a possibilidade de avistar que ainda permanece a chance de que as revistas à um indivíduo não sejam possuidoras de vínculo com a persecução penal, mas que tenha sim uma eminente finalidade preventiva.
De início, cabe salientar, de acordo com o que já foi possível constatar, que existe uma substanciosa onda doutrinária que dá ênfase ao conceito de fundada suspeita, que está inserido nas normatizações do parágrafo segundo do artigo 240 e do caput do artigo 244 do CPP, considerando-o em particular vago e impreciso. Essa incerteza legal, não é sobrepujada nem pelas investidas doutrinárias concedidas ao assunto, nem pela conduta jurisprudencial orientada pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.
Contudo, é necessário que se observe que a mal afamada “fundada suspeita” se constitui não somente em um vago e impreciso conceito, mas incompleto também, visto que não gera evidência sobre qual é o objeto de tal suspeita. Em face a este hiato, precisa-se dar destaque ao fato de que a “fundada suspeita” a que se referem os artigos 240, parágrafo segundo, e 244 do CPP, tem por alvo não o ato da conduta delituosa (como se pressupõe com frequência), mas na verdade a ação de ocultar o objeto que tem relação com uma conduta delituosa alvo da perseguição penal.
Dessa maneira, para a execução da busca pessoal, dentro das possibilidades admitidas pelo art. 240, parágrafo segundo, estabelece-se o requisito da fundada suspeita de uma ocultação de algum tipo de arma que seja proibida ou de algum objeto que esteja citado nas alíneas “b” a “f” e “h” do parágrafo primeiro do dito dispositivo de CPP e, nas possibilidades previstas pelo art. 244, o requisito da fundada suspeita de ocultação de corpo de delito ou de alguma arma considerada proibida.
Orientando-se por esta informação complementar fundamental do conceito de fundada suspeita, se constata que a busca pessoal, na forma como foi regulamentada no Código de Processo Penal, enquanto mecanismo de perseguição penal, é executada quando a infração penal que está sendo investigada já é de conhecimento dos agentes públicos mesmo antes da colocação em prática da medida, e na hipótese de existir a fundada suspeita de uma ocultação de algum objeto que tenha relação com a infração investigada, em qualquer situação prescrita nos arts. 240, parágrafo segundo, e 244 do Código de Processo Penal.
Sendo assim, seja por se perceber uma situação de flagrante delito, seja pela realização de atitudes prévias de investigação, a execução do crime já é de conhecimento dos agentes públicos, e a execução da busca acaba por se inserir no transcurso da perseguição penal já iniciada. Esse limite, como se pode ver, não deixa de lado as considerações que, na esfera doutrinária, já são direcionadas a este instituto. Por outro lado, as concede força ao reafirmar a natureza instrumental da busca pessoal e o seu vínculo com a perseguição penal já começada, e, após esclarecida a complementação do conceito de fundada suspeita, possibilita concentrar o foco no pressuposto fundamental para a execução da medida, seja qual for o prévio conhecimento da infração penal.
Efetivamente, sobre isso, Cleunice Bastos Pitombo (2005, p. 118) acena com o seguinte esclarecimento:
“O objetivo da busca, dentro do processo penal do Brasil, é em âmbito geral, encontrar o desejado, ou descobrir o pretendido, de coisa móvel – objeto, pessoa, papel ou documento, ou ainda outros elementos materiais. Ligados todos, de alguma maneira, à perseguição penal, em seus momentos: judicial ou extrajudicial.”
Sendo assim, a busca pessoal, regulada nos arts. 240 a 250 do CPP, configura vínculo com a perseguição penal originária, cabe salientar, está relacionada com um fato investigado e que já é de conhecimento da autoridade, nos termos do art. 6° do CPP. Dessa forma, a priori, a “fundada suspeita” a que fazem referência os arts. 240, parágrafo segundo, e 244, do Código de Processo Penal, não tem por alvo a prática delituosa – que já é de conhecimento -, mas na verdade, a ocultação de algum objeto que tenha relação com ele, visto que é, o conhecimento prévio do delito que, justamente, o enseja, pois, a execução de atitudes de perseguição penal, dentre os quais está inserida a busca pessoal.
Sobre a busca pessoal, cabe salientar que a execução de medidas de investigação que acabam implicando em quebra de sigilo ou na invasão de privacidade do indivíduo que está sendo acusado requer, obrigatoriamente, uma autorização judicial prévia. Baseando-se por essa premissa, então, é assentado pela jurisprudência brasileira que a busca domiciliar, assim como as quebras de sigilo fiscal, bancário, telemático ou telefônico, necessitam ser submetidas previamente a um exame jurisdicional, com a finalidade de se evitar uma utilização dessas medidas que são invasiva de privacidade individual de forma abusiva.
Semelhante entendimento pode ser utilizado com relação a à busca pessoal, de forma que o “mandado” indicado no artigo 240, § 2º, do Código de Processo Penal, possa ser compreendido como mandado jurídico. De outra forma, acrescentando a essas ponderações, mister se faz observar que ao exercitar o poder de polícia administrativa fica permitido aos agentes dos órgãos de segurança pública, especialmente aos determinados ao policiamento ostensivo, que realizam revista de pessoas que transitam no ambiente público, não necessariamente como o intuito de obter elementos importantes para persecução penal já iniciada, mas sim com o objetivo precípuo de prevenir a atividade de práticas nocivas, que atentem à integridade de direitos e bens jurídicos, e que apenas possam ser considerados hipoteticamente em caso de ilícito de natureza penal.
Dessa forma, é importante considerar que uma abordagem policial pode ser somente incidental e ocorrer a qualquer época da persecução penal, e ainda podendo ser efetivada até antes de seu início. Nessa situação, a abordagem realizada ao cidadão não é configurada como uma busca pessoal, tal como regrada nos artigos 240 a 250 do CPP. Dessa forma, a atividade não objetiva a obtenção de elemento de prova ou de convicção relativo a crime determinado, nem mesmo a sua garantia ou acautelamento. Somente objetiva evitar conduta prejudicial, de cujo caráter ilícito ainda nem mesmo se tem conhecimento, motivo pelo qual ainda nem mesmo foi iniciada a persecução penal. Tal ato, possui objetivo meramente preventivo sendo decorrente do poder de polícia administrativa.
Nesse contexto, pode-se concluir que a quebra da inviolabilidade pessoal perante a abordagem policial coercitiva e invasiva pode ser praticada pelos órgãos de segurança pública com dois objetivos principais e distintos, os quais alteram a natureza jurídica projetada pela medida, quais sejam: constituir ato da persecução penal (busca pessoal) ou ato de polícia (revista preventiva).
A diferença é essencial na condução dada à abordagem policial ao indivíduo pelo direito português e pelo direito estadunidense. O regramento jurídico português, elimina o requisito do mandado judicial anterior em casos onde haja urgência para a prática da medida, onde a revista atinge não somente a um interesse de caráter processual, mas ainda a uma finalidade preventiva.
Da mesma forma, a Suprema Corte dos EUA determina exigências diferenciadas para a stop and frisk, tipo de revista que se conduz especialmente para proteger a integridade de pessoas e do patrimônio, e não aos interesses gerais da persecução penal.
No âmbito nacional, a diferença entre a busca pessoal como atividade de persecução penal e a revista preventiva como mecanismo de polícia é conduzida na doutrina de diversos autores que buscam compreender a busca pessoal, entretanto nunca de modo totalmente elucidativo de forma a permitir uma normatização precisa e um controle efetivo da legalidade dessas atividades estatais.
Alguns doutrinadores compreendem que a revista preventiva, realizada antes do conhecimento da infração penal, também seria regida pelos artigos 240 a 250 do CPP. Entretanto, outros, consideram que os artigos 240 a 250 do Código de Processo Penal somente regulamentaram a busca com relação à persecução penal, e não a revista de caráter preventivo. Ambos não aprofundam um estudo minucioso e detalhado a respeito desta última. Dessa forma, direcionam seus esforços exclusivamente para a análise da busca pessoal e nada concluem quanto à revista pessoal preventiva em particular.
3 O (DES)CUMPRIMENTO DOS REQUISITOS AUTORIZADORES DA BUSCA PESSOAL NA VISÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Tirocínio policial faz referência a expressão usada no campo de estudo da criminologia. De acordo com ela, após adquirir um nível de experiência trabalhando nas ruas, o policial passa a ser apto para se antecipar aos indivíduos e ser perceptivo aos agentes criminosos embora não se encontrem em estado de flagrante ou, até, em condutas potenciais criminosas, agindo de acordo com essa aptidão o policial na intenção de evitá-las mesmo antes que ocorram.
Usando outras palavras, tirocínio entende-se como uma espécie de instinto, “insight” ou “feeling” – mas não somente isso – aperfeiçoado pelo policial e que, em inúmeras vezes, acaba servindo para evitar mortes, roubos, estupros, entre outros, visto que tal capacidade de intuição desenvolvida e usada pelo policial o permite se antecipar, abordar e prender um transgressor potencial da lei mesmo antes que ele cometa um crime (caso exista um mandado judicial em aberto ou exista flagrante de algum outro ato delituoso, como a posse ou o porte de arma de fogo – que poderia ser usada para a execução de um roubo, por exemplo, mas que não o será por causa da antecipação policial), visto que essa é a função primordial da Polícia Militar, de acordo com o preconizado no já enunciado art. 144, parágrafo quinto da Constituição Federal de 1988.
É importantíssimo tornar claro que, em evidência, esta antecipação não tem nada a ver com a pigmentação da pele ou com suposto pertencimento à uma ou outra classe social a qual o indivíduo que vai ser abordado faça parte, mas sim com a reunião de diversos fatores, como os “indicadores criminais” já citados, entre outras tantas coisas. Ressaltamos, ainda, que o tirocínio policial se baseia, afora a experiência e a capacidade de discernimento policial, em critérios técnicos, e que devem ser os balizadores de toda e qualquer ação policial.
Neste caminho, de acordo com o preceituado por Walter de Lacerda Aguiar (2020, p. 16).
1- Necessidade – Indica que qualquer ação ou omissão deve ser implementada quando for indispensável.2- Avaliação dos Riscos – Orienta que toda e qualquer ação tem que levar em conta se os riscos dela advindos são compensados pelos resultados.3- Aceitabilidade – Toda a ação deve ter embasamento legal, moral e ético.”
Acontece que, em conformidade com o Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz, que é o relator do HC número 598.051, a intuição pessoal do policial não configura fato que possa legitimar o cerceamento do direito de ir e vir do indivíduo, mesmo que, ao abordar este indivíduo, sejam encontrados em sua posse objetos de um crime e, por isso, não esteja apta a facilitar a fundada suspeita que é tratada no art. 244 do CPP.
Este modo de entender possui muita relação com as decisões proferidas recentemente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em contrariedade a Argentina, onde o tema se baseia também na abordagem policial e fundada suspeita, no campo da qual o estado referido foi condenado, já que fora entendido terem violado, os policiais, os direitos constitucionais dos cidadãos quando realizada a busca pessoal sem que houvesse um concreto indício de que existisse sob a posse deles a possibilidade de encontrar objetos de crime – embora leve-se em conta o fato de que foram efetivamente encontrados tais objetos.
A CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos), que baseia-se no acordado no Pacto de San José da Costa Rica, do qual é signatário o Brasil desde 1992, em uma decisão recente, acontecida no ano de 2020, tornou nula a condenação ocorrida no País vizinho (logo após condenou o Estado Argentino) contra dois cidadãos – de nomes Tumbeiro e Prieto (elementos estes que foram encarcerados na distante década de 90), por ter entendido que, neste específico caso, inexistia uma prévia justificativa à busca pessoal que fora executada por parte dos policiais.
A referida decisão acabou servindo como paradigma que deve ser seguido pelos países signatários restantes do Pacto de San José da Costa Rica, como é o caso brasileiro. Acontece que, em seu voto, o Sr. Ministro Schietti, relator do HC número 598.051, fez esclarecer que uma das motivações pelas quais se deve exigir que a busca pessoal encontra justificativa em elementos palpáveis e concretos reside na tentativa de se evitar a reincidência de práticas que configurem preconceitos estruturais e que estão enraizados dentro da sociedade, como nos casos de “perfilamento racial, que é um direto reflexo do racismo estrutural”, atitudes estas que são combatidas com veemência pelo Pacto de San José da Costa Rica, que é um dos mais importantes tratados internacionais a abordarem assuntos referentes aos Direitos Humanos e cuja relevância é absolutamente inquestionável.
Acontece que, nesta ocasião, a CIDH enfatizou que a utilização de estereótipos como base para a realização da busca pessoal, “acaba pressupondo uma culpa presumida contra qualquer indivíduo que neles se enquadre e não em uma avaliação caso a caso dos fatores objetivos que indicam efetivamente que o indivíduo está relacionado com a execução de um crime”.
Nesta sentença, a Corte referida observou ainda que as prisões com bases discriminatórias acabam sendo "manifestamente incoerentes e, dessa forma, abusivas”.
Durante seu relatório de mérito:
(...) fez considerações a que ambas as prisões foram cometidas sem uma ordem judicial ou sem a configuração do estado de flagrante delito e apontou que, em nenhum destes casos foi estipulada de uma forma detalhista, em uma documentação oficial respectiva, a enumeração de quais fatos objetivos caracterizaram originalmente um grau de suspeita razoável que levasse à suspeita de uma ilicitude criminal”.
Em conformidade com o STJ, a obrigatoriedade desta instrução se justifica, apesar de tudo, pela finalidade de evitar a ação de restringir de forma desnecessária os direitos e as garantias individuais dos indivíduos e, assim, evitar uma repetição de práticas que configurem estruturais preconceitos. Acontece que a restrição de direitos e garantias de alguém abordado é necessária quando, por causa dessa restrição, se tem conhecimento da existência de algum crime.
Assim, mesmo que seja evidente, nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida, menos ainda o direito à liberdade. Se é irrazoável dar limite ao direito de um indivíduo – que encontre-se praticando um crime – por meros minutos, a fim de que se realize uma busca pessoal, que sentido há em existir policiamento ostensivo? Se faz interessante dar destaque, ainda, que em seu voto, o Sr. Ministro Rogerio Schetti Cruz levantou a necessidade de se analisar específica situação ocorrida em Nova York, em que, de acordo com ele, na citada cidade, “o percentual de eficiência das stop and fricks – que se traduzida literalmente soaria como “parar e revirar”, quer dizer, um termo que encontra familiaridade no usualmente descrito no Brasil como “uma dura” – encontrava-se na casa dos 12%, o que quer dizer, 12 vezes a porcentagem de assertividade da polícia brasileira, é assim mesmo, fora considerado muito baixo e inconstitucional pela juíza federal Shira Scheindlin em 2013.
É evidente que este número, por ele somente, não é capaz de justificar a falta de necessidade das buscas pessoais, até porque se trata de países que são diferentes e possuem realidades distintas, inclusive, somente no ano de 2021, foram assassinadas em nosso país 41.069 indivíduos, número este que representa uma média alarmante de 112 assassinatos violentos por dia no Brasil, números que podem ser comparados com as estatísticas de alguns países que estão em um estado de guerra.
Embora toda a falta de segurança e a polêmica geradas pela decisão que fora analisada acima, faz-se muito importante sinalizar que, de acordo com o que já foi esclarecido, não estamos tratando de uma decisão erga omnes, mas sim inter partes, quer dizer, somente possui efeitos sobre as partes que estão envolvidas no processo no campo do qual ela fora expressada. Além do mais, tanto o art. 240 quanto o art. 244 ainda estão em sua vigência, logo, comparando tais artigos com o art. 144 da Constituição Federal, acaba por se tornar evidente que a busca pessoal ainda é uma atribuição dos órgãos de polícia militar e, assim sendo, precisa ser realizada normalmente.
É evidente, face a todos os fatos já enunciados aqui e discutidos no estudo presente, que os policiais militares que executam a busca pessoal deverão começar a fazer a descrição dos indivíduos que irão caracterizar a fundada suspeita, inclusive assinalando com o máximo de detalhamento possível, para que não aconteça nenhuma possibilidade de prejuízo ao trabalho feito, que seja na soltura do indivíduo infrator, seja na responsabilização penal ou administrativa dos policiais envolvidos na execução da medida.
Com infelicidade, este cuidado não se caracteriza suficiente para dar garantias ao sucesso de uma diligência, visto que se trata de um assunto que caracteriza-se por muitos elementos de subjetividade – prova é que o acusado foi condenado em primeira e em segunda instâncias e contou com a decisão de revisão no STJ – assim, dependerá bastante da forma como o magistrado responsável pelo julgamento acabará entendendo a situação.
De fato, se espera que com o passar do tempo, o assunto acabe sendo enfrentado pelo Superior Tribunal Federal e, até quem sabe, se edite uma Súmula Vinculante com a finalidade de dar unidade ao entendimento dos demais tribunais brasileiros e assegurar o trabalho dos órgãos de Polícia Militar. Enquanto se espera, infelizmente, os policiais militares serão obrigados a lidar com essas dificuldades ao executarem o seu trabalho honroso.
CONCLUSÃO
No senso comum é difundida a noção de que um indivíduo qualquer que transita por algum espaço público pode ser vítima de uma abordagem e revista executada pela polícia (por todos, cf. RAMOS; MUSUMECI, 2005, p. 17).
Em outro cenário, na doutrina jurídica própria, pode-se afirmar que a busca pessoal é dependente somente de “fundada suspeita”, não raramente equiparada, nas oratórias policiais, à uma indicação de atitude, pessoa ou uma situação caracterizada como suspeita.
Elucidado nesse artigo, a simples adjetivação de atitudes, pessoas e situações caracterizadas como suspeitas, a partir de um potestativo juízo de não pertencimento e de estranheza elaborado pelo próprio policial, não se deve confundir com o requisito que é exigido pelo art. 244 do CPP para a execução da busca pessoal sem um prévio mandado (fundada suspeita de posse de arma ilegal, proibida, ou outro corpo de delito pelo abordado).
A falta de observância sistêmica do requisito que é exigido pelo CPP durante a prática da busca pessoal realizada pelas polícias é sintomática. Em concordância com a Exposição de Motivos do CPP, que nos remete a 1941, o “espírito do Código” eleva a eficiência da repressão penal ao patamar de finalidade primordial e relevava as garantias dos acusados ao mesmo propósito dos favores e franquias que à eles seriam concedidos alegadamente pela lei processual penal de antes.
Dessa maneira, a regulamentação da busca pessoal no já configurado como autoritário CPP não tem sido obedecida sob o pretexto de que se garanta segurança nos ambientes públicos.
Observa-se, em razão disto, um acréscimo na procura por eficiência que exige uma dupla e extrema tentativa de neutralizar a eficácia dos direitos e garantias fundamentais: o ditame de repressão à criminalidade é elevado com a finalidade de flexibilizar ou mesmo tornar distante a condição de aplicar normas que, todavia, já foram desenvolvidas partindo-se desse mesmo ditame.
Cabe assinalar que, o jugo costumeiro na prática da busca pessoal não se relaciona tanto com uma insuperável deficiência da lei – mesmo que esta possa sofrer aperfeiçoamento -, mas sim, está relacionado com uma desatenta e frágil interpretação que lhe é conferida pela própria doutrina jurídica, a qual engloba, por sua vez, um insuficiente controle da validez da medida.
Sendo assim, as buscas consideradas abusivas, que são justificadas como sendo procedimentos de rotina, não pode ser vinculada à deficiência da lei ou a falta de critérios na aplicação da mesma (selective enforcement), mas sim a falta de aplicação da lei e a correspondente falta de eficiência do controle de legalidade da ação. Neste panorama, em oposição a essa condição, é imprescindível solicitar uma observância estrita dos requisitos legais da busca pessoal por parte das polícias, assim como melhorar os mecanismos que fiscalizam, que monitoram e que fazem o controle da medida.
Estas providências demandam uma modificação postural não apenas das próprias corporações policiais, mas, inclusive, das instituições controladoras da atividade policial e da doutrina jurídica em si, com o objetivo de conferir mais segurança jurídica no delineamento das fronteiras de legalidade na intervenção policial. Tendo sido motivado pelo assunto abordado, este estudo trouxe esclarecimento a respeito de que, no tocante à natureza jurídica, existem duas modalidades de busca pessoal que são admitidas atualmente em nosso Código Normas: a Probatória e a Preventiva.
As características de validação de uma e de outra não encontram confusão. No primeiro modelo, a prática da busca pessoal é dependente da indicação de algo que indique a posse de corpo de delito por parte do indivíduo (busca probatória, regulada pelo art. 244 do CPP).
Já no segundo modelo, a busca pessoal é dependente da indicação de que existem indícios de uma posse de arma que possa ser utilizada contra o policial militar ou terceiros, em uma situação de dano ou que configure perigo imediato ou iminente (busca inibitória, baseada e fundamentada nas causas de exclusão de ilicitude dos arts. 24 e 25 do Código Penal).
Nos dois casos, a profundidade da busca deve respeitar os limites dados pelo fundamento motivador da sua execução, para evitar desvios. De outra forma, afora estas duas possibilidades de cabimento, a execução da busca pessoal na qualidade de medida policial de prevenção geral, em se tratando de pessoas em atitudes que se adjetivam como sendo suspeitas, é uma medida ilegal.
Nesta ação, se manifesta a função punitiva possível da busca, incluída em um regramento disciplinar em relação ao policiamento dos ambientes públicos, a ser veementemente evitado pelos mecanismos de controle da atividade da polícia.
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[1] Mestrando em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins e Escola Superior da Magistratura Tocantinense. Pós-graduado em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Prática Criminal na Faculdade Serra do Carmo – FASEC. Delegado de Polícia Civil do Estado do Tocantins. E-mail: [email protected]
Graduanda em Direito pela Faculdade Serra do Carmo – FASEC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, William Coêlho de. Busca pessoal: aspectos legais e jurisprudenciais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2022, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60153/busca-pessoal-aspectos-legais-e-jurisprudenciais. Acesso em: 23 dez 2024.
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