BERTO IGOR CABALLERO CUELLAR[1]
(orientador)
RESUMO: A COVID-19 consiste em uma patologia infectocontagiosa provocada por um tipo de coronavírus denominado SARS-CoV-2 que fez várias vítimas em grande parte do mundo. O Congresso Nacional reconheceu o estado de calamidade pública por meio da edição do Decreto Legislativo nº 6/2020 e foi publicada a Lei nº 13.979, no dia 6 de fevereiro de 2020. Tal Lei trouxe algumas medidas a serem adotadas no país para enfrentar a emergência que restringiram o direito de liberdade de locomoção como o isolamento social e a quarentena. Essas providências provocam grande impacto no direito de ir e vir dos indivíduos, bem como uma mudança no funcionamento da sociedade e na situação econômica do país. O objetivo geral foi aplicar o Teste da Proporcionalidade às medidas legais de isolamento e quarentena adotadas para controle da COVID-19 entre 2020 e 2021, especificamente averiguando se tais condutas foram adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito. A metodologia adotada foi a revisão bibliográfica, tendo como hipótese que as referidas providências cumprem todos os requisitos do exame da proporcionalidade. A partir das investigações e estudos das referências bibliográficas, conclui-se que as medidas de isolamento e quarentena atenderam todas as etapas do teste da proporcionalidade.
Palavras-chave: Covid-19. Proporcionalidade. Teste. Isolamento. Quarentena.
ABSTRACT: COVID-19 is an infectious disease caused by a type of coronavirus called SARS-CoV-2 that has claimed several victims in much of the world. The National Congress recognized the state of public calamity through the enactment of Legislative Decree No. 6/2020 and Law No. 13,979 was published on February 6, 2020. This Law brought some measures to be adopted in the country to face the emergency that restricted the right to freedom of movement such as social isolation and quarantine. These measures have a great impact on individuals' right to come and go, as well as a change in the functioning of society and the country's economic situation. The general objective was to apply the Proportionality Test to the legal isolation and quarantine measures adopted to control COVID-19 between 2020 and 2021, specifically verifying whether such conducts were adequate, necessary and proportional in the strict sense. The methodology adopted was the bibliographic review, with the hypothesis that the aforementioned measures meet all the requirements of the proportionality examination. From the investigations and studies of the bibliographic references, it is concluded that the isolation and quarantine measures met all stages of the proportionality test.
Keywords: Covid-19. Proportionality. Test. Isolation. Quarantine.
1 INTRODUÇÃO
A COVID-19 consiste em uma patologia infectocontagiosa provocada por um tipo de coronavírus denominado SARS-CoV-2. Essa enfermidade surgiu na cidade de Wuhan, na China. Devido ao seu caráter altamente transmissível, propagou-se rapidamente por diversos continentes e fez várias vítimas em grande parte do mundo (FAGUNDES; DUARTE, 2022).
Ele se alastra por meio de gotículas respiratórias e aerossóis que as pessoas contaminadas expelem ao tossir, respirar, espirrar ou falar. Além disso, essa doença atinge o sistema respiratório, podendo gerar os seguintes sintomas: dispneia, febre, dor, náuseas, fadiga muscular, vômitos, diarreia e outros (FAGUNDES; DUARTE, 2022).
A maioria dos indivíduos acometidos pela moléstia são pacientes sintomáticos, mas há casos de enfermos assintomáticos. Aqueles que são sintomáticos manifestam quadros leves a moderados, não sendo necessário tratamento hospitalar (FAGUNDES; DUARTE, 2022).
No entanto, alguns indivíduos como idosos e pessoas com condições metabólicas subjacentes, como diabetes mellitus, hipertensão e hiperlipidemia, apresentam risco maior de mortalidade e podem desenvolver um estado grave diante da doença, sendo imprescindíveis cuidados médico-hospitalares especializados (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2021; STASI et al, 2020).
Para se ter uma dimensão da problemática, as estimativas da Organização Mundial da Saúde evidenciaram que até 6 de junho de 2022 foram registrados 529.410.287 casos no mundo, com indicador de 6.296.771 óbitos relacionados à enfermidade (BRASIL, 2022).
Diante disso, a Organização Mundial de Saúde estabeleceu as medidas com maior eficácia para controle da pandemia em uma declaração traduzida pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) (2021). Entre as medidas contidas em sua orientação pode-se citar: restrições para sair de casa, cancelamento de eventos de massa e restrições para reuniões, fechamento de comércio, distanciamento social, entre outros.
No Brasil, o primeiro caso de COVID-19 noticiado ocorreu em 26 de fevereiro de 2020 e, conforme dados apresentados pelas Secretarias Estaduais ao Ministério da Saúde, de 26 de fevereiro de 2020 a 18 de junho de 2022, foram confirmados 31.693.502 casos de pessoas infectadas e 669.010 óbitos, demonstrando a incidência de 14844,4, mortalidade de 317,4 e letalidade de 2,1% (BRASIL, 2022).
Em razão de todo o exposto, o Congresso Nacional reconheceu o estado de calamidade pública por meio da edição do Decreto Legislativo nº 6/2020. Além disso, com o objetivo de controlar a propagação do vírus, foi publicada a Lei nº 13.979 no dia 6 de fevereiro de 2020, tramitada em regime de urgência, que dispôs sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
Tal norma, que ficou conhecida como Lei da quarentena, trouxe algumas medidas a serem adotadas no país para enfrentar a emergência em virtude da doença que restringem o direito de locomoção como o isolamento e a quarentena. Em seu art. 3º, a Lei autorizou o Poder Executivo, em todos os âmbitos, a determinar essas e outras providências.
Essas medidas de prevenção da COVID-19 provocam grande impacto no direito de ir e vir dos indivíduos, além de gerarem uma mudança no funcionamento da sociedade e na situação econômica do país. Em razão disso, é muito importante analisar a proporcionalidade das providências aplicadas eis que ocasionaram as mencionadas interferências.
O presente trabalho científico tem como objetivo geral aplicar o Teste da Proporcionalidade às medidas legais de isolamento e quarentena adotadas para controle da COVID-19 entre 2020 e 2021, especificamente averiguando se tais condutas foram adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito. Ademais, com este artigo científico tem-se o escopo de contribuir para os estudos acerca do tema.
A metodologia de pesquisa será realizada por meio de uma revisão bibliográfica. A divisão deste estudo de conclusão de curso foi organizada em capítulos, estabelecendo uma correlação entre os assuntos utilizando as bibliografias referenciadas.
A problemática abordada no presente trabalho acadêmico envolve o seguinte questionamento a respeito do tema objeto de estudo: as medidas legais de isolamento e quarentena adotadas para controle da COVID-19 atendem aos requisitos do Teste da Proporcionalidade?
A autora do artigo tem como hipótese que tais medidas aplicadas cumprem todos os preceitos do Teste da Proporcionalidade, ou seja, que são adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito, de modo que o direito à saúde prevalece no sopesamento ou ponderação.
2 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
A proporcionalidade possui natureza jurídica de princípio. Paulo Bonavides (2002) conceitua princípios como uma representação dos valores máximos que servem como norte para o ordenamento jurídico vigente, constituindo norma fundamental orientadora.
José Afonso da Silva (2005, p. 91) traz o seguinte conceito de norma:
As normas são preceitos que tutelam situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, ou seja, reconhecem, por um lado, a pessoas ou a entidades a faculdade de realizar certos interesses por ato próprio ou exigindo ação ou abstenção de outrem, e, por outro lado, vinculam pessoas ou entidades à obrigação de submeter-se às exigências de realizar uma prestação, ação ou abstenção em favor de outrem.
De acordo com Robert Alexy (2015, p. 86-87), norma é uma regra ou um princípio, sendo que princípios são: “normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes”.
Dessa forma, segundo o jurista alemão, consiste em um comando em que seu grau de cumprimento é determinado pela sua possibilidade jurídica de ser aplicado em relação a outros princípios e regras que fazem oposição, e possibilidade real diante de uma determinada situação fática (ALEXY, 2015).
O princípio da proporcionalidade, também chamado de princípio da vedação de arbítrio ou proibição de excesso, consiste em uma norma que estabelece a necessidade de as leis e os atos administrativos estarem de acordo com os preceitos da justiça e da razão (MARQUES, 2009).
No julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.031/DF, a Ministra Cármen Lúcia, que na ocasião foi a relatora, em seu voto trouxe o seguinte conceito esclarecedor do princípio da proporcionalidade:
O princípio da proporcionalidade, capaz de integrar juridicamente situação que envolva direitos fundamentais conflitantes, incide quando houver medida concreta destinada a efetivar uma finalidade. Referido princípio se desdobra em subprincípios pelos quais se revelam o princípio da adequação determinando que se observe, na espécie em exame, se a medida restritiva do direito fundamental é idônea a atingir a finalidade pretendida com a restrição; o princípio da necessidade, pelo qual, entre vários meios apropriados para a obtenção da finalidade objetivada, deve-se escolher o meio mais eficaz e menos gravoso ao direito restringido; e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, pelo qual se deve atentar à justa medida entre a restrição e a finalidade dos princípios conflitantes (BRASIL, 2020, p. 16).
Historicamente, o surgimento do princípio da proporcionalidade remete ao momento pós Segunda Guerra Mundial. Diante das atrocidades e crueldades executadas pela ideologia extremista e totalitária nazista, a proporcionalidade veio como um instrumento utilizado para reagir às prefaladas barbaridades, impondo limites ao Poder Público do Estado Alemão que violou a garantia dos direitos dos indivíduos (MARQUES, 2009).
O referido princípio tem origem no Direito Penal, o qual trouxe a máxima de que as sanções penais cominadas e aplicadas devem estabelecer uma relação de proporcionalidade com a gravidade das infrações cometidas, devendo ser imposto o meio adequado e necessário para proteger o bem jurídico violado (MARQUES, 2009).
Em âmbito internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu art. 29 estabelece os seguintes pontos:
1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.
2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas (BRASIL, 2013, p. 23).
Ademais, o art. 30 do mesmo diploma que versa sobre direitos humanos tem a seguinte redação:
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos (BRASIL, 2013, p. 23).
As disposições presentes nos artigos mencionados da Declaração Universal dos Direitos Humanos são imprescindíveis e contribuem para a construção da relevância do princípio da proporcionalidade na medida em que busca assegurar os direitos e liberdades estabelecidos nela e a justiça social.
Dirley da Cunha Júnior (2009, p. 50) explica o seguinte sobre do que se trata a proporcionalidade:
É um importante princípio constitucional que limita a atuação e a discricionariedade dos poderes públicos e, em especial, veda que a Administração Pública aja com excesso ou valendo-se de atos inúteis, desvantajosos, desarrazoados e desproporcionais.
O princípio da proporcionalidade não está previsto de forma expressa na Constituição Federal de 1988, sendo, portanto, um princípio implícito no texto constitucional. Existem alguns dispositivos e fundamentos constitucionais que fazem referência à ideia proposta pelo referido princípio. Entre os artigos que podem ser mencionados, tem-se o art. 37, o art. 5°, II e o art. 84, IV do diploma constitucional.
Nesse sentido, Paulo Bonavides (2002, p. 434) explica que:
Em nosso ordenamento constitucional não deve a proporcionalidade permanecer encoberta. Em se tratando de princípio vivo, elástico, prestante, protege ele o cidadão contra os excessos do Estado e serve de escudo à defesa dos direitos e liberdades constitucionais. De tal sorte que urge, quanto antes, extraí-lo da doutrina, da reflexão, dos próprios fundamentos da Constituição, em ordem a introduzi-lo, com todo o vigor, no uso jurisprudencial.
A Lei n° 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que rege o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, em nível infraconstitucional trouxe expressamente o princípio da proporcionalidade em seu art. 2° entre os princípios que a Administração Pública deverá obedecer (BRASIL, 1999).
Outrossim, o art. 2°, parágrafo único, VI da mencionada Lei dispõe que:
Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público (BRASIL, 1999).
Portanto, é evidente a importância que esse princípio possui para nortear a atuação do Estado ao estabelecer medidas para garantir os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, devendo cumprir seu papel social de forma eficiente, proporcional e sem excessos.
Gilmar Mendes (2012), expondo o direito comparado, explica as disposições do direito constitucional alemão sobre o princípio da proporcionalidade. Conforme a legislação constitucional alemã, a aplicação dele abrange a análise da necessidade e da adequação da medida legal, sendo adequada quando da sua aplicação pode ser alcançado o objetivo desejado, e necessária se não existe outra providência que proporcione maior eficácia e menos restrição aos direitos fundamentais em questão (MENDES, 2012).
O princípio da proporcionalidade é utilizado com frequência na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme vários precedentes da Suprema Corte, sendo de suma importância para a resolução de várias situações. No julgamento do HC nº 124.306/RJ, o Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, reconheceu a inconstitucionalidade da criminalização do aborto até a 12ª semana de gestação aplicando o postulado da proporcionalidade (BRASIL, 2016).
Ao discorrer sobre a problemática a ser apreciada pela Suprema Corte, em seu voto-vista, Barroso afirmou que: ''O princípio da proporcionalidade destina-se a assegurar a razoabilidade substantiva dos atos estatais, seu equilíbrio ou justa medida'' (BRASIL, 2016, p. 8).
Ademais, expõe a subdivisão da proporcionalidade em três subprincípios: adequação, necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Adequação é o subprincípio responsável por verificar se a medida aplicada possui idoneidade para alcançar a finalidade almejada (BRASIL, 2016).
A necessidade traz a ideia de que não devem ocorrer excessos. De acordo com Dirley da Cunha Júnior (2009, p.52), através do subprincípio da necessidade “impõe-se que a administração pública adote, entre os atos e meios adequados, aquele ou aqueles que menos sacrifícios ou limitações causem aos direitos dos administrados”.
A proporcionalidade em sentido estrito se constitui no exame da diligência aplicada com o objetivo de, nos termos do voto proferido por Luís Roberto Barroso, determinar: ‘‘Se o que se ganha é mais valioso do que aquilo que se perde’’ (BRASIL, 2016, p. 8). Ou seja, é uma análise de ganhos e sacrifícios.
Outro precedente que envolveu a aplicação da proporcionalidade e suas fases foi o julgamento da ADPF nº 101/DF que trouxe a discussão sobre numerosas decisões judiciais autorizando importação de pneus usados, contrariando Portarias do Departamento de Operações de Comércio Exterior (Decex) e da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), Resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e Decretos Federais que, expressamente, vedam a importação de bens de consumo usados (BRASIL, 2009).
Conforme o voto da Relatora Ministra Cármen Lúcia, realizando um juízo de ponderação entre valores, a Suprema Corte brasileira ao julgar estabeleceu que: ‘‘há de se ter em conta que o preço industrial a menor não poderia se converter em preço social a maior, a ser pago com a saúde das pessoas e com a contaminação do meio ambiente” (BRASIL, 2009, p. 72).
Ou seja, no caso concreto apreciado, os princípios do meio ambiente economicamente equilibrado e da saúde prevaleceram na ponderação diante dos prejuízos à saúde e ao meio ambiente, constatados nos dados apresentados na petição inicial da referida ADPF (BRASIL, 2009).
Outro julgado do Supremo Tribunal Federal foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.031/DF onde questionou-se a constitucionalidade do art. 8º da Lei nº 10.209/2001, que instituiu o vale-pedágio obrigatório sobre o transporte rodoviário de carga (BRASIL, 2020).
Na Lei objeto de julgamento, há a previsão, em seu art. 8º, de uma indenização em quantia equivalente a duas vezes o valor do frete devido ao transportador quando não ocorrer a antecipação do vale-pedágio obrigatório pelo embarcador (BRASIL, 2020).
Nos termos do voto da Ministra Cármen Lúcia, a autora da ação argumentou que a norma impugnada configuraria contrariedade ao art. 1º, caput, e ao art. 5º, LIV da Constituição Federal e que a medida constitui ofensa à adequação, à necessidade e à proporcionalidade em sentido estrito (BRASIL, 2020).
Ao realizar o controle de constitucionalidade da norma questionada, a Ministra tratou em seu voto sobre a importância do princípio da proporcionalidade como parâmetro constitucional, afirmando o seguinte:
O exame da norma impugnada, tendo como parâmetro constitucional o princípio da proporcionalidade, torna indispensável a conceituação e o campo de incidência desse princípio como critério válido para o exercício do controle abstrato e concentrado das normas (BRASIL, 2020, p. 16).
Dando continuidade ao seu voto, discorrendo sobre a proporcionalidade do caso concreto objeto de julgamento, Cármen Lúcia explica que o referido princípio possui duas faces: uma de proteção positiva e outra de proteção de omissões estatais (BRASIL, 2020).
Na primeira face, a inconstitucionalidade de casos envolvendo a aplicação da proporcionalidade pode ser ocasionada por uma conduta excessiva do Estado por meio de ato contrário à razoabilidade, configurando uma desproporcionalidade entre os meios e as finalidades (BRASIL, 2020).
Na outra face, a inconstitucionalidade refere-se a uma garantia insuficiente do direito fundamental ou princípio a partir do momento em que o Estado em sua atuação, que deve ser voltada para a eficiência e razoabilidade, não utiliza sanções penais ou administrativas para protegê-los (BRASIL, 2020).
A Ministra da Suprema Corte brasileira também trouxe em sua exposição o seguinte detalhe relacionado ao princípio da proporcionalidade que é muito importante:
A atividade legislativa sujeita-se à estrita observância de diretriz fundamental que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade, nesse contexto, está direcionado a inibir e neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais (BRASIL, 2020, p. 18).
Por fim, ao proferir sua posição sobre o caso, a jurista afirmou que não identificou normas constitucionais em conflito para que seja necessária a ponderação com base na proporcionalidade, convertendo o julgamento da medida cautelar em definitivo de mérito para conhecer da ação direta de inconstitucionalidade e, no mérito, julgando-a improcedente para declarar constitucional o art. 8º da Lei nº 10.209/2001 (BRASIL, 2020).
Com isso, fica claro que é imprescindível que exista efetivamente uma colisão entre princípios ou direitos para que seja aplicado o princípio da proporcionalidade. Configurando o referido conflito, será feita a averiguação de qual deles prevalecerá no sopesamento a partir da análise de seus pesos na situação fática objeto de discussão.
3 MEDIDAS LEGAIS DE ISOLAMENTO E QUARENTENA
A Lei nº 13.979/2020 define em seu art. 2º conceitua isolamento e quarentena, diferenciando-os. O inciso I do referido dispositivo legal define isolamento como: ‘‘Separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus.’’
Ademais, o inciso II do mencionado artigo estabelece que quarentena é o seguinte:
Restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus (BRASIL, 2020).
A partir desses conceitos legais e dos efeitos concretos que provocaram, infere-se que essas medidas geraram restrição e grande interferência na liberdade das pessoas, nos comportamentos e hábitos da sociedade, e na economia do Brasil (FAGUNDES; DUARTE, 2022).
Com a adoção dessas medidas ocorreu a suspensão de aulas presenciais nas escolas e universidades, tendo sido adotado o modelo de ensino remoto. Além disto, houve o fechamento do comércio envolvendo atividades não essenciais e de áreas públicas para lazer, entre outros (FAGUNDES; DUARTE, 2022). Por isso, é importante averiguar se o que foi aplicado pelo Poder Público está dentro dos ditames da proporcionalidade.
4 TESTE DA PROPORCIONALIDADE
O Teste da Proporcionalidade consiste em um método utilizado com o objetivo de analisar se uma medida estatal possui compatibilidade com a Constituição Federal e os direitos fundamentais. Esse teste surgiu a partir da chamada ‘‘Lei do Sopesamento’’ idealizada por Robert Alexy (ALEXY, 2015).
Em sua doutrina, Alexy estabelece esse conceito sobre do que se trata o teste da proporcionalidade: “O exame da proporcionalidade caracteriza-se como um núcleo essencial para a ocorrência da otimização diante dos conflitos entre princípios no caso concreto, sendo, portanto, um próprio mandamento de ponderação” (ALEXY, 2008, p. 156).
O referido exame possui três etapas: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Na fase da adequação busca-se verificar se a medida estatal é adequada para o objetivo que o Estado busca promover, se há uma relação de adequação entre a finalidade buscada pelo Estado e a medida estatal (GUERRA, 2007; MALTA, 2016).
Na fase da necessidade analisa-se se a medida é imprescindível ao objetivo almejado. A medida estatal será considerada necessária se for provado que não existe outra medida disponível além dela que possa ser aplicada de modo que garanta o interesse do Estado, interferindo menos no direito fundamental ou princípio (GUERRA, 2007; MALTA, 2016).
Por fim, na fase da proporcionalidade em sentido estrito realiza-se o sopesamento ou ponderação examinando a interferência no direito fundamental ou princípio, o peso dos direitos ou princípios e o grau de certeza da interferência (GUERRA, 2007; MALTA, 2016).
4.1 NECESSIDADE
Tendo em vista o caráter altamente transmissível do vírus, não havia outra medida disponível que interferisse menos no direito fundamental para garantir a contenção da doença e o direito à saúde de todos, finalidade buscada pelo Estado. Embora tenha sido uma ordem que restringiu o direito de liberdade de locomoção, produziu impacto relevante para o controle da taxa de mortalidade no país (SCHIRATO, 2020).
Somado a isso, a retirada do caráter compulsório do isolamento e da quarentena, ou a adoção de outras imposições como concessão de benefícios ou isenções fiscais para aqueles que cumprirem, envolveriam maiores custos ao erário e interferências em outros direitos fundamentais (SCHIRATO, 2020).
Além disso, não adotar ou tornar discricionário o cumprimento dessas medidas geraria um colapso no sistema de saúde. Isso porque poderia provocar um contágio desenfreado ainda maior da doença e, consequentemente, aumentar a necessidade de leitos e de cilindros de oxigênio nos hospitais, recursos que se demonstraram insuficientes durante a crise viral, agravando a situação do país.
Um exemplo que evidenciou a insuficiência de recursos para lidar com a pandemia foi o caso que ocorreu em Manaus no dia 14 de janeiro de 2021. Instaurou-se um cenário caótico no sistema de saúde em razão da falta de oxigênio nos hospitais (GLOBO NOTÍCIAS, 2022).
Durante dois dias, as unidades de saúde enfrentaram a escassez de insumos desencadeada pela superlotação quando ocorreu a denominada ‘‘segunda onda da COVID-19’’ (GLOBO NOTÍCIAS, 2022). Portanto, caso não fossem aplicadas medidas de isolamento e quarentena com caráter obrigatório, a insuficiência de recursos no país seria ainda maior.
4.2 ADEQUAÇÃO
Com a imposição dessas medidas, o Estado tem o objetivo de proteger o direito à saúde, bem jurídico de grande importância que repercute em outros como a vida e abrange a dignidade da pessoa humana, essa que constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme o art. 1º da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).
É evidente que há uma relação de adequação entre a finalidade almejada pelo Estado e as medidas estatais, pois com essas providências foi possível controlar a taxa de contágio da doença viral, e, consequentemente, preservando a saúde dos indivíduos brasileiros.
Um caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal, que envolveu a problemática objeto deste estudo, foi a Reclamação nº 40.786/CE. Conforme o descrito na decisão pela Ministra Cármen Lúcia, o reclamante impetrou mandado de segurança coletivo contra um ato praticado pelo Governador do Estado do Ceará, o qual instituiu a política de isolamento social rígido como medida para enfrentar a pandemia provocada pela COVID-19, através do Decreto Estadual nº 33.574/2020 (BRASIL, 2020).
O impetrante alegou que a autoridade coatora realizou ato ilegal por violar o direito à liberdade e a garantia do exercício de atividade econômica. Argumentou também que o Decreto contraria a Lei nº 13.979/2020, a qual determina que as medidas restritivas necessárias para enfrentar a emergência de saúde pública devem ter evidências científicas e decorrer de análises sobre as informações estratégicas em saúde, sendo que deve ocorrer limitações no tempo e no espaço dessas providências ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública (BRASIL, 2020).
Em razão disso, o autor da ação argumenta que o diploma normativo objeto da impugnação editado pelo Governador está despido de embasamento científico. Além de ter sido questionada a eficácia da medida afirmando que não modifica a situação de propagação da moléstia viral, que excede as necessidades para combater a doença (BRASIL, 2020).
Com isso, a Ministra Cármen Lúcia explica na referida decisão:
A decisão reclamada não expõe contrariedade ao decidido por este Supremo Tribunal nas decisões apontadas como paradigmas de confronto. Nelas se reafirma a autonomia dos Estados e Municípios para adotar medidas locais de combate à pandemia provocada pela Covid-19, respaldadas em critérios técnico-científicos (BRASIL, 2020, p. 9).
Na ocasião, a Ministra mencionou outro caso paradigma que foi a ADI nº 6.341/DF. Conforme o exposto no Acórdão:
O direito à saúde é garantido por meio da obrigação dos Estados Partes de adotar medidas necessárias para prevenir e tratar as doenças epidêmicas e os entes públicos devem aderir às diretrizes da Organização Mundial da Saúde, não apenas por serem elas obrigatórias nos termos do Artigo 22 da Constituição da Organização Mundial da Saúde (Decreto 26.042, de 17 de dezembro de 1948), mas sobretudo porque contam com a expertise necessária para dar plena eficácia ao direito à saúde (BRASIL, 2020, p. 2).
Diante disso, as medidas de isolamento e de quarentena adotadas encontram-se na recomendação elaborada pela Organização Mundial da Saúde, conforme documento traduzido pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) (2021). Outrossim, o Estado tem o dever de proteger a saúde a saúde dos indivíduos. Portanto, as providências de isolamento e quarentena são adequadas como meio de controle do alastramento do vírus, protegendo a saúde e, consequentemente, a vida da população.
4.3 PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO
Essa fase do exame da proporcionalidade realiza um sopesamento a partir de direitos ou princípios em conflito. Gilmar Mendes (2012) esclarece sobre do que se trata uma colisão de direitos fundamentais. O Ministro explica que tal embate ocorre quando é possível verificar conflito em virtude do exercício de direitos individuais pertencentes a um titular ou de bens jurídicos da coletividade, atingindo diretamente a área de salvaguarda do direito.
Ademais, Gilmar Mendes (2012, p. 343) expõe que:
A doutrina cogita de colisão de direitos em sentido estrito ou em sentido amplo. As colisões em sentido estrito referem-se apenas àqueles conflitos entre direitos fundamentais. As colisões em sentido amplo envolvem os direitos fundamentais e outros princípios ou valores que tenham por escopo a proteção de interesses da comunidade.
Dando continuidade, o jurista elucida que o conflito entre direitos fundamentais em sentido estrito pode fazer referência a direitos fundamentais idênticos ou diferentes. Já as colisões em sentido amplo são aquelas que compreendem direitos fundamentais e outros valores constitucionalmente relevantes (MENDES, 2012).
Outrossim, explicita que há quatro tipos básicos de embates entre direitos fundamentais em sentido estrito: colisão de direito fundamental enquanto direito liberal de defesa, colisão de direito de defesa de caráter liberal e o direito de proteção, colisão do caráter negativo de um direito com o caráter positivo desse mesmo direito e colisão entre o aspecto jurídico de um direito fundamental e o seu aspecto fático (MENDES, 2012).
As medidas legais de isolamento e quarentena geraram um conflito entre dois direitos fundamentais: o direito de liberdade de locomoção e o direito à saúde. O direito de locomoção está previsto no art. 5º, XV, da Constituição Federal de 1988 que dispõe da seguinte forma: ‘‘é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens’’.
Entretanto, o direito de ir e vir não é absoluto, pois o ordenamento jurídico brasileiro prevê hipóteses em que pode ser imposta limitação àquele. Exemplo disso encontra--se no art. 302 do Código de Processo Penal que prevê a prisão em flagrante delito (BRASIL, 1941).
Outra situação que enseja restrição ao direito de ir e vir é no caso de ser decretado o Estado de sítio, nos termos do art. 137 da Constituição Federal de 1988, in verbis:
Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:
I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;
II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira (BRASIL, 1988).
Como limite ao direito de liberdade de locomoção, há a prisão civil em caso de descumprimento involuntário e inescusável de pagamento de pensão alimentícia, conforme o art. 5º, LXVII, da Constituição de 1988 que dispõe o seguinte: ‘‘não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel’’ (BRASIL, 1988).
A Constituição Imperial brasileira de 1824, dispôs pela primeira vez sobre o direito à saúde em seu art. 179, XXXI, a qual garantiu os socorros públicos (BRASIL, 1824). Ademais, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 1934, em seu art. 10, II, dispôs que compete concorrentemente à União e aos Estados cuidar da saúde e assistência públicas (BRASIL, 1934).
Com a Constituição da República Federativa do Brasil, que teve sua promulgação em 1988, elevou o direito à saúde ao patamar de direito fundamental, incluindo-o capítulo referente aos direitos sociais e no título VIII que trata da ordem social (BRASIL, 1988).
O direito à saúde encontra-se positivado no art. 6º da Constituição Federal de 1988, sendo competência comum dos entes federativos cuidar da saúde e assistência pública, conforme o art. 23, II, da Carta Magna, e o Estado tem o dever de garantir os meios para preservar a saúde de todos.
O art. 196 da Constituição consagrou a proteção da saúde, enfatizando o dever do Estado em garanti-la, nos seguintes termos:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988).
Tendo em vista que o conflito no caso concreto, alvo do presente estudo científico, envolve direitos fundamentais e outros valores constitucionalmente relevantes, trata-se de uma colisão de direitos fundamentais em sentido amplo de acordo com a classificação de colisões em sentido estrito e em sentido amplo (MENDES, 2012).
Robert Alexy (2015, p. 89) explica de forma clara sobre do que se trata colisão entre princípios e como resolver o conflito:
(…) quando dois princípios entram em colisão, tal como é o caso quando, segundo um princípio, algo está proibido e, segundo outro, está permitido -, um dos princípios tem que ceder ante o outro. Porém, isto não significa declarar inválido o princípio afastado, nem que, no princípio afastado, se deva introduzir uma cláusula de exceção. Mas propriamente, o que ocorre é que, sob certas circunstâncias, um dos princípios precede ao outro. Sob outras circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada de maneira inversa. Isto é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm diferente peso e que predomina o princípio com maior peso. Os conflitos de regras se concluem na dimensão da validez; a colisão de princípios - como somente podem entrar em colisão princípios válidos - tem lugar mais adiante do que o da dimensão da validez: na dimensão do peso.
Ademais, para Robert Alexy, a ponderação ou sopesamento opera-se em três planos. Primeiro deve ser definida a intensidade da intervenção nos direitos fundamentais ou princípios. Em segundo plano, busca-se identificar a importância dos fundamentos que justificam tal interferência. Por fim, é efetuada a ponderação em sentido estrito (GUERRA, 2007).
Alexy explica que a proporcionalidade em sentido estrito pode ser formulada a partir da denominada ‘‘Lei do Sopesamento’’. De acordo com ela, “quanto mais intensa se revelar a intervenção em um dado direito fundamental, mais significativos ou relevantes hão de ser os fundamentos justificadores dessa intervenção’’ (MENDES, 2012, p. 810).
José Afonso da Silva (2005, p. 163) traz um conceito de direitos fundamentais, estabelecendo que eles designam:
No nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que o [ordenamento jurídico] concretiza em garantia de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive (SILVA, 2005, p. 163; MENDES, 2012, p. 211).
Quanto à indisponibilidade apontada como caracterizadora dos direitos fundamentais, de acordo com Gilmar Mendes (2012), em virtude da inviabilidade de renunciar de forma irrevogável aos direitos fundamentais, não há impedimento para que seja aplicada restrição a determinados direitos fundamentais em favor da finalidade pretendida pela ordem constitucional.
Como exemplo, o autor apresenta o caso da liberdade de expressão durante o exercício de trabalho ou profissão (MENDES, 2012). A liberdade de expressão encontra-se positivada no art. 5º, IV e IX, da Constituição de 1988. O inciso IV determina que: ‘‘é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato’’ (BRASIL, 1988).
Entretanto, ao exercer trabalho ou profissão, o trabalhador tem a restrição de não divulgar os segredos obtidos em virtude da função executada, sendo crime a violação do segredo profissional sem justa causa, nos termos do art. 154 do Código Penal, in verbis:
Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa de um conto a dez contos de réis (BRASIL,1940).
Os direitos fundamentais estão positivados na Carta Magna, caracterizando a chamada constitucionalização dos direitos fundamentais. Isso faz com que esses sejam parâmetros que devem ser observados por todos os Poderes da Federação, em todas as esferas (MENDES, 2012).
Além disso, tal constitucionalização não deve ser interpretada de modo que os direitos fundamentais sejam considerados apenas limitações aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, não podendo aqueles sofrerem supressão, nem alteração pela atuação desses (MENDES, 2012).
Reforçando tal ideia, Gilmar Mendes (2012, p. 218-219) explica que:
Nenhum desses Poderes se confunde com o poder que consagra o direito fundamental, que lhes é superior. Os atos dos poderes constituídos devem conformidade aos direitos fundamentais e se expõem à invalidade se os desprezarem.
O Poder Legislativo encontra-se vinculado aos direitos fundamentais de modo que, ainda que possa existir autorização constitucional para impor restrições a determinados direitos, deve ser preservado o núcleo essencial do direito assegurado (MENDES, 2012).
Caso sejam criadas circunstâncias que não respeitem a razoabilidade e a proporcionalidade de forma que o direito previsto não tenha como ser exercido, são ilegítimas. Os Poderes Executivo e Judiciário também estão intrinsecamente relacionados com os direitos fundamentais (MENDES, 2012).
A Administração Pública em sua atuação deve respeitar e aplicar medidas para concretizar os direitos fundamentais protegidos pela Constituição Federal, de modo que os atos que forem realizados com violação àqueles tornam-se nulos (MENDES, 2012).
Além disso, pelo princípio da autotutela, a Administração Pública possui o poder-dever de exercer controle e fiscalização sobre os seus próprios atos, anulando-os quando ilegais ou revogando-os quando inconvenientes ou inoportunos, nos termos das Súmulas nº 473 e nº 346 do Supremo Tribunal Federal.
Gilmar Mendes (2012, p. 221), dando continuidade à explicação da vinculação existente os direitos fundamentais e a Administração, esclarece o seguinte:
A vinculação da Administração às normas de direitos fundamentais torna nulos os atos praticados com ofensa ao sistema desses direitos. De outra parte, a Administração deve interpretar e aplicar as leis segundo os direitos fundamentais. A atividade discricionária da Administração não pode deixar de respeitar os limites que lhe acenam os direitos fundamentais. Em especial, os direitos fundamentais devem ser considerados na interpretação e aplicação, pelo administrador público, de cláusulas gerais e de conceitos jurídicos indeterminados.
Como anteriormente exposto, o Poder Judiciário, evidentemente, também está intimamente relacionado com os direitos fundamentais, tendo o dever de defender direitos que foram violados ou que estão sofrendo ameaça de serem infringidos (MENDES, 2012). Corroborando com o exposto, o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal institui que: ‘‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’’ (BRASIL 1988).
Portanto, o Poder Público brasileiro ao aplicar as medidas de isolamento e quarentena para controle da pandemia gerada pela COVID-19, estava cumprindo com o dever de preservar o direito à saúde em virtude da vinculação com os direitos fundamentais. Embora tenha restringido o direito à liberdade de locomoção, não criou tais circunstâncias de maneira desarrazoada.
Somado a isso, buscando garantir maior efetividade aos direitos fundamentais, o art. 5º, §1º, da Constituição Federal de 1988, determina que: ‘‘as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata’’ (BRASIL, 1988). Importante ressaltar que o dispositivo constitucional faz referência tanto aos direitos e garantias individuais quanto aos direitos sociais, isto é, abrange os direitos fundamentais em geral (MENDES, 2012).
Gilmar Mendes (2012), continuando a discorrer sobre os direitos fundamentais, explica que eles possuem duas dimensões: objetiva e subjetiva. Sobre a dimensão subjetiva explica a ideia a seguir:
A dimensão subjetiva dos direitos fundamentais corresponde à característica desses direitos de, em maior ou em menor escala, ensejarem uma pretensão a que se adote um dado comportamento ou se expressa no poder da vontade de produzir efeitos sobre certas relações jurídicas. Nessa perspectiva, os direitos fundamentais correspondem à exigência de uma ação negativa (em especial, de respeito ao espaço de liberdade do indivíduo) ou positiva de outrem, e, ainda, correspondem a competências — em que não se cogita de exigir comportamento ativo ou omissivo de outrem, mas do poder de modificar-lhe as posições jurídicas (MENDES, 2012, p. 242-243).
Já quanto a dimensão objetiva refere-se ao fato de os direitos fundamentais serem verdadeiros princípios norteadores da ordem constitucional brasileira, servindo de limite e parâmetro para as ações do Estado. Além disso, fazem parte do núcleo essencial de um Estado Democrático de Direito (MENDES, 2012).
Consequentemente, é atribuído ao Estado o dever de garantir que os direitos fundamentais sejam protegidos contra ofensas e violações, devendo, ainda, segundo Gilmar Mendes (2012, p. 244): “adotar medidas — até mesmo de ordem penal — que protejam efetivamente os direitos fundamentais”.
Gilmar Mendes (2012, p. 214) ao descrever e argumentar sobre as características dos direitos fundamentais amplamente difundidas, afirmou o seguinte sobre a ideia de que direitos fundamentais são absolutos:
Não há, portanto, em princípio, que falar, entre nós, em direitos absolutos. Tanto outros direitos fundamentais como outros valores com sede constitucional podem limitá-los.
Alexandre de Moraes (2004, p. 63), ministro do Supremo Tribunal Federal, ensina que: ‘‘os direitos fundamentais consagrados pela Constituição Federal não são ilimitados, vez que encontram limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna’’.
Dessa forma, o direito à liberdade de locomoção é limitado pelo direito à saúde, pois o Estado não pode dispor livremente da saúde dos indivíduos, que abrange o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. O direito à vida encontra-se positivado no art. 5º, caput, da Constituição Federal, sendo, nos termos do dispositivo legal, inviolável (BRASIL, 1988).
Portanto, embora tenha ocorrido uma forte interferência e restrição no direito de liberdade de locomoção da população, os princípios que a justificam possuem grande relevância, conforme pode-se extrair, inclusive, do próprio texto constitucional brasileiro.
5 CONCLUSÃO
A COVID-19 é uma doença viral, com origem em Wuhan, na China, que gerou um cenário caótico mundial, tendo se propagado por diversos continentes, provocando mortes e muitas sequelas na saúde dos indivíduos ao redor do mundo (FAGUNDES; DUARTE, 2022).
Em razão disso, a Organização Mundial de Saúde editou um documento traduzido pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) (2021), estabelecendo as medidas com maior eficácia para controle da pandemia. Entre essas providências pode-se citar: restrições para sair de casa, cancelamento de eventos de massa e restrições para reuniões, fechamento de comércio, distanciamento social, entre outros.
Em razão disso, no Brasil, o Congresso Nacional editou diplomas normativos para regular a situação, tendo aplicado, entre outras medidas, o isolamento e a quarentena como instrumentos para conter os efeitos catastróficos da pandemia provocada pela COVID-19.
Tais providências geraram grandes impactos na liberdade da população, na economia do Brasil, na educação, entre outros setores. Com isso, é evidente a importância do tema do presente trabalho científico, que teve como objetivo aplicar o teste da proporcionalidade, teoria desenvolvida pelo filósofo Robert Alexy, a essas medidas visto que provocaram grande interferência em direitos fundamentais.
A revisão bibliográfica foi a metodologia adotada. A organização do presente artigo científico deu-se por meio de capítulos e foi estabelecida a devida correlação entre os assuntos abordados, utilizando as bibliografias citadas nas referências bibliográficas.
A investigação objeto desse artigo teve como problema de pesquisa investigar se as medidas legais de isolamento e quarentena adotadas durante a pandemia ocasionada pela COVID-19 atenderam aos requisitos do Teste da Proporcionalidade proposto por Robert Alexy, buscando averiguar especificamente se foram necessárias, adequadas e proporcionais em sentido estrito.
A partir do que foi apresentado no presente trabalho científico, a hipótese da autora foi confirmada, sendo as referidas providências adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito, de forma que o direito à saúde prevalece na ponderação em relação ao direito à liberdade de locomoção.
Por meio desta revisão, conclui-se que o isolamento e a quarentena foram medidas necessárias, pois, em virtude do caráter altamente transmissível do vírus, não havia outra providência que provocasse menor interferência no direito à liberdade de locomoção, sendo, ademais, recomendadas pela Organização Mundial da Saúde, conforme documento traduzido pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) (2021).
Além disso, são providências adequadas uma vez que elas relacionam-se diretamente com as finalidades almejadas pelo Estado brasileiro: controle do contágio pela doença viral, redução das mortes e, consequentemente, preservação da saúde dos brasileiros. Outrossim, é dever do Estado garanti-la por meio de políticas sociais e econômicas, conforme o art. 196 da Constituição Federal de 1988.
Por fim, são diligências proporcionais em sentido estrito. Ao realizar o sopesamento, tendo em vista o conflito entre o direito à saúde e o direito à liberdade de ir e vir, a saúde prevaleceu na análise dos pesos e das interferências deles no caso concreto.
Isso ocorreu porque a restrição da liberdade em relação à proteção da saúde é compensada, justificada por princípios de grande relevância. Somado a isso, o direito à saúde abrange o direito à vida e à dignidade da pessoa humana, não podendo o Estado dispor deles.
Ante o exposto nos capítulos anteriores, também é evidente a importância que o princípio da proporcionalidade tem para a resolução de casos concretos que apresentam grande interferência em direitos fundamentais ou princípios e conflitos entre eles.
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[1] Doutorando em Direito pelo IDP. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Advogado. Professor da Universidade Federal do Piauí e da Escola de Direito Aplicado do iCEV.
Graduanda do Curso de Direito pelo iCEV.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Mylleny Rodrigues da Costa. Aplicação do teste da proporcionalidade às medidas legais de isolamento e quarentena adotadas para controle da Covid-19 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 nov 2022, 04:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60166/aplicao-do-teste-da-proporcionalidade-s-medidas-legais-de-isolamento-e-quarentena-adotadas-para-controle-da-covid-19. Acesso em: 23 dez 2024.
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