Resumo: Este artigo aborda a necessidade do surgimento da coisa julgada para estabilização dos litígios e, via de consequência, para efetivação da segurança jurídica e social dos povos, desde o Império Romano. Será analisada sua importância primordial como princípio constitucional e, secundariamente, como instrumento processual. Após, será feita uma breve análise de sua utilização nos Sistemas da Common Law e da Civil Law e a transposição destes dois Sistemas como efeito da Globalização. Será objeto de abordagem ainda o alargamento dos mecanismos processuais que possibilitam a revisão da coisa julgada e as novas hipóteses albergadas pela ação rescisória. Estudo do caso precursor da relativização da coisa julgada no Brasil julgado pelo STF, bem como a aplicação da tese posteriormente nas ações investigatórias de paternidade pelo STJ. Legalização da relativização da coisa julgada de modo inconstitucional através dos artigos 525, § 12 e, 535, § 5º., do Código de Processo. Ao final, a abordagem ficará por conta da relativização da coisa julgada no sistema jurídico pátrio na atualidade, bem como sua nocividade ao Estado Democrático de Direito.
Palavras chaves: Democracia; Constitucionalidade; Relativização da coisa julgada; Segurança Jurídica.
Abstract: This article discusses the emergence of the res judicata for the dispute stabilization and, consequently, for the establishing of legal and social security of nations since the Roman Empire. First, will be analyzed its importance as a constitutional principle and secondarily as a procedural instrument. Afterwards, a short review will be made of their use in Common Law and Civil Law Systems and the impact of these two systems mainly as effect of Globalization. It will also be analyzed the expansion of procedural mechanisms that make it possible to review the res judicata and the new hypotheses covered by the rescissory action. The study of the precursor case of the relativization of the res judicata in Brazil judged by the STF, as well as the application of the thesis in the inquiry of filiation by the STJ. A brief overview of the legalization of the res judicata relativization in Brazil, through unconstitutional means using articles 525, paragraph 12 and, 535, paragraph 5, of the Procedural Code. Finally, the focus will be due to the relativization of the res judicata in the current legal system of the country, as well as its harmfulness to the Democratic State of Law.
Keywords: Democracy; Constitutionality; Res judicata relativization; Legal security.
Sumário: O presente trabalho aborda a importância do instituto da coisa julgada para estabilização das relações civis, que visa oferecer segurança às partes envolvidas e à sociedade, alcançando-se com ela a pacificação social. Ocorre que a evolução das normas se opera de modo a acompanhar a evolução das mais diversas sociedades. E por este motivo, essa imutabilidade suprema que os antigos processualistas queriam imprimir à coisa julgada, vem se tornando cada vez mais relativa com o passar dos tempos. O tema precursor dessa discussão no Brasil se deu com um julgado do Supremo Tribunal Federal, no ano de 2000, em demanda movida pela Fazenda Pública contra particulares a fim de obter a inexigibilidade de título fundado em acordo firmado em processo já passado em julgado. A partir daí a tese de relativização da coisa julgada foi propagada, ganhando enorme repercussão no mundo jurídico, e passando a ser alegada em outros casos. Com a entrada em vigor do Código Fux, o instituto jurídico da coisa julgada foi consideravelmente alterado, já que a tese de relativização da coisa julgada levantada pelo STF, foi transportada para a lei. Primeiramente, registra-se que houve um alargamento de hipóteses de revisão da coisa julgada na ação rescisória no novo código de processo civil. Outrossim, foram incorporados ao Código Fux os artigos 525, § 12º, e 535, § 5º, do código de processo civil, que permitem a relativização da coisa julgada a partir de julgados do Supremo Tribunal Federal, que terão efeito mesmo nos casos já transitados em julgado, na tentativa de padronização das decisões. Porém, tal mudança traz sérias consequências ao mundo jurídico, o que será objeto de nosso estudo, neste artigo, conforme segue abordado adiante.
Introdução
Um dos maiores trunfos da civilização moderna foi alcançado com a estabilização das relações civis através da coisa julgada existente nas legislações ao redor do mundo. Em nosso ordenamento jurídico ela vem prevista na Carta Maior, que em seu inciso XXXVI do Artigo 5º, assim dispõe: “[...] a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada [...]”.
A coisa julgada existe desde os tempos romanos, instituto cujo objetivo se orienta a pacificar as controvérsias entre as pessoas e, colocar fim à determinada disputa com relação a algum direito. No intuito de se estabilizar as relações jurídicas, tal instituto passou a ser aplicado pelos romanos, estando hoje presente em todo o mundo ocidental, em sociedades que prezam pela segurança jurídica.
Embora possa se fazer uma análise pessimista quanto à eficácia suprema e eterna da coisa julgada com relação a casos bem específicos, onde essa operação suprema revelaria injustiça, fato é que ela é fator primordial de pacificação social, não podendo nos esquecermos que, sem ela, o convívio social tornar-se-ia insustentável, sendo, lado outro, sustentável para a esmagadora maioria dos casos.
Defendemos com muita clareza que a coisa julgada é uma das maiores conquistas do mundo contemporâneo.
A coisa julgada divide-se entre coisa julgada formal e coisa julgada material.
A coisa julgada formal, segundo Humberto Teodoro Júnior (2006, p.587), é quando ela decorre, simplesmente, da imutabilidade da sentença, seja pela impossibilidade de interposição de recursos, quer porque a lei não mais os admite, quer por decurso do prazo, quer por desistência ou renúncia à sua interposição. Assim, coisa julgada formal para o autor seria uma preclusão de atos processuais, não tendo qualquer relação com o mérito de demanda.
Já a coisa julgada material é definida como aquela que torna indiscutível o mérito de determinada demanda. Ela vem prevista no artigo 502 do novo código processual civil, com a seguinte redação: “Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.”
Destarte, a projeção da coisa julgada se dá para além da relação jurídica instituída em contraditório perante o juiz competente, onde partes, o juiz e terceiros com interesses reflexos ou iguais aos das partes, não poderão voltar a discutir o que já foi decidido, trazendo segurança jurídica aos envolvidos e, consequentemente, à sociedade como um todo.
Desenvolvimento
Ocorre que a evolução das normas e leis se operam de modo a acompanhar a evolução das sociedades existentes. E por este motivo, essa imutabilidade indiscutível da coisa julgada, que remonta a séculos de tradição pelos processualistas, está se tornando relativa com o passar dos tempos. O estado de coisas se altera no tempo com muita rapidez e esta rapidez se acentua ainda mais em tempos modernos, onde a informação chega quase que com a velocidade da luz, trazendo mudanças rápidas à sociedade.
Destarte, com a observância de casos concretos injustos, a coisa julgada passou a comportar exceções para sua desconsideração, exceções estas que devem ser interpretadas com cautela a fim de se trazer prestígio às decisões judiciais e, acima de tudo, segurança jurídica aos litigantes do processo.
A coisa julgada tem, acima de tudo, cunho constitucional, antes de ser utilizada como medida de caráter meramente processual. O que se busca manter com as decisões prolatadas pelo judiciário é a democracia do país, que somente será alcançada se a segurança jurídica for garantida à nação.
Assim, tais exceções, à luz do Código Buzaid, ficavam restritas às hipóteses de cabimento da ação rescisória, que ofereciam enorme segurança jurídica às partes atingidas pela coisa julgada. A ideia da ação rescisória surgiu do fato de o ato humano ser falho. Ora, se o ser humano é passível de falhar é passível de aplicar a norma incorretamente, de modo a causar uma injustiça. E de tão falho que é o ser humano, pode ele ainda se corromper ao prolatar uma sentença, ou, agir com animosidade, de modo a impedir a aplicação da justiça. Dessa forma, a rescisória albergava, no Código Buzaid, hipóteses restritas à injustiças graves, com aplicação errônea da lei, o que possibilitava a revisão da sentença, através deste tipo de ação.
A coisa julgada reinava, até então, com eficácia suprema. Porém, no ano de 2000, o Supremo Tribunal Federal relativizou a coisa julgada pela primeira vez, com o julgamento de uma demanda movida pela Fazenda Pública contra particulares que estavam prestes a receber valores de acordo judicial sem serem titulares do direito. A aplicação da tese se deu para beneficiar a Fazenda que, em verdade, não se socorreu de seu direito no modo e tempo oportunos, vindo a buscar a titularidade de seu direito após acordo firmado judicialmente já passado em julgado.
Trata-se do recurso especial n° 1.416.333, que teve como Relator o Ministro José Delgado e, foi julgado no dia quinze de fevereiro do ano de 2000, tendo apresentado o seguinte teor:
“Não há a alegada violação do art. 535 do CPC, pois o acórdão recorrido adentrou o mérito recursal para verificar a presença dos requisitos para concessão da tutela antecipada, concluindo, a despeito da pretensão da agravante, como indevida a concessão da tutela requerida, mormente porque a mera propositura de ação para desconstituir a coisa julgada, com base em prova produzida unilateralmente pela autora, não legitimaria tal providência. 2. Entendimento contrário ao interesse da parte e omissão no julgado são conceitos que não se confundem. 3. Na ação rescisória ou na "querella nullitatis", não existe óbice para que se concedam medidas de natureza cautelar ou mesmo antecipatória da tutela, cabendo a análise de seus requisitos caso a caso. 4. No caso dos autos, a questão de fundo da ação aborda a nulidade de ato jurídico vinculado à indenização de terras situadas na unidade de conservação ambiental denominada "Parque Estadual da Serra do Mar", no qual se questiona a justa indenização, excesso no cálculo do valor de indenização, ocorrência de prova falsa e inexistência, sobre o bem, dos poderes inerentes ao domínio pelo expropriado, mormente quando a propriedade é do ente expropriante. Tais questões não passam despercebidas por esta Corte, firmando-se jurisprudência ora pela inexistência de dever indenizatório, ora por reconhecer valor rescisório à falsidade da prova, ora pela violação do princípio da justa indenização, legitimando a desconstituição da coisa julgada inconstitucional. 5. Em atenção ao significativo valor do precatório e à questão de fundo tratada na ação proposta pelo ente estadual, presentes os requisitos para a excepcional concessão de tutela antecipada. Precedente: REsp 240.712⁄SP, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, julgado em 15.2.2000, DJ 24.4.2000, p. 38. Agravo regimental provido em parte. Recurso Especial do ESTADO DE SÃO PAULO provido.
Portanto, o julgamento se deu para que fosse devolvido ao Estado de São Paulo a titularidade de bem público, que erroneamente havia sido intitulado como de particulares a fim de desconstituir o acordo judicial firmado entre as partes passado em julgado.
A partir daí a tese de relativização da coisa julgada foi propagada, ganhou enorme repercussão no mundo jurídico nacional, e também na mídia social, passando a ser alegada nos casos de Ações de Investigação de Paternidade que fossem capazes de alterar um julgado anterior passado em julgado diante da descoberta da paternidade após a realização de Exame de DNA, relativização esta acolhida pelo STJ.
A justificativa para a aplicação da tese foi no sentido de se proteger os direitos personalíssimos. Ora, de fato, entendemos que o direito à personalidade é um dos mais importantes direitos do ser humano. Desta forma, passou-se a admitir a aplicação da tese da relativização da coisa julgada nas Ações Investigatórias de Paternidade com base em exames de DNA realizados após trânsito em julgado de sentença, sob o argumento de que o exame de DNA constituía prova nova. Neste ponto, convergimos com tal posicionamento adotado pelo STJ, já que o que se buscou defender era um direito personalíssimo, frise-se, um dos mais importantes direitos do indivíduo, bem como a relativização, in casu, estaria fundada em prova nova, o que autorizaria ao titular do direito, a nosso ver, a rever a decisão, se valendo da ação rescisória.
Uma das questões existenciais mais profundas que cada ser humano carrega consigo é saber de onde ele veio, quem são seus ancestrais, tanto de forma ampla (povo) quanto de forma específica (ancestrais biológicos) a fim de que possa alcançar o seu devido grau de pertencimento seja à uma determinada sociedade seja à uma determinada família. Portanto, busca a identificação afetiva com os ancestrais e com seu povo. Além disso, a investigação genética se faz necessária a fim de que o indivíduo possa descobrir sua herança genética e, verificar probabilidades de identificar e prevenir doenças genéticas raras ou não, e até mesmo analisar a incompatibilidade genética na reprodução.
Portanto, a nosso ver, seria muito vil afirmar que a investigação de paternidade visa a busca pecuniária de direito sucessório, pois, está para muito além disso, alcançando, em verdade, outras esferas, de cunho emocional, existencial, muito mais complexas do que a estritamente patrimonial.
Assim, diante da profundidade do assunto, parece-nos coerente a relativização da coisa julgada nestes casos, pois fundada em prova nova, que busca o reconhecimento do direito à personalidade que está intrinsicamente relacionado ao próprio direito à vida partindo-se do raciocínio que a investigação genética poderá até mesmo identificar e prevenir doenças genéticas.
Porém, atentamos para o fato de que, como o exame de DNA tem sido utilizado sistematicamente em Ações de Investigação de Paternidade desde o final dos anos 1990, tal tese já vem sendo utilizada em menor escala, ficando o assunto atualmente relegado mais aos casos onde restam dúvidas razoáveis sobre a eficiência da metodologia empregada no Teste de DNA preteritamente realizado, ou, dúvida acerca da idoneidade do Laboratório responsável pela realização do exame, ou, ainda, dúvida acerca da existência de fraude no teste de DNA anteriormente realizado, devendo, em todos os casos, haver argumentos sólidos que embasem as suspeitas sob a assertividade do exame já feito.
Noutro giro, a relativização da coisa julgada tem sido admitida também em sentenças que tenham como objeto prestações continuadas. Neste caso, em havendo modificação na situação fática das partes, ou, até mesmo transcorrido tempo suficiente para o alimentado se adequar à uma nova realidade financeira, a revisão da prestação continuada será cabível, ou, até mesmo sua exoneração. A nosso ver, quanto a este ponto específico, a relativização da coisa julgada também parece que ganha vestes de sensatez, pois, se assim não o fosse, a prestação continuada poderia perdurar por um longo período sem que fosse justa ou devida a obrigação. É o caso do alimentado que tem condições de sustento próprio, porém, continua a se beneficiar de pensão alimentícia em detrimento do alimentante.
Remontamos, contudo, que, quando do surgimento da Teoria da Relativização da Coisa Julgada, pretendeu-se endeusá-la sobe a ótica de “nova esperança” de justiça, como se esta fosse a alternativa para correção de todo o mal existente nas relações jurídicas. Cláudio Sinoé Ardenghy dos Santos sinalizou esta mudança:
“Nas breves linhas tentamos demonstrar que a coisa julgada foi ganhando uma nova roupagem, uma moeda de dois lados, na qual a segurança jurídica não é somente a sua imutabilidade. Segurança jurídica é um termo que vem adaptando-se, sem temor por juristas de renome, como um primado da modernidade que vem surgindo no processo civil brasileiro, onde se busca a justiça num plano prático e a verdade formal, dá espaço ao mais próximo da verdade real. Essas mutabilidades e acomodações dos conceitos aos anseios sociais denotam um acréscimo importante no direito pátrio, vindo de nossos pensadores brasileiros, uma qualidade que antes talvez não fosse reconhecida: a de que nós mesmos podemos e devemos influenciar o direito pátrio, e, por que não o estrangeiro? Claro que ainda há trocas, mas na grande maioria de um sentido só (ainda em grande parte o estrangeiro), felizmente estamos rumando para outro: o de sermos exemplos. Uma pequena digressão aqui faço – e não posso deixar de fazê-la - o próprio sistema da commow law já questiona seus métodos de hermenêutica, com aproximação a outros sistemas, já se afastam do originalismo dos framers e precedentes estagnados para novas articulações. Como inapropriado tratar do tema da coisa julgada aqui em outros sistemas, a pequena fuga é um motivo para demonstrar o engrandecimento que paulatinamente vem ocorrendo no Brasil, o que nos desperta para novas obras e o abandono das repetições dantes costumeiras. A primeira conclusão histórica é que a preocupação maior era em relação aos vícios do processo e da sentença (vícios processuais) – apesar de algumas manifestações na busca de justiça efetiva no processo civil. Doutrina mais arraigada nas inspirações práticas insere a compreensão de que na sentença há implícita a cláusula rebus sic standibus, merecendo visualizar a efetividade de seus efeitos à satisfação de uma segurança jurídica racional. E se a própria lei tem métodos de controle quando em disparidade com a constituição através do reconhecimento de inconstitucionalidade pelo Judiciário, deverá esse próprio controlar as decisões que demonstrem fraqueza de espírito aos princípios invocados na constituição. Pois os princípios como otimização de novas feições do processo, essencialmente os princípios constitucionais (catalogados ou não, expressos ou implícitos) buscam uma efetiva justiça dentro do primado da norma e da sociedade. Aqui a justiça adentra um plano mais prático do que filosófico. A sentença injusta ou sentença em dissonância com os princípios constitucionais transitada em julgado ganha o nome de coisa julgada inconstitucional – denominação dada pelo Dr. José Augusto Delgado. E a sentença inconstitucional não forma a sua esperada imutabilidade e perenidade, é uma aparência, nada mais.” (2006)
Assim, com o advento e entrada em vigor do atual Código Fux, o panorama do instituto jurídico da coisa julgada foi consideravelmente alterado. Com base nos julgados supracitados aplicando a tese de relativização da coisa julgada, tal teoria foi transportada para a lei.
Primeiramente, é importante registrarmos que a ação rescisória veio com mudanças no novo código de processo civil no Art. 966, que elenca um número maior de possibilidades, senão vejamos:
“Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: I - se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; II – for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente; III - resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; IV - ofender a coisa julgada; V - violar manifestamente norma jurídica; VI - for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória; VII - obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável; VIII - for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos. § 1o Há erro de fato quando a decisão rescindenda admitir fato inexistente ou quando considerar inexistente fato efetivamente ocorrido, sendo indispensável, em ambos os casos, que o fato não represente ponto controvertido sobre o qual o juiz deveria ter se pronunciado. § 2o Nas hipóteses previstas nos incisos do caput, será rescindível a decisão transitada em julgado que, embora não seja de mérito, impeça: I - nova propositura da demanda; ou II - admissibilidade do recurso correspondente. § 3o A ação rescisória pode ter por objeto apenas 1 (um) capítulo da decisão. § 4o Os atos de disposição de direitos, praticados pelas partes ou por outros participantes do processo e homologados pelo juízo, bem como os atos homologatórios praticados no curso da execução, estão sujeitos à anulação, nos termos da lei. § 5º Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caput deste artigo, contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento. (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência); § 6º Quando a ação rescisória fundar-se na hipótese do § 5º deste artigo, caberá ao autor, sob pena de inépcia, demonstrar, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta ou de questão jurídica não examinada, a impor outra solução jurídica”. (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência) (BRASIL. ANO, Página)
Ainda há outros mecanismos processuais que possibilitam a revisão da coisa julgada, como a ação declaratória de nulidade e, os embargos à execução para arguir a inexigibilidade do título executivo judicial (CPC, art. 741, parágrafo único; STF - RE (AgR) 328.812/AM, Rel. Min. Gilmar Mendes).
Nesta trilha, Jeferson Dytz Marin, defende o alargamento das hipóteses da relativização da coisa julgada, bem como que estar-se-ia ele consubstanciado nas incertezas que se vive na atualidade, onde não se tem certeza de nada e tudo é questionável, como bem ensina o autor:
“Teoricamente, é possível sustentar que a relativização da força histórica e constitucional da coisa julgada poderia fundar-se na era das incertezas que se vive. Na relativização dos conceitos e na necessidade de romper com verdades absolutas. Se é fato que a verossimilhança e a aparência da verdade registram mais afinidade com o direito hoje, não é correto relacionar tal pensamento à proposta de (des) consideração da coisa julgada. É outro tipo de incerteza que inspira a modernidade”. (2015, p.116)
E ainda complementa:
“A desvinculação da coisa julgada do elemento segurança é uma tarefa bem mais complexa do que o testemunho de fluidez de conceitos que a pós-modernidade possa dar. É preciso examinar com cuidado a questão e lembrar que a tradição não pode ser esquecida e relegada a um terceiro ou quarto nível nos fundamentos da decisão”. (2015, p.116)
Como já dito alhures, o novo código processual civil permitiu nos artigos 525, § 12, e artigo 535, § 5º, do Código de Processo, a relativização da coisa julgada a partir de julgados do Supremo Tribunal Federal, que terão efeito mesmo nos casos já transitados em julgado, na tentativa de padronização das decisões, conforme será detalhado mais adiante.
Entrementes, permitir a aplicação dos artigos 525, § 12, e artigo 535, § 5º, do Código de Processo, é uma afronta à Constituição da República, na medida em que afrontam a segurança jurídica e o ato perfeito jurídico e acabado e consequentemente a coisa julgada.
Mesmo porque, a aplicação destes artigos fará ir por água abaixo o efeito intra partes tão buscado no controle concreto de constitucionalidade. Para Jeferson Dytz:
“[...] Mesmo que o fundamento seja o controle difuso de constitucionalidade, tem-se, na verdade, efeito reflexo erga omnes, típico do controle concentrado. A aplicação dos dispositivos, portanto, confunde e viola a definição de controle difuso e concentrado de constitucionalidade. Explica-se. Ora, se os dispositivos permitem a desconsideração da coisa julgada por força de decisão posterior do Supremo Tribunal Federal, levada a cabo em apreço de Recurso Extraordinário estranho ao processo paradigma, extrapolado está o efeito intra partes, típico do controle concentrado de constitucionalidade [...]. (2015, p.120)
E continua:
“[...] Ademais, como sustentado precedentemente, há clara violação do dispositivo constitucional que tutela a coisa julgada, em face de desconsideração indevida. Mesmo que se considere o argumento constitucional dos dispositivos – o que se admite como mera finalidade contra-argumentativa, notória a caracterização do que Bachof denominou de norma constitucional inconstitucional por conta da desarmonia com o artigo 5º., inciso XXXVI, da Constituição [...]. (2015, p.121)
Não podemos ainda nos esquecer que o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, que reconhece a efetivação da coisa julgada. Portanto, uma vez decidido e materialmente determinado o assunto, não se pode voltar a discuti-lo. A coisa julgada vai muito além da estabilidade do embate da lide. Trata-se de verdadeiro alcance da democratização do Estado de Direito. Sobre o Estado Democrático de Direito, Ana Lúcia Pretto Pereira, discorre:
“[...] O Estado Democrático de Direito reúne, dentre outros, os seguintes princípios: i) constitucionalidade, ii) democrático, iii) igualdade, iv) equilíbrio entre poderes, v) legalidade e vi) segurança jurídica. Trata-se de um modelo de Estado no qual se prima por: deferência à lei, expectativa de previsibilidade da ordem jurídica e respeito às decisões públicas construídas democraticamente. [...]” (2015, p.38).
Remontando ao surgimento da democracia tem-se que ela nasceu em 594 aC, quando Sólon propôs um novo sistema de governo para Atenas, uma das cidades-estados mais poderosas da Grécia. A população estava farta de regimes autoritários e de leis rígidas, foi então que Sólon criou uma Lei Maior (chamada hoje Constituição) que dispunha sobre os direitos básicos dos atenienses, sendo que estas leis deveriam ser decididas com a participação do povo. Desta forma, a proposta era de acolher a vontade da maioria dos cidadãos, mas, é sempre bom lembrar que à época mulheres, negros e, escravos não eram considerados cidadãos e consequentemente não compunham a maioria. Diante disso, não se pode perder de vista que quanto mais fiscais estiverem aplicando a lei, mais significativamente se diminuirão as arbitrariedades. Deste modo, se o povo é a lei, consequentemente haverá um controle muito maior na prevenção e na desconstituição de arbitrariedades.
É de bom alvitre lembrar que na contramão do Estado Democrático de Direito está o Estado Despótico, que nos ensinamentos de Montesquieu (2006) é uma forma de governo na qual uma única entidade governa com poder absoluto. Ainda segundo Montesquieu, neste tipo de governo, apenas um só governa, sem leis e sem regras, dirigindo tudo de acordo com sua conveniência e vontade. Ele classifica três diferentes tipos de governo, são eles: “o republicano, o monárquico e o despótico. Para distinguir-lhes a natureza, é suficiente a ideia de que deles têm os homens menos instruídos.” (2006, p.23). E assim Montesquieu os define:
“Apresentarei três definições, ou antes, três fatos: um que ‘o governo republicano é aquele em que o povo, como um só corpo, ou somente uma parcela do povo, exerce o poder soberano; o governo monárquico é aquele em que um só governa, de acordo, entretanto, com leis fixas e estabelecidas; e, no governo despótico, um só indivíduo, sem obedecer às leis e regras, submete tudo à sua vontade e capricho’”. (2006, p.23).
Portanto, se observarmos as formas de governo existentes supracitadas, deixar ao arbítrio de um tribunal, ainda que de Cúpula Máxima, para decidir o que pode atingir a todos, inclusive, àqueles que já tiveram questão idêntica analisada na mão contrária com trânsito passado em julgado, mais parece se aproximar de um estado despótico, onde a vontade suprema atingirá a tudo e a todos indistintamente, causando uma situação de incertezas aterrorizante. Entendemos que, neste contexto, a democracia estará fatalmente abalada. Bem é verdade, que a situação política global já aponta para uma crise no sistema Democrático de Direito. Nesse contexto, a insegurança social atualmente já dá sinais de apavoramento. Contudo, esta insegurança social acima descrita está se estendendo também para uma insegurança jurídica, diante das novas diretrizes que se quer dar à coisa julgada.
Jeferson Dytz Marin complementa, ainda, que o direito à coisa julgada é uma garantia constitucional, pois:
“É possível afirmar que a coisa julgada constitui uma garantia individual fundamental, digna de ingente proteção. Ademais, embora instituto processual, viabiliza a realização de um direito material, externado na segurança jurídica. A recognição da coisa julgada como garantia fundamental nos principais documentos legais da América alcança ainda mais importância na medida em que se começa a projetar um “direito processual internacional dos direitos humanos, reunindo os princípios comuns a todas as nações signatárias”. (2015, p.125).
E continua:
“A concepção de que a coisa julgada não constitui um direito em si, emprestando-lhe caráter meramente instrumental, não merece prosperar, vez que ela denota uma garantia material. O fato de ser classificada como matéria preliminar não lhe retira o caráter de direito constitucionalmente estabelecido, que extrapola o rol de garantias procedimentais. Como garantia que também firma a segurança jurídica, a coisa julgada constitui um dos precípuos esteios do processo e, também, do Estado Democrático de Direito. (2015, p.125).
Parece-nos clarividente, acompanhando tal entendimento, que a coisa julgada não se trata somente de um instrumento processual previsto no artigo 502 do código de processo civil, mesmo porque está ela prevista no inciso XXXVI do Artigo 5º da Constituição Federal.
Ocorre que, além dos precedentes julgados já citados neste artigo acolhendo a teoria da relativização da coisa julgada, esmiuçando-se os artigos 525, § 12º, e 535, § 5º, do novel código de processo civil, tem-se que também é possível a relativização da coisa julgada através da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em sede de controle concentrado, ou, difuso pelo Supremo Tribunal Federal.
Verifica-se, ainda, de forma mais acurada que o § 14 do artigo 525, dispõe que o título se torna inexigível de imediato somente no caso de a decisão do Supremo Tribunal Federal quanto à inconstitucionalidade da lei ou ato normativo ser antes do trânsito em julgado da decisão a ser atacada, onde será possibilitado ao interessado apresentar impugnação ao cumprimento de sentença, com fundamento na inexigibilidade do título executivo judicial, com espeque no artigo 525, § 12 do Código de Processo Civil, enquanto o § 15 do mesmo artigo possibilita o ajuizamento de ação rescisória para desconstituição do julgado, nos casos em que a decisão já tiver transitado em julgado. Desta forma, fazendo uma leitura seca do dispositivo legal supra, a parte que desejar desconstituir o julgado por meio de ação rescisória terá o prazo de 02 anos, contados do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal que declarar a inconstitucionalidade de lei ou ao normativo, seja na modalidade concentrada ou difusa e mais, tal dispositivo não estabelece restrição temporal quanto ao transito em julgado da decisão a ser atacada via rescisória, o que tornaria possível a desconstituição de decisão transitada em julgado décadas após sua prolação, bastando para tanto, frise-se, a declaração de inconstitucionalidade de lei pelo STF, com interposição de rescisória no prazo de até 02 anos após o trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. A propósito, registra-se que, igualmente, não há nenhum prazo para o ajuizamento das ações de controle concentrado de constitucionalidade.
Embora o Brasil adote a teoria da nulidade absoluta do ato normativo inconstitucional, fato é que a coisa julgada, instituto de suma importância para um Estado Democrático de Direito, não pode ser deixada ao léu, tudo em prol do cumprimento de lei considerada inconstitucional somente em determinado momento histórico. Não parece nada razoável que uma decisão de declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo prolatada pelo Supremo Tribunal Federal possa surtir efeitos em quaisquer casos, inclusive, naqueles já passados em julgado, tudo a fim de se cumprir a Carta Maior. Indaga-se: como ficam os institutos que resguardam igualmente a Constituição Federal, tais como a coisa julgada e a segurança jurídica?! Ainda que não se queira dar o mesmo peso e medida, fato é que esses princípios também são pilares da guardiã da lei, não podendo simplesmente serem desconsiderados, causando tumulto e instabilidade nas relações jurídicas, a fim de se fazer cumprir a lei. E mais: como fica o próprio inciso XXXVI do Artigo 5º da Carta Magna? Afinal, também restaria ele afrontado. Desta forma, clarividente ser inconstitucional a eficácia da declaração de inconstitucionalidade de lei de cima para baixo, atingindo a todos na base da pirâmide, como as lavas de um vulcão. Porque nessa realidade fática, o caos será inevitável.
Justamente, a fim de se evitar a instalação do caos generalizado na sociedade é que a doutrina e jurisprudência começaram a interpretar a nulidade ex tunc de lei inconstitucional de forma mais branda.
Ora, se é possível relativizar um dos principais pilares do conceito de democracia – a coisa julgada – ao argumento de constantes mudanças nas sociedades, lado outro, parece mais coerente ainda a possibilidade de relativizar o alcance dos efeitos criados por uma decisão “ex tunc”, passando a interpretá-la com efeito “ex nunc” ainda que no caso de declaração de inconstitucionalidade de lei.
Até porque, as leis são interpretadas de acordo com o contexto histórico da época e local, não se podendo afirmar que elas seriam interpretadas da mesma forma décadas depois. Ademais, o direito se trata de norma aberta, onde o juiz tem o poder-dever de interpretar a lei conforme as máximas de experiência, bem como de acordo com suas convicções pessoais naquilo que não é possível se extrair da letra da lei.
Reflexão mais complexa vem à tona, se pensarmos que as partes têm o direito de invocar inconstitucionalidade de lei, como meio de argumentação. Diante disso, porque não fizeram bom uso de seu direito no bojo do processo, deixando precluir a matéria?! Então, parece ilógico que queiram pretender se valer de tese não levantada por si somente após a declaração de inconstitucionalidade pelo STF. Nesse passo, verifica-se a incompatibilidade entre, de um lado, os artigos 525, § 15 e 535, § 8° do novo Código de Processo Civil e, de outro, os artigos 502 e 508 do mesmo diploma legal, além de claro, verdadeira afronta ao inciso XXXVI do Artigo 5º da Guardiã da Lei.
Esclarecemos que não estamos aqui a defender que a imutabilidade da coisa julgada seja intransponível em toda e qualquer decisão transitada em julgado, porém, o que não se pode é pretender dar-lhe contorno aleatório de relativização a fim de se atingir a todos indistintamente que já tenham a seu favor litígio estabilizado perante a Justiça, como se tivessem penduradas sob suas cabeças a espada de Dâmocles.
Ana Lúcia Pretto Pereira, com razão, entende que a possibilidade de revisão da coisa julgada para casos albergados pela ação rescisória não é de todo ruim, diante do comprometimento que surge entre o Juiz e a decisão por si proferida e, diz:
“E essa instrumentalização das decisões passadas, para o alcance de determinados fins, não seria, de todo negativa, pois representaria uma atitude condizente com a concretização do direito e com a construção do direito em cadeia. Além disso, o juiz não tomaria decisões completamente descompromissadas com as convenções passadas justamente por preocupar-se não apenas com as consequências imediatas de suas respostas jurídicas, mas, igualmente, com os seus efeitos considerados de uma maneira sistêmica: afinal, se juízes passarem a decidir apenas com base nas consequências possíveis para o caso concreto em exame, uma “generalização dessas decisões sobre atores públicos e privados será nociva, pois, aumentará a insegurança jurídica. Percebe-se que a perspectiva consequencialista trabalha com uma visão prospectiva dos custos de uma determinada decisão. Não apenas custos em termos econômicos, mas também em termos políticos, sociais, ou seja, trata-se de uma decisão estratégica, orientada ao alcance de determinados fins [...]”. (2015, p.20-21).
E ainda complementa logo adiante:
“Sendo certo que, sob o constitucionalismo contemporâneo, há uma abertura à relativização das regras, é igualmente certo que a Constituição de 1988 rege um Estado Democrático de Direito, razão esta suficiente para se prestar deferência às soluções legislativas, ou seja, a relativização das regras deve operar-se a favor do Direito, e não contra o Direito.” (2015, p.20-21).
Convergimos com o posicionamento da autora, pois, a ação rescisória tem amparo no conceito de justiça, onde não se possibilitar a revisão das hipóteses albergadas pelo Artigo 966 do Código de Processo Civil seria deixar de aplicar o próprio Direito a fim de se manter um rigor formal excessivo injusto, desnecessário e, até mesmo, ilegal.
Importante registrar que nos Estados Unidos, país que adota o Sistema da Common Law, o que se busca é aplicação da justiça, de modo que, neste sistema, é possível se obter a modificação de determinada sentença mesmo depois de seu trânsito em julgado. Porém, embora a coisa julgada neste sistema não tenha o rigor que lhe imprime o direito germano-romano, a segurança jurídica neste modelo jurídico, de qualquer modo, é muito eficaz.
Ora, não podemos nos esquecer que, independentemente do sistema jurídico em que se está inserida, a segurança jurídica é sinônimo de democracia, modelo este adotado comumente pelos países ocidentais. Chama-se a atenção para o fato de que a diferença entre o sistema da Common Law e da Civil Law, é que no primeiro, quem garante a segurança jurídica são os julgados pregressos e, no segundo caso, são as leis vigentes no país.
Bem é verdade, que a globalização gerou um efeito de proximidade cultural, social, comportamental, modelo-estrutural e, porque não, jurídica, onde houve a troca de modelos de sistemas, onde países de origem da Civil Law estão adaptando modelos da Common Law e vice-versa. A tendência verificada em tempos de globalização é justamente uma aproximação muito maior entre os povos.
Portanto, essa proximidade cultural global deve se possibilitar expandir horizontes para aprimoramento de modelos entre os povos, contudo, sem afrontar à segurança jurídica, tão buscada no mundo jurídico ocidental, que tem como modelo de sistema político a Democracia.
Basta viajar para o exterior para se ter esta percepção, que passamos a adotar em nosso país usos e costumes até então desconhecidos e que se multiplicaram devido, em grande parte, ao sobredito processo de globalização. Frise-se que fenômeno inverso também se observa lá fora. Até mesmo os bens de consumo se tornaram praticamente universais, onde tem-se à título de exemplo os Smartphones. Verificamos, assim, que a globalização propicia além de toda essa aproximação social, a troca de experiências e, a integração de sistemas políticos e jurídicos, no intuito da equalização desses sistemas. Todavia, não se pode importar e nem se adaptar de outro sistema, de forma ampla, modelos com base estrutural tão diferentes, pois, certamente, a importação estará fadada ao insucesso. A troca de experiências sobre sistemas de modelos jurídicos é importante, mas deve ser interpretada e importada com cautela. Isto porque, a questão estrutural é cultural, social e comportamental. Portanto, não basta que se copie ou se adeque um sistema já existente em um lugar, em cima de outro modelo vigente totalmente diverso com séculos de tradição. Antes disso, é necessário que haja a mudança comportamental, que não se opera de uma hora para outra.
Ao refletir sobre este processo de transposição, Jeferson Dytz Marin defende que:
“Compreender é, pois, também permitir a expressão da tradição, que atua através da consciência histórica, agindo numa inserção objetiva e, por isso, envolvendo o próprio ser que compreende. O processo da compreensão, então, realiza-se a partir do próprio ser, dele dependendo e produzindo uma experiência reflexiva. Nesse contexto, a interpretação é que representa a forma explícita de compreensão(...) A conclusão é válida, também, para a percepção dos institutos nos diferentes sistemas jurídicos, conduzindo à necessária cautela na transposição dessas entidades seculares. Tal se aplica, a propósito, não apenas em relação aos diferentes sistemas jurídicos mas também nas diferentes tradições jurídicas. A pretensão de implantação da orientação do common law, particularmente em relação aos precedentes, pode ser percebida no direito brasileiro através de sucessivas investidas, inclusive mediante alterações legislativas já consumadas. Assim se deu em relação às frustradas tentativas de implantação da súmula vinculante, que encontraram grande resistência da comunidade jurídica. E, num viés mais recente e que encontrou eco no legislativo, alcançando a alteração das disposições processuais, estão outros institutos trazidos ao ordenamento. Tais institutos, evidentemente, remetem à regra do precedente, típico e característico do direito inglês, que tem sido utilizado como sustentador da ideia de que a criação de instituto similar, no direito brasileiro, poderia contribuir para a maior efetividade do processo. Trata-se da conformação daquilo que a doutrina tem denominado instrumentos de estandardização da causa e que compreendem, dentre outros, os institutos da repercussão geral, do sobrestamento dos recursos repetitivos e da inexigibilidade da coisa julgada, sempre que fundada em norma reconhecida inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal ou, ainda, em interpretação tida por incompatível com a Constituição Federal, pelo mesmo tribunal superior. (2015, p.211-213).
Em outra passagem de sua reflexão, defende que:
“A tentativa de sumularização do direito, com o propósito de aplicar no civil law o sistema de precedente é uma anomalia que, além de ferir as bases da estrutura romano-germânico-canônica não alcança premissa adequada. Enquanto o sistema de precedentes propõe um debate a partir do caso concreto, através da valorização da ampla defesa e dilação probatória, a súmula inverte a lógica e tenta (de forma insatisfatória) regular os casos concretos a partir de previsões sintéticas postas de cima para baixo, sem qualquer possibilidade hermenêutica. A Súmula (vinculante) registra força normativa pragmática superior à própria lei (mesmo que de cunho Constitucional), vez que esta poderá deixar de ser aplicada (em face de vício, inconstitucionalidade, lei posterior que revoga a anterior, existência de lei com hierarquia superior e lei especial que revoga a geral), ao passo que aquela tem subsunção obrigatória. Vive-se, de fato, um período em que a ciência jurídica foi banhada pelas trevas e vitimada pelo assassínio da semântica.” (2015, p.130).
Verifica-se, portanto que a ideia dos artigos 525, § 12º, e 535, § 5º, do código de processo civil, é atingir a coisa julgada com as decisões proferidas pelos Tribunais de Cúpula, oriundas de controle difuso ou concentrado, numa tentativa anômala de padronização de decisões.
Mas, não é só esse o problema, já que, embora os artigos supracitados prevejam a decisão do STF para inexigibilidade do título, a jurisprudência tem se valido das decisões do STJ para aplicar os artigos. Tudo no intuito de, mais uma vez, desrespeitar as leis, aplicando-as de acordo com seus próprios entendimentos e conveniência, no intuito de resolver o calvário das demandas em massa que assolam o Poder Judiciário.
A exigência do Conselho Nacional de Justiça no sentido de que os juízes brasileiros participem de curso de capacitação em administração judiciária, conforme se verifica do contido na Meta 8 do CNJ, deixa entrever a vertente que se pretende dar à essa capacitação, qual seja de gerenciamento voltado à padronização e, à produtividade, onde a quantificação de processos findos é o objetivo a ser alcançado.
Entretanto, pensar que o assoberbamento do Judiciário será resolvido com a mecanização das decisões é um pensamento vil, já que afronta a dignidade da pessoa humana e, acima de tudo, a segurança jurídica, tão necessária à sobrevivência do Estado Democrático de Direito. Mais, nosso sistema jurídico - Civil Law - não está preparado para aplicar o sistema do Common Law largamente, pois, como já dito alhures, ambos têm estruturas totalmente diversas. Ora, a personagem Carlitos, de Charles Chaplin, já retratava, em seu filme Tempos Modernos (1936), a selvageria que o mundo industrializado e automatizado, tanto quanto repetitivo, proporcionava às mentes mais sãs. Ora, de são virou insano.
Portanto, o panorama não será alterado com esta alternativa, mesmo porque, num país onde as decisões se modificam a todo momento, estas sempre provocarão, de qualquer modo, enxurradas de ações, pois, a cada nova decisão haverá o efeito avassalador de todos baterem às portas do judiciário a fim de buscarem decisões mais atuais que lhe sejam benéficas. O tiro poderá sair pela culatra, o que é bem provável.
Nesta senda, a demanda nunca se estabilizará, causando verdadeiro pavor aos litigantes, onde, mutatis mutandi, seriam estes envolvidos pelo mesmo pavor de Josef K., personagem do autor Franz Kafka, no livro “O Processo”, desesperado, num emaranhado de mistério e, incertezas quanto ao processo que era movido contra si, onde ele era acusado de ter cometido um crime, contudo, sem sequer saber por qual crime estava sendo processado.
Jeferson Dytz Marin nos ensina que:
“A relativização da coisa julgada, além de redundar num aviltamento do instituto, também integra esse processo pernicioso de castração do acesso à jurisdição, vilipendiando a causa e, em última instância, as partes e seus patronos. Tanto que Marinoni e Greco afirmam a inconstitucionalidade dos arts. 535, parágrafo 5º. e 525, parágrafo 12º., do Código de Processo Civil. Greco alicerça sua premissa na malfadada tentativa de importação da previsão insculpida no parágrafo 79 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional Federal alemão. Como apontado precedentemente, tanto os julgados do Supremo Federal quanto os do Superior Tribunal de Justiça – especialmente o caso paradigma com voto do Ministro Delgado -, assim como a própria regulamentação processual, tem espeque na doutrina do jurista português Paulo Otero. A premissa, sem embargo, é equivocada. Além de inferir que a regra para a dita relativização é o controle abstrato de constitucionalidade, a norma alemã também preserva “os efeitos pretéritos da coisa julgada”, coisa que o legislador pátrio não fez quando da edição da Medida Provisória 2.180/2001, cuja vigência foi firmada pela Emenda Constitucional 32/2001, introduzindo um parágrafo único ao art. 741 do CPC-1973, atual art. 535. Destarte, afirma com acerto Greco, quando infere que no tocante à norma alemã, o legislador brasileiro, “com o sectarismo que o caracterizou nos últimos anos, importou a regra pela metade, ou seja, permitiu o bloqueio da execução, mas não garantiu a manutenção intacta dos efeitos pretéritos da coisa julgada. Dessa forma, além da leitura infeliz da carta constitucional alemã, ampliando-se perigosamente o viés de desconsideração do caso julgado no direito pátrio, tem-se presente a inconstitucionalidade, seja pela natureza de direito fundamental que reveste o instituto, seja pela incongruência processual constitucional que aponta Greco. (2015, p.181-182).
E ainda complementa:
“A relativização, por sinal, integra o espectro da crise funcional do direito, pois, sob os auspícios de decisões a posteriori do Supremo e de superação de injustiças, transforma o processo numa contenda eterna, pisoteia as normas protetivas da coisa julgada e olvida a função legislativa. A proteção da coisa julgada, no direito comparado, encontra consistente agasalho e segue o paradigma da segurança, da estabilização, da confiança e da previsibilidade empregados pelo direito pátrio. Necessário enfatizar, aqui, a proibição da retroatividade da coisa julgada, que está no bojo da contenda envolvendo a desconsideração. A Constituição Portuguesa, embora admita a eficácia ex tunc da decisão de inconstitucionalidade, ressalva o incabimento da eficácia retroativa que afete o caso julgado (art. 282). No direito italiano, a próprio Corte Constitucional passou a impor limites à retroação, restringindo a mudança da coisa julgada material. Nos Estados Unidos, apesar da necessária distinção que a eleição do sistema commow law sugere, a Corte Suprema modula a retroação, objetivando sempre evitar a desconsideração de processos em que o trânsito em julgado já se tenha operado. O precedente foi o caso Linkletter, de 1965. A Alemanha, cuja disciplina inspirou os primeiros julgamentos que redundaram na desconsideração da coisa julgada no país, também assegura a proteção do instituto. A interpretação da jurisprudência, como já assinalado, não foi feliz.” (2015, p.187-188).
Destarte, causa pavor o fato de o legislador brasileiro importar somente parte das legislações estrangeiras, tentando fazer a população crer na legislação moderna. Que, quando comparada ao primeiro mundo, contudo, em verdade se traduz em aberração jurídica, remetendo o Brasil do status de um país Democrático para um país de medos e incertezas, em virtude de sobreditas cópias malfeitas e incompletas emprestadas de outros ordenamentos jurídicos.
Logicamente a repercussão geral e, a padronização das decisões no STJ através do rito dos repetitivos têm sua importância no atual sistema jurídico pátrio, mas, estas não são o alicerce do nosso ordenamento jurídico, motivo pelo qual a eficácia delas deve ser interpretada com cautela.
Frise-se, nem se diga que os Estados Unidos tenham a coisa julgada como relativa, posto que, a mudança dos julgados no sistema do Commow Law respeita a coisa julgada de modo eficaz, preservando a segurança jurídica, sendo a relativização da coisa julgada lá aplicada como exceção.
Se bem é verdade que, no Brasil, tudo começou com o RESP 240.712/SP do Ministro José Delgado provido no ano de 2000, não menos verdadeiro é que já transcorreu tempo suficiente para se corrigir o erro e voltar atrás em decisões anômalas como esta. Contudo, ao invés disso, preferiu o Legislador ir para o lado oposto, alargando ainda mais as hipóteses de cabimento da relativização da coisa julgada, deixando a lei ao arbítrio de um mar aberto de interpretações.
É bom ressaltar ainda que o Superior Tribunal de Justiça, criado com a Constituição de 1988, tinha o objetivo e a missão de desatolar a crise judiciária que vivia o Supremo Tribunal Federal, porém, com limitações de julgamento. Todavia, certamente, extrapolou seus limites de alçada há tempos, ganhando alcunha de Terceira Instância. A prova disso é que vem o Superior Tribunal de Justiça interpretando Súmulas ao seu bel prazer e, o mais grave: alterando substancialmente o fundamento de decisões de processos massificados. Não bastasse isso, o que se verifica é que embora os artigos 525, § 12º, e 535, § 5º. do código de processo civil prevejam a relativização da coisa julgada somente para decisões prolatadas pelo STF, frise-se, a jurisprudência mais uma vez elasteceu a lei e, vem aplicando a tese às decisões do STJ, o que, igualmente, é inconstitucional e, pior, sequer está previsto na lei infraconstitucional.
Dessa forma, não se pretende dizer que as decisões proferidas pelo Judiciário não possam nunca serem alteradas.
A título de exemplos, tem-se o nosso posicionamento convergente com a relativização da coisa julgada referente às ações de investigação de paternidade, bem como às relativas às prestações continuadas e, ainda, as hipóteses abarcadas pela ação rescisória, todas elas, claramente amparadas pelo princípio da boa-fé e, acima de tudo, de justiça.
Entrementes, repita-se, alterar as decisões já transitadas em julgado com base nos artigos 525, § 12º, e 535, § 5º. do código de processo civil e, com fundamentos aleatórios para aplicação da teoria da relativização de coisa julgada, isto sim é digno de repulsa.
Por fim, embora o assunto ainda seja polêmico no mundo jurídico, porém, sem grandes conclusões quanto ao que será interpretado e decidido pelo Supremo Tribunal Federal, fato é que, em breve análise à jurisprudência do sobredito Tribunal, verifica-se que a Cúpula tem entendido ser possível a rescisão de jugado com base em declaração posterior de inconstitucionalidade, porém, somente se não houver controvérsia jurisprudencial entre as Câmaras dos Tribunais sobre o assunto, em observância ao disposto na Súmula n°. 343 do STF.
Conclusão
A relativização da coisa julgada como fenômeno de mecanização para uniformização de processos massificados afronta a segurança jurídica e, consequentemente o Estado Democrático de Direito, ocasionando um verdadeiro retrocesso jurídico-político. Portanto, a ilação a que chegamos é de total inconstitucionalidade dos artigos 525, parágrafo 12º, e 535, parágrafo 5º, do código de processo civil, bem como da aplicação da teoria da relativização da coisa julgada com base nestes artigos por afronta ao inciso XXXVI do Artigo 5º da Carta Magna.
Referências Bibliográficas
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FILMES
TEMPOS MODERNOS. Direção: Charles Chaplin. 89min. P&B. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ieJ1_5y7fT8
Pós-graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi) (2016/2017). Advogada Generalista Cível.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TRONCO, Morgana Talita. Da relativização da coisa julgada no atual Código de Processo Civil e sua afronta à democracia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 fev 2024, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60267/da-relativizao-da-coisa-julgada-no-atual-cdigo-de-processo-civil-e-sua-afronta-democracia. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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