RESUMO: O Código de Processo Civil vigente impõe um sistema de precedentes ao Poder Judiciário. Isso faz com que o ordenamento brasileiro, inspirado na tradição do civil law, absorva institutos jurídicos pensados para o modelo de common law. Para que essa integração produza resultados positivos, é preciso que os atores envolvidos na formação e emprego dos precedentes atuem de forma transparente. Assim, o objetivo dessa pesquisa é demonstrar que a integração entre civil law e law é um fenômeno global e não se restringe ao Brasil. No âmbito dos precedentes, pretende-se enumerar os institutos essenciais ao manejo adequado dos precedentes e como a falta de transparência na identificação da razão de decidir (ratio decidendi) gera prejuízos ao sistema de justiça. O último ponto tem a finalidade de identificar a razão de decidir por trás do enunciado no 603 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça e como a falsa percepção do precedente gerou a sua má aplicação. A partir desse caso ilustrativo, será demonstrada a importância identificação da ratio decidendi do precedente. Pretende-se reforçar a ideia de que é o reconhecimento da eficácia do sistema de precedentes pelos juízes que torna um precedente válido e confere unidade sistêmica ao ordenamento jurídico.
Palavras-chave: precedente; enunciado no 603 da Súmula do STJ; razão de decidir (ratio decidendi); civil law; common law; TJDFT.
SUMÁRIO: Introdução. 1. A integração entre os modelos processuais de civil law e de common law. 2. Institutos jurídicos relacionados ao manejo do precedente. 3. O contrato de mútuo e sua relação com o problema do superendividamento. 4. O precedente por trás do enunciado no 603 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça. Conclusão. Referências.
O Código de Processo Civil (CPC) vigente, desde 18 de março de 2016, tem como uma de suas principais novidades a tentativa de construir e implementar um sistema de respeito e vinculação ao precedente judicial no ordenamento jurídico brasileiro.
O objetivo, segundo a exposição de motivos do novo Código de Processo Civil é, em síntese, o de impedir que jurisdicionados em situações idênticas sejam submetidos a normas de conduta distintas. É evitar a perpetuação da intranquilidade entre aqueles que almejam a concretização de direitos garantidos, ao menos em tese, pelas leis e pela Constituição da República.
A partir dessa novidade, é possível dizer que o sistema processual cível brasileiro tem se aproximado das principais características tidas como típicas dos sistemas de common law. Por sua vez, essa aproximação vem ocorrendo há mais tempo. Entre os anos 1990 e 2000, houve uma série de alterações legislativas que podem ser ligadas, ainda que indiretamente, a esse objetivo, tais como: possibilidade de o Relator decidir monocraticamente recursos contrários à jurisprudência dominante do Tribunal (Leis 8.038/1990, 9.139/1995 e 9.756/1998); dispensa da cláusula de reserva de plenário, no controle difuso de constitucionalidade, se a questão estiver de acordo com julgado do Supremo Tribunal Federal (Lei 9.756/1998); atribuição de efeito vinculante às decisões proferidas em ações diretas de controle de constitucionalidade (Lei 9.868/1999) etc.
A promulgação da Emenda Constitucional no 45, de 2004, conhecida como a Emenda da Reforma do Judiciário merece destaque nesse cenário de novidades introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro. Naquela ocasião, houve a introdução, pelo constituinte derivado, dos institutos da Súmula Vinculante (art. 103-A da Constituição Federal) e da repercussão geral no âmbito do recurso extraordinário (art. 102, § 3º, da Constituição Federal).
Até então, a ausência de garantia do direito fundamental à duração razoável do processo, de isonomia no tratamento de situações concretas semelhantes e o desrespeito ao princípio da segurança jurídica, de uma forma ampla, consistiam em problemas identificados e tratados apenas sob a ótica vertical das Cortes Superiores. Por isso, a tentativa de solução passava necessariamente pelo enfoque na criação de precedentes ditos vinculantes pelos Tribunais Superiores, sobretudo na seara do Supremo Tribunal Federal (STF).
Ainda seguindo essa lógica de tentar desafogar a produtividade dos Tribunais Superiores, a Lei 11.672/2009 introduziu o art. 543-C ao antigo Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973), que instituiu o procedimento do recurso especial repetitivo no âmbito da competência do Superior Tribunal de Justiça (STJ). No entanto, o efeito cascata esperado de homogeneização de entendimentos jurídicos imposto de cima para baixo, isto é, dos Tribunais Superiores em direção aos Tribunais de segunda instância e Juízes de primeiro grau, não chegou a efetivamente ocorrer da forma que se esperava.
Atualmente, é possível perceber que as tentativas mencionadas acima, em verdade, não chegaram perto de se implantar no país um legítimo sistema de precedentes judiciais que guardasse uma mínima proximidade com a funcionalidade existente nos ordenamentos mais próximos da tradição do common law.
O CPC atual foi sancionado como um passo dado na direção dos sistemas jurídicos de common law. O papel dos Tribunais Superiores foi mantido e reforçado, mediante a aplicação dos institutos já consagrados e referidos anteriormente (súmula vinculante, repercussão geral e recursos repetitivos). Como era de se esperar, as principais regras criadas com a finalidade de instaurar um sistema de orientação pelo precedente exercem maior impacto sobre os Tribunais de Segundo grau e os Juízes de primeira instância.
A esse respeito, convém destacar a criação do Incidente de Assunção de Competência (IAC) e do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), ambos de competência originária dos Tribunais de segunda instância. Além disso, o Juiz de primeira instância teve seu papel, no que diz respeito ao sistema de precedentes, prescrito e delimitado de forma inédita.
A esse respeito, é elucidativa a institucionalização da observância dos precedentes emanados dos Tribunais. Quanto ao ponto, basta observar a positivação de prescrições normativas (artigos 489, § 1º, incisos IV e V, e 927, todos do CPC) que exigem do magistrado o dever de, ao fundamentar as decisões judiciais, seguir ou enfrentar os precedentes correlatos à situação jurídica subjacente ao caso examinado, fazendo a distinção (distinguishing), por exemplo, quando necessário.
O art. 926, caput, do CPC, por sua vez, enuncia as diretrizes desse sistema de precedentes, ao fixar que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.” O texto adotado foi sugerido por Lênio Streck e acolhido pela Congresso Nacional. A inspiração nas lições de do jurista e filósofo norte-americano Ronald Dworkin não é apenas aparente, tendo sido propositalmente implementada, como revela o próprio Lênio em uma sua coluna publicada em sítio eletrônico especializado no noticiário jurídico[1].
As inspirações, a despeito de outras menções a autores do Direito comum anglo-saxônico, são claramente oriundas das principais características diferenciadoras do sistema common law. Dessa forma, o ordenamento jurídico brasileiro guarda, atualmente, feições híbridas, ao mesclar suas origens marcadas pelo sistema do civil law com traços recém-adquiridos do common law.
A fusão de características de um e de outro sistema, inclusive, consiste em um fenômeno global, que vem sendo estudado por processualistas mundo afora. Dentre todos estes, convém fazer menção ao professor italiano Michele Taruffo, dada sua contribuição em recentes palestras ministradas no Brasil, além do fato de que sua obra servirá de subsídio para o esclarecimento de alguns pontos, sobretudo em relação à integração entre os modelos de civil law e de common law.
Em momento oportuno do trabalho, haverá a abordagem da desdiferenciação das características de cada um desses sistemas processuais. Para entender onde se quer chegar no Brasil com a tentativa de adoção de um sistema de precedentes, é preciso, primeiro, compreender as bases conceituais e as características que permitem, em outros países, a manutenção, com maior estabilidade, dos precedentes fixados pelos Tribunais.
A seu turno, a pesquisa aqui será concentrada em um problema prático verificado no cotidiano do trabalho de aplicação de precedentes pelos Tribunais e Juízes. Isso não quer dizer que seja o único ou o principal problema existente, senão uma opção voluntária para conduzir a pesquisa. O enfoque não se dará diretamente a respeito do emprego e dos usos da linguagem ou dos problemas hermenêuticos inerentes à aplicação de enunciados sumulares formulados em formato de regras hipotéticas.
O exame ocorrerá sob um viés pragmático e, por isso, adotará como objeto principal a aplicação do enunciado no 603 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça. Aliás, o referido enunciado foi cancelado após um curtíssimo espaço de tempo em razão da confusão criada no modo como vinha sendo aplicado pelos demais órgãos judiciais. Não por acaso, antes mesmo dessa situação concreta ocorrer, alguns autores, como Daniel Amorim, já alertavam para essa possibilidade (AMORIM, 2017, p. 1315)
É verdade que apenas o cuidado com a fundamentação empregada tanto na construção dos precedentes quanto na sua aplicação não será suficiente para que um sistema baseado na orientação pelo precedente funcione de fato. A principal mudança, possivelmente, deve ser de ordem cultural e passa, sobretudo, pela correta identificação das razões de decidir do precedente (ratio decidendi) para que, então, ele possa ser corretamente aplicado.
Dessa forma, a pesquisa será desenvolvida dentro da temática do exame das razões de decidir (ratio decidendi) dos precedentes criados pelos Tribunais Superiores, com foco no enunciado no 603 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça. A partir dessa análise, pretende-se demonstrar que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) tem aplicado o precedente sem fazer a devida distinção (distinguishing) entre os fatos jurídicos que deram origem às demandas que lhe são submetidas e aqueles que servem de suporte para a construção do já mencionado precedente.
O referido enunciado de súmula pretendia uniformizar a tese de que não se pode admitir a autotutela executiva dos bancos comerciais, ou seja, o emprego do mecanismo de desconto em conta corrente para reter dinheiro do mutuário com a finalidade de quitar uma dívida vencida e não paga no prazo inicialmente pré-estabelecido contratualmente. Esta é a questão central que o enunciado no 603 da súmula do Superior Tribunal de Justiça tinha o objetivo de solucionar.
Ocorre que a elaboração de normas abstratas a partir de situações concretas esconde o verdadeiro precedente, que tem origem nos fatos ou na situação jurídica subjacente à causa de pedir levada ao conhecimento do Poder Judiciário. Assim, o enunciado sumular, construído no formato de uma norma abstrata, acoberta a situação concreta que lhe deu origem. Esta, por sua vez, só pode ser melhor delimitada a partir dos vários julgados que se repetiram e estimularam o acréscimo de um novo enunciado à Súmula do STJ, em conjunto com os julgados posteriores que vierem a empregar a correta aplicação do precedente, integrando-o de fato ao ordenamento por meio da regra de reconhecimento de Herbert Hart.
O cenário atual, todavia, revela que os juízes e os Tribunais de segunda instância acabam aplicando os enunciados de Súmula de maneira apressada, sem adentrar ao exame das razões de decidir do precedente. O resultado é a má aplicação do precedente (ou a não aplicação do precedente), pois ele acaba sendo utilizado em casos para os quais não fora concebido, ou seja, sem a devida distinção para averiguar se realmente está sendo empregado de forma coerente e íntegra.
Sem a pretensão de querer trilhar um caminho que revele em absoluto uma solução para a correta aplicação de um precedente, o que se pretende aqui é, a partir do exame de um exemplo específico (o enunciado no 603 da Súmula do STJ), demonstrar a importância da identificação da razão de decidir do precedente, que não é e não pode ser dada a priori pelo enunciado sumular, de modo que se evite a distorção da sua aplicação e a promoção da incoerência e da falta de integridade sistêmica.
Para tanto, a estrutura do trabalho contará com quatro capítulos. No primeiro, o enfoque consistirá em demonstrar que a integração entre os modelos de civil law e de common law é um fenômeno global e não se restringe ao Brasil. Em seguida, o segundo capítulo abordará institutos essenciais ao bom manejo dos precedentes, essenciais para a correta identificação da ratio decidendi do precedente.
A partir daí, o terceiro capítulo adentrará no exame e na elucidação de uma situação jurídica específica para ilustrar a aplicação de um precedente: a celebração de contrato de mútuo e sua relação com o superendividamento. No último ponto, essa situação jurídica já delimitada servirá para ajudar a identificar a razão de decidir (ratio decidendi) por trás do enunciado no 603 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e como a falsa percepção do precedente gerou a sua má aplicação no âmbito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT).
1. A integração entre os modelos processuais de civil law e de common law
A proposta deste tópico não é a de promover uma comparação detalhada entre ordenamentos jurídicos de países distintos. Essa tarefa importaria mais em uma forma de justificação normativo-positivista, que não se ajusta ao objetivo da pesquisa. Além disso, a mera justaposição descritiva de dados normativos não é suficiente para revelar o funcionamento efetivo dos institutos e princípios gerais norteadores dos modelos comparados.
A ideia é conhecer melhor as principais características dos modelos de common law, pois “o melhor modo de conhecer o próprio ordenamento é o de conhecer outro ordenamentos” (TARUFFO, 2013, p. 12), sobretudo quando se revela clara a influência do modelo de common law na imposição legal (política) de um chamado sistema de precedentes ao ordenamento jurídico brasileiro.
Os institutos importados do modelo de common law serão oportunamente apresentados em momento posterior. Antes, porém, convém apresentar de forma preliminar e superficial o significado atual do que se entende por sistema processual de common law, bem como se ainda subsistem diferenças substanciais em relação ao civil law.
A distinção clássica entre esses dois modelos de processo civil não se sustenta sem uma base de elementos culturais ou ideológicos específicos, empregada para exaltar ou desmerecer a presença de determinado valor em cada um desses dois modelos. A título de exemplo, não é válido atribuir com exclusividade ao modelo de common law a característica da oralidade como critério diferenciador em relação a outros modelos.
Por muito tempo a associação a essa característica serviu apenas para prestigiar o modelo de common law por uma suposta celeridade que seria inerente à oralidade dos atos processuais. A respeito da inclusão de atos sob a forma escrita no processo civil em países que adotam o referido modelo, o processualista italiano Michele Taruffo elucida que:
“(...) o projeto cultural consistente em tentar estabelecer – a fim de prever suas oportunidades e vantagens – quais os sistemas marcados pela oralidade, essencialmente com o fim de depreciar aqueles que parecessem ainda ligados ao método da escritura, parece ter encontrado o seu tempo. Inovações ligadas à escritura (como no caso das attestations francesas ou da eliminação da udienza di discussione na Itália) foram introduzidas sem excessivo escândalo: evidentemente a sensibilidade para esse tipo de problema foi muito atenuada.” (TARUFFO, 2013, p. 18)
O processo civil nos países que adotam o modelo de common law inclui uma vasta gama de atos praticados sob a forma escrita. Trata-se de uma tendência que tem sido reforçada nesses Estados, de acordo com o excerto transcrito acima. Além disso, o uso de provas tidas por documentais é tão frequente nesse modelo quanto nos de civil law, a despeito, é claro, da existência de regras específicas no ordenamento jurídico de cada país para regulamentar a valoração das provas.
Por outro lado, o modelo de civil law conta com diversas regras que se harmonizam com a oralidade, como a possibilidade de sustentação oral em julgamentos colegiados, audiências de conciliação, de instrução e até mesmo a prolação de decisões orais pelo juiz. No Brasil, é possível identificar esses sinais no texto legal a partir dos artigos 166, 364, 394 e 936, todos do Código de Processo Civil. Esse exemplo serve para demonstrar que não é absolutamente confiável, por si só, a associação proporcionada pelos binômios common law/oralidade e civil law/escritura.
Os doutrinadores especializados fazem menção atualmente à existência de uma “crise nos modelos tradicionais” (TARUFFO, 2013, p. 14) do processo civil. Não é possível apontar e analisar com precisão todas as transformações que denotam a referida situação de disruptura. Nada obstante, a observância de dois aspectos é suficiente para que se perceba a inexistência de um modelo homogêneo de civil law, o que ajuda a notar que o Brasil não está sozinho no processo de hibridização do modelo processual adotado.
De forma superficial, porém suficiente, observa-se que, historicamente, jamais existiu um modelo homogêneo de processo civil na chamada Europa continental. Em verdade, a disciplina do direito processual sempre foi fragmentada em razão da diversidade de fontes reguladoras do processo (notadamente as fontes jurídico-positivas) e da diversidade de espécies de jurisdição. Em geral, a referência comum utilizada como vínculo entre os variados modelos europeus é oriunda do processo romano-canônico. A esse respeito, Taruffo elucida que:
“A costumeira referência ao processo romano-canônico como base constante dos ordenamentos processuais continentais é fundamentalmente errada, se serve para assinalar algumas características muito gerais do processo civil de direito comum como a escritura, a duração e a não concentração, mas não pode esconder as grandes e profundas diferenças que marcaram por séculos esses ordenamentos. Ainda no século XVIII existia bem pouco em comum entre o Codex Fridericianus Marchicus na Prússia, o código <<giuseppino>> na Áustria, as Constituições piemontesas e os estatutos e as praxes judiciárias em vigor em uma infinidade de Estados e pequenos Estados (staterelli) em toda Europa.” (TARUFFO, 2013, p. 23)
A intenção não é especificar eventuais diferenças pontuais a partir do cotejo dos modelos mencionados pelo autor, mas corroborar a ideia de que o modelo de civil law sempre foi, em si mesmo considerado, heterogêneo. Historicamente, já existiu período de maior convergência entre os modelos, como na perpetuação de diretrizes adotadas pelo Code de Procédure Civile napoleônico, criado na França. Posteriormente, o Zivilprozessordung, da Áustria, também exerceu grande influência sobre parte do continente europeu.
Ocorre que, no panorama atual, os países que adotam um modelo essencialmente inspirado no civil law estão passando por inovações motivadas também em institutos e diretrizes originárias do common law, por razões históricas, políticas ou até mesmo culturais.
Dois exemplos são interessantes para ilustrar essa tendência. O primeiro deles diz respeito ao processo civil japonês. Desde o final do século XIX, o Japão foi fortemente influenciado pelo modelo germânico (civil law). Após a segunda guerra mundial, passou a sofrer grande ingerência cultural emanada dos Estados Unidos da América (common law).
Isso ajuda a explicar o porquê de o Código de Processo Civil japonês de 1998 mesclar elementos desses dois modelos, resultando numa espécie de modelo híbrido. Por exemplo, sedimentou-se o exame cruzado de testemunhas (cross examination), elemento de origem norte-americana, com elementos procedimentais de origem germânica.
No Brasil, o microssistema de tutela dos direitos difusos, com destaque para o manejo da ação civil pública, tem inspiração na ação coletiva estadunidense (class action). Aliás, somos especialistas em importar institutos alienígenas, não só de natureza processual, e incorporá-los ao nosso ordenamento jurídico com o objetivo de encontrar soluções para problemas que, muitas das vezes, são particulares do nosso sistema jurídico.
A aparente clareza na distinção entre os modelos que se pregou durante muito tempo tem desaparecido com maior rapidez diante da conjuntura mundial política e econômica cada vez mais interligada. Esse cenário revela, de acordo com Michelle Taruffo, dois fatores primordiais que operam no cenário da integração entre os modelos: a) circulação dos modelos; e b) consequências jurídicas da globalização. (TARUFFO, 2013)
Apesar de parecer que esses dois pontos misturam-se em algum momento, é possível observar uma pequena diferença. O primeiro destaca as influências que penetram no sistema jurídico, ou seja, aquelas capazes de alterar o funcionamento desse sistema. De outro lado, o segundo trata de influências periféricas ao sistema, que são decorrentes da mudança na forma da sua operação.
O primeiro fator explica que os modelos processuais, antigamente, evoluíam em ritmo mais lento, pois a evolução ocorria de forma vertical (in verticale), ou seja, de acordo com as linhas históricas próprias do respectivo modelo e do contexto local em que se insere.
Esse panorama foi alterado e, atualmente, a evolução de determinado modelo processual está sujeita ao que se chama de interferências horizontais (interferenze orizzontali). A diferença é que esta última espécie de interferência não é autorreferente, ou seja, não se fecha dentro do próprio modelo, pois é afetada por linhas históricas e evolutivas heterogêneas, considerando que são derivadas de experiências de diversos países.
Para ilustrar essa circulação de modelos, basta observar a influência que os Estados Unidos tem exercido, nesse campo, sobre outros países: a recente adoção do júri pelo ordenamento espanhol; a já mencionada técnica do exame cruzado de testemunhas (cross examination); a limitação da admissibilidade dos recursos destinados às Cortes Superiores (repercussão geral com inspiração no writ of certiorari); as ações coletivas (class action) etc.
Os influxos dessas transformações também ocorrem no sentido inverso. Um caso emblemático é o da Inglaterra, conhecida pela adoção de um Direito essencialmente não escrito, que adotou uma espécie de Código de Processo Civil (Rules de 1999), inspirado nos países vizinhos que adotam o civil law, sobretudo no que diz respeito à concessão de poder geral de cautela ao Juiz.
O outro fator marcante está ligado ao primeiro e consiste nas consequências jurídicas da globalização. Certamente, tais consequências não podem ser enumeradas, mas, no que diz respeito ao direito processual civil, podem ser destacados dois fenômenos com especial relevância. De acordo com Michele Taruffo, são eles: a) o incremento da frequência de controvérsias transnacionais e a b) tendência de uniformidade cultural jurídica (TARUFFO, 2013).
A frequência das controvérsias transnacionais cresceu de forma notória, impulsionada pelo processo de globalização e integração das economias mundiais. Seguindo essa tendência, a quantidade de pessoas que litigam entre si e são domiciliadas em diferentes países também aumentou. Em outras palavras, tanto as relações jurídicas entre Estados quanto entre pessoas que vivem em nações distintas aumentou de forma relevante.
Esse cenário contribui para a ocorrência de um entrelaçamento entre variados sistemas de justiça civil. A partir do conceito de constelação pós-nacional de Jürgen Habermas, que descreve o fenômeno das uniões políticas entre Estados (como ocorre na União Europeia), é possível observar que esses laços impactam não só em acordos comerciais ou no trânsito de pessoas entre territórios, mas também na transformação dos modelos de justiça civil desses Estados (HABERMAS, 1998).
Além disso, observa-se uma tendência, ao menos na parte ocidental do planeta, de convergência cultural no âmbito dos temas jurídicos. Esse fenômeno está ligado à rápida difusão e circulação de temas de ordem geral, como garantias constitucionais, direitos humanos, devido processo legal e efetividade da tutela jurisdicional. Vale destacar a ampliação do acesso à internet, que facilitou a construção de uma rede variável e aberta de conhecimentos compartilhados em tempo real.
Essas transformações, a princípio, podem ser mais facilmente visualizadas e ligadas ao cenário jurídico europeu ou estadunidense, considerando a histórica influência mútua entre autores inseridos no âmbito dessas duas culturas jurídicas. No entanto, o Brasil não se encontra completamente desvinculado desse contexto.
É notório o fato de que ainda somos bastante influenciados (ou colonizados) tanto pelo pensamento jurídico norte-americano como pelo europeu. Dessa forma, o legislador que se ocupa das reformas relacionadas ao modelo de justiça civil, sobretudo por influência dos pesquisadores nacionais de maior renome, toma emprestado institutos estrangeiros. Com isso, acredita-se poder resolver problemas singulares da nossa cultura jurídica por meio de instrumentos criados para funcionar em uma realidade distinta da brasileira.
A respeito dessa temática, basta observar a inserção no texto do novo CPC de confeitos descritos na obra de autores como Ronald Dworkin e Robert Alexy. Este dedicou grande parte de seu trabalho ao estudo da ponderação de princípios, introduzida de forma expressa no art. 489, § 2º, do CPC. Por sua vez, aquele trabalhou o conceito de integridade e coerência do Direito, incorporado ao art. 926, caput, do CPC.
De antemão, isso não necessariamente é bom ou ruim. O essencial, contudo, é compreender que os referidos autores desenvolveram suas pesquisas e chegaram a conclusões direcionadas para o contexto econômico, político, social e jurídico dos respectivos países de origem, quais sejam, Estados Unidos da América e Alemanha.
Como fazer esse ajuste e averiguar se é possível harmonizar tais diretrizes, de forma genérica, é uma conclusão que não se tem a pretensão de atingir a partir deste trabalho. No que diz respeito ao modelo de precedentes imposto, de forma cogente e politicamente forçada, a intenção é destacar a existência do problema inerente à importação de um modelo que não integrava o ordenamento jurídico brasileiro, a partir do exemplo concreto que envolve a criação e a aplicação de um enunciado de Súmula do Superior Tribunal de Justiça.
2. Institutos jurídicos relacionados ao manejo do precedente
O termo precedente não é próprio do sistema de civil law, mas do common law. Na linha do rompimento de barreiras, já não se pode mais definir precedente como instrumento empregado apenas no common law.
Em sentido amplo, o conceito de precedente abarca a decisão tomada à luz de uma caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos. Já em sentido estrito, o precedente pode ser definido como a própria razão de decidir (DIDIER JUNIOR, 2015).
Por sua vez, José Rogério Cruz e Tucci ensina que o precedente é composto por 2 (duas) partes: i) as circunstâncias de fato, que ocasionaram a situação jurídica levada a conhecimento do Poder Judiciário; e a ii) tese jurídica (ratio decidendi ou holding), qual seja, os fundamentos jurídicos que se encontram no capítulo da fundamentação da decisão. (TUCCI, 2004).
Isso explica o porquê de a razão de decidir (ratio decidendi ou holding) não ser extraída do dispositivo da decisão, mas, sim, da sua fundamentação. Por conseguinte, a eficácia obrigatória ou persuasiva do precedente, na verdade, é um caráter da sua ratio decidendi.
Como não poderia deixar de ser, nem todos concordam com essa definição. Para Luiz Guilherme Marinoni, a ratio decidendi não se confunde com a fundamentação da decisão. Aquela está contida nesta, mas não há uma correspondência integral (MARINONI, 2010). A razão de decidir é extraída de uma leitura conjugada de todos os elementos da decisão (relatório, fundamentação e dispositivo). Isso porque é preciso saber quais as circunstâncias fáticas (expostas no relatório), a interpretação dada aos preceitos normativos (encontrada na fundamentação) e a conclusão a que se chegou (exposta no dispositivo) para interpretar corretamente o precedente.
O precedente é uma norma jurídica geral (basta lembrar que reside na fundamentação da decisão), que é construída de forma indutiva, a partir de um caso concreto, pois se desprende do caso específico e passa a poder ser aplicada em outras situações assemelhadas ao caso do qual se originou. De outro lado, a norma jurídica individualizada é extraída do dispositivo e não se confunde com a ratio decidendi (precedente).
Por exclusão, tudo que não é precedente, é obiter dictum. A definição residual é a de uma proposição ou regra que não compõe a ratio decidendi. Trata-se do argumento jurídico, consideração ou comentário exposto apenas de passagem na motivação da decisão, que se convola em juízo normativo acessório, provisório, secundário, impressão ou qualquer outro elemento que não tenha influência relevante e substancial para a decisão. Em suma, é prescindível para a solução da controvérsia. No entanto, não deve ser simplesmente considerado desprezível, sobretudo porque pode sinalizar uma orientação futura do Tribunal. Aliás, o voto vencido que compõem um acordão pode ser considerado um exemplo de obter dictum.
O termo razão de decidir (ratio decidendi) é muito presente no estudo da teoria do precedente e na praxe cotidiana relacionada à aplicação do precedente. Apesar de alguma divergência no que diz respeito à definição, a principal dificuldade quanto ao tema consiste na identificação da razão de decidir.
Regra geral, o órgão judicial que profere a decisão não identifica, no momento do julgamento, qual é a ratio decidendi que está sendo empregada no caso. Dessa forma, a tendência é a de o juiz responsável pela aplicação futura do precedente ter de examinar o julgado que pretende adotar na motivação da decisão para extrair a norma legal que poderá ser aplicada ao caso concreto.
É possível que determinada decisão contenha mais de um motivo como fundamento de sua decisão (mais de uma ratio). Por conseguinte, haverá mais de uma razão de decidir. Todas elas serão obrigatórias para que ocorra a correta aplicação do precedente. O juiz, ao apreciar caso posterior, não poderá escolher uma dentre as razões como obrigatória e relegar as outras à posição de obiter dictum.
Ponto polêmico e pertinente ao cenário brasileiro diz respeito à diversidade de razões adotadas por cada membro de um órgão colegiado. No caso de o resultado ser comum a todos, mas os membros do colegiado o fizerem por razões diversas, tem-se entendido que não há, de fato, ratio decidendi discernível. Portanto, o Juiz do caso posterior estará livre para decidir com base em outro parâmetro (DIDIER JUNIOR, 2015)
Em solução extremada, Didier vai além e entende que, se houver grande dificuldade no processo de identificação da razão de decidir, seja por causa de fundamentação insuficiente ou porque a tese jurídica não foi bem delineada, a decisão pode ser considerada desprovida de ratio decidendi. Dessa forma, não haverá a formação de precedente, tampouco de autoridade obrigatória, independente de qual for o órgão judicial prolator da decisão.
Essas situações, contudo, merecem ser evitadas. O ideal é que a razão de decidir da decisão seja evidente. Ainda que assim não seja, diversos autores desenvolveram métodos com o objetivo de facilitar a identificação do precedente. Alguns dos principais são os seguintes: a) teste de Wambaugh; b) Método de Goodhart; e c) Método eclético de Rupert Cross, adotado por Luiz Guilherme Marinoni.
O teste de Wambaugh foi desenvolvida pelo homônimo, Eugene Wambaugh, em meados do século XIX. De acordo com o autor, determinado enunciado é considerado uma razão de decidir quando a inversão da proposição alterar a conclusão final do julgamento. Dito de outra forma, a razão de decidir é representada pelo motivo sem o qual o julgamento tomaria um rumo diverso.
As críticas a respeito desse teste convergem na impossibilidade de se identificar qual a razão de decidir nos casos em que houver 2 (duas) diferentes razões autônomas e suficientes, por si sós, para gerar uma única conclusão. Se, hipoteticamente, houver a exclusão de uma delas, a outra continuará sendo suficiente para a manutenção da mesma conclusão. A dificuldade remanescente consiste na impossibilidade de identificar o que é ratio decidendi e o que é obiter dictum.
O segundo método destacado é o proposto por Goodhart. Este, a seu turno, sustenta que a razão de decidir reside no exame dos fatos destacados e considerados importantes, que devem ser isolados daqueles tidos por secundários para a causa e a decisão que se funda nesses fatos. Em síntese, adota a máxima de que casos similares devem ser tratados da mesma forma. Se a base fática fundamental for a mesma do caso em que se pretende aplicar o precedente, o precedente vincula, se não for, não vincula (DIDIER JUNIOR, 2015).
Como de costume, se existem dois métodos, há grande chance de que um terceiro seja pensado como meio termo entre os dois anteriores. O método eclético de Rupert Cross se insere nesse contexto. Por isso, alguns doutrinadores entendem ser o melhor método (tais como Marinoni e Didier), tendo em vista a combinação de parte das duas propostas anteriores. Para Cross, a razão de decidir é identificada tanto a partir dos fatos principais quanto dos motivos jurídicos determinantes que foram empregados na decisão.
Na esteira do art. 928 do CPC[2], o termo decisão é empregado em sentido amplo, abarcando decisões interlocutórias, sentenças e acórdãos. Assim, a espécie da decisão não interfere na sua caracterização como precedente, ainda que seja uma decisão de admissibilidade (questões de natureza processual) ou de homologação (questões relacionadas a requisitos formais).
O precedente tem natureza de ato-fato jurídico. Na esteira da teoria do fato jurídico, notoriamente desenvolvida entre nós por Pontes de Miranda, trata-se de ato porque pressupõe uma ação humana e, ao mesmo tempo, de fato, pois a vontade humana é irrelevante no que diz respeito às consequências produzidas pelo ato. O precedente produz efeitos independentemente da manifestação do órgão jurisdicional que proferiu o julgado que se transformou em precedente. Por isso, entende-se que o precedente produz efeitos ex lege.
Se os efeitos decorrem da própria lei, é possível concluir que eles variam de acordo com o ordenamento jurídico-positivo de cada país. No Brasil, Fredie Didier (2015) entende ser possível a produção dos seguintes efeitos: a) vinculante ou obrigatório (art. 927 do CPC); b) persuasivo; c) obstativo da revisão de decisões; d) rescindente ou deseficacizante; e e) de revisão da sentença (coisa julgada).
A começar pelo efeito vinculante, é importante traçar uma breve definição de cada um desses efeitos. Nos Estados Unidos da América, também é conhecido como binding efect ou binding authority e pode ser considerado o mais intenso de todos, ou seja, é um efeito que abrange os demais.
A norma jurídica extraída do precedente vinculante, como a própria denominação indica, tem o condão de obrigar as decisões posteriores em casos semelhantes. No Brasil, optou-se por enumerar na lei aqueles precedentes com força vinculante (art. 927 do CPC[3]). Como maneira de forçar o juiz a seguir a orientação, o legislador estabeleceu que eventual decisão que deixar de se manifestar a respeito de precedente vinculante é omissa (art. 1.022, parágrafo único, inc. I, CPC[4]).
O efeito persuasivo é o mínimo que todo precedente produz. Apesar de nenhum magistrado estar obrigado a empregar tal espécie de precedente, esse efeito configura um indicativo de que o precedente apresenta uma solução racional e adequada, razão pela qual deve ser seguido pelos demais órgãos judiciais hierarquicamente inferiores. Em sua essência, representa verdadeiro argumento de autoridade.
A eficácia de obstar a revisão das decisões configura a possibilidade de um juiz, sozinho, em instância revisora, impedir o prosseguimento de uma demanda, negando provimento a recurso ou dispensando a remessa necessária, no caso de detectar que a solução jurídica requerida pelo autor não está em harmonia com um precedente vinculante. Por isso, trata-se de uma espécie de desdobramento do efeito vinculante possibilitada pelos artigos 332, 932, inc. IV, e 1.040, inc. I, todos do CPC [5].
O precedente com eficácia rescindente ou deseficacizante é aquele que permite e serve de motivo para a rescisão ou a retirada da eficácia de uma decisão judicial transitada em julgado. Trata-se de uma novidade implementada pelos artigos 525, §§ 12, 13 e 14 e 535, §§ 5o, 6o e 7o, todos do CPC[6].
Por último, no que diz respeito aos efeitos possíveis, tem-se a permissão de revisão da coisa julgada, que se assemelha ao efeito descrito anteriormente. A diferença reside na inclusão da exigência de que a relação jurídica examinada seja de trato sucessivo (art. 505, inc. I, CPC[7]).
Os efeitos descritos em nada colaboram se não houver o comprometimento dos juízes, sobretudo os que atuam nos Tribunais, de seguir a orientação firmada pelo precedente. Por isso, o art. 926 do CPC[8], mencionado na introdução da pesquisa, enumera quais deveres precisam ser assumidos pelos Tribunais para que o sistema de precedentes funcione de forma satisfatória: i) dever de uniformização da jurisprudência; ii) dever de manter a jurisprudência estável; iii) dever de da publicidade aos precedentes; iv) dever de coerência; e v) dever de integridade (DIDIER JUNIOR, 2015)
Os Tribunais são compostos por vários órgãos fracionários, oriundos da desconcentração administrativa, com competência para julgar e apreciar demandas. Isso possibilita que cada órgão, atuando com independência, decida de uma forma diferente. O primeiro dever, então, é o de uniformizar a jurisprudência interna do Tribunal em relação à determinada questão jurídica. Nessa esteira, os Tribunais também têm o dever de sumular a jurisprudência dominante como forma de concretizar esse dever de uniformização (art. 926, § 1o, do CPC).
O segundo passo após uniformizar a jurisprudência é mantê-la estável. Assim, qualquer mudança de posicionamento deve ser justificada de maneira adequada, incluindo a modulação dos efeitos dessa alteração de entendimento, para que, em última análise, a segurança jurídica seja preservada. O art. 489, § 1o, inc. V, do CPC[9] consubstancia importante novidade nesse sentido, pois estabelece a necessidade de uma forte carga argumentativa para que o precedente tenha sua aplicação afastada. Por outro lado, a argumentação da decisão que aplica o precedente é facilitada, diante do que Fredie Didier (2015, p. 474) chama de “princípio da inércia argumentativa”.
A publicidade, regra geral, é inerente a qualquer decisão judicial, de acordo com prescrição normativa contida no texto da Constituição Federal. Nada obstante, o art. 927, § 5o, do CPC[10] reforça esse quesito no que diz respeito aos precedentes e fixa o dever de os Tribunais organizarem os precedentes por tema e divulgá-los, de forma prioritária, na rede mundial de computadores (internet).
A noção de coerência pode ser dividida em duas dimensões: interna ou externa. A primeira está relacionada ao dever de fundamentação, que não deve conter proposições contraditórias entre si. Mais relevante para o bom funcionamento do sistema de precedente é a coerência externa, uma vez que as decisões devem estar em harmonia com as orientações pretéritas. A ideia do precedente é justamente a de tratar casos iguais de maneira semelhante, de forma alinhada ao princípio da igualdade.
Como já mencionado no introito, trata-se de ideia desenvolvida fundamentalmente por Ronald Dworkin, que vê na coerência um fator de reforço do desenvolvimento histórico do Direito por meio de uma cadeia de decisões que seguem a mesma linha de raciocínio. O autor norte-americano atribuiu a essa noção o nome de romance em cadeia (chain novel) para ilustrar como cada decisão não pode ignorar orientações passadas e ajuda a compor um todo, que é o Direito consolidado judicialmente. A propósito, veja-se o seguinte excerto da obra do mencionado autor:
“Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade.” (DWORKIN, Ronald, 2007, p. 276)
A integridade do precedente está igualmente conectada à obra de Ronald Dworkin. Este entende que todo caso conta com uma resposta correta. Alguns interpretam sua obra como se não houvesse uma só, mas a aquela que seria melhor resposta para o caso. Daí surge a ideia de integridade do Direito, que está ligada à noção de unidade do Direito, que não admite qualquer justificativa, senão aquela que mantém a única/melhor resposta, ou seja, a coerência.
A ideia de Dworkin de que cada caso conta com uma resposta é bastante rechaçada. No Brasil, ao tratar da introdução do sistema de precedentes, Fredie Didier (2015) entende que a integridade do precedente não pode ser compreendida sob a ótica estrita da teoria de Dworkin. Na linha dos críticos do autor norte-americano, Fredie Didier (2015) ressalta que não se pode admitir que há uma única resposta correta para cada caso concreto, pois essa ideia não consegue explicar o Direito em toda sua potencialidade, tal como a densificação de uma cláusula geral para solucionar um caso.
Uma vez enumerados os efeitos emanados do precedente e os deveres dos Tribunais de trabalhar no sentido de manter a unidade do precedente, adentra-se no ponto que tem a maior relevância prática no que toca à sua aplicação: as técnicas de interpretação e aplicação do precedente. Afinal, sobretudo o juiz, além dos demais atores que participam ou interferem na relação jurídica processual, têm como grande tarefa a identificação do precedente adequado ao caso concreto.
A técnica de confrontação do precedente em relação aos casos concretos é conhecida por distinguishing (distinção). Como o próprio nome já revela, trata-se de procedimento de confronto por meio do qual o juiz tem o dever de verificar se o precedente paradigma é, ou não, distinto do caso concreto sob exame. Incumbe ao juiz diferenciar as nuances do caso concreto para aferir se há similitude entre as situações jurídicas incorporadas pelo precedente e o caso a ser julgado.
O distinguishing pode ser especificado em duas vertentes (DIDIER JUNIOR, 2015, p. 491): restrictive distinguishing (distinção restritiva) e ampliative distinguishing (restrição ampliativa). Neste, o juiz aplica o precedente ao caso, apesar de o precedente abarcar situações que vão além das retratadas na demanda em análise. Por isso, amplia, estende, a aplicação do precedente. Naquele, o precedente se restringiu à determinada situação que não abarca todas as peculiaridades do caso. O precedente pode até ser aplicado, mas apenas em relação à questão semelhante entre o paradigma e o novo caso.
A distinção consiste em dever do juiz, que tem a atribuição de interpretar o precedente para verificar se a ratio decidendi se ajusta ao caso sob análise. De outro modo, estará o magistrado incorrendo no que se convencionou chamar de decisão per incuriam, que nada mais é do que a decisão omissa em relação à orientação fixada por um precedente obrigatório.
Além da referida técnica de interpretação, vale destacar outras ferramentas igualmente relacionadas à aplicação do precedente: overruling e overriding (DIDIER JUNIOR, 2015, p. 494). As designações são todas em inglês e não há consenso a respeito da melhor tradução, pois consistem em instrumentos importados de países anglo-saxões que seguem a tradição mais voltada para o Direito comum (common law).
O overruling pode ser caracterizado como uma técnica de superação ou de substituição do precedente por um novo e pode ocorrer de forma expressa (express overruling) ou implícita (implied overruling). Esta última hipótese é a mais comum na prática judiciária brasileira, pois os Tribunais não têm o costume de agir com transparência nas situações em que estão superando determinado precedente. No entanto, Fredie Didier entende que o ordenamento jurídico brasileiro, com a vigência do atual CPC, admite somente o express overruling. Caso contrário, haveria violação do dever de coerência (DIDIER JUNIOR, 2015).
A superação do precedente conta com procedimento próprio. Não se resume à própria fundamentação adotada pelo órgão colegiado que entendeu por bem superar determinado precedente. Dessa forma, há previsão de procedimento próprio para revisão ou cancelamento de súmula vinculante (art. 103-A, § 2o, da CF e Lei 11.417/2006). Ademais, o próprio CPC prevê em seu art. 927, § 2o a 4o[11] como o Tribunal deve proceder ao identificar a necessidade de superação de um precedente obrigatório de uma Corte Superior.
Esse cenário demonstra que a superação de um precedente pode acontecer de forma difusa ou concentrada (DIDIER JUNIOR, 2015, p. 496). Esta ocorre no caso de haver procedimento autônomo previsto para que se promova a revisão do precedente. É o que prevê o art. 3º da Lei 11.417/2006 para a revisão ou cancelamento de súmula vinculante e o art. 986 do CPC em relação ao precedente firmado por meio de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR).
A superação de um precedente rompe a sequência histórica do romance em cadeia (chain novel) produzido pela série de decisões que seguiram a orientação fixada pelo precedente. Essa ruptura, certamente, exige que o órgão judicial que deseja superar o precedente se comprometa com uma carga de argumentação mais robusta, examinando argumentos novos ou que não haviam sido enfrentados até então para justificar a necessidade de superação do precedente.
De acordo com Celso de Albuquerque Silva (SILVA, 2005, p. 266-284), existem algumas hipóteses autoexplicativas em que se observa a clara necessidade de superação de um precedente. No caso de o precedente tornar-se: a) obsoleto; b) absolutamente injusto e/ou incorreto; e c) inexequível na prática.
De outro lado Melvin Aron Eisenberg (1998, p. 104-105) entende que o overruling deve ser implementado no caso de: a) o precedente não mais corresponder aos padrões de congruência social e consistência sistêmica; ou b) as normas jurídicas que sustentam a estabilidade, tais como isonomia e segurança jurídica, fundamentam mais a sua revogação do que a sua preservação.
Uma ressalva merece ser feita em relação à modificação do texto de uma lei. O precedente originado a partir da interpretação da lei revogada lei não é propriamente superado. Em verdade, deixará de ser aplicado como decorrência natural da inevitabilidade da aplicação da nova norma jurídica originada a partir da modificação do texto legal. Portanto, o juiz não carregará consigo o ônus argumentativo inerente à superação de um precedente.
Esse tema remete à eficácia temporal do precedente. É que a sua criação de um pode envolver a modulação na produção dos seus efeitos, apesar de a regra ser a de que o precedente tem eficácia temporal retroativa. Esta, por sua vez, pode ser pura ou clássica (DIDIER, 2015, p. 499-500). A primeira abrange inclusive decisões com trânsito em julgado, gerando a possibilidade do ajuizamento de ação rescisória para fazer valer a força do precedente. A última ressalva as decisões transitadas em julgado da eficácia do precedente.
Assim como as próprias decisões judicias, sobretudo no âmbito do controle de constitucionalidade das leis, admite-se a modulação da eficácia do precedente de forma prospectiva (DIDIER, 2015, p. 503-505).
O precedente com eficácia prospectiva pura é aplicável apenas aos fatos de ocorrência posterior ao precedente e não se aplica ao caso concreto em que se faz a superação (overruling), ressalvando, pois, as parte integrantes da relação jurídica processual que gerou o precedente. Já a eficácia prospectiva clássica afeta apenas as partes da demanda que gerou a superação do precedente. A eficácia prospectiva a termo é a mais simples de ser compreendida. Consiste apenas na estipulação pelo Tribunal de uma data ou de condição para que o precedente comece a produzir os seus efeitos.
O emprego de cada uma dessas eficácias depende da situação jurídica examinada e das consequências que ela pode gerar de fato. Não existe resposta certa a ser utilizada na criação de um novo precedente. Nesse contexto, há também a técnica conhecida por signaling (sinalização) e ocorre por meio de um aviso do Tribunal para preparar a comunidade jurídica para uma alteração futura de um precedente (DIDER, 2015, p. 501-506).
Alguns autores, como Antonio do Passo Cabral, defendem, na linha do signaling, que os Tribunais façam um alerta de que haverá a superação de um precedente. Para tanto, cunhou a expressão “julgamento-alerta”, que nada mais é do que uma forma de conferir publicidade à possível alteração da razão de decidir de um precedente, preservando a coerência a confiança no sistema de precedente (CABRAL, 2013).
O referido autor diferencia a sinalização do julgamento-alerta pela maior possiblidade de participação da sociedade neste último instrumento. Além do mais, a sinalização é feita no próprio julgamento em que há superação do precedente, diferenciando-se do alerta que mantém o precedente ao mesmo tempo em que faz a advertência de que pode haver mudança de entendimento.
A partir do momento em que determinada Corte de Justiça sinaliza que irá superar um precedente, entende-se que os juízes podem agir de forma preventiva e deixar de aplicar o precedente nos casos em que ele deveria, em tese, ser aplicado. Trata-se do antecipatory overruling, que tem como finalidade, a partir de um exercício de previsibilidade, flexibilizar a vinculação dos juízes aos precedentes das Cortes Superiores.
Por fim, convém fazer menção ao overriding, que consiste em uma espécie de superação parcial do precedente (DIDIER JUNIOR, 2015, p. 507-508). Há limitação do âmbito de aplicação do precedente para adequá-lo a uma regra ou princípio superveniente. Por meio do overriding, o juiz reduz a hipótese fática de incidência do precedente sem alterar a razão de decidir do precedente, ou seja, sem superar o precedente.
Essa ferramenta aproxima-se da distinção (distinguishing), com a diferença de que a distinção reside na diferença do suporte fático, tornando o precedente inaplicável ao caso. Por outro lado, “no overriding é uma questão de direito (no caso, um novo posicionamento) que restringe o suporte fático.” (DIDIER JUNIOR, 2015, p. 507).
Após a exposição dos instrumentos relacionados ao manejo do precedente, passa-se a ilustrar a ausência de transparência na aplicação desses instrumentais na prática forense brasileira. A falta de compreensão do que é o precedente e da importância de delimitação de qual é a razão de decidir gera a indistinção no momento da aplicação e colabora na dificuldade de manutenção da coerência e da estabilidade dos precedentes.
3. O contrato de mútuo e sua relação com o problema do superendividamento
O vocábulo superendividamento está em voga no Brasil e é empregado para descrever um problema grave e que aflige grande parte da sociedade. Pode ser sintetizado como a incapacidade do devedor de saldar as suas dívidas. É que o povo, representado na figura do consumidor ordinário, não dispõe do luxo concedido pelo mercado financeiro a determinados Estados nacionais e instituições financeiras de ser devedor e não ter a necessidade de pagar a respectiva dívida. De acordo com o Banco Central do Brasil (BACEN)[12], o superendividamento pode ser definido da seguinte forma:
“[é] o que acontece quando uma pessoa de boa-fé́ se vê impossibilitada de pagar suas dívidas atuais ou futuras com sua atual renda e seu patrimônio. Quando isso ocorre, os indivíduos passam a ter dificuldades de suprir suas necessidades básicas, como alimentação, moradia, saúde, podendo levar a sérias repercussões psicológicas, familiares e sociais.”
A definição apresentada pelo BACEN está em harmonia com o conceito empregado pela doutrina no âmbito do Direito. No campo do direito do consumidor, percebe-se apenas o acréscimo de alguns elementos ausentes na definição supracitada, como o fato de a pessoa física ter de ser consumidora, leiga e não conseguir arcar com suas dívidas em um tempo razoável. É o que entendem Cláudia Marques, Herman Benjamim e Bruno Miragem (2010, p. 1051), ao conceituarem o superendividamento como a:
"impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e alimentos) em um tempo razoável com sua capacidade atual de rendas e patrimônio"
Ambos os conceitos servem para dimensionar o problema em questão. A par do que se entende por superendividado, alguns dados estatísticos devem ser mencionados para delimitar a quantidade de pessoas atingidas. A Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), de setembro de 2018[13], produzida pela Confederação Nacional do Comércio (CNC) produziu os seguintes dados: 60,7% (sessenta vírgula sete por cento) das famílias estão endividadas; 23,8% (vinte e três vírgula oito por cento) das famílias têm dívidas com pagamento atrasado; 9,9% (nove vírgula nove por cento) das famílias não têm condições de pagar suas dívidas.
Quando se fala em superendividamento, é preciso levar em consideração que esse fenômeno atinge um espaço amostral que corresponde a aproximadamente 10% (dez por cento) da totalidade das famílias brasileiras. Ademais, vale registrar que, no ano de 2016, essa mesma pesquisa indicava o patamar de aproximadamente 8% (oito por cento) de famílias sem condições de pagar suas dívidas. Assim, lamentavelmente, observa-se um crescimento médio de cerca de 1% (um por cento) ao ano no que se refere ao quantitativo de famílias atingidas.
A constatação e a delimitação do problema auxiliam em sua compreensão. Nada obstante, este trabalho não tem como objeto a pesquisa de causas ou de soluções relacionadas ao superendividamento. O foco reside nos reflexos que essa condição pessoal gera para o Poder Judiciário, com destaque para a jurisdição exercida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT).
O ideal seria que as causas do referido problema fossem combatidas por meio de políticas públicas implementadas pelo Poder Executivo, após a consolidação de ideias propostas e discutidas no espaço deliberativo próprio, qual seja, o Poder Legislativo. A propósito do tema, vale destacar a existência do Projeto de Lei federal no 3.515/2015, cujo teor da ementa enuncia tratar-se de instrumento normativo “para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.”[14]
O mal funcionamento dessas instituições de representação política, todavia, faz com que o Poder Judiciário, que não pode se eximir de apreciar as provocações que lhe são propostas (art. 5o, inc. XXXV, da Constituição Federal[15]), seja forçado a apresentar uma solução contingente para os demandantes.
Isso inclui não só o papel típico do Judiciário de apreciar e julgar as demandas judiciais. Diante da elevada quantidade de pessoas atingidas pelo superendividamento e da omissão dos outros atores políticos, o Poder Judiciário tem atuado como legítimo promotor de políticas públicas voltadas para esse público.
É o caso da criação do “Centro Judiciário de Solução de Conflitos e de Cidadania Superendividados - CEJUSC/Super”, por meio da Portaria Conjunta no 4, de 1o de fevereiro de 2016, do TJDFT. Em suma, institucionalizou-se a meta de promover a autocomposição entre as partes envolvidas, por meio da avaliação e renegociação de dívidas, prevenção de superendividamento, educação financeira e reinclusão social do consumidor.
Apesar dessa e de outras louváveis tentativas de evitar a judicialização de conflitos entre consumidores e instituições financeiras, o superendividamento ainda é o pano de fundo de muitas situações jurídicas geradoras de demandas no âmbito da jurisdição contenciosa cível.
Diante desse contexto, o enunciado no 603 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça[16] foi criado com o objetivo de tentar unificar, ao menos no que diz respeito à reprodução de demandas judiciais motivadas por esse problema, a solução oferecida pelo Poder Judiciário aos consumidores superendividados.
Antes de tratar da construção e do motivo que ocasionou o cancelamento do mencionado enunciado de súmula, convém descrever quais são as características, regra geral, das situações examinadas pelo Poder Judiciário, bem como os institutos jurídicos envolvidos nas discussões e o que se acredita ser a melhor tese jurisprudencial como resposta para essa conjuntura.
Na quase totalidade dos casos, o superendividamento surge a partir de uma relação obrigacional entre uma pessoa natural (consumidor) e uma instituição financeira (fornecedor). Essa relação, geralmente, é constituída a partir da celebração de um contrato de empréstimo. Trata-se de uma espécie de negócio jurídico típico (artigos 586 a 592 do Código Civil).
O contrato de empréstimo é um gênero de negócio em que a pessoa se obriga a “devolver a coisa emprestada ou outra da mesma espécie e quantidade.” (TARTUCE, 2017, p. 665) Por sua vez, a espécie de empréstimo de interesse atual é aquela que recebe a denominação de mútuo, pois o empréstimo de dinheiro envolve “bem fungível e consumível, em que a coisa é consumida e desaparece, devendo ser devolvida outra de mesma espécie e quantidade (empréstimo de consumo).” (TARTUCE, 2017, p. 666)
Trata-se de contrato real, uma vez que o aperfeiçoamento da relação jurídica ocorre com a tradição da coisa (dinheiro), sendo insuficiente a consolidação da vontade das partes manifestada sob a forma de instrumento contratual. Além disso, é contrato unilateral. A partir do momento em que o dinheiro é entregue pelo mutuante, as obrigações recaem apenas sobre o mutuário.
O mutuante entrega o dinheiro para o mutuário e, como contraprestação, estipula o recebimento de juros com o objetivo de remunerar a sua atividade empresarial. Dessa forma, o pagamento de juros pelo mutuário como remuneração pela utilização do capital alheio (da instituição financeira mutuante) é o que caracteriza o mútuo feneratício (oneroso), nos termos do art. 591 do Código Civil[17].
No passado, a onerosidade do mútuo consistia em prática reprovada por intelectuais de tradição romana-cristã. Santo Agostinho, com fundamento no Evangelho de Lucas, expressava forte crítica à cobrança de juros, por entender tratar-se de uma forma de aquisição de dinheiro injusto (mamona iniquitatis) e que caracterizava a usura (GONÇALVES, 2011, p. 352). Contudo, essa prática atualmente está incorporada ao sistema financeiro mundial e tornou-se habitual e pouco questionada.
O contrato de mútuo foi concebido inicialmente e tipificado como uma espécie de contrato gratuito. Esta era a tradição seguida pelo Código Civil de 1916, ocasião em que se exigia que a onerosidade fosse expressa no contrato. No entanto, o mútuo gratuito perdeu relevância. Tanto é que a doutrina majoritária consolidou-se no sentido de que “quaisquer contratos de mútuos destinados a fins econômicos presumem-se onerosos” (Enunciado no 34 da I Jornada de Direito Civil do Conselho Federal de Justiça).
O cenário descrito revela que, de fato, houve uma banalização na cobrança de juros. Praticamente toda transação creditória que não seja à vista remunera alguma das partes envolvidas mediante o pagamento de juros. Nesse cenário, convém destacar a atuação das instituições financeiras, notadamente o monopólio exercido pelo conjunto de poucos bancos comerciais nacionais, tendo em vista que eles controlam a oferta de crédito para pessoas físicas no sistema financeiro brasileiro.
Esse domínio certamente exerce notória influência política e econômica na construção do Direito, notadamente sob o aspecto jurídico-positivo. Ainda que sem o devido aprofundamento nessa discussão, essa pressão do sistema financeiro ajuda a explicar, de forma simplória, o fato de que as entidades bancárias não se submetem à chamada Lei de Usura (Decreto-lei 22.626/1933)[18], que vedava a cobrança de juros abusivos além do dobro do patamar legalmente fixado.
Aliás, os Tribunais consolidaram o entendimento de que a derrogação de parte do Código Civil deu-se por meio da edição de medidas provisórias (MP 1.963-17/2000 e MP 2.170-36/2001). Esta tese foi encampada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, com destaque para o julgamento do Recurso Extraordinário no 592.377/RS[19] e para o enunciado no 596 da súmula da Corte Suprema[20].
Na mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça também afastou a limitação da estipulação de juros fixada para o mútuo feneratício (art. 591 do Código Civil[21]), com destaque para o enunciado no 382 da sua súmula[22]. Esses enunciados jurisprudenciais são amplamente criticados pela doutrina civilista. Por todos, menciona-se aqui a crítica de Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona:
“Falar sobre a aplicação de juros na atividade bancária é adentrar em um terreno explosivo.
De fato, fizemos questão de mostrar como a disciplina genérica do instituto, bem como as peculiaridades encontradas em uma relação jurídica especial, como a trabalhista, em que o próprio ordenamento reconhece as desigualdades dos sujeitos e busca tutelá-los de forma mais efetiva, reconhecendo que, mesmo ali, ainda é observada, no final das contas, a regra geral.
Isso tudo para mostrar que ‘há algo de errado no reino da Dinamarca’ quando se fala da disciplina dos juros bancários no Brasil.
Tal jocosa afirmação se dá pela circunstância de que, lamentavelmente, o Supremo Tribunal Federal, ao editar a Súmula 596, firmou entendimento no sentido de que ‘as disposições do Decreto-lei 22.626 não se aplicam à taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas e privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional’.
Em nosso entendimento, sob o argumento de que a atividade financeira é essencialmente instável, e que a imobilização da taxa de juros prejudicaria o desenvolvimento do País, inúmeros abusos são cometidos, em detrimento sempre da parte mais fraca, o correntista, o depositante, o poupador” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2003, p. 322)
O resultado desse cenário é o de que as instituições financeiras podem fixar o patamar dos juros remuneratórios de acordo com as “taxas do mercado”. Por sua vez, o mercado é controlado pelas próprias instituições financeiras, revelando uma relação tautológica que exclui a participação popular de decisões estratégias a respeito do sistema econômico do país. Ressalvadas outras críticas de cunho político-econômico, essa situação gerou várias contradições de ordem jurídica.
Vale destacar que o contrato de mútuo envolve uma relação de consumo, logo, atrai a aplicação do microssistema de proteção ao consumidor. Nada obstante, a instituição mutuante não se sujeita à Lei de Usura, o que lhe permite cobrar “taxas” de juros abusivas. Em outras palavras, criou-se uma espécie de cláusula abusiva, que onera excessivamente o consumidor, mas é considerada válida pela jurisprudência dos Tribunais e não é devidamente tutelada pela legislação que em tese protege o consumidor. A respeito dessa situação peculiar, veja-se o seguinte excerto extraído da obra de Flávio Tartuce:
“Este autor entende ser lastimável o tratamento muitas vezes dado pela jurisprudência quanto à matéria, uma vez que é comum as instituições bancárias cobrarem juros excessivamente abusivos, tornando caro o crédito em nosso País. Isso também ocorre com empresas financeiras, caso das que prestam o serviço de cartão de crédito.
Em suma, é lamentável o teor da Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual as instituições bancárias, como integrantes do sistema financeiro nacional, não estão sujeitas à Lei de Usura. Também não há como concordar com o teor da Súmula 283 do Superior Tribunal de Justiça, que prevê que “As empresas administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não sofrem as limitações da Lei de Usura”. Compreendemos que a Lei de Usura está em total sintonia com a proteção dos vulneráveis (consumidores e aderentes contratuais), constante do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil.” (TARTUCE, 2017, p. 286)
Os juros, além de abusivos, são calculados de forma composta. É o que se denomina de anatocismo. Dessa forma, a cada termo de vencimento que o consumidor deixa de pagar a dívida, novos juros são aplicados sobre o saldo devedor acumulado, que inclui juros aplicados sobre os vencimentos pretéritos não pagos, e assim sucessivamente. Com o objetivo de esclarecer o que se entende por anatocismo, convém fazer menção ao seguinte trecho da obra de Carlos Roberto Gonçalves:
“O anatocismo consiste na prática de somar os juros ao capital para contagem de novos juros. Há, no caso, capitalização composta, que é aquela em que a taxa da juros incide sobre o capital inicial, acrescido dos juros acumulados até o período anterior. Em resumo, pois, o chamado “anatocismo” é a incorporação dos juros ao valor principal da dívida, sobre a qual incidem novos encargos.” (GONÇALVES, 2011, p. 409)
O cenário descrito, sem dúvida, colabora com o superendividamento do consumidor. Diante da cobrança de juros abusivos e calculados de forma composta, o mutuário se vê diante de uma situação que pode ser comparada a uma bola de neve descendo uma montanha e sendo retroalimentada pela neve depositada no solo na medida em que avança ladeira abaixo.
Para melhor compreender o fenômeno do superendividamento e as situações jurídicas que são levadas ao Poder Judiciário, mostra-se proveitosa uma breve incursão na disciplina jurídica dos juros, pois estão intrinsecamente ligados aos contratos de mútuo onerosos.
Os juros podem ser remuneratórios (compensatórios) ou moratórios. Estes consistem na forma de ressarcir o credor, em uma relação obrigacional, pela mora do devedor, ou seja, pelo atraso em não pagar até a data de vencimento convencionada. Aqueles decorrem do uso consentido do capital financeiro de outrem. Como já mencionado, constituem a contraprestação exigida pelo mutuante para emprestar determinada quantidade de dinheiro ao mutuário.
Também podem ser os juros convencionais ou legais. Estes são aplicados por força de disposição legal com vigência no ordenamento jurídico. Aqueles, a seu turno, são oriundos da livre manifestação da vontade das partes contratantes. São ajustados, portanto, de acordo com o princípio da autonomia da vontade, que norteia a celebração dos negócios jurídicos.
O mutuário que não paga sua dívida a contento tem de arcar, então, com juros compensatórios que remuneram a atividade bancária, além dos juros de mora, em decorrência do não pagamento na data estipulada para o vencimento da prestação. Vale repisar que não chega a existir convenção de fato, uma vez que os contratos de mútuo, em sua quase totalidade, são contratos de adesão. A manifestação da vontade do mutuário transita apenas entre aderir ou não ao contrato.
Por outro lado, não se pode deixar de reconhecer que o devedor ainda conta com uma série de garantias concebidas para que o processo de execução (sem sentido amplo) não lhe seja excessivamente oneroso. Exemplo disso é a regra consubstanciada no art. 833 do CPC[23], que enumera uma série de bens que não podem ser penhorados.
As instituições financeiras, pautadas na promessa de baratear a concessão de crédito e no elevado risco de inadimplência dos mutuários, além da alegada dificuldade de obter a efetiva satisfação do crédito por meio de processo judicial, passaram oferecer duas modalidades de empréstimo que se tornaram bastante populares entre os consumidores. São elas: i) o consignado e ii) o que permite o desconto direto na conta corrente.
O primeiro e mais popular é o denominando empréstimo consignando. Este consiste na prática de o mutuante descontar direto na folha de pagamento ou de proventos de aposentadoria o valor devido pelo mutuário como contraprestação pelo crédito que lhe fora cedido pela instituição financeira. Dessa forma, a remuneração ou provento de aposentadoria recebida mensalmente pelo mutuário lhe é disponibilizada já com o desconto da parcela devida ao mutuante.
A título de ilustração, imagine-se uma pessoa que aufere remuneração mensal quantificada em R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Ela contrata um empréstimo consignado no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) e se compromete a pagar uma parcela de R$ 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta reais) por mês, durante 5 (cinco) meses. A remuneração auferida pelo mutuário durante esse período será de R$ 3.750,00 (três mil setecentos e cinquenta) reais.
A ideia desse formato de contrato é a de que o mutuante se veja livre do risco de inadimplência. Antes de o mutuário ter a oportunidade de gastar a sua remuneração com a aquisição de outros serviços ou bens, o mutuante tem assegurado o adimplemento da obrigação estabelecida entre ambos. Por isso, haveria, ao menos em tese, a cobrança de menores “taxas” de juros e o barateamento do crédito disponível para o consumidor.
A Lei federal 10.820/2003, posteriormente alterada pela Lei 13.172/2015, regulamentou, no âmbito das pessoas submetidas à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a possibilidade do trabalhador de adquirir crédito na modalidade consignada. Em relação aos servidores públicos, compete à lei regente do regime estatutário de cada ente político regulamentar essa prática. No que diz respeito aos servidores federais, a Lei 8.112/1990, também alterada pela mencionada Lei 13.172/2015, é o instrumento normativo que regulamenta o empréstimo mediante consignação em folha de pagamento.
Um ponto em comum a ser destacado é o de que, independente do regime, celetista ou estatutário, a Lei 13.172/2015, diante da escalada do número de pessoas endividadas, fixou o limite de 35% (trinta e cinco por cento) em relação aos descontos efetuados pelo mutuante sobre a folha de pagamento ou de provento de aposentadoria do mutuário.
O problema que gerou o enunciado no 603 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça consiste justamente na forma encontrada pelas instituições financeiras de burlar essa limitação fixada para a contratação de empréstimos consignados. Afinal, trata-se de um negócio que proporciona elevados lucros e baixíssimo risco de inadimplemento, ou seja, o cenário ideal para o mutuante.
A segunda modalidade consiste no empréstimo com pagamento mediante desconto direto na conta corrente do mutuário. A posição da instituição financeira nesse modelo de negócio é igualmente confortável, pois, muito provavelmente, a conta corrente do mutuário é gerida pela mesma instituição financeira que atuou na condição de mutuante. De modo a aclarar essa situação, imagine-se o mesmo exemplo utilizado para o empréstimo consignado.
Determinada pessoa aufere uma remuneração mensal no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Ela contrata um empréstimo no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) com pagamento mediante desconto direto na sua conta corrente e se compromete a pagar uma parcela de R$ 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta reais) por mês, durante 5 (cinco) meses.
A remuneração depositada em conta corrente continuará sendo a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Todavia, no mesmo momento em que o dinheiro cai na conta, o banco retém para si, a título de pagamento da parcela pelo empréstimo, a quantia de R$ 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta reais). Assim, a quantia que efetivamente resta à disposição do mutuário correntista, no período de 5 (cinco) meses, é de R$ 3.750,00 (três mil setecentos e cinquenta reais).
A diferença é sútil e, na prática, o resultado para o mutuante é o mesmo, pois lhe proporciona uma verdadeira garantia de que haverá o adimplemento da obrigação de pagar assumida pelo mutuário. Ocorre que essa última modalidade de empréstimo não é regulamentada por lei e a forma de pagamento explicitada decorre da autonomia das partes para contratar e acaba sendo combinada com o empréstimo consignando. Em outras palavras, ao atingir o limite de consignação, o consumidor passa a contratar na segunda modalidade mencionada.
De volta ao exemplo utilizado, a associação dessas duas modalidades de empréstimo gera uma situação com as características expostas a seguir. Um sujeito aufere a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por mês a título de remuneração. O limite de consignação, correspondente a 35% (trinta e cinco por cento), equivale a R$ 1.750,00 (mil setecentos e cinquenta reais).
Essa pessoa poderá, de acordo com a legislação regente, contratar empréstimo consignado com parcela mensal estipulada em, no máximo, R$ 1.750,00 (mil setecentos e cinquenta reais). O valor restante, de R$ 3.250,00 (três mil duzentos e cinquenta reais), seria depositado pelo empregador na conta corrente do trabalhador.
Ocorre que não existe limite para desconto direto em conta corrente em relação a essa quantia que seria disponibilizada após a consignação em folha de pagamento. Dessa forma, é possível que a pessoa comprometa praticamente toda sua remuneração mensal apenas com a quitação de obrigações assumidas em contratos de empréstimo com instituições financeiras.
No exemplo mencionado, o sujeito poderia contratar empréstimo na modalidade de desconto em conta corrente e fixar como contraprestação a parcela de R$ 2.000,00 (dois mil reais). Assim, restaria, de fato, para o mutuário a quantia de R$ 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta reais) no transcurso do prazo de extinção do contrato pelo adimplemento da dívida.
O limite de consignação de 35% (trinta e cinco por cento) foi pensado e fixado como um freio legal para proteger o mutuário, mas tornou-se absolutamente imprestável e inoperante. Nessa esteira, a ideia de assegurar um patrimônio mínimo, de acordo com a teoria do Ministro Luiz Edson Fachin, e de resguardar condições financeiras mínimas necessárias para o sujeito prover a sua subsistência com dignidade é afastada, de forma paradoxal, por meio da manifestação da vontade daquele que deveria ser protegido.
Além do mais, as instituições financeiras passaram a usar o desconto em conta corrente como uma forma de execução extrajudicial, exercendo uma espécie de autotutela por meio da retenção de valores depositados nas contas correntes dos mutuários para quitar dívidas vencidas e não pagas. Em outras palavras, os bancos construíram um atalho para evitar a fruição pelos mutuários das garantias do devido processo legal em relação aos meios legítimos de expropriação da propriedade privada.
4. O precedente por trás do enunciado no 603 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça
Os pontos apresentados no tópico anterior culminam no objeto central da pesquisa, que passa necessariamente pelo exame de alguns casos concretos para avaliar como o TJDFT tem aplicado o enunciado no 603 da súmula do Superior Tribunal de Justiça. Antes de adentrar ao exame dos casos propostos, convém mencionar a redação do referido enunciado sumular, que assim diz:
“É vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído, ainda que haja cláusula contratual autorizativa, excluído o empréstimo garantido por margem salarial consignável, com desconto em folha de pagamento, que possui regramento legal específico e admite a retenção de percentual.”
Verifica-se, de imediato, que o texto é extenso e a redação truncada prejudica a compreensão das autênticas razões de decidir do precedente que ensejou a consolidação do entendimento jurisprudencial. Não é preciso adentrar com profundidade no campo da filosofia da linguagem ou mesmo da hermenêutica para perceber a polissemia do referido enunciado, o que provoca dúvidas em relação à norma que se pretendia gerar a partir do seu texto. De forma pragmática, basta observar que começaram a surgir interpretações no sentido diametralmente oposto do que se pretendia com a edição desse enunciado.
O enunciado sumular em questão quis tratar de duas situações jurídicas distintas de uma única vez (duas modalidades de pagamento de empréstimo;). Por isso, acabou reforçando uma falsa percepção a respeito do precedente que vinha sendo fixado pelo Superior Tribunal de Justiça há, pelo menos, 10 (dez) anos. As duas situações já foram descritas acima de forma individualizada. São elas, vale repisar, as seguintes: i) o empréstimo consignado e ii) aquele que permite o desconto direto na conta corrente.
Em relação ao primeiro, há regulamentação legal expressa. Os servidores públicos federais são regidos pela Lei 8.112/1990, com destaque para o art. 45, e parágrafos, da mencionada Lei, que limita a margem consignável dos agentes públicos a 35% (trinta e cinco por cento) do valor total da remuneração percebida por mês. Já no que toca à segunda modalidade, não há qualquer regulamentação legal no sentido de impor limitação semelhante para o desconto direto em conta corrente.
O desconto ou retenção de depósito em conta corrente, apesar de não ser objeto de regulamentação específica, não se caracteriza, a princípio, como ato ilícito. É fruto da livre manifestação da vontade de contratar das partes. Não se pode esquecer que a eficácia do princípio da legalidade nas relações privadas apenas veda a prática de atos ilícitos (art. 186 do Código Civil[24]).
Diante da ausência de impedimento legal, o mutuário tende a preferir essa modalidade de empréstimo por se tratar de uma opção menos onerosa do que outras formas comuns de concessão de crédito, como o financiamento conjugado com o acessório da alienação fiduciária em garantia.
A consignação propriamente dita consiste na dedução de valor de “remuneração, subsídio, provento, pensão ou salário, mediante autorização prévia e expressa do consignado” (art. 2º, inc. II, Decreto 8.690/2016). Na prática, contudo, a diferença em relação ao desconto em conta mostra-se irrelevante. A dedução ser efetuada antes de ocorrer o depósito na conta ou no exato momento em que o depósito acontece não altera o fato de que o mutuário não chega realmente a dispor da quantia retida pela instituição financeira para usá-la como bem entender.
A consignação em si é lícita, desde que esteja dentro da limitação mencionada, e só ocorre se houver o consentimento do agente público. Por essa razão, recebe a denominação de consignação facultativa (art. 3º, inc. IX, Decreto 8.690/2016). Por outro lado, o desconto em conta corrente não é vedado. Também é facultativo e só ocorre se houver o consentimento do mutuário. Portanto, sem que se leve em consideração outros aspectos ligados ao superendividamento, como a necessidade de preservação de um patrimônio mínimo para o mutuário, ambas as situações podem receber tratamento jurídico equivalente.
O problema surge no momento em que a instituição financeira usa o mecanismo de desconto em conta corrente para reter dinheiro do mutuário com a finalidade de quitar uma dívida vencida e não paga no prazo inicialmente pré-estabelecido contratualmente. É o que chamamos aqui de autotutela executiva dos bancos comerciais. Esta é a questão central que o enunciado no 603 da súmula do Superior Tribunal de Justiça tinha o objetivo de solucionar.
Recorremos mais uma vez a um exemplo ilustrativo, de modo a favorecer a compreensão do tema. Um sujeito aufere a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por mês a título de remuneração. Surpreendido pela necessidade de arcar com um tratamento médico urgente e carente de recursos econômicos suficientes, celebra um contrato de mútuo com uma instituição financeira, sendo irrelevante a forma de pagamento estabelecida no instrumento contratual.
A instituição financeira faz o empréstimo e transmite ao mutuário, de forma imediata, a quantia de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). O contrato de mútuo feneratício estabelece como contraprestação do consumidor o pagamento de 50 (cinquenta) parcelas no valor de 1.200,00 (mil e duzentos reais). No entanto, uma sucessão de acontecimentos de ordem pessoal faz com que o mutuário deixe de pagar as parcelas dentro do prazo de vencimento.
Desse modo, o mutuário acumula 4 (quatro) prestações vencidas e não pagas, no valor total de R$ 4.800,00 (quatro mil e oitocentos reais), supondo, para facilitar o cálculo, que não há incidência de juros de mora e de outros cargos. A instituição financeira, ao invés de exercer a sua pretensão creditória perante o Poder Judiciário (seja via processo de execução ou submetido ao procedimento comum), retém esse montante na conta do mutuário no instante em que ele recebe a sua remuneração mensal, ao fundamento de que existe cláusula contratual permitindo essa conduta.
No momento em que tinha a expectativa de receber a sua remuneração, quantificada em R$ 5.000,00 (cinco mil reais), o mutuário se depara com o montante de R$ 200,00 (duzentos reais) à sua disposição. A justificativa do mutuante reside em cláusula aposta no instrumento do contrato que fora celebrado, autorizando o banco credor a reter quantias relacionadas a salários, vencimentos e/ou proventos do correntista para adimplir a obrigação de pagar assumida no negócio de mútuo.
Ainda que não tenha contratado um mútuo com a expectativa inicial de quitar o débito por meio de descontos efetuados direto em sua conta corrente, esta passa a ser a realidade com a qual o mutuário passa a lidar. Isso sem falar no fato de que é surpreendido com a repentina ausência de recursos, sem os quais fica impedido de adimplir outras dezenas de obrigações de pagar previamente assumidas com outros sujeitos.
O art. 833, inc. IV, do CPC, então, é derrogado pela conduta da instituição financeira da forma descrita acima. Como não poderia contar com a possibilidade de penhora de vencimentos como meio de satisfação do seu crédito, faz ela mesma a penhora e a expropriação do dinheiro do mutuário, sem antes passar por qualquer apreciação do Poder Judiciário.
Verifica-se, assim, uma verdadeira quebra do monopólio da reserva de jurisdição estatal, tendo em vista que somente o Estado detém autorização legal para tomar decisões com eficácia meramente executiva (em sentido amplo). A propósito, vale ressaltar que nem mesmo árbitros constituídos para o exercício de jurisdição não estatal podem exercer o poder de natureza cautelar ou executiva, nos termos do art. 516, inc. III, do CPC[25].
O uso da força para impor uma vontade, mediante critérios próprios e sem a interferência de autoridades estatais, caracteriza o regime de autotutela. Esta, a seu turno, é admitida pelo ordenamento jurídico em situações excepcionalíssimas, dentre as quais não se inclui a retenção de dinheiro em conta corrente para a satisfação de prestação vencida e não paga. A autotutela é assim definida por Antônio Cintra, Ada Grinover e Cândido Dinamarco:
“são fundamentalmente dois os traços característicos da autotutela: a) ausência de juiz distinto das partes; b) imposição da decisão por uma das partes à outra. (...) Na autotutela, aquele que impõe ao adversário uma solução não cogita de apresentar ou pedir a declaração de existência ou inexistência do direito; satisfaz-se simplesmente pela força (ou seja, realiza a sua pretensão).” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2010, p. 27-28)
A partir desse excerto, é fácil perceber que a retenção de dinheiro em conta corrente pelas instituições financeiras, com o fim de quitar dívida vencida e não paga pelo correntista, consiste, sem dúvida, no exercício de autotutela. O banco não solicita autorização prévia para reter o dinheiro, mas apenas o faz, mediante a imposição de solução com o uso da sua força. Tampouco há a intervenção de qualquer autoridade investida de poder pelo Estado para tutelar as pretensões envolvidas na relação jurídica.
O que se percebe é o retorno à justiça privada por meio do exercício da autotutela pelo mutuante, que burla a jurisdição estatal para fazer valer a sua força em detrimento do mutuário, que é a parte mais fraca da relação jurídica. Não custa salientar que, no exemplo citado, a instituição financeira tem a atribuição de gerir os recursos do mutuário, ou seja, ela já detém a posse direta dos recursos. Portanto, é notória a facilidade que o banco detém para se apropriar dos fundos dos correntistas.
Ao interpretar o enunciado no 603 da súmula do Superior Tribunal de Justiça, alguns juízes confundiram a situação recém descrita de autotutela com a possibilidade de consignação facultativa na folha de pagamento dos agentes públicos ou dos trabalhadores celetistas. A redação do enunciado sumular trata dos dois temas ao mesmo tempo e permite que, ao não se atentar para as razões de decidir empregadas pela Corte Superior, não se compreenda qual é o precedente encoberto pelo verbete.
Vários juízes passaram a encampar a tese de que o Superior Tribunal de Justiça fixou precedente no sentido de proibir qualquer espécie de retenção, desconto ou mesmo consignação, seja na folha de pagamento ou na conta corrente do mutuário. Essa interpretação absolutamente equivocada do aludido enunciado de súmula foi criada e passou a ser perpetuada em inúmeras decisões judiciais.
Alguns até já empregavam o precedente de forma correta, mas, com a edição do enunciado sumular em questão, passaram a entender que o precedente fixado era outro, em sentido diverso. A propósito, veja-se o seguinte excerto de decisão liminar proferida pelo Juízo da Primeira Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal no processo de autos no 0707526-24.2018.8.07.0018:
“Em se tratando de contratos de consignação em folha de pagamento, a lei de regência dos militares do DF expressamente veda a contratação em valor superior a 30% (trinta por cento) dos rendimentos mensal do trabalhador, conforme estipula o Estatuto dos Servidores no art. 116, § 2º, da Lei Complementar Distrital 840/2011, e o art. art. 29, §1º, da Lei Federal 10486/2002, no caso dos militares. Assim, os descontos em folha de pagamento não poderão exceder a este limite.
É de se ressaltar que esta Lei não rege os demais contratos de mútuo bancário, notadamente aqueles em que os mutuários pactuam outras formas de pagamento, inclusive por meio de desconto direto em conta corrente bancária, mas apenas e tão somente aqueles créditos consignados em folha de pagamento. No caso em julgamento nestes autos, não se registram lançamentos superiores a 30% (trinta por cento) em folha de pagamento.
Assim, necessário se faz tratar de forma desigual cada uma das formas de contratações, conforme decidiu a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Resp 1.586.910/SP (DJe 03/10/2017), no AgInt no AREsp 1136156/SP (DJe 18/12/2017), no AgInt no REsp 1390570 / PR (DJe 12/06/2018) e, em certa medida, já que em patamar limitado, a 3ª Turma no AgInt no AgInt no REsp 1627176 / RS (DJe 18/12/2017).
Como se vê, diversos precedentes da Corte de Uniformização admitem a validade de cláusula autorizativa para amortização de saldo de empréstimo mediante débito em conta, até porque, em última instância, beneficiam o tomador de crédito, com juros reduzidos.
Feita a ressalva do entendimento pessoal deste magistrado e dos julgados acima mencionados, verifico que este TJDFT vem prestigiando o teor da Súmula nº 603, também do STJ, com o seguinte conteúdo:
É vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído, ainda que haja cláusula contratual autorizativa, excluído o empréstimo garantido por margem salarial consignável, com desconto em folha de pagamento, que possui regramento legal específico e admite a retenção de percentual. (STJ. 2ª Seção. Aprovada em 22/2/2018, DJe 26/2/2018).
(...)
Nestes termos, o fato de haver posicionamento majoritário desta Corte favorável ao reconhecimento da ilegalidade de descontos relativos a mútuos bancários não permite concluir pela devolução dos valores, visto que a causa destes é a existência dos empréstimos em si.”
Na mesma linha, as Turmas Cíveis, ao interpretar o enunciado no 603 da súmula do STJ, passaram a direcionar a jurisprudência da Corte distrital em sentido não harmônico com o proposto pela própria súmula. A respeito do tema, vejam-se os seguintes trechos de votos condutores de acórdãos lavrados por alguns desses órgãos do TJDFT:
“Nesse diapasão, em atenção ao recente entendimento do c. STJ, por meio da Súmula 603, há abusividade na retenção de verba salarial, caso em que fica proibido qualquer desconto que venha a incidir sobre o seu salário/proventos.”
(Acórdão n.1126598, 07014841320188070000, Relator: ROBSON BARBOSA DE AZEVEDO 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 26/09/2018, Publicado no DJE: 04/10/2018. Pág.: Sem Página Cadastrada) (grifei)
“Contudo, em razão da facilitação de concessão de empréstimo pelos bancos, sem observância da capacidade econômica do contratante, causando-lhes superendividamento e comprometendo, em demasia, grande parte da sua renda, e por consequência, sua própria subsistência, o Superior Tribunal de Justiça consagrou entendimento, por aplicação analógica, que a limitação legal de descontos também deve incidir em empréstimo com descontos em conta corrente, independentemente de ter sido assumida livremente obrigação diversa.”
(Acórdão n.1131739, 07109789620188070000, Relator: SANDOVAL OLIVEIRA 2ª Turma Cível, Data de Julgamento: 18/10/2018, Publicado no DJE: 24/10/2018. Pág.: Sem Página Cadastrada.) (grifei)
“Os argumentos não são capazes de afastar o dever de observância do já conhecido Enunciado 603 do c. STJ. Rememoremos: É vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído, ainda que haja cláusula contratual autorizativa, excluído o empréstimo garantido por margem salarial consignável, com desconto em folha de pagamento, que possui regramento legal específico e admite a retenção de percentual. (Súmula 603, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/02/2018, DJe 26/02/2018)
Diante dos termos do citado verbete, a solução para litígios dessa natureza não deve mais sofrer variações de interpretação. Os provimentos devem harmonizar-se ao entendimento fixado, por força do que dispõe o art. 927 do Código de Processo Civil, que dita que “os tribunais observaram os enunciados das súmulas do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional”
(...)
Diante do exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso, para determinar a instituição financeira agravada, que suspenda os descontos realizados na conta salário do agravante, referentes aos empréstimos firmados entre as partes.”
(Acórdão n.1118505, 07082837220188070000, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA 7ª Turma Cível, Data de Julgamento: 22/08/2018, Publicado no DJE: 27/08/2018. Pág.: Sem Página Cadastrada.) (grifei)
“Quanto aos descontos em conta corrente, destaco que sempre mantive o entendimento no sentido de aplicar o determinado na lei e limitar somente os descontos realizados na folha de pagamento. Após o Superior Tribunal de Justiça firmar entendimento no sentido de que os descontos em conta devem se limitar ao percentual de 30% do rendimento líquido, passei a adotar o entendimento da Corte Superior. Entretanto, a referida Corte Superior editou recentemente o Enunciado de Súmula 603 que estabelece a impossibilidade de retenção de valores de salário em conta corrente para pagamento de mútuo. Transcrevo: É vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído, ainda que haja cláusula contratual autorizativa, excluído o empréstimo garantido por margem salarial consignável, com desconto em folha de pagamento, que possui regramento legal específico e admite a retenção de percentual. (Súmula 603, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/02/2018, DJe 26/02/2018)
Desta forma, necessário, novamente, readaptar meu entendimento ao entendimento ora sumulado. No caso dos autos, considerando que o pedido da parte é limitação dos descontos a 30% (trinta por cento) de seus rendimentos, e para evitar julgamento extra petita, não aplicarei integralmente a súmula citada.”
(Acórdão n.1111216, 07119772920178070018, Relator: ROMULO DE ARAUJO MENDES 1ª Turma Cível, Data de Julgamento: 25/07/2018, Publicado no PJe: 31/07/2018. Pág.: Sem Página Cadastrada.) (grifei)
“Em relação ao empréstimo pessoal, o colendo Superior Tribunal de Justiça, em data recente, pacificando o tema, editou o enunciado 603, vedando qualquer desconto em verba salarial, ainda que haja cláusula contratual autorizativa. Confira-se o teor da mencionada súmula: É vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído, ainda que haja cláusula contratual autorizativa, excluído o empréstimo garantido por margem salarial consignável, com desconto em folha de pagamento, que possui regramento legal específico e admite a retenção de percentual. (grifo nosso) (Súmula 603, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/02/2018, DJe 26/02/2018) Por conseguinte, não importa a quantia comprometida pelo empréstimo com desconto em conta corrente, e sim se incide sobre salários, vencimentos e/ou proventos.”
(Acórdão n.1095579, 07051543920178070018, Relator: DIAULAS COSTA RIBEIRO, Relator Designado: MARIO-ZAM BELMIRO 8ª Turma Cível, Data de Julgamento: 11/05/2018, Publicado no DJE: 23/05/2018. Pág.: Sem Página Cadastrada.) (grifei)
O TJDFT tem, atualmente, 8 (oito) Turmas Cíveis com competência para apreciar e julgar matérias diversas que não sejam ligadas ao direito penal. Como se vê, ao menos a metade desses órgãos, em algum momento, empregou entendimento jurídico equivocado com a justificativa de estar seguindo uma orientação do STJ.
Bastaria uma rápida consulta ao sítio eletrônico do STJ – no campo “Súmulas anotadas”[26] – para começar a compreender qual é a ratio decidendi do precedente que a Corte pretendeu sedimentar em um enunciado da sua súmula. Aliás, trata-se de excelente iniciativa da Corte Superior, pois facilita o trabalho de verificar as razões de decidir do precedente fixado, sobretudo diante da imposição legal de aplicação e preservação dos chamados precedentes obrigatórios (art. 927 do CPC).
De volta à tarefa de especificação do precedente, convém fazer menção a alguns trechos de votos condutores selecionados pelo próprio STJ, tendo em vista a capacidade ilustrativa desses excertos:
"(...) Não se confunde o desconto em folha para pagamento de empréstimo garantido por margem salarial consignável, prática que encontra amparo em legislação específica, com a hipótese desses autos, onde houve desconto integral dos proventos de aposentadoria depositados em conta corrente, para a satisfação de mútuo comum. - Os proventos advindos de aposentadoria privada de caráter complementar têm natureza remuneratória e se encontram expressamente abrangidos pela dicção do art. 649, IV, CPC, que assegura proteção a 'vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal'. - Não é lícito ao banco reter os proventos devidos ao devedor, a título de aposentadoria privada complementar, para satisfazer seu crédito. Cabe-lhe obter o pagamento da dívida em ação judicial. Se nem mesmo ao Judiciário é lícito penhorar salários, não será a instituição privada autorizada a fazê-lo. – Ainda que expressamente ajustada, a retenção integral do salário de correntista com o propósito de honrar débito deste com a instituição bancária enseja a reparação moral. (...)" (REsp 1012915 PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/12/2008, DJe 03/02/2009) (grifei)
"(...) Nos termos da jurisprudência do STJ, é ilegal a apropriação do salário, depositado em conta-corrente, para a satisfação de saldo negativo existente na sua conta, cabendo a esta a satisfação do crédito por meio de cobrança judicial. (...)" (AgRg nos EDcl no AREsp 429476 RJ, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 18/09/2014, DJe 03/11/2014)” (grifei)
"(...) CONTRATO DE MÚTUO. DEDUÇÃO DO SALÁRIO DO CORRENTISTA, A TÍTULO DE COMPENSAÇÃO, DE VALORES INADIMPLIDOS. IMPOSSIBILIDADE. (...) Inadmissível a apropriação, pelo banco credor, de salário do correntista, como forma de compensação de parcelas inadimplidas de contrato de mútuo. (...)" (AgRg no REsp 1214519 PR, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/06/2011, DJe 28/06/2011)” (grifei)
Nesse ponto, convém rememorar a técnica proposta de Rupert Cross explicitada no segundo capítulo do trabalho. Para ele, a razão de decidir é identificada não só pelos principais fatos jurídicos, mas também pelos motivos determinantes que foram empregados na decisão. O cenário fático já foi descrito em outra oportunidade. Nada obstante, os trechos citados evidenciam os motivos determinantes empregados pelo STJ na formação do precedente.
Como se vê, há pelo menos 10 (dez) anos, o Superior Tribunal de Justiça não admite que uma instituição financeira faça a apropriação de dinheiro depositado na conta de um seu correntista para quitar dívida vencida e não paga, oriunda de contrato de mútuo celebrado anteriormente entre o consumidor e o banco. Este, portanto, é o precedente.
Ressalta-se que não há vedação irrestrita no sentido de impedir quaisquer espécies de descontos. O empréstimo consignando continua sendo lícito, desde que contratado pelo consumidor e respeitado o patamar máximo de consignação em folha de pagamento. Igualmente, o consumidor pode permitir que determinada prestação seja automaticamente descontada do saldo disponível em sua conta corrente. Em verdade, trata-se de prática cada vez mais usual e incentivada por diversos ramos do mercado, tais como provedores de televisão a cabo, telefonia móvel, internet etc.
O consumidor mutuário é sem dúvida aquele que detém as melhores condições de aferir as suas reais condições financeiras, bem como se é do seu interesse autorizar a efetivação de descontos de prestações diretamente aplicados sobre o saldo disponível em sua conta corrente.
Por outro lado, a determinação judicial da limitação desses descontos, ordenando a instituição financeira a receber o que lhe é devido em prazo maior e de modo diferente do que fora ajustado voluntariamente pelas partes, importaria em mitigar o princípio da força obrigatória dos contratos.
A espécie de desconto em questão consiste na contraprestação obrigacional devida pelo recebimento e utilização de capital alheio. Não se pode descurar da premissa de que os contratos devem ser cumpridos, uma vez formulados de acordo com a vontade livre e manifesta das partes, isto é, em harmonia com o princípio da autonomia da vontade. Além disso, o adimplemento do negócio jurídico também decorre do princípio da boa-fé, preceito normatizado no artigo 422 do Código Civil[27].
A cláusula que permite o desconto na conta corrente do mutuário, por si só, não é abusiva. A ilicitude reside, conforme já exposto no decurso desta pesquisa, no exercício da autotutela para a apropriação de dinheiro de correntista para quitar dívida vencida e não paga. De outro modo, o Judiciário estaria chancelando uma forma de burlar a impenhorabilidade dos vencimentos, prescrita pelo art. 833, inc. IV, do CPC.
A eventual onerosidade excessiva que esses descontos podem gerar para o consumidor, diante da ausência de limitação legal e de responsabilidade social das instituições financeiras, é uma questão que, apesar de ser igualmente preocupante, não se insere no campo dessa pesquisa.
Diante desse contexto de confusão gerada em relação à aplicação do enunciado de súmula em referência, o STJ houve por bem cancelar o enunciado. Possivelmente, foi o enunciado que permaneceu válido pelo menor espaço de tempo na história do Tribunal; durou aproximadamente 7 (sete) meses.
Em 22 de agosto de 2018, no decurso do julgamento do Recurso Especial no 1.555.722/SP, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, em momento de rara autocrítica, reconheceu os problemas que a interpretação errônea do enunciado de súmula estava gerando perante os Tribunais de segunda instância. Na linha da extensa argumentação construída aqui, o Ministro Lázaro Guimarães fez constar em seu voto condutor que:
“o assinalado enunciado merece ver esclarecida qual é sua correta interpretação, pois, como alertado pelo em. Ministro Luis Felipe Salomão na sessão de julgamento que decidiu afetar a questão a este Colegiado, as instâncias de origem têm entendido "que o enunciado simplesmente veda todo e qualquer desconto realizado em conta-corrente comum (conta que não é salário), mesmo que exista prévia e atual autorização conferida pelo correntista" e que, portanto, "vem sendo conferida exegese que não tem esteio no conjunto de precedentes que embasam o enunciado"
O Ministro Luis Felipe Salomão, em seu voto, segue na mesma linha de raciocínio e esclarece qual é a verdadeira razão de decidir (ratio decidendi) do precedente consolidado no enunciado de súmula, senão vejamos:
“O que a súmula 603/STJ desejou proibir, a meu juízo, foi que, existindo o débito, ainda que o correntista autorize, o Banco possa fazer o cálculo do que é devido e, sem autorização judicial, invada o patrimônio bancário do consumidor e satisfaça o seu crédito, o que é bem diferente de contratar um mútuo e permitir o desconto autorizado das prestações contratadas.”
(...)
“Nesses termos, percebe-se do enunciado da Súmula 603/STJ que sua redação invoca o termo "reter", largamente utilizado pela jurisprudência, por dispositivos legais e institutos de direito civil, para situações de autotutela, em que uma parte (credora) se sobrepõe - isto é, contrariamente ou pelo menos independentemente da vontade daquele que a ela se submete - a outra, retendo coisa do devedor consigo para o adimplemento de seu crédito (v.g., direito do hoteleiro de reter consigo bem do devedor até que ocorra o pagamento, retenção por benfeitorias).”
Como se vê, tem-se um caso exemplar de má construção do enunciado de súmula, que resultou na tentativa fracassada de simplificar o processo de formação e de aplicação de um precedente. Para tanto, é suficiente a constatação do fato de que o próprio órgão editor do enunciado precisou reunir o colegiado para interpretar o que ele mesmo quis dizer em momento anterior.
A adaptação a um sistema de precedente exige empenho dos sujeitos envolvidos na resolução das demandas judiciais, bem como tempo de maturação para que se compreenda a importância de identificação da ratio decidendi, bem como de lidar com novos institutos e ferramentas, explicitadas em tópico anterior, de maneira transparente.
No modelo de precedente original, próprio do common law, a integridade do Direito e a manutenção da força dos precedentes não decorre de uma imposição legal ou política, ao contrário do que o legislador pretendeu implementar no Brasil. Nos países que seguem a tradição do Direito comum europeu, o precedente fixado é naturalmente incorporado e seguido pelos demais órgãos judiciais.
A esse respeito, é possível traçar um paralelo com a regra de reconhecimento cunhada por Herbert Hart, segundo o qual a validade de uma norma jurídica – incluímos aqui a norma extraída do precedente – pode ser sintetizada como decorrência de uma prática social, ou seja, é o próprio reconhecimento das normas pelo juízes que as torna válidas e confere unidade sistêmica a esse grupo de normas.
Essa concepção de Hart, apesar das inconsistências, é suficiente para que se compreenda o porquê de os precedentes serem naturalmente preservados nos países que adotam um modelo com inspiração preponderante no common law, independentemente de qualquer previsão legal ou pretensão de validar a eficácia vinculante do precedente de forma jurídico-positiva.
Dessa forma, não será a lei, por si só, no Brasil, a responsável por impor e assegurar a integridade e a coerência a um sistema de precedentes, senão a aceitação pelos órgãos judiciais de que a unidade desse modelo passa, necessariamente, pelo que Hart denominou por regra de reconhecimento.
De nada adianta os Tribunais Superiores promoverem a inclusão de inúmeros enunciados nas chamadas súmulas de jurisprudência. Esse prática não necessariamente confere coerência e integridade ao Direito, como foi demonstrado aqui a partir do caso da criação do enunciado no 603 da Súmula do STJ.
O julgamento do caso concreto é de onde se extrai a ratio decidendi, por meio da identificação dos fatos jurídicos a ele vinculados em conjunto com a fundamentação jurídica empregada na resolução da causa. Todavia, no momento em que se constrói um enunciado de súmula, o órgão judicial sai do contexto delimitado pelo caso concreto, dá um passo atrás e cria um enunciado genérico e abstrato, o que impossibilita a identificação do precedente de imediato.
A formalização desse tipo de enunciado abstrato gera um problema identificado por Claus Wilhelm Canaris (1996, p. 20) ao tratar do formalismo positivista, cuja compreensão pode ser estendida a qualquer norma geral e abstrata. Segundo o autor, a construção de uma fórmula abstrata gera a redução das suas proposições, que não conseguem abranger toda a multiplicidade de ocorrências possíveis no mundo dos fatos. Assim, ao serem invocadas para aplicação em um caso concreto, podem não dispor de elementos suficientes para solucionar o problema.
O caminho a ser percorrido pelos juízes é o de, em casos posteriores, determinarem qual a ratio decidendi dos casos pretéritos que deram origem ao precedente que ensejou a criação do enunciado de súmula. Esse percurso pode ser resumido pelo que Dworkin chamou de romance em cadeia (chain novel), como evidenciado em tópicos anteriores do trabalho. Assim, a positivação do Direito pelos juízes, por meio da aplicação reiterada do precedente, consiste na forma de manter a integridade do sistema jurídico.
Também não é possível ignorar o fato de que toda construção a partir do uso de uma linguagem é passível de interpretação. A mera aplicação mecânica ou subsuntiva não passa de uma ilusão superada com o declínio da escola da exegese. A premissa é igualmente válida para um precedente, situação esta que também se tornou clara por meio do exemplo de como a aplicação do enunciado no 603 da Súmula do STJ gerou dúvidas e insegurança notadamente aos jurisdicionados, assim como aos outros atores envolvidos na manipulação do Direito.
A divergência gerada pela aplicação do mencionado enunciado de súmula reforça o fato de que essas espécies de enunciados não oferecem de plano as razões de decidir do precedente que as originou. Além disso, revigora a importância de se identificar e delimitar a essência da ratio decidendi do precedente e da necessidade do emprego adequado e transparente das ferramentas de aplicação do precedente, sobretudo se o órgão judicial entender ser o caso de distinção (distinguishing) ou de superação (overruling).
A validade do sistema de precedentes não pode ser justificada apenas de forma jurídico-positiva. De outra forma, o art. 926, e seguintes, do CPC (Título I do Livro III) seguirão formalmente vigentes, porém destituídos de qualquer resquício de eficácia. A estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência, culminando na efetividade e funcionalidade de um sistema de precedentes, somente serão alcançadas se houver o reconhecimento pelos juízes de que o precedente precisa ser levado a sério.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
_______. Decreto n. 22.626, de 7 de abril de 1933. Diário Oficial da União, Brasília, DF: 17 de abril de 1933.
_______. Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, DF: 12 de dezembro de 1998.
_______. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF: 11 de janeiro de 2002.
_______. Lei n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, DF: 18 de dezembro de 2003.
_______. Lei n. 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Diário Oficial da União, Brasília, DF: 20 de dezembro de 2006.
_______. Lei n. 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF: 17 de março de 2015.
_______. Lei n. 13.172, de 21 de outubro de 2015. Diário Oficial da União, Brasília, DF: 22 de outubro de 2015.
BRAGA, Paula Sarno; DIDIER JUNIOR, Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de direito processual civil, v. 2: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela, 10ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015.
CABRAL, Antonio do Passo. “A técnica do julgamento alerta na mudança de jurisprudência”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2013, n. 221, p. 39.
CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo, 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
DWORKIN, Ronald. O império do direito, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
EISENBERG, Melvin Aron. The nature of the common law. London: Harvard University Press, 1998.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v. 4. São Paulo: Saraiva, 2003.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, vol. 2: teoria geral das obrigações, 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
_______. Direito civil brasileiro, vol. 3: contratos e atos unilaterais, 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
HABERMAS, Jürgen. A Constelação Pós-Nacional: Ensaios Pólíticos. São Paulo: Littera Mundi, 2001.
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: RT, 2010.
MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIM, Antônio Herman; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 3ª. ed. São Paulo: RT, 2010.
SILVA, Celso de Albuquerque. Do efeito vinculante: sua legitimação e aplicação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
TARUFFO, Michele. Processo civil comparado: ensaios. São Paulo: Marcial Pons, 2013.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v. 2: direito das obrigações e responsabilidade civil, 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
_______. Direito Civil, v. 3: teoria geral dos contratos e contratos em espécie, 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
TUCCI, José Rogério Cruz. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: RT, 2004.
[1] https://www.conjur.com.br/2014-dez-18/senso-incomum-cpc-mecanismos-combater-decisionismos-arbitrariedades. Acesso em 30 de setembro de 2019.
[2] Art. 928. Para os fins deste Código, considera-se julgamento de casos repetitivos a decisão proferida em:
Parágrafo único. O julgamento de casos repetitivos tem por objeto questão de direito material ou processual.
[3] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
§ 1o - Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1º, quando decidirem com fundamento neste artigo.
§ 2o - A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 3o - Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4o - A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
§ 5o - Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
[4] Art. 1.022. Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para:
Parágrafo único. Considera-se omissa a decisão que:
I - deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento;
[5] Art. 332. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar:
I - enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça;
II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
IV - enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.
Art. 932. Incumbe ao relator:
IV - negar provimento a recurso que for contrário a:
a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
Art. 1.040. Publicado o acórdão paradigma:
I - o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem negará seguimento aos recursos especiais ou extraordinários sobrestados na origem, se o acórdão recorrido coincidir com a orientação do tribunal superior.
[6] Art. 525. Transcorrido o prazo previsto no art. 523 sem o pagamento voluntário, inicia-se o prazo de 15 (quinze) dias para que o executado, independentemente de penhora ou nova intimação, apresente, nos próprios autos, sua impugnação.
§ 12 - Para efeito do disposto no inciso III do § 1o deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.
§ 13 - No caso do § 12, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, em atenção à segurança jurídica.
§ 14 - A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda.
§ 15 - Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
Art. 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico, para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios autos, impugnar a execução, podendo arguir:
§ 5º - Para efeito do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.
§ 6º - No caso do § 5º, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, de modo a favorecer a segurança jurídica.
§ 7º - A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 5o deve ter sido proferida antes do trânsito em julgado da decisão exequenda.
[7] Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo:
I - se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;
[8] Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§ 1o Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2o Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
[9] Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
[10] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
§ 5o Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
[11] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
§ 1º - Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1o, quando decidirem com fundamento neste artigo.
§ 2º - A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 3º - Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4º - A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
[12] https://www.bcb.gov.br/pre/pef/port/folder_serie_II_%E9_possivel_sair_do_superendividamento.pdf Acesso em 24 de outubro de 2018.
[13] http://cnc.org.br/central-do-conhecimento/pesquisas/economia/pesquisa-de-endividamento-e-inadimplencia-do-consumidor-8 Acesso em 26 de outubro de 2018.
[14] http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2052490 Acesso em 25 de outubro de 2018.
[15] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
[16] É vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído, ainda que haja cláusula contratual autorizativa, excluído o empréstimo garantido por margem salarial consignável, com desconto em folha de pagamento, que possui regramento legal específico e admite a retenção de percentual.
[17] Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.
[18] O Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil:
Considerando que todas as legislações modernas adotam normas severas para regular, impedir e reprimir os excessos praticados pela usura;
Considerando que é de interesse superior da economia do país não tenha o capital remuneração exagerada impedindo o desenvolvimento das classes produtoras:
DECRETA:
Art. 1º. É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal (Código Civil, art. 1062).
[19] Na ocasião, fixou-se a seguinte tese: os requisitos de relevância e urgência previstos no art. 62 da Constituição Federal estão presentes na Medida Provisória 2.170-36/2001, que autoriza a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional.
[20] As disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional.
[21] Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.
Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.
[22] A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade.
[23] Art. 833. São impenhoráveis:
I - os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;
II - os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;
III - os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor;
IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º;
V - os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado;
VI - o seguro de vida;
VII - os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas;
VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;
IX - os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social;
X - a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;
XI - os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei;
XII - os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra.
§ 1º - A impenhorabilidade não é oponível à execução de dívida relativa ao próprio bem, inclusive àquela contraída para sua aquisição.
§ 2º - O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º, e no art. 529, § 3º.
§ 3º - Incluem-se na impenhorabilidade prevista no inciso V do caput os equipamentos, os implementos e as máquinas agrícolas pertencentes a pessoa física ou a empresa individual produtora rural, exceto quando tais bens tenham sido objeto de financiamento e estejam vinculados em garantia a negócio jurídico ou quando respondam por dívida de natureza alimentar, trabalhista ou previdenciária.
[24] Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
[25] Art. 516. O cumprimento da sentença efetuar-se-á perante:
III - o juízo cível competente, quando se tratar de sentença penal condenatória, de sentença arbitral, de sentença estrangeira ou de acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo.
[26] http://www.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp?livre=(sumula%20adj1%20%27603%27).sub.#TIT1TEMA0 Acesso em 30 de outubro de 2018.
[27] Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.
graduado em direito pela UnB e pós-graduado em Direito Público pela Escola da Magistratura do Distrito Federal. Analista judiciário e chefe de gabinete de Desembargador.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Sentclair Marinho de Assis. O precedente levado a sério: exame do enunciado no 603 da súmula do Superior Tribunal de Justiça e da sua aplicação no âmbito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2022, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60514/o-precedente-levado-a-srio-exame-do-enunciado-no-603-da-smula-do-superior-tribunal-de-justia-e-da-sua-aplicao-no-mbito-do-tribunal-de-justia-do-distrito-federal-e-dos-territrios. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
Por: PRISCILA GOULART GARRASTAZU XAVIER
Precisa estar logado para fazer comentários.