RESUMO: Este artigo versa sobre o regime disciplinar diferenciado no que se refere à incomunicabilidade do preso, tendo em vista a possibilidade de determinação de duração máxima de até 2 (dois) anos de isolamento, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, aplicável ao preso provisório ou condenado. O rigoroso regime foi implantado, em nosso país, pela Lei no 10.792/2003, e alterado, com a imposição de medidas mais gravosas pela Lei no 13.964/2020, tendo sido alvo de severas críticas por parte de vários juristas, eis que o isolamento prolongado pode causar sérios distúrbios mentais e físicos, tendo como consequência o agravamento e a aceleração do processo de dessocialização do apenado. A questão da incomunicabilidade constitui ponto controvertido em nossa doutrina, existindo dúvidas quanto à permissibilidade de sua decretação ainda na fase inquisitorial - art. 21 do Código de Processo Penal - e, agora, durante o cumprimento da pena. O presente trabalho visa analisar a possível afronta aos princípios agregados aos direitos humanos consagrados pela Constituição Federal, bem como pela Lei de Execução Penal, face a inclusão do preso no regime disciplinar diferenciado, o que o deixa quase que totalmente incomunicável com o mundo.
Palavras-chave: Regime disciplinar diferenciado - RDD, incomunicabilidade, isolamento, Lei de Execução Penal - LEP, pena, preso, princípios, prisão, ressocialização.
INTRODUÇÃO
A problemática da sanção penal sempre preocupou a humanidade. Nos tempos de outrora, a visão que imperava era de que a retributividade e o rigor da pena serviriam ao desestímulo do ímpeto criminoso; nesses tempos as penas eram cruéis e possuíam caráter vingativo, visando pagar o mal com outro mal.
Desenvolveu-se, gradualmente, um espírito de maior humanismo, fruto do pensamento iluminista, conduzindo ao raciocínio de que a resposta estatal ao crime não poderia, simplesmente, representar-se de forma retributiva e agressiva, devendo a reação ao delito ser preenchida por outras exigências utilitárias, a fim de que a ação estatal contra o criminoso estivesse revestida de finalidade prática.
No Brasil, o clima de insegurança e medo que assola a sociedade tem conduzido ao irracionalismo, buscando-se medidas de cunho vingativo contra os autores de fatos criminosos, sem nenhuma preocupação social. Ao se introduzir o regime disciplinar diferenciado poder-se-ia afirmar que houve um retrocesso considerável relacionado ao pensamento penalógico.
O mencionado regime foi introduzido no Brasil pela Lei no 10.792, de 1o de dezembro de 2003, que alterou a Lei no 7.210, de 11 de junho de 1984 – Lei de Execução Penal - e o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, além de estabelecer outras providências.
A implantação do regime em questão é objeto de severas críticas advindas de vários juristas, tendo em vista uma das finalidades da pena, qual seja, o de reinserção social do preso, sendo introduzido com vistas a uma solução rápida para acalmar a sociedade, que se vê amedrontada diante do crime organizado. As várias divergências doutrinárias existentes no campo jurídico a respeito do regime fechadíssimo decorrem, em parte, dos efeitos que sua aplicação pode acarretar à saúde mental do preso, eis que o isolamento prolongado altera o mecanismo cerebral, afetivo e comportamental. Ora, se nosso atual sistema carcerário, absolutamente degradante, já não permite a ressocialização do preso, imagine-se submetendo-o a estas condições.
A relevância da matéria reside numa possível afronta aos princípios constitucionais brasileiros, bem como à Lei de Execução Penal, e que nos remete à seguinte indagação: será que o regime disciplinar diferenciado trata-se de uma pena cruel, que fere a Constituição Federal, nos seus incisos III, XLVII, e, e XLIX, do art. 5o, que dispõem, respectivamente, “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, “não haverá penas cruéis” e “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”?[1]
A escolha do tema se deu, no primeiro momento, em razão da necessidade de se debater a ofensa da proteção destinada aos presos, já tão massacrados com o atual sistema penitenciário, e, agora, submetidos a mais uma condição desumana e cruel com a implantação do regime disciplinar diferenciado, onde permanecem praticamente incomunicáveis com o mundo exterior. Por depois, trata-se de um assunto atual e uma experiência nova na legislação brasileira. Foi adotado o método dedutivo e a apreciação do tema será desenvolvida a partir de pesquisa bibliográfica, com apoio na legislação vigente.
O presente artigo divide-se em três capítulos. No primeiro capítulo, realizou-se um estudo amplo sobre o regime disciplinar diferenciado, enfatizando suas principais características e hipóteses de cabimento, no que concerne aos seus aspectos legais.
O segundo capítulo faz uma análise do RDD frente aos princípios constitucionais informadores da execução penal, eis que tais princípios auxiliam na interpretação e aplicação das leis, integrando as normas e construindo um sistema jurídico coerente.
Por fim, pretende-se, no terceiro capítulo, suscitar a questão da incomunicabilidade do preso na fase inquisitorial e na fase da execução da pena, fazendo uma abordagem constitucional.
Não há pretensão de se esgotar o assunto, haja vista a complexidade que envolve temas relacionados à segurança pública. O que se tem por escopo no presente trabalho é levantar alguns aspectos relevantes relativos à incomunicabilidade do preso submetido ao regime disciplinar diferenciado, visando uma melhor forma de proteger a sociedade e o próprio preso, o qual tornou-se vítima do sistema prisional.
1.O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO
1.1 Conceito e características
O regime disciplinar diferenciado não é um regime de cumprimento de pena que se soma aos regimes fechado, semi-aberto e aberto, nem tampouco um novo modelo de prisão provisória. Constitui-se em sanção disciplinar, adicionada à LEP por meio do art. 1o da Lei no 10.792/2003, pelo cometimento de falta grave. Possui como características: a duração máxima de dois anos, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de dois anos e mais um sexto da pena aplicada, como originalmente previsto; o recolhimento em cela individual, sendo, conforme o art. 45 da LEP, vedado o emprego da chamada cela escura; visitas quinzenais de duas pessoas, a serem realizadas em instalações equipadas para impedir o contato físico e a passagem de objetos, por pessoa da família ou, no caso de terceiro, autorizado judicialmente, com duração de 2 (duas) horas (houve retirada da possibilidade das crianças não contarem com esse número de duas pessoas) e direito de saída da cela para banho de sol por duas horas diárias - art. 52, incisos I a IV da LEP. Essas peculiaridades constituem-se em restrições temporárias ao exercício dos direitos do preso descritos no art. 41 da LEP.
O regime disciplinar diferenciado, como sanção disciplinar que é, deve ser fixado por tempo determinado. Assim, para cada falta, a Lei estipulou o prazo máximo de dois anos, autorizada a repetição pelo cometimento de nova falta grave da mesma espécie. Todavia, o tempo de inclusão pelo cometimento de uma única falta ou da somatória dos tempos relativos às sanções dessa espécie no decorrer do cumprimento da pena não pode superar dois anos da pena aplicada. Forçoso constatar que o preso que ainda não possui condenação, por sentença recorrível ou transitada em julgado, não se beneficia desse último limite. Para Mirabete, na omissão da lei, deve-se ter como parâmetro a pena mínima cominada para a infração[2].
A Lei no 10.792/2003 também possibilitou aos estados o regulamento do regime disciplinar diferenciado, para atender às peculiaridades regionais, entre as quais incluem-se outras restrições ao preso a ele submetido, como a restrição de acesso aos meios de comunicação e de informação e o cadastramento e agendamento prévio para entrevista com seu advogado regularmente constituído nos autos da ação penal - art. 5o , inc. III e IV da Lei no 10.792/2003. Destaca-se, quanto a esse ponto que a Lei 13964/19 dispôs de forma expressa que que as visitas, chamadas de entrevistas, do preso no RDD terá suas entrevistas sempre monitoradas, excetuada aquelas realizadas com o seu defensor, limitando de forma expressa que haja a concessão de direitos como a visita íntima e o direito ao sigilo do conteúdo da correspondência.
Em seu art. 4o, a Lei em comento dispôs que “aos estabelecimentos penitenciários, especialmente os destinados ao regime disciplinar diferenciado, disporão, dentre outros equipamentos de segurança, de bloqueadores de telecomunicação para telefones celulares, rádios-transmissores”[3] e outros meios de telecomunicação.
Por fim, prevê a Lei a construção pela União de unidades federativas de penitenciárias destinadas exclusivamente aos presos provisórios e condenados que estejam em regime fechado, submetidos ao regime disciplinar diferenciado. Dispõe, em seus arts. 7o e 8o, respectivamente, que a União “definirá os padrões mínimos do presídio destinado ao cumprimento de regime disciplinar”[4] e “priorizará, quando da construção de presídios, os estabelecimentos que se destinem a abrigar presos provisórios ou condenados sujeitos a regime disciplinar diferenciado”[5].
2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS À EXECUÇÃO PENAL
2.1 Princípio da legalidade
O princípio da legalidade está inscrito no art. 5o, inc. XXXIX, da Constituição Federal de 1988 e no art. 1o do Código Penal. Decorre do princípio ora em estudo que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal - reserva legal. O postulado básico inclui, ainda, o princípio da anterioridade da lei penal relativo ao crime e à pena e o princípio da taxatividade, segundo o qual a tipificação precisa ser obrigatoriamente feita com expressões certas, claras e taxativas.
A legalidade, conforme o desdobramento da taxatividade, exige que a tipificação de condutas atenda à teoria geral do tipo, isto é, que o tipo apresente elementos claros – conduta inequívoca, núcleo, sujeito e bem jurídico bem definidos, proporcionando interpretação harmônica. Isto é: “a legalidade veda a descrição genérica do tipo penal. O crime não é qualquer ação, mas ação clara e determinada, sob pena de violação ao mandamento constitucional da legalidade – art. 5, XXXIX, da CF/1988.”[6]
A Lei de Execução Penal, no art. 52, caput, e seus parágrafos, ao dispor que “a prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado”[7]; “o regime disciplinar diferenciado poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade”[8] e ainda “estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando”[9] apresenta expressões ambíguas e abertas, que não podem ensejar a aplicação de tão severo regime, eis que verifica-se a ausência da taxatividade.
Tais expressões carecem de melhor definição e por serem incriminações vagas, imprecisas e passíveis de múltiplas significações, possibilitam interpretações extensivas, resultando numa insegurança para o preso perante o Estado.
Trata-se de transgressão ao princípio em comento por emprego de expressões sem precisão semântica, capaz de gerar interpretações múltiplas para termos que integram um mesmo campo de significação jurídica.
A Lei de Execução Penal não pode fazer uso de expressões ambíguas e vagas. Toda lei penal exige linguagem clara, certa e precisa, sob pena de violar o princípio da legalidade, numa de suas dimensões que é a taxatividade. Tal preceito constitucional deve ser observado durante a execução da pena, inclusive na regulação da disciplina interna nas unidades prisionais.
2.2 Princípio da proporcionalidade
O princípio da proporcionalidade exige uma proporção entre o desvalor da ação praticada pelo agente e a sanção a ser a ele infligida. Assim, cominar ou aplicar sanção desproporcional à lesão causada é ilegítimo e injusto. Além disso, o princípio ora em questão deve orientar a cominação e aplicação da sanção considerando uma escala de valoração social da conduta e do resultado lesivo, desvalor da ação e do resultado, impedindo, com isso uma desproporcionalidade entre os diversos tipos – crimes, contravenções e faltas – existentes no ordenamento jurídico.[10]
Esses preceitos forçam o legislador a observar a adequação da norma ao conjunto sistêmico de mandamentos jurídicos, sob pena de revelar-se norma penal materialmente injusta.
A aplicação do art. 52 poderá levar à seguinte situação: aqueles que cometeram crimes de lesão corporal, por exemplo, contra presos provisórios ou condenados, prática comum nas unidades prisionais, serão apenados com sanção de no máximo 1 (um) ano de detenção, podendo iniciar o cumprimento dessa sanção em regime semi-aberto. Contudo, os presos que forem classificados sob o impreciso conceito de subversor da ordem ou da disciplina poderão ficar sujeitos a regime disciplinar de 360 dias a serem cumpridos em celas de segurança.
Destarte, as alterações trazidas pela Lei no 10.792/2003, modificada pela Lei 13964/19, ferem o princípio da proporcionalidade, pois desrespeita seu conteúdo, esvaziando o seu sentido de justiça, negando ao preso qualquer garantia substancial de liberdade. Tal mandamento deve aderir à pena, como sua justificativa e fundamento, acompanhando-a durante sua execução.
2.3 Princípio da humanização das penas
A Carta Magna, em seu art. 5o, inc. III, XLVII e XLIX, dispõe, respectivamente: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, “não haverá penas cruéis” e ”é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”[11].
O princípio da humanidade é extraído desse conjunto de garantias e tem por escopo reconhecer e tratar o preso como pessoa humana, que embora privado do direito de locomoção, mantém a titularidade dos demais direitos não atingidos pela sentença penal, assegurando-lhe todos os direitos inerentes à condição humana.
O mencionado mandamento constitucional também se encontra previsto e consagrado no ordenamento jurídico internacional. A Declaração Universal dos Direitos dos Homens dispõe em seu art. 5o que “ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento cruel, desumano e degradante”[12], bem assim estatui a Convenção Americana sobre Direitos Humanos “ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o devido respeito à dignidade inerente ao ser humano.”[13] - art. 5o, II, entre outros.
O regime disciplinar diferenciado afasta-se do direito constitucional e internacional que, repetitivamente, vem orientando no sentido de uma intervenção penal e um tratamento penitenciário humanizado, pois o isolamento a que fica o preso submetido ao RDD, sem dúvida, agrava a dessocialização do preso. É inconciliável o fim proposto para a pena privativa de liberdade, qual seja, a ressocialização do preso, com o regime em comento.
O isolamento por longo período tende a agravar o quadro de vitimização a que se encontra submetido os presos no Brasil. Isolar o preso durante dois anos viola os direitos e garantias fundamentais inseridas em nossa Constituição, bem como transgredir o ordenamento jurídico internacional. Além do que, o isolamento representará o agravamento do sofrimento estéril a que se encontram sujeitos os presos.
Não se pode negar que o isolamento subtrai quase todas as possibilidades de comunicação com o mundo exterior e de movimentos corporais do preso, sofrendo este dupla reprimenda estatal. Inviável qualquer tratamento penitenciário e política de reinserção, bem assim imprevisíveis as consequências biopsíquicas e sociofamiliares para os isolados. A adoção do isolamento não se ajusta aos princípios insertos em nossa Lei de Execução Penal, que impõe ao Estado o dever de zelar e promover a integridade do preso.
3.A INCOMUNICABILIDADE DO PRESO
3.1 Conceito e previsão legal
Incomunicável é a condição da pessoa, que presa ou detida pela polícia, é impedida de comunicar-se ou de falar com qualquer outra, sem autorização ou permissão da autoridade. Assim, a incomunicabilidade indica a situação de incomunicação, em que se coloca o preso ou o detento, que fica vedado de ter qualquer comunicação verbal ou escrita, com qualquer pessoa, salvo o advogado ou aquelas que, por suas funções policiais ou administrativas, possam manter contato com ela.
Nosso legislador processual penal contemplou a incomunicabilidade do preso no Código de Processo Penal, no Título que cuida do Inquérito Policial, em seu art. 21, in verbis:
Art. 21. A incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir.
Parágrafo único. A incomunicabilidade, que não excederá de 3 (três) dias, será decretada por despacho fundamentado do juiz, a requerimento da autoridade policial, ou do órgão do Ministério Público, respeitado, em qualquer hipótese, o disposto no art. 89, III, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei no 4.215, de 27 de abril de 1963).[14]
Segundo Fernando Capez a incomunicabilidade “destina-se a impedir que a comunicação do preso com terceiros venha a prejudicar a apuração dos fatos, podendo ser imposta quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir”[15].
A incomunicabilidade, por se tratar de uma medida restritiva do status libertatis do indiciado, deve passar por um controle jurisdicional. Desta forma, sua decretação dependerá de despacho fundamentado do juiz, a requerimento do Ministério Público ou da autoridade policial e se justifica pela finalidade do inquérito nos primeiros momentos que se seguiram à infração penal, tendo em vista a conveniência da investigação ou o interesse social.
A incomunicabilidade do preso, além de estar presente no Código de Processo Penal, foi contemplada em vários outros momentos na legislação brasileira. O Decreto-lei no 898, de 29 de setembro 1969, que dispunha sobre os crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social, a previa no § 1o do art. 53, com a seguinte redação: "o encarregado do Inquérito poderá manter incomunicável o indiciado até 10 dias, desde que a medida se torne necessária às investigações policiais militares”[16]. Tal situação de incomunicável foi mantida pela Lei no 7.170, de 14 de dezembro de 1983, que versa sobre o assunto acima mencionado, estabelecendo no seu art. 33, § 2o, o que se segue:
Art. 33 Durante as investigações, a autoridade de que presidir o inquérito poderá manter o indiciado preso ou sob custódia, pelo prazo de quinze dias, comunicando imediatamente o fato ao juízo competente.
§ 1° - Em caso de justificada necessidade, esse prazo poderá ser dilatado por mais quinze dias, por decisão do juiz, a pedido do encarregado do inquérito, ouvido o Ministério Público.
§ 2° - A incomunicabilidade do indiciado, no período inicial das investigações, será permitida pelo prazo improrrogável de, no máximo, cinco dias.[17]
A incomunicabilidade está prevista, ainda, no Código de Processo Penal Militar, em seu art. 17, que explicita: "o encarregado do inquérito poderá manter incomunicável o indiciado, que estiver legalmente preso, por três dias no máximo”[18].
Em outro giro, a incomunicabilidade encontra-se proibida no Estatuto da Criança e Adolescente, Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, que em seu art. 124, § 1o estabelece: "São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes: em nenhum caso haverá incomunicabilidade”[19].
E, por fim, a Constituição Federal ao tratar da defesa do Estado e das instituições democráticas também a veda:
Art. 136. O presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
[...]
§ 3° Na vigência do estado de defesa:
[...]
IV - é vedada a incomunicabilidade do preso.[20] (grifei)
3.2 A incomunicabilidade do preso no regime disciplinar diferenciado
O avanço do crime organizado fez com que o governo federal adotasse uma postura mais agressiva, dando ensejo à edição da Lei no 10.792/2003, modificada pela Lei 13.964/2019, a qual implantou o regime disciplinar diferenciado, deixando o preso numa situação quase que de completa incomunicabilidade.
Sérgio Inácio Sirino argumenta:
Com o advento da Constituição Federal de 1988, entende-se que o dispositivo contido no Código de Processo Penal está revogado pela nova ordem. O Constituinte precaveu-se e excepcionou que mesmo em regime de exceção ao Estado Democrático (Estado de Defesa), não seja vedado o direito que o preso tem de se comunicar. Entretanto, com o crescimento geométrico da criminalidade, associado à ação de organizações criminosas em vários pontos do país - com especial relevância à prática de crimes hediondos, tem-se observado um posicionamento mais firme do Poder Judiciário, no sentido de decretar a incomunicabilidade de certos acusados, em casos especialíssimos. Alicerça-se tal postura no argumento de que nenhum direito ou garantia individual pode se sobrepor a um interesse maior quando imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.[21]
Nota-se que na tentativa de coibir a atuação das facções criminosas o Estado tem adotado medidas cada vez mais enérgicas a fim de proteger a sociedade. Porém, tais medidas não têm surtido o efeito desejado já que, como bem ensinava Beccaria, não é a severidade da punição que evita a prática de novos delitos e sim a certeza de sua aplicação.[22] Penas cruéis realimentam a violência e a desorganização da sociedade pois agravam o processo de dessocialização do preso.
Diante das características do regime em estudo, verifica-se que a Lei no 10.792/2003 implantou a incomunicabilidade do preso condenado ou provisório, visto que tornou possível "restringir o acesso dos presos provisórios ou condenados aos meios de comunicação de informação"[23], assim como, “disciplinar o cadastramento e agendamento prévio das entrevistas dos presos provisórios ou condenados com seus advogados, regularmente constituídos nos autos da ação penal ou processo de execução criminal, conforme o caso”[24].
O Judiciário Paulista havia pronunciado sobre a legalidade do RDD, apenas amparado na resolução no 26/2001, da Secretaria da Administração Penitenciária, nos seguintes termos:
[...] o tratamento diferenciado imposto ao paciente, com a restrição de: "somente receber alimentos por parte de familiares uma vez por mês", ficar submetido "a cela isolada durante toda a permanência" com saída restrita de apenas uma hora por dia; falta de "direito de assistência material e religiosa, pois não previstas no regulamento", "limitado o número de visitas" (fls. 3) e "suspensa a 'regalia' de visita íntima por todo o período" (fls. 4), conforme já afirmado, em nenhum momento afronta os regramentos disciplinados pela Lei das Execuções Penais na aplicação terapêutica da pena do reeducando de maneira abstrata, ainda mais na espécie, quando o paciente trata-se de reeducando com "muitas faltas disciplinares de natureza grave" e "sobretudo porque pertence a facção criminosa do PCC", conforme se observa do teor do oficio da Coordenadoria de Unidades Prisionais da Região Oeste do Estado endereçado ao Secretário Adjunto daquele órgão administrativo almejando a inclusão do paciente na denominada Unidade de Regime Disciplinar Diferenciado (fls. 125)."
Sem embargo a impossibilidade de manter irrestrito "contato com o mundo exterior", pois somente pode se comunicar por meio de "carta para a sua família, sendo as demais proibidas e suspensos ainda os meio de informação", posto que a referida restrição decorre da imposição do regime diferenciado previsto no artigo 5o, inciso IX, da Resolução SAP-026 no qual o paciente encontra-se incluído a fim de evitar, dentre outras restrições, a excessiva comunicação com o mundo exterior por meio de correspondência evitando-se que venha exercer negativa liderança sobre outros reeducando inclusos no sistema prisional [...][25]
Ora, é dever do Estado garantir a segurança de todos os cidadãos, sem, com isso, lançar mão dos direitos e garantias fundamentais consagrados pela nossa Magna Carta e que foram conquistados com muita luta e ao longo dos anos. A aplicação correta da LEP, por si só, garantiria a tranquilidade dos cidadãos de bem, eis que prevê com clareza um sistema de faltas e sanções aplicável, sem qualquer necessidade de usar-se do arbítrio. Além do mais, do ponto de vista da segurança, a LEP não impede a tomada de medidas preventivas, tais como realização de revistas periódicas, instalação de detectores de mental, sistemas de bloqueio de telefones celulares e sistema fechado de vídeo, podendo tais meios serem empregados sem a necessidade de criação de mais leis, como ocorreu com a Lei no 10.792/2003.
4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
O regime disciplinar diferenciado foi implantado na busca de conter as ações dos integrantes de organizações criminosas, que mesmo presos, continuavam comandando a prática de crimes fora dos estabelecimentos penitenciários. A Lei no 10.792/2003, no que diz respeito à execução penal, representa um retrocesso e um golpe nos ideais que inspiraram a LEP, na medida em que viola os princípios e regras que a nortearam.
Nesse contexto, observa-se que a Lei no 10.792/2003 ofende os direitos e garantias constitucionalmente assegurados aos acusados e aos condenados, eis que não respeita os princípios da proporcionalidade e da humanidade das penas, princípios estes que devem ser obrigatoriamente observados na execução da pena.
A criação de tipos infracionais excessivamente abertos, com expressões vagas, imprecisas e passíveis de múltiplas significações, fere também o princípio constitucional da legalidade, conforme o desdobramento da taxatividade, sendo, sob esta ótica, materialmente inconstitucional. Ao Estado não se permite mais o exercício arbitrário do jus puniendi, eis que o poder sancionador da administração penitenciária esta submetido ao princípio da legalidade e este precisa se exercido para facilitar os meios de defesa do interno que poderá ser submetido a alguma sanção disciplinar.
No que tange a incomunicabilidade do preso, durante a investigação criminal, verifica-se que a mesma não tem sido aplicada devido à existência de divergência doutrinaria quanto a sua revogação ou não. O argumento mais forte pela revogação é que se durante o estado de defesa, em que o Governo deve tomar medidas enérgicas para preservar a ordem pública ou a paz social, é vedada a incomunicabilidade, logicamente não se poderia permiti-la em situação de normalidade. Ademais, a incomunicabilidade do indiciado restou prejudicada, no sentido de que nunca pode ser ordenada de modo absoluto, eis que é garantido ao preso a assistência familiar e a do advogado.
Destarte, com muito mais razão, o isolamento previsto na Lei no 10.792/2003, que deixa o preso numa situação de quase incomunicabilidade, não deve ser empregado. Permitir que um preso fique isolado em solitária por dois anos, sem qualquer comunicação com o mundo exterior, é o mesmo que condená-lo a morte em vida, podendo transformá-lo em um doente mental. Como é cediço, o isolamento prolongado incorre no risco da mudança do mecanismo cerebral, afetivo e comportamental.
Nesse sentido, entende-se que o agravamento das medidas aflitivas pela Lei 13.964/2019 só pioraram o quadro já existente no sistema carcerário brasileiro, como também, violam de modo veemente os direitos do preso. Não obstante o caráter repressivo da pena é fácil observar que o RDD, bastante alterado com o pacote anticrime, esquece-se do caráter ressocializador da pena e de um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil que é a dignidade da pessoa humana.
A repressão ao crime organizado deve-se dar dentro dos limites da Constituição Federal e dos tratados de direitos humanos, protetores da dignidade da pessoa humana; a criação do regime disciplinar diferenciado não acabará com a violência urbana, assim como não tornará o preso uma pessoa melhor e não tornará mais segura a sociedade. É pertinente buscar a reintegração do apenado ao convívio social, através de mecanismos de assistência àquele, por meio da educação intelectual, artística e profissional. Não é com sanções mais rígidas que se alcançará as verdadeiras finalidades da pena, qual sejam, evitar a prática de delitos e ressocializar os presos, os quais são atirados em estabelecimentos penais, que a cada dia se propagam mais, afetando diretamente o princípio constitucional da humanidade.
Há outras maneiras de se repreender o avanço do crime organizado, sem passar por cima dos direitos e garantias fundamentais. A LEP possui mecanismos que, por si só, solucionariam o problema da criminalidade, devendo-se, para alcançar tal objetivo, ser efetivamente empregada.
Portanto, a incomunicabilidade do preso imposta com a inclusão do preso no regime disciplinar diferenciado trata-se de uma pena cruel, que fere a Constituição Federal, nos seus incisos III, XLVII, e, e XLIX, do art. 5o, que dispõem, respectivamente, “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, “não haverá penas cruéis” e “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”[26], devendo sua aplicação ser afastada. O que se propõe é a adequada aplicação da LEP, para evitar as ações dos líderes e integrantes de facções criminosas.
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MELLO, Cleyson de Moraes e FRAGA, Thelma Araújo Esteves Fraga. Direitos Humanos: coletânea de legislação. Rio de Janeiro: F. Bastos, 2003.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. 35. ed. São Paulo: Atlas, 2021. v. 1.
______. Execução penal: comentários a Lei no 7.210 de 11/07/1984. 21. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2015.
______. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1o a 5o da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2020.
RODRIGUES, Francisco Fernandes. A incomunicabilidade do indiciado preso, na lei de segurança nacional e o exercício pleno da advocacia. Revista de Direito Militar, 1981, ano VI, no 09, p. 58.
SIRINO, Sérgio Inácio. Inquérito Policial; em perguntas e respostas. Curitiba: Juruá, 2001.
TUCCI, Rogério Lauria. Direito e garantias individuais no processo penal brasileiro. 4. ed. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2011.
NOTAS:
[2] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução penal: comentários a Lei no 7.210 de 11/07/1984. 21. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2015. p. 151.
[3] BRASIL, Lei no 10.792, de 1o de dezembro de 2003. Altera lei n 7.210, de 11 de junho de 1984 – Lei de Execução Penal e o Decreto-Lei n 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal e dá outras providências. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] CERNICHIARO, L. Vicente. Direito penal na constituição vista dos tribunais. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1995. p. 20.
[7] BRASIL, Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022.
[8] Ibidem.
[9] BRASIL, Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022.
[10] Cf. GOULART, José Eduardo. Princípios informadores do direito de execução penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994. p. 108.
[11] BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Subsecretária de Edições Técnicas, 2021.
[12] MELLO, Cleyson de Moraes e FRAGA, Thelma Araújo Esteves. Direitos Humanos: coletânea de legislação. Rio de Janeiro: F. Bastos, 2003. p. 65.
[13] Ibidem. p. 118.
[14] BRASIL. Código de Processo Penal. 64. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
[15] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2022. p. 79.
[16] RODRIGUES, Francisco Fernandes. A incomunicabilidade do indiciado preso, na lei de segurança nacional e o exercício pleno da advocacia. Revista de Direito Militar, 1981, ano VI, número 09, p. 58.
[17] Ibidem. p. 58.
[18] Ibidem. p. 58.
[19] BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022.
[20] BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Subsecretária de Edições Técnicas, 2021.
[21] SIRINO, Sérgio Inácio. Inquérito Policial; em perguntas e respostas. Curitiba: Juruá, 2001.p 80.
[22] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 1. ed. São Paulo. Rideel, 2003. p. 58. Traduzido por Deocleciano Torrieri Guimarães. p. 60.
[23] BRASIL, Lei no 10.792, de 1o de dezembro de 2003. Altera lei no 7.210, de 11 de junho de 1984 – Lei de Execução Penal e o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal e dá outras providências. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022.
[24] BRASIL, Lei no 10.792, de 1o de dezembro de 2003. Altera lei no 7.210, de 11 de junho de 1984 – Lei de Execução Penal e o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal e dá outras providências. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022.
[25] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Hábeas Corpus no. 400.000.3/8. Impetrante: Marco Antonio Arantes de Paiva. Paciente J.F.M. Relator: Haroldo Luz. São Paulo, 21 novembro de 2001. TJSP, São Paulo, 2005. Disponível em <http://www.tj.sp.gov.br/jurisprudência>. Acesso em: 03 Ago. 2022.
[26] BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Subsecretária de Edições Técnicas, 2005.
Especialista em direito público
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, VANDERLEI MACHADO DA. A incomunicabilidade do preso no regime disciplinar diferenciado e alterações promovidas pela lei 13.964/2020 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 dez 2022, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60613/a-incomunicabilidade-do-preso-no-regime-disciplinar-diferenciado-e-alteraes-promovidas-pela-lei-13-964-2020. Acesso em: 23 dez 2024.
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