PAULA PESSOA PEREIRA.
(orientadora)
RESUMO: A presente pesquisa se propõe a analisar a legitimidade das entidades de classe de âmbito nacional para a propositura das ações de controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. A situação-problema é delineada a partir da jurisprudência dominante daquela Corte Suprema, que restringe a referida legitimidade às entidades que representam interesses profissionais ou econômicos, delegando à sociedade civil o papel de mera espectadora do processo interpretativo da Constituição. A hipótese suscitada é a de que esse entendimento sustenta-se em vetor interpretativo pragmático da capacidade de trabalho do Tribunal (jurisprudência defensiva). O objetivo geral da pesquisa é demonstrar que a interpretação excludente do STF não encontra sustento em argumentos normativos válidos, além de ocasionar diversas distorções práticas no controle concentrado de constitucionalidade. O marco teórico adotado é a teoria dos diálogos institucionais e sociais e a proposta final, advinda de uma visão dialógica do controle jurisdicional de constitucionalidade, é a superação do entendimento mencionado e a abertura democrática dos processos decisórios da Suprema Corte como mecanismo de legitimação da jurisdição constitucional no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: Jurisdição Constitucional. Supremo Tribunal Federal. Entidades de Classe de Âmbito Nacional. Jurisprudência Restritiva.
ABSTRACT: The present research intends to analyze the legitimacy of the “entidades de classe de âmbito nacional” to propose actions in the concentrated control of constitutionality towards the Brazilian Supreme Court. The problem situation is delineated from the dominant jurisprudence of that Supreme Court, which restricts the said legitimacy to entities that represent professional or economic interests, delegating to civil society the role of mere spectator of the interpretative process of the Constitution. The hypothesis raised is that this understanding is based on a pragmatic interpretive vector of the Court's working capacity (defensive jurisprudence). The general objective of the research is to demonstrate that the exclusive interpretation of the Court does not find support in valid normative arguments, besides causing several practical distortions in the concentrated control of constitutionality. The theoretical framework adopted is the theory of institutional and social dialogues, and the final proposal, derived from a dialogical view of the jurisdictional control of constitutionality, is the overcoming of the aforementioned understanding and the democratic opening of the Supreme Court's decision-making processes as a mechanism to legitimize the constitutional jurisdiction in Brazil.
KEYWORKS: Constitutional Jurisdiction. Brazilian Supreme Court. Restrictive Jurisprudence. Legitimidade ativa. Acesso à justiça.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. A DEMOCRACIA E A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL. 1.1. Justificativas teóricas para a existência do controle jurisdicional de constitucionalidade e o seu déficit de legitimidade democrática. 1.2. Diálogos institucionais e sociais como alternativas à noção de supremacia judicial. 1.3. Um perfil do desenho institucional do controle de constitucionalidade no Brasil. 2. A LEGITIMIDADE ATIVA DAS ENTIDADES DE CLASSE DE ÂMBITO NACIONAL. 2.1. A ampliação do rol de legitimados ativos abstratos pela Constituição Federal de 1988. 2.2. As entidades de classe de âmbito nacional e a interpretação da Suprema Corte.2.2.1. Inadequação normativa do precedente judicial restritivo formado pelo STF. 2.2.2. Da repercussão prática e dos efeitos indesejados. 3. NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA EXCLUDENTE FORMADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 3.1. Decisões monocráticas proferidas por Ministros do STF e a busca por um posicionamento institucional. 3.2. O julgamento do Agravo Regimental na ADPF 262 e o indicativo de mudança. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
A jurisdição constitucional é um tema com importância crescente no debate jurídico global. Ao longo das últimas décadas e em diversos países do mundo, o Poder Judiciário passou a intervir, progressivamente, nas esferas que antes eram reservadas apenas ao domínio da política tradicional. Questões variadas como a insuficiência de políticas públicas, a permissão do aborto, a institucionalização das cotas sociais e o financiamento das campanhas eleitorais passaram a ser judicializadas e decididas pelos tribunais. (BARROSO, 2018)
No Brasil, esse protagonismo exercido pelo Poder Judiciário e, sobretudo, pelo Supremo Tribunal Federal, adquire ainda uma maior extensão devido ao nosso modelo de constituição abrangente e analítico. A Constituição Federal de 1988 instituiu um imenso rol de direitos e garantias fundamentais; disciplinou minuciosamente a estrutura organizacional do Estado; discriminou as competências legislativas, administrativas e tributárias dos entes federativos e regulou os mais diversos aspectos do sistema jurídico pátrio. (BARROSO, 2018).
Essa ampla constitucionalização favoreceu a judicialização excessiva e propiciou uma maior projeção ao controle jurisdicional de constitucionalidade, na medida em que boa parte das discussões jurídicas, políticas, morais e sociais envolvem, em última análise, algum aspecto constitucional.
Se, por um lado, esse processo se presta a fortalecer o Poder Judiciário - que através da jurisdição constitucional pode assumir o vácuo de poder deixado pelas instâncias majoritárias, hoje atingidas por uma enorme crise de representatividade - por outro, causa preocupação os riscos advindos de um exacerbado ativismo judicial, sobretudo diante do déficit de legitimidade democrática da jurisdição constitucional, o que recomenda uma atuação mais autocontida das cortes supremas.
Neste trabalho, discorre-se sobre as diferentes teorias normativas acerca do exercício do controle jurisdicional de constitucionalidade, destacando-se a necessidade de abertura democrática dos processos decisórios formais do Supremo Tribunal Federal. O enfoque da pesquisa será a relação entre a qualidade da jurisdição constitucional e o acesso ao controle concentrado de constitucionalidade, especialmente no tocante à legitimidade conferida às entidades de classe de âmbito nacional.
Para atingir o objetivo proposto na presente pesquisa, o trabalho foi dividido em três capítulos. No primeiro capítulo, discorre-se sobre a conjugação teórica entre o regime democrático e a jurisdição constitucional. De início, apresentam-se as justificativas para a existência do controle jurisdicional de constitucionalidade e elucida-se o problema da “dificuldade contramajoritária”. Depois, refuta-se o difundido conceito de supremacia judicial, priorizando as abordagens sobre a jurisdição constitucional empreendidas pela teoria dos diálogos institucionais e pela teoria dos diálogos sociais. Finalmente, explica-se as principais características do controle de constitucionalidade no Brasil, para que se possa compreender as discussões realizadas nos capítulos seguintes.
No segundo capítulo, discorre-se sobre a legitimidade ativa das entidades de classe de âmbito nacional e acerca da ampliação do rol de legitimados ativos instituídos na Constituição Federal de 1988. Rejeita-se - sob os pontos de vista normativo e prescritivo - a restrição estabelecida pelo STF quanto à necessidade de que as entidades legitimadas sejam apenas aquelas representativas de interesses profissionais ou econômicos.
Já no terceiro capítulo, aborda-se a necessidade de superação judicial da jurisprudência restritiva mencionada e aponta-se algumas decisões monocráticas de integrantes da Corte Suprema nessa direção. Enfatiza-se, ainda, a necessidade de que haja um posicionamento institucional do STF sobre o tema e não apenas pronunciamentos individuais. Nesse sentido, o julgamento do Agravo Regimental na ADPF 262 é apontado como indicativo de que a necessária guinada jurisprudencial está próxima.
1.A DEMOCRACIA E A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
1.1 Justificativas teóricas para a existência do controle jurisdicional de constitucionalidade e o seu déficit de legitimidade democrática
Até a primeira metade do Século XX, boa parte dos Estados Nacionais rechaçava a possibilidade de o Poder Judiciário realizar o controle de constitucionalidade de leis. No geral, a jurisdição constitucional era considerada extremamente antidemocrática e, especialmente na Europa, contrária à noção predominante de supremacia do parlamento. (SARMENTO, 2018).
Todavia, após as atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial - sob a égide de governos totalitários que contaram com amplo apoio popular -, consolidou-se a necessidade da criação de sistemas jurídicos aptos a garantir a proteção de minorias contra as maiorias de ocasião. Tais sistemas deveriam privilegiar tanto o ideal democrático como a proteção de direitos fundamentais, o que favoreceu o desenvolvimento de modelos institucionais que conjugam a democracia representativa com o controle jurisdicional de constitucionalidade. (SARMENTO, 2018).
O processo relatado também apresentou outras facetas, como a progressiva centralidade que as cartas constitucionais adquiriram nos sistemas jurídicos, passando a contar com força normativa própria e com princípios que irradiam sua influência por todo o ordenamento.
De todo modo, esse desencadeamento histórico disseminou, na maioria das estruturas jurídicas atuais, um modelo que conjuga duas formulações em aparente colisão: o constitucionalismo, movimento de limitação do poder estatal e determinação de direitos fundamentais, nascido com as revoluções liberais francesa e americana do Século XVIII; e a democracia, regime de tomada de decisões pelas maiorias numéricas, desenvolvido na Grécia Antiga e fortalecido no início do Século XX, com a extensão do direito de participação política às mulheres e às classes sociais menos favorecidas.
Tal modelo, conhecido como constitucionalismo democrático, apresenta tensões intrínsecas ao seu funcionamento. Se cabe ao parlamento, por maioria, deliberar sobre as questões essenciais da nação, lhe é defeso legislar em dissonância com a Constituição e com os direitos das minorias. Assim, em algumas situações, abre-se a possibilidade de uma corte, não submetida ao escrutínio das urnas, invalidar leis editadas e sancionadas pelos poderes políticos por excelência, nesta ordem, o Legislativo e o Executivo.
A possibilidade de as instâncias judiciais sobreporem suas decisões às dos agentes políticos gera aquilo que em teoria constitucional foi denominado de dificuldade contramajoritária. Essa dificuldade constitui uma forte objeção teórica à existência da jurisdição constitucional, especialmente se considerada a “resolução judicial de casos complexos e controversos com base em critérios constitucionais pouco rígidos”. (BARROSO, 2018, p. 51).
Dessa maneira, o problema da dificuldade contramajoritária aponta para o reduzido grau de legitimidade democrática da jurisdição constitucional. Mas, ainda assim, a maioria dos sistemas jurídicos ocidentais admite esse déficit democrático sob a justificativa de que o controle jurisdicional de constitucionalidade possa limitar opressões estatais e proteger os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição.
Mesmo o Canadá e o Reino Unido, historicamente perfilhados ao modelo de democracia majoritária e não ao modelo de democracia constitucional, admitem atualmente variações do chamado “controle fraco de constitucionalidade”. No Canadá, as decisões da Suprema Corte sobre a inconstitucionalidade de leis geram efeitos imediatos, mas são superáveis por eventual maioria legislativa ordinária, dessa vez vinculando o Poder Judiciário. Já no Reino Unido, as decisões judiciais de incompatibilidade com o “Human Right Act” dependem da aprovação do parlamento para se tornarem efetivas, mas, devido à respeitabilidade da incipiente Suprema Corte perante a opinião pública, essas confirmações têm ocorrido. (JOÃO, 2016).
Embora no cenário americano - onde inexiste previsão explícita no texto constitucional para o controle jurisdicional de constitucionalidade[1] - parte da doutrina ainda conteste o referido instituto[2], no contexto brasileiro não há espaço para essa discussão. Aqui, o Poder Constituinte Originário de 1988 expressamente acolheu a jurisdição constitucional[3]. Assim, no Brasil, o cerne da discussão acerca do controle jurisdicional de constitucionalidade não é mais a sua viabilidade, mas sim o modo como essa prerrogativa deve ser exercida e os seus eventuais limites. É o que passo a perquirir no próximo tópico.
1.2 Diálogos institucionais e sociais como alternativas à noção de supremacia judicial
O grau de legitimidade democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade é diretamente influenciado pelo modo de se pensar a jurisdição constitucional nos diversos ordenamentos jurídicos. Assim, para que haja o necessário equacionamento entre a proteção da ordem constitucional pelo Poder Judiciário e a soberania popular e atuação legislativa inerente às democracias representativas, o controle jurisdicional de constitucionalidade não pode ser entendido como um mecanismo monopolizador da interpretação constitucional.
Desse modo, a jurisdição constitucional não deve importar “a exclusão da atividade interpretativa dos demais Poderes, instituições e o povo”. Ao contrário, o Poder Judiciário é mais um ator nessa tarefa de interpretar a Constituição. Nesse sentido é que se refuta a tese difundida no Direito brasileiro de que haveria uma supremacia judicial na interpretação da Carta Política, em virtude de o artigo 102, caput, da Lei Fundamental atribuir ao STF o status de guardião das suas normas. (GODOY, 2017, p. 87).
Embora o Supremo - por razões de segurança jurídica - detenha a prerrogativa de decidir por último nos casos específicos sob sua jurisdição, suas deliberações não necessariamente encerram o debate democrático e tampouco estabelecem uma última palavra definitiva sobre as questões constitucionais postas. Com efeito, a única supremacia admitida no Estado Democrático de Direito é a da Constituição, que obriga igualmente a todos os Poderes da República e aos cidadãos.
A respeito do caráter não definitivo das manifestações do STF na interpretação constitucional, relembre-se que os julgamentos proferidos em sede de controle concentrado jamais vinculam o Poder Legislativo, contra o qual a autoridade dessas manifestações perde seu caráter erga omnes (artigo 102, parágrafo 2°). Assim, afigura-se juridicamente possível ao Congresso Nacional editar leis com conteúdo idêntico ou semelhante a outros diplomas normativos já reconhecidos inconstitucionais pelo Supremo. Tais normas gozam de presunção de constitucionalidade como quaisquer outras, devendo eventual apreciação judicial de sua validade considerar as possíveis mudanças fáticas e jurídicas ocorridas desde o julgamento anterior, além dos novos argumentos ventilados durante o processo legislativo. (BRASIL, 1988).
Ademais, a resposta legislativa pode vir igualmente através de mudanças no texto constitucional, situação em que o próprio parâmetro de controle é alterado. Conquanto o Supremo, por meio de construção jurisprudencial[4], reconheça-se competente para invalidar emendas à Constituição tendentes a abolir as cláusulas pétreas dispostas na Carta Magna, a análise judicial sobre quais normas estariam contidas no rol do artigo 60, parágrafo 4º, da CF reclama uma interpretação restritiva - ou pelo menos literal - de modo a evitar um engessamento constitucional capaz de subtrair das novas gerações a mínima capacidade de autodeterminação.
A valer, as duas hipóteses referidas inserem-se na ampla liberdade de conformação conferida ao Poder Legislativo, cuja função típica de legislar engloba a eventual superação das decisões proferidas no controle de constitucionalidade. Nesse sentido, as decisões da Suprema Corte no exercício da jurisdição constitucional correspondem apenas a uma resposta provisória aos conflitos normativos que lhe são submetidos, “sujeita a novas rodadas procedimentais”. (MENDES, 2008).
Além do mais, o mencionado conceito de supremacia judicial ignora as discussões presentes na sociedade que geram desacordos morais razoáveis: duas pessoas de boa-fé podem divergir razoavelmente acerca de assuntos como a permissão da eutanásia, a legalização da maconha ou a liberação dos jogos de azar. Tais temas têm em comum a ausência de disciplina própria na nossa Constituição. Nesses casos, permitir que uma instituição não eleita desafie a política majoritária consubstanciada em lei, utilizando-se de princípios com pouca densidade normativa como o da proporcionalidade, ou cuja abrangência prima facie seja demasiadamente ampla como o da dignidade da pessoa humana, soa profundamente ilegítimo.
Tamanha liberdade esvaziaria a esfera de atuação do parlamento, desestimulando o papel cívico de reivindicação perante os mandatários da República. E aqui não cabe invocar a função contramajoritária da jurisdição constitucional, que jamais pode ser desempenhada para substituir o espaço da política diante de duas opções constitucionalmente permitidas.
Outra contingência a ser enfrentada no exercício da jurisdição constitucional é a questão das capacidades institucionais. Há determinados assuntos sobre os quais o Poder Judiciário, pela sua própria natureza, carece de conhecimentos específicos para enfrentar. Presume-se que ministros da suprema corte detenham notável saber jurídico, mas não lhe são exigidas, por exemplo, compreensões aprofundadas sobre aspectos técnicos ou científicos.
Assim, nos casos que envolvem conhecimento específicos, cabe ao STF analisar as distintas capacidades e limitações de cada órgão para disciplinar as normas impugnadas e, em geral, priorizar posturas de autocontenção judicial. Nessa mesma linha, o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis advindos de decisões judiciais maximalistas também pode recomendar “uma posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário [...], sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público”. (BARROSO, 2018, p. 52).
Por fim, a crítica à supremacia judicial e a consequente abertura interpretativa da Constituição a outros atores também se justificam pela constatação de que a mera existência do controle jurisdicional de constitucionalidade não garante que as suas funções precípuas - como a proteção dos direitos fundamentais - sejam efetivamente realizadas pelas cortes supremas. (GODOY, 2017).
A Suprema Corte americana, por exemplo, que reconheceu em decisão histórica a inconstitucionalidade da segregação racial entre brancos e negros nas escolas públicas do país, também já decidiu em outro julgamento que as pessoas de descendência africana não estavam submetidas à Constituição dos Estados Unidos. Conforme Godoy (2017, p. 90-91):
Se o caso Brow v. Board of Education é um célebre caso invocado para evidenciar como de fato a Suprema Corte pode proteger as minorias, por outro lado, o caso Dread Scot v. Stanford mostra que essa mesma Corte, pode adotar, sobre o mesmo tema, um entendimento absolutamente diferente e em completo desfavor das minorias”.
Feitas todas essas considerações, incumbe esclarecer que as razões retromencionadas não objetivam infirmar a legitimidade do controle judicial de constitucionalidade, mas demonstrar que uma jurisdição constitucional monopolizadora - pautada na ideia de supremacia judicial - suscita diversas disfunções e prejudica a sua (já reduzida) legitimidade democrática. Assim, este trabalho compartilha outras formas de se vislumbrar a jurisdição constitucional, como aquela preconizada pela teoria dos diálogos institucionais e pela teoria dos diálogos sociais.
Em relação aos diálogos institucionais, trata-se de uma teoria que ganhou força na doutrina constitucional nos últimos anos e que compreende diversas abordagens teóricas. Porém, de modo geral, conforme assinala Mendes (2008, p. 15), os diferentes autores que a abordam expressam uma visão dialógica e cooperativa sobre a interpretação constitucional:
Basicamente, essas teorias defendem que não deve haver competição ou conflito pela última palavra, mas um diálogo permanente e cooperativo entre instituições que, por meio de suas singulares expertises e contextos decisórios, são parceiros na busca do melhor significado constitucional.
Assim, não haveria prioridade, hierarquia ou verticalidade entre instituições lutando pelo monopólio decisório sobre direitos fundamentais. Haveria, ao contrário, uma cadeia de contribuições horizontais que ajudariam a refinar, com a passagem do tempo, boas respostas para questões coletivas”.
Nesse sentido, a teoria dos diálogos institucionais não invoca a supremacia judicial ou uma deferência absoluta ao legislador, nem tampouco vislumbra uma oposição entre os Poderes no exercício das suas atribuições constitucionais. Antes, encara a Carta Magna como um documento normativo que tem “seu significado construído e reconstruído todos os dias, pela atuação dos mais diversos atores e, especialmente, pela atuação de cada um dos Poderes da República”. (GODOY, 2017, p. 165).
Logo, o significado da Constituição é construído por meio de uma interação deliberativa entre os Poderes, que deve ser pautada pela qualidade argumentativa das suas atuações institucionais. Assim, do mesmo modo que “uma lei aprovada após o devido processo legislativo pode ser derrubada pelo controle judicial de constitucionalidade, a decisão judicial pode ser derrubada por uma retomada [...] dos processos institucionais de interpretação e aplicação da Constituição”. Como exemplo dessa última hipótese, o Poder Legislativo pode aprovar uma Emenda à Constituição ou editar uma nova lei que incorpore argumentos adicionais à discussão. (GODOY, 2017, p. 164).
Apesar dos seus méritos, ao concentrar sua abordagem nos processos de interação e interpretação constitucional realizados pelas diferentes instituições, a teoria dos diálogos institucionais não se preocupa suficientemente com o relevante papel conferido ao cidadão comum na formação da vontade constitucional. Assim, desconsidera “que o sentido da Constituição é construído não apenas por meio de um diálogo institucional, mas também de um diálogo social”. Daí o surgimento da teoria dos diálogos sociais, que valoriza o papel da sociedade civil - e não só dos órgãos estatais - nesses processos de definição constitucional. (GOMES, 2016, p. 18).
De todo modo, a compreensão dialógica aqui almejada - tanto na sua vertente institucional como na social -, além de preconizar uma interpretação compartilhada da Constituição, também se preocupa com os procedimentos formais pelos quais as decisões coletivas são implementadas nos diversos locus de poder. Especialmente “em relação ao Poder Judiciário, o fato de não ser composto por membros eleitos impõe um ônus ainda maior ao seu processo decisório à luz da teoria democrática”. (GOMES, 2016, p. 151).
Nessa lógica, os processos de justificação racional das decisões judiciais ostentam maior legitimidade quando precedidos de um amplo debate público e informados com o máximo de argumentos possíveis, dando-se voz a possíveis minorias atingidas pela decisão, às outras instituições estatais e às entidades representativas da sociedade civil. Assim, os diálogos interinstitucionais e sociais são também suscitados pela introdução de mecanismos que incentivam a participação externa nas deliberações das cortes supremas. (GODOY, 2017).
Essa abertura democrática da jurisdição constitucional engloba a adoção de institutos como o amicus curiae e as audiências públicas, mas a eles não se limita. Também envolve a manifestação processual de diversos órgãos no seu procedimento formal decisório e, principalmente, a ampla possibilidade de acesso ao controle jurisdicional de constitucionalidade.
Estabelecidas essas premissas teóricas, passa-se a analisar o contexto brasileiro e as diferentes nuances da jurisdição constitucional no Brasil, para se compreender o desenho institucional da legitimidade ativa concernente ao acesso à jurisdição constitucional abstrata. Também serão expostos alguns instrumentos normativos de participação social que foram positivados no ordenamento jurídico pátrio e que podem contribuir para uma visão dialógica da atuação do Supremo Tribunal Federal.
1.3 Um perfil do desenho institucional do controle de constitucionalidade no Brasil
No ordenamento jurídico brasileiro, o controle de constitucionalidade pode ser político ou jurisdicional. No âmbito da União, o controle político ocorre quando a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal barra a tramitação de um projeto de lei considerado inconstitucional, bem como quando o Presidente da República exerce o seu poder de veto por essa mesma razão.
Já o controle jurisdicional de constitucionalidade vigente no Brasil é misto, uma vez que “combina a matriz americana - em que todo juiz e tribunal pode pronunciar a invalidade de uma norma no caso concreto - e a matriz europeia, que admite ações diretas ajuizáveis perante a corte constitucional. Nesse segundo caso, a validade constitucional de leis e atos normativos é discutida em tese, perante o Supremo Tribunal Federal, fora de uma situação concreta de litígio”. (BARROSO, 2018, p. 47).
Assim sendo, uma das formas de controle jurisdicional de constitucionalidade é aquela realizada no bojo de de uma ação subjetiva e apresentada como uma questão incidental a ser decidida pelo juiz, hipótese em que é denominada controle concreto de constitucionalidade. Essa possibilidade de revisão judicial de leis no interior de um processo subjetivo também recebe o nome de controle difuso de constitucionalidade, uma vez que todos os juízes e tribunais brasileiros possuem competência para efetivá-lo nos processos sob sua jurisdição. Além disso, o efeito de uma declaração de inconstitucionalidade realizada de forma incidental restringe-se tradicionalmente às partes da respectiva ação, ou seja, trata-se de um efeito “inter partes”.
Por outro lado, o controle jurisdicional de constitucionalidade também pode ser desempenhado através de um processo específico para esse fim, denominado de ação constitucional. Esse controle é abstrato porque a decisão se dá diretamente sobre o ato normativo impugnado, sendo que deste pronunciamento judicial origina-se um efeito vinculante ou “erga omnes”, dirigido a todos os órgãos do Poder Judiciário e à administração pública. O referido controle é também denominado controle concentrado de constitucionalidade, já que apenas um órgão judicial possui competência para exercê-lo no âmbito da União, o Supremo Tribunal Federal.
Tecidas as devidas considerações, esclarece-se que este trabalho usará os termos concreto/difuso e abstrato/concentrado visando significar, respectivamente, o controle efetuado de modo incidental em um processo subjetivo e aquele concretizado em uma ação constitucional específica perante o Supremo Tribunal Federal.
Assim, embora o controle concreto possa eventualmente ser realizado de modo concentrado, em um mandado de segurança preventivo impetrado por parlamentar para resguardar o devido processo legislativo, e o controle abstrato também possa ocorrer de forma difusa, no caso de ADI estadual que invoca como parâmetro norma constitucional de reprodução obrigatória da Constituição Federal, essas duas hipóteses constituem exceções sistêmicas. Logo, os referidos termos são considerados sinônimos para os fins desta pesquisa.
Cabe esclarecer ainda que a inconstitucionalidade pode ser reconhecida tanto sob a seara formal como sob a seara material. A inconstitucionalidade formal evidencia o descumprimento das regras do jogo democrático durante o processo de tramitação das leis, em particular das “normas constitucionais que definem regras de competência e o procedimento a ser observado para sua elaboração (no caso de leis federais: iniciativa, deliberação, votação, sanção ou veto, promulgação e publicação)”. Já a inconstitucionalidade material significa que o próprio conteúdo do ato infraconstitucional editado infringe uma previsão contida em norma constitucional. (DIMOULIS, LUNARDI, 2014, p. 90).
Como o foco deste trabalho é o controle concentrado de constitucionalidade, neste momento, convém examinar brevemente as 4 (quatro) espécies de ações constitucionais previstas pela Constituição Federal de 1988. São elas: a ação direta de inconstitucionalidade (ADI), a ação declaratória de constitucionalidade (ADC), a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) e a ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).
A ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade apresentam uma relação de fungibilidade entre si. Enquanto a ADI objetiva a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, a ADC busca o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da constitucionalidade de determinada lei ou ato normativo federal. Devido à presunção de constitucionalidade das leis em geral, a ADC exige o preenchimento de um requisito adicional em relação à ADI: a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da norma objeto da ação, de modo que a decisão apazigue os conflitos jurídicos existentes.
Por seu turno, a ADO tem a finalidade de combater omissões constitucionais, nas hipóteses em que há uma obrigação de legislar conferida ao Congresso Nacional. Finalmente, a ADPF complementa o sistema de controle concentrado no Brasil, na medida em que constitui uma ação subsidiária. Assim, a ADPF enquadra-se principalmente no controle de normas municipais e na análise sobre a recepção (ou não) das leis produzidas anteriormente à Constituição de 1988.
A norma de regência procedimental das ações diretas e da ação declaratória de inconstitucionalidade é a Lei n. 9868/1999, que, de forma positiva e em consonância com a teoria dos diálogos institucionais, prevê a manifestação de diversos órgãos e instituições no processo de julgamento dessas ações - o qual chamaremos de processo constitucional. Logo, os órgãos ou as autoridades das quais emanou o ato normativo impugnado prestam informações à Corte (art. 6). Além disso, o Procurador-Geral da República e o Advogado- Geral da União também manifestam-se acerca do pedido feito (art. 8), sendo que essa última autoridade deve necessariamente defender a constitucionalidade da lei objurgada, a menos que o próprio STF já tenha declarado incidentalmente a inconstitucionalidade da norma.
Além disso, por influência da doutrina de Peter Häberle - que propõe uma interpretação constitucional pluralista e defende uma “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição” -, a legislação também concebeu mecanismos de diálogo e participação social, como o amicus curiae (art. 7, § 2) e as audiências públicas (art. 9, § 1). (VALE, 2008).
Em relação ao amicus curiae, trata-se de pessoa natural ou jurídica, com representatividade adequada, cuja participação no feito é admitida pelo Ministro Relator, considerando a relevância da matéria sob julgamento e com vistas ao fornecimento de melhores subsídios jurídicos para a análise do caso. Já as audiências públicas são convocadas - também pelo Ministro Relator - para ouvir o depoimento de pessoas com experiência em determinada matéria, nos casos de interesse público relevante que exijam o esclarecimento de questões fáticas. Esses dois instrumentos revelam-se importantes para a pluralização de vozes no Tribunal, embora o modo de sua implementação no STF desperte consideráveis críticas (que serão oportunamente apontadas).
Por fim, uma das mais importantes facetas do controle concentrado de constitucionalidade diz respeito à legitimidade ativa para instaurá-lo. A Constituição Federal permitiu uma legitimação ampla, visando atender aos anseios de um constitucionalismo aberto às demais instituições e à sociedade. Por exigir uma discussão extensiva, a questão da legitimidade será aprofundada no próximo capítulo.
2.A LEGITIMIDADE ATIVA DAS ENTIDADES DE CLASSE DE ÂMBITO NACIONAL
2.1 A ampliação do rol de legitimados ativos abstratos pela Constituição Federal de 1988
Como é cediço, a Constituição Federal de 1988 promoveu uma verdadeira democratização das vias de acesso ao controle abstrato de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Assim, ampliou-se expressivamente o rol de legitimados aptos a ajuizar ações constitucionais em relação ao modelo constitucional anterior.
No modelo de Representação de Inconstitucionalidade desenhado pela EC n. 16/1965 - quando o ordenamento jurídico brasileiro passou a adotar o controle concentrado de constitucionalidade -, a titularidade para deflagrar o processo objetivo era restrita ao Procurador-Geral da República. Por sua vez, a atual Carta Política, no seu art. 103, conferiu essa prerrogativa aos seguintes órgãos e entidades (BRASIL, 1988):
Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal;
III - a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV - a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República;
VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;
IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”.
Observa-se que, além do chefe do Parquet, o texto constitucional elencou a possibilidade do Poder Executivo e do Poder Legislativo, no âmbito federal e estadual, proporem ações de (in)constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Além disso, também foram abarcados o Conselho Federal da OAB e os partidos políticos que dispõem de ao menos um representante no Congresso Nacional.
Ademais, de maneira inédita, permitiu-se que organizações com expressão eminentemente privada possam questionar (em abstrato) a constitucionalidade de normas, por meio da inclusão das confederações sindicais e das entidades de classe de âmbito nacional no rol de legitimados. Essa considerável ampliação numérica de legitimados atendeu a duas razões principais.
Primeiro, a designação do Procurador-Geral da República como única autoridade apta a instaurar o controle concentrado comprometia a efetividade da jurisdição constitucional. Como o PGR era um cargo de livre nomeação e exoneração pelo chefe do Poder Executivo Federal e acumulava a chefia do Ministério Público com a representação jurídica da União, a conveniência de se ajuizar uma ação constitucional no STF dependia mais de interesses políticos momentâneos do que de reais ofensas à Constituição. Por esse motivo, decidiu-se que a referida legitimidade ativa não deveria mais circunscrever-se a esse único agente[5].
Segundo, a ampla legitimação pretendeu reforçar - em detrimento do modelo difuso - o controle concentrado de constitucionalidade como instrumento máximo de correção do sistema normativo brasileiro. Dado que a Constituição Cidadã apresenta um imenso catálogo de direitos fundamentais e de regras elementares relativas à organização política, um eventual descumprimento de suas normas pela atividade legiferante do Estado deve ensejar, prioritariamente, soluções gerais e efetivas. Como o controle abstrato possui o condão de suprimir a lei inconstitucional do ordenamento jurídico, com efeito ergma omnes, sua utilização representa uma resposta sistêmica mais eficaz do que aquele vinculado aos casos concretos.
Sob outro enfoque, a pluralidade de legitimados - ao lado dos instrumentos de participação social, como as audiências públicas e o amicus curiae - incentiva um processo benéfico de abertura interpretativa da Constituição Federal. Esse processo confere maior legitimidade democrática à jurisdição constitucional, nos moldes dos argumentos expostos no capítulo anterior sobre a teoria dos diálogos institucionais e a teoria dos diálogos sociais.
Essa última afirmação assume especial relevância quando considerada a legitimidade ativa das entidades de classe de âmbito nacional: ao possibilitar que entidades com representatividade social questionem a validade das normas editadas pelos poderes políticos, o Poder Constituinte Originário intentou desenvolver uma “sociedade aberta de intérpretes” e contribuir para que o controle abstrato de constitucionalidade possa - verdadeiramente - limitar opressões estatais.
Assim, os diversos organismos legitimados a provocar a atuação do STF em controle concentrado, além de promoverem uma interação discursiva com o Tribunal, contam com a perspectiva de que as suas manifestações possam influir na vontade final da Corte Suprema, que dará a última palavra provisória sobre a questão constitucional posta. Conclui-se, portanto, que o alargamento do leque de legitimados a ajuizar ações constitucionais - nos termos da Carta Política de 1988 - foi uma mudança benéfica ao constitucionalismo brasileiro, por promover a abertura interpretativa da Constituição Federal e fomentar diálogos interistitucionais e sociais.
2.2 As entidades de classe de âmbito nacional e a interpretação da Suprema Corte
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a expansão do rol de legitimados a ajuizar ações constitucionais, o Supremo Tribunal Federal definiu, por criação jurisprudencial, parâmetros para a atuação de alguns legitimados em sede de ADI, ADC, ADO e ADPF.
De fato, a despeito da inexistência de qualquer autorização constitucional ou legal, a Suprema Corte instituiu algumas restrições à legitimidade de entes dispostos no art. 103 da Constituição Federal. Tais limitações foram compreendidas como jurisprudência defensiva do Tribunal, com o objetivo de evitar a proliferação de ações e a sobrecarga das suas atividades ordinárias.
Uma das restrições foi a formulação do requisito da pertinência temática. Por meio desse instituto, na petição inicial das ações constitucionais, os legitimados ativos “especiais” devem demonstrar uma relação de pertinência entre os seus objetivos institucionais e a norma específica objeto de impugnação. Nas palavras do constitucionalista Novelino (2017, p. 195).:
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, há distinção entre dois grupos de legitimados. O Presidente da República, as Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e os partidos políticos com representação no Congresso são legitimados ativos universais, ou seja, não precisam demonstrar ‘pertinência temática’. Isso significa a possibilidade de impugnar leis ou atos normativos independentemente da afetação de seus interesses ou objetivos institucionais específicos.
Tratamento diverso é conferido às Mesas das Assembleias Legislativas e da Câmara Legislativa do Distrito Federal, aos governadores, às confederações sindicais e às entidades de classe de âmbito nacional, os quais devem demonstrar pertinência temática entre o conteúdo veiculado na norma impugnada e suas finalidades ou interesses. São considerados, portanto, legitimados ativos especiais”
Em relação às entidades de classe de âmbito nacional, objeto por excelência deste trabalho, além da demonstração do requisito da pertinência temática (por serem legitimadas ativas especiais), o STF também estabeleceu outras duas limitações à sua legitimidade ativa abstrata.
A primeira consiste na imposição de que o caráter nacional das entidades de classe - para fins de verificação da legitimidade - seja atestado pela comprovação de associados em ao menos um terço dos Estados da federação[6]. Tal regra jurisprudencial foi construída a partir de uma interpretação analógica do art. 8º, caput, da Lei n. 9096/95, que trata do apoiamento mínimo para o registro de um novo partido político no Brasil: “ O requerimento do registro de partido político, dirigido ao cartório competente do Registro Civil das Pessoas Jurídicas, da Capital Federal, deve ser subscrito pelos seus fundadores, em número nunca inferior a cento e um, com domicílio eleitoral em, no mínimo, um terço dos Estados, e será acompanhado de [...]. (BRASIL, 1995).
Já a segunda determinação, exige que as entidades de classe autorizadas a deflagrar o controle concentrado sejam apenas as que reúnem membros de uma mesma categoria econômica ou profissional. Por meio dessa interpretação, entidades que congregam representantes da sociedade civil organizada ou de minorias sociais, por exemplo, não estariam autorizadas a ingressar no STF contra possíveis violações à Constituição (ainda que comprovem a sua amplitude nacional e preencham o requisito da pertinência temática).
Essa última jurisprudência, que restringe o enquadramento das entidades de classe aos grupos homogêneos representantes de segmentos econômicos ou profissionais, surgiu na ADI 42, julgada em 1992[7]. O caso foi decidido em um contexto histórico bastante específico, no qual a maioria dos ministros haviam sido nomeados antes do advento da Constituição de 1988 e, portanto, estavam inevitavelmente identificados com o regime militar anterior. (GOMES, 2016).
Dessa forma, na época, a Suprema Corte era majoritariamente avessa à ideia de ampliação democrática da jurisdição constitucional. Consta, inclusive, que no ano de 1986, os Ministros do STF manifestaram à Assembleia Nacional Constituinte - por meio de mensagem pública e formal - o entendimento de que a legitimidade ativa para o controle concentrado deveria continuar restrita ao PGR. (GOMES, 2016).
Decorridas quase três décadas, mesmo sem encontrar guarida constitucional e tampouco amparo na legislação específica que disciplina o processo e o julgamento das ações diretas perante o STF (Lei n. 9.868/99), essa vertente jurisprudencial restritiva continua a predominar no Tribunal. Recorrendo a essa tese, a Corte já rejeitou a legitimidade ativa de entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE)[8], a Associação Brasileira de Consumidores (ABC)[9], a Associação Brasileira de Defesa do Cidadão (ABRADEC)[10] e outras dezenas de organismos com manifesta representatividade social.
2.2.1 Inadequação normativa do precedente judicial restritivo formado pelo STF
Fixadas essas premissas sobre as três maiores restrições impostas pelo Supremo Tribunal Federal à legitimidade ativa das entidades de classe de âmbito nacional, este trabalho concentrará sua crítica na limitação de acesso ao controle abstrato conferida às entidades que não representam interesses profissionais ou econômicos.
Conquanto esta pesquisa assuma uma posição indiferente quanto à pertinência temática e a exigência da comprovação de associados em ao menos 9 (nove) Estados da federação - assuntos bastante controversos na doutrina -, entendo existirem razões jurídicas aptas a justificar a sua juridicidade.
Sobre o requisito da pertinência temática, a distinção entre os legitimados universais e os legitimados especiais, embora estabelecida pelo STF por razões de ordem prática, ampara- se no grau distinto de interesse jurídico que as duas espécies de legitimados detêm na resolução de conflitos constitucionais.
Destarte, enquanto os legitimados universais possuem uma ampla esfera de atuação institucional, os legitimados especiais têm representatividade restrita ao âmbito do Estado- membro (Mesas das Assembleias Legislativas e governadores) ou a setores específicos da sociedade (confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional), o que pode respaldar essa diferenciação jurisprudencial.
Já no que concerne ao requisito da demonstração de associados em ao menos um terço dos Estados da federação, o próprio texto constitucional exige que as entidades de classe disponham de caráter nacional, sem estabelecer quais seriam os parâmetros para essa aferição. Como a Lei n. 9.868/99 tampouco dispõe a respeito da referida abrangência nacional, há uma lacuna normativa que legitima a aplicação analógica do art. 8º, caput, da Lei n. 9096/95, para garantir o cumprimento da Constituição e assegurar um patamar mínimo de representatividade às entidades com a prerrogativa de provocar o controle abstrato de constitucionalidade.
Feitas as ponderações cabíveis, incumbe discorrer acerca da jurisprudência que delimita o conceito de entidade de classe de âmbito nacional às associações oriundas de segmentos profissionais ou econômicos. Como já anunciado, defende-se que essa tese jurisprudencial carece de argumentos fáticos ou jurídicos suficientes para justificá-la.
De início, ressalta-se que a ratio decidendi da já citada ADI 42 - responsável pela formação do precedente em evidência - revela-se de difícil perquirição, devido à forma dos julgamentos colegiados na Corte Suprema, cujas decisões compõem-se pela sobreposição dos votos individuais de cada membro do colegiado. Devido à essa característica, os acórdãos firmados pelo STF ocasionalmente resultam em uma fundamentação ambígua. (VALE, 2015). A despeito disso, ao analisar o julgado, infere-se que o principal fundamento para a interpretação restritiva parece ser o art. 511, caput, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)[11], que estabelece requisitos necessários para a constituição de associações sindicais lícitas.
Da análise topológica, verifica-se que o referido artigo está disposto no Título V da CLT, que trata das organizações sindicais e, mais especificamente, no Capítulo I, que disciplina os regramentos atinentes à instituição sindical. Outro dispositivo legal identificado nesse mesmo capítulo da CLT é o art. 535, caput, que assim prescreve: “As Confederações organizar-se-ão com o mínimo de 3 (três) federações e terão sede na Capital da República”. (BRASIL, 1943).
As confederações definidas pelo artigo supracitado são as entidades sindicais de grau máximo no ordenamento jurídico brasileiro, denominadas “confederações sindicais”. Não por acaso, tais entidades são reconhecidas pela doutrina e pela jurisprudência pátria como as únicas instituições sindicais com legitimidade ativa para instaurar o controle abstrato, conforme o teor expresso do art. 103, IV, da Constituição da República[12]. (BRASIL, 1988).
Sendo os conceitos de “confederação sindical” e de “entidade de classe de âmbito nacional” necessariamente distintos, conforme a máxima hermenêutica de que não cabe ao parlamento legislar em vão, mostra-se possível deduzir que as entidades de classe de âmbito nacional não podem ser consideradas espécies do gênero organizações sindicais, tratado no referido Capítulo V da CLT.
Isso porque as confederações são as únicas instituições sindicais autorizadas constitucionalmente a promover o controle abstrato de constitucionalidade. Daí a ausência de lógica na aplicação do art. 511 daquela lei também às entidades de classe, que não constituem sindicatos e, portanto, têm liberdade para perseguir interesses diversos daqueles de índole meramente econômica ou profissional.
Por outro lado, a hipótese desautoriza o uso da analogia, uma vez que inexiste lacuna jurídica a ser suprida, mas sim uma legítima opção do Poder Constituinte Originário em conferir ampla legitimação às entidades de classe de âmbito nacional, aí incluídas as entidades representativas de grupos minoritários, aquelas ligadas à proteção de direitos fundamentais e as demais associações provenientes da sociedade civil organizada.
Ademais, conforme assevera Daniel Sarmento, a jurisprudência restritiva em debate não encontra respaldo nos principais métodos de interpretação constitucional. Eis a lição do autor (2018, p. 86):
Ela não é postulada pela interpretação literal, pois a palavra ‘classe’ é altamente vaga, comportando leituras muito mais generosas. Ela não se concilia com a interpretação teleológica da Constituição, pois, como se viu, frustra o objetivo do texto magno, que foi democratizar o acesso ao controle concentrado de constitucionalidade. Pior, ela colide frontalmente com a interpretação sistemática da Carta, afrontando o postulado de unidade da Constituição. Com efeito, inexiste na Constituição de 88 uma priorização dos direitos e interesses ligados às categorias econômicas ou profissionais, em detrimento das demais. Pelo contrário, a Constituição revelou preocupação no mínimo equivalente com a garantia de outros direitos fundamentais.
Em contrapartida, a jurisdição constitucional abstrata foi historicamente concebida para a proteção de direitos fundamentais. Quando os poderes políticos, nas mãos de maiorias ocasionais, servem-se da sua prerrogativa de editar leis para constranger os direitos constitucionalmente estabelecidos das minorias, cabe ao Supremo Tribunal invalidar os atos normativos editados em desconformidade com a Constituição. Sendo as cortes supremas instituições, por essência, contramajoritárias, como negar às entidades representativas de minorias o direito de ajuizar ações constitucionais?
Não se ignora que as garantias relativas aos grupos profissionais e econômicos são também resguardadas pela Carta Magna e que, formalmente, todos os artigos do texto constitucional servem de parâmetro ao controle concentrado de constitucionalidade. Contudo, mesmo sob essa perspectiva formal, se a própria Constituição não instituiu expressamente uma relação de hierarquia entre as suas normas, descabe ao Poder Judiciário fazê-lo para privilegiar determinados interesses em detrimento de outros.
É dizer: o entendimento restritivo adotado pelo STF atribui um valor superior às causas de certas categorias, o que direciona a agenda do Tribunal para a resolução dessas questões. E essa priorização ocorre justamente em detrimento de entidades marginalizadas no processo democrático majoritário e que, portanto, encontram-se mais suscetíveis a sofrer violações estatais.
Por sua vez, as entidades corporativas, que já possuem maior acesso na política majoritária em razão da influência do poder econômico e das organizações profissionais no processo legislativo, podem ainda socorrer-se ao controle concentrado de constitucionalidade na persecução institucional dos seus interesses. Nessa perspectiva, ao invés de instrumento contramajoritário, corre-se o risco da jurisdição constitucional se transformar em uma instância de legitimação de privilégios.
Dito isso, ressalta-se que este trabalho não defende a ilegitimidade das entidades representativas de grupos econômicos ou profissionais para provocar o controle abstrato, nem tampouco apela para argumentos de igualdade em seu sentido material ou substantivo. Defende-se a igualdade formal entre as entidades vinculadas a categorias econômicas ou profissionais e aquelas relacionadas a outros tipos de interesses legítimos, como a atividade estudantil, a defesa de direitos fundamentais e a representação de minorias - por meio da concessão a todas dos mesmos direitos processuais de acesso ao STF.
Poderia ser argumentado que as entidades da sociedade civil já conseguem acionar o Supremo por intermédio do controle difuso, ou seja, através da interposição de um recurso extraordinário. Contudo, em termos de proteção jurídica eficiente, as duas vias são incomparáveis.
De um lado, o controle concentrado tem aptidão para remover definitivamente a norma inconstitucional do ordenamento jurídico, possui efeito erga omnes e pode ser julgado em um curto período de tempo, se adotado o rito simplificado do art. 12 da Lei n. 9869/99. Do outro, o manejo de um recurso extraordinário exige a demonstração da repercussão geral das questões constitucionais discutidas, a instauração e o julgamento de um processo judicial subjetivo perante dois ou mais graus de jurisdição e, ao final, um eventual juízo de inconstitucionalidade não apresenta abrangência comparável às decisões tomadas em sede de controle concentrado de constitucionalidade - ainda que considerada a tendência de objetização do controle difuso[13].
É preciso enfrentar, ainda, o argumento de que a eliminação da jurisprudência em questão não seria desejável, devido à multiplicidade de ações constitucionais que chegariam ao STF, com aptidão para sobrecarregar as atividades ordinárias da Corte. Se bem analisada, essa afirmação não prospera por três razões.
Primeiramente, os outros dois requisitos aplicáveis às entidades de classe, quais sejam, a pertinência temática e a abrangência nacional, já são filtros suficientemente aptos a evitar uma irrefreável proliferação de ações no STF. Nesse sentido, a limitação de acesso às entidades da sociedade civil relaciona-se mais intrinsecamente à qualidade do controle concentrado, e não à quantidade de processos. Em contrapartida, a prevalecer essa concepção restritiva é que se estará fomentando a instauração de diversos processos judiciais subjetivos, em múltiplas instâncias - pela via do controle difuso de constitucionalidade -, o que compromete a eficiência do Poder Judiciário como um todo.
Além disso, o controle concentrado corresponde a uma fração mínima do total de processos em curso no Supremo Tribunal Federal. De acordo com o relatório “Supremo em Números: O Múltiplo Supremo”, disponibilizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) após a realização de pesquisas empíricas, as ações constitucionais representam menos de 3 (três) por cento dos processos apresentados à Corte anualmente (ARGUELHES, et al. 2011, p. 38). Ora, sendo a proteção da ordem constitucional a função precípua das supremas cortes, os números retratados mostram-se inexpressivos e jamais poderiam ser responsabilizados pela sobrecarga de ações no STF.
Por fim, ainda que houvesse um ligeiro aumento nos números de ADI ajuizadas, por exemplo, isso não prejudicaria a efetividade da prestação jurisdicional. É que, no âmbito de uma ação objetiva, sem partes, lide e pretensões resistidas, inexistem interesses subjetivos a serem resguardados de forma imediata.
Expostos os principais argumentos que revelam a inadequação normativa da corrente jurisprudencial em evidência, que bloqueia o acesso das entidades representativas da sociedade civil ao controle concentrado de constitucionalidade, passa-se a dispor - no próximo tópico - acerca das repercussões práticas e dos efeitos indesejados oriundos desse entendimento.
2.2.2 Da repercussão prática e dos efeitos indesejados
Além de não se justificar do ponto de vista normativo, a limitação da legitimidade ativa abstrata às entidades representativas de grupos profissionais ou econômicos provoca consequências nocivas à jurisdição constitucional. A principal delas diz respeito ao perfil das ações constitucionais julgadas pelo STF, cujos temas predominantes tornaram-se os de cunho corporativo, econômico e federativo (esse último em decorrência dos interesses protagonizados pelos demais legitimados, conforme será exposto mais adiante).
Sendo as entidades de classe de âmbito nacional - numericamente - as maiores legitimadas, seus pleitos acarretam um forte impacto na agenda do Tribunal. Como o requisito da pertinência temática impõe que as normas impugnadas se correlacionem com os objetivos institucionais das entidades ingressantes, a Corte Suprema passa a concentrar suas discussões nos assuntos retromencionados.
Dessa maneira, a interpretação jurisprudencial excludente (aplicável às entidades representativas de interesses não relacionados ao domínio econômico ou profissional) contribui para a divergência existente entre a linguagem teórica que justifica o controle jurisdicional de constitucionalidade, amparada na proteção de minorias e dos direitos fundamentais, e a prática judicial brasileira, que prioriza as questões profissionais e econômicas nos processos de controle concentrado de constitucionalidade.
Os argumentos aqui expostos são também corroborados no resultado da pesquisa empírica realizada por Juliano Zaiden e Alexandre Araújo, na qual coleteu-se dados sobre as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) julgadas pelo STF entre 1988 e 2012, e as conclusões alcançadas foram as seguintes (BENVINDO, COSTA, 2014, p.77-80):
O perfil geral das decisões e dos atores mostra que a combinação do perfil político dos legitimados com a jurisprudência restritiva do STF em termos de legitimidade conduziu a um modelo de controle concentrado que privilegia a garantia dos interesses institucionais ou corporativos. Apesar dos discursos de legitimação do controle concentrado normalmente se justificarem na necessidade de oferecer proteção adequada aos direitos dos cidadãos, o que se observa na prática é uma garantia relativamente efetiva dos interesses corporativos e não do interesse público [...]. Assim, o sistema de controle concentrado de constitucionalidade vigente no Brasil possui uma predominância jurisprudencial de argumentos formais ou de organização do Estado, cumulada com uma atuação [...] cuja maior parte é ligada à garantia de interesses corporativos. Há também um espaço razoável para a cooptação dos legitimados por grupos de pressão que, com isso, adquirem acesso ao controle concentrado, acesso esse que é vedado às entidades que defendem os interesses dos cidadãos, e não interesses coletivos de certos grupos profissionais. Com isso, não realizam o objetivo final do controle de constitucionalidade que seria o de servir como uma via concentrada e rápida para a solução de questões constitucionais mais amplas, especialmente para a defesa dos direitos fundamentais [...]. Essas constatações conduzem a corroborar a hipótese de que, na atuação concentrada, o STF realiza basicamente um controle da própria estrutura do Estado voltada à preservação da competência da União e à limitação da autonomia dos estados de buscarem desenhos institucionais diversos daqueles que a Constituição da República atribui à esfera federal. Além disso, nas poucas decisões em que o STF anula normas com base na aplicação dos direitos fundamentais, existe uma preponderância de interesses corporativos [...]. Nessa medida, o processo de fortalecimento do controle concentrado de constitucionalidade, especificamente no que toca às ADIs, aparentemente não se mostra apto a gerar um debate mais amplo das questões constitucionais relevantes para a população em geral, especialmente na medida em que os atores que podem protagonizar as ADIs estão mais vinculados aos seus interesses corporativos e institucionais que à garantia do interesse comum. Assim, o discurso que deu margem à ampliação do rol de legitimados na Constituição de 1988, como uma forma de tornar socialmente mais aberto o controle concentrado, mostra-se na prática vazio, pois os novos legitimados atuam quase que apenas em nome de interesses de grupos específicos. O que assistimos desde a promulgação da atual Constituição foi uma ampliação do controle federativo e do controle corporativo, e não uma ampliação do controle voltado à defesa dos interesses coletivos [...]. A questão a ser enfrentada é a dos processos de seletividade a partir dos quais são definidos os interesses que serão tutelados por meio do controle concentrado. Atualmente, há uma forte seletividade em termos de agentes legitimados (que fortalece o controle federativo e o corporativo), combinado com uma seletividade nas decisões judiciais (que privilegiam o controle formal e o material baseado em regras de estrutura administrativa, e não na eficácia dos direitos fundamentais). Assim, o problema fundamental não é de eficiência nem de celeridade, pois importa pouco saber quantos pedidos serão julgados e quando eles serão decididos, quando existe um comprometimento estrutural do sistema com redes de seletividade que contribuem para um esvaziamento das ADIs como forma de efetivação de direitos fundamentais e de garantia do interesse público.
Do exposto, vê-se que o entendimento jurisprudencial limitativo apresenta uma característica de seletividade que, na prática, compromete a legitimidade da jurisdição constitucional. Conforme o estudo empreendido, esse padrão seletivo acomete até mesmo as entidades patronais, na medida em que as corporações ligadas às carreiras estatais obtêm particular êxito nas suas demandas, enquanto as associações que representam outras profissões possuem índice nulo de procedência nas ADI que apresentaram:
Tiveram uma participação constante e exitosa nas ADIs as entidades patronais e aquelas que defendem os interesses de servidores públicos, especialmente daqueles ligados ao sistema de justiça e à segurança pública (como juízes, delegados, defensores, membros do MP, advogados e policiais). Associações ligadas a outras profissões tiveram baixo índice de participação e índice nulo de procedência, o que indica que as classes envolvidas mais diretamente ligadas à aplicação do direito souberam aproveitar-se de modo mais eficaz dos processos de judicialização da política e que o STF foi bastante sensível às suas postulações”. (BENVINDO, COSTA, 2014, p.77).
Antes de prosseguir na presente argumentação, conquanto não seja propriamente o tema desta monografia, cabe tecer algumas considerações sobre a constatada predominância de matérias federativas - além dos debates atinentes a interesses econômicos e profissionais - nos litígios objetivos julgados pelo STF.
No ponto, a verificação que as Assembleias Legislativas são as “grandes perdedoras” do controle concentrado de constitucionalidade não surpreende. Isso porque, afora o extenso rol de atribuições legislativas conferidas privativamente à União pela CF/88, o que já apequena a atividade legiferante dos Estados-membros e dos Municípios, o Supremo Tribunal Federal tem respaldado uma cultura constitucional centralizadora em relação ao pacto federativo brasileiro. (BENVINDO, COSTA, 2014, p.75).
Um exemplo desse preocupante quadro foi a concepção jurisprudencial do denominado “princípio da simetria”, que impõe aos Estados da Federação a replicação legislativa dos mesmos arranjos institucionais previstos na Constituição Federal para a União. Ocorre que o referido princípio é empregado, preponderantemente, em contextos nos quais inexistem determinações constitucionais expressas a determinar a adoção de um modelo simétrico. Isso ocasiona uma gradativa redução da autonomia dos Estado-membros e incentiva a multiplicação de ações constitucionais no STF concernentes a questões federativas.
Voltando a discorrer acerca do objeto central deste trabalho, importa perscrutar os motivos pelos quais a interpretação que privilegia as categorias econômicas ou profissionais prejudica a qualidade do controle concentrado de constitucionalidade.
Conforme discutido no primeiro capítulo, o modelo de democracia constitucional possui tensões intrínsecas ao seu funcionamento: de um lado, os Poderes compostos por membros eleitos, que atuam na condição de representantes do povo, têm a prerrogativa de elaborar normas vinculantes para toda a sociedade; do outro, essas leis só ostentam validade quando o seu texto se compatibiliza formal e materialmente com as regras insculpidas na Constituição Federal.
Caso o pressuposto acima não seja atendido, a legislação concebida pelo Parlamento e sancionada pelo Chefe do Poder Executivo pode ser anulada pelo Poder Judiciário, através de uma declaração de inconstitucionalidade. Daí decorre a possibilidade jurídica de uma Corte não eleita, integrada por uma diminuta elite de especialistas em Direito, invalidar normas editadas por instituições com representatividade popular.
Embora uma considerável parte dos países democráticos adotem - em maior ou menor grau - espécies de controle jurisdicional de constitucionalidade, já se reconheceu que esse mecanismo acarreta uma “dificuldade contramajoritária” e que apresenta um significativo déficit de legitimidade democrática. Esse déficit, entretanto, é tolerado pela expectativa de que as cortes constitucionais possam proteger os direitos fundamentais previstos na Carta Magna, evitando a opressão de maiorias ocasionalmente formadas no âmbito do Poder Legislativo contra minorias políticas e sociais.
Nessa acepção, o STF - no exercício do controle concentrado de constitucionalidade - representa o locus ideal para a garantia de direitos fundamentais ameaçados, para a proteção de minorias e para a limitação do poder estatal. Por outro lado, embora os interesses econômicos, profissionais e federativos também detenham amparo constitucional, a hegemonia desses temas na Corte mina ainda mais a sua legitimidade democrática, uma vez que as funções precípuas do controle jurisdicional de constitucionalidade estão sendo relegadas a segundo plano.
Por óbvio, reconhece-se que o Supremo Tribunal Federal proferiu, ao longo das últimas duas décadas, importantes decisões relativas à proteção de direitos fundamentais. Todavia, além de tais julgamentos representarem uma mínima fração do total de ações constitucionais apreciadas pela Corte, tais pleitos não foram levados ao Tribunal pelas próprias minorias que tiveram os seus direitos constitucionais violados. (GOMES, 2016).
Assim, os grupos ignorados no debate público realizado na esfera legislativa perdem o seu lugar de fala também no âmbito da jurisdição constitucional. Isso produz consequências negativas, mesmo nos casos em que o STF efetivamente tutela os direitos vindicados. Nas palavras de Juliana Cesario Alvim Gomes (2016):
Entretanto, até para as histórias de sucesso, o acesso limitado e seletivo à Corte produz efeitos negativos: perda de seu protagonismo, restrição de seus argumentos, sujeição de suas causas a composição e barganhas com seus “representantes” oficiais. Isso sem falar nas demandas que chegam à Corte sem qualquer respaldo de seus principais interessados ou que sequer alcançam a jurisdição constitucional.
Para confirmar as assertivas supracitadas, basta relembrar alguns dos principais casos julgados pela Suprema Corte em temas de direitos fundamentais. No ano de 2011, em decisão histórica, o STF autorizou a união estável homoafetiva no Brasil. Essa permissão foi veiculada na deliberação conjunta da ADI 4277 e da ADPF[14] 132[15], ajuizadas, respectivamente, pelo Procurador-Geral da República e pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro.
Assim, conquanto a Associação Brasileira de Gays, Bissexuais, Lésbicas, Travestis e Transsexuais (ABGLT) estivesse materialmente engajada nos projetos desenvolvidos pelo Grupo de Trabalho que pretendia levar essa matéria ao STF, a jurisprudência restritiva do Tribunal não permitiria o ajuizamento da ação pela referida entidade. (SARMENTO, 2018).
Situação semelhante ocorreu no âmbito da ADPF 54[16], na qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito das mulheres a interromper a gestação nos casos de feto anencefálico. Embora uma entidade de defesa das mulheres, o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, tenha propagado a causa, a ação constitucional teve que ser instaurada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CTNS). (GOMES, 2016).
É dizer: a limitação jurisprudencial do STF submete as entidades diretamente atingidas por violações jurídicas a um injusto processo de negociação para que os seus pleitos cheguem à Corte. Nesse processo, as referidas entidades perdem a sua autonomia e a possibilidade de expor suas próprias compreensões sobre a Constituição. Além disso, muitas vezes não há legitimados interessados a ingressar com as respectivas ações constitucionais e o quadro de ofensa a direitos permanece.
Por outro lado, não se ignora a existência de outros caminhos aptos a proporcionar a inserção das entidades sociais no controle concentrado de constitucionalidade, como a participação em audiências públicas e o ingresso na ação como amicus curiae. Porém, esses mecanismos de abertura popular da jurisdição constitucional abstrata, embora configurem-se instrumentos benéficos para o processo constitucional, revelam-se insuficientes para a promoção de um efetivo diálogo do STF com a sociedade e para o incremento da legitimidade democrática da Corte.
Destarte, ainda que as entidades sociais se envolvam com mecanismos de participação democrática, o impacto da sua contribuição diminui quando o acesso ao controle abstrato é restringido por filtros jurisprudenciais seletivos. Logo, como a maioria dos processos constitucionais relacionam-se a temas federativos, econômicos e profissionais - devido ao perfil predominante dos legitimados -, a atuação dessas entidades na condição de amicus curiae ou suas eventuais manifestações em audiências públicas não impactam significativamente a qualidade da jurisdição constitucional.
Por outro lado, a implementação prática desses dois instrumentos na jurisdição constitucional brasileira também desperta uma série de críticas, a começar pela inexistência de imposições normativas a determinarem o devido enfrentamento, nos respectivos acórdãos, dos argumentos apresentados nas referidas colaborações. Além disso, em ambos os mecanismos, concedeu-se um poder monocrático excessivo ao Ministro Relator, que é capaz de “impossibilitar, restringir e até mesmo enviesar o debate”. (GODOY, 2017, p. 201).
No que concerne ao amicus curiae, não há qualquer regulamentação para disciplinar a igualdade participativa entre entidades que representam teses contrapostas. Como os critérios para a admissão dessas figuras revestem-se de profunda subjetividade, na prática, o Relator pode inadmitir a manifestação de certas entidades apenas por antever uma divergência de posições sobre a questão examinada. Pior: uma eventual decisão monocrática nesse sentido não é mais passível de recurso, conforme recente alteração jurisprudencial da Suprema Corte[17].
Da mesma forma, a designação de audiências públicas é atribuição privativa do Ministro Relator, que também indicará as pessoas a serem ouvidas. Destaca-se, contudo, a pequena participação dos ministros nas audiências e o escasso engajamento discursivo entre a Corte e os especialistas convocados. Nesse sentido, ao invés de instrumento que promove um efetivo diálogo social e institucional, as audiências públicas têm servido mais como mero mecanismo informativo dos julgadores. (GODOY, 2017).
Portanto, apesar dos institutos citados constituírem avanços positivos para o constitucionalismo pátrio, o modo como eles foram estruturados no contexto brasileiro merece reparos, uma vez que os seus atuais arranjos despertam o risco observado por Godoy (2017, p.206):
Se essa participação popular passa a ser utilizada apenas como mais um passo para legitimar formalmente a decisão a ser exarada, perde-se o sentido da abertura dialógica do Supremo Tribunal Federal, esvaziam-se as inovações normativas e transforma-se um desejável diálogo em mera retórica formal de oitiva e participação.
Sob outra perspectiva, ainda que as deficiências apontadas sejam devidamente corrigidas, a abertura da jurisdição constitucional a novos atores, apenas na fase da colheita de informações, não se afigura suficiente para corrigir as distorções sistêmicas que maculam o controle concentrado de constitucionalidade no STF. Logo, a mudança mais importante e transformadora, no que concerne à legitimidade democrática da jurisdição constitucional, trata-se da eliminação das barreiras de acesso impostas às entidades de classe que não representam interesses econômicos ou profissionais. Conforme preceitua Peter Härbele (1997, p. 13):
No processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição. [...] quem vive a norma acaba por interpretá-la.
Em autênticas democracias, o processo de interpretação constitucional não constitui uma prerrogativa exclusiva dos Tribunais. Nessa medida, o Legislativo e o Executivo também interpretam a Constituição quando realizam o controle político de constitucionalidade e, respectivamente, editam e sancionam leis. O Ministério Público idem, ao “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública” (art. 129, II, CF/88) aos direitos nela assegurados.
Mas o referido processo tampouco se restringe aos órgãos estatais. A Constituição de 1988 concebeu uma série de incentivos para que a sociedade civil possa participar ativamente dos mecanismos de regulação da vida social. No âmbito legiferante, instituiu-se a iniciativa popular, o plebiscito e o referendo. E, no seio da jurisdição constitucional, promoveu-se a abertura democrática do rol de legitimados ativos a provocar o controle concentrado.
A construção coletiva de uma “sociedade aberta de intérpretes” e de uma jurisdição constitucional dialógica exigem que o povo - destinatário final dos direitos resguardados na Constituição - possa acionar o STF contra possíveis violações estatais. Não sendo uma escolha viável o peticionamento individual, a Carta Magna possibilitou que entidades com elevada expressão social, representantes dos mais diversos interesses protegidos pelo ordenamento jurídico, instaurem o controle abstrato de constitucionalidade. Nessa esteira, descabe ao Supremo Tribunal Federal - guardião da Constituição - restringir o conteúdo da norma constitucional ampliativa e, consequentemente, denegar à sociedade brasileira a autonomia necessária para protagonizar o seu próprio destino.
3.NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA EXCLUDENTE FORMADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
3.1 Decisões monocráticas proferidas por Ministros do STF e a busca por um posicionamento institucional
A despeito de todas as críticas aqui manifestadas, convém reconhecer os recentes avanços empreendidos pelo Supremo Tribunal Federal no tratamento da legitimidade ativa das entidades de classe de âmbito nacional. No âmbito da ADI 5291 e da ADPF 527, os Ministros Marco Aurélio Mello e Luís Roberto Barroso, respectivamente, proferiram decisões monocráticas superando a jurisprudência restritiva da Corte em relação às categorias econômicas e profissionais.
Na ADI 5291, admitiu-se a legitimidade do Instituto Nacional de Defesa do Consumidor - IDECON para a apresentação da referida ação. No referido caso, o pedido de inconstitucionalidade referiu-se a normas relativas aos procedimentos da ação de busca e apreensão de veículos automotores com alienação fiduciária. No que importa à presente discussão, eis o teor do pronunciamento judicial em destaque:
Estou convencido, a mais não poder ser a hora de o Tribunal evoluir na interpretação do artigo 103, inciso IX, da Carta da República, vindo a concretizar o propósito nuclear do constituinte originário – a ampla participação social, no âmbito do Supremo, voltada à defesa e à realização dos direitos fundamentais. A jurisprudência, até aqui muito restritiva, limitou o acesso da sociedade à jurisdição constitucional e à dinâmica de proteção dos direitos fundamentais da nova ordem constitucional. Em vez da participação democrática e inclusiva de diferentes grupos sociais e setores da sociedade civil, as decisões do Supremo produziram acesso seletivo. As portas estão sempre abertas aos debates sobre interesses federativos, estatais, corporativos e econômicos, mas fechadas às entidades que representam segmentos sociais historicamente empenhados na defesa das liberdades públicas e da cidadania [...]. Acreditando que restringir o conceito de entidade de classe implica, ao reduzir a potencialidade de interação entre o Supremo e a sociedade civil, amesquinhar o caráter democrático da jurisdição constitucional, em desfavor da própria Carta de 1988, reconheço a legitimidade ativa do Instituto Nacional de Defesa do Consumidor – IDECON.
Por sua vez, nos autos da ADPF 527, o Ministro Luís Roberto Barroso também prolatou uma decisão histórica, na qual reconheceu que a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais (ALGBT) constitui entidade de classe de âmbito nacional e, portanto, possui legitimidade ativa para provocar o controle abstrato.
No caso específico, a ALGBT impugnou a Resolução Conjunta da Presidência da República e do Conselho de Combate à Discriminação, que estatuiu parâmetros de acolhimento do público LGBT submetido à privação de liberdade nos estabelecimentos prisionais brasileiros. Um dos principais argumentos utilizados pelo Ministro para superar a jurisprudência restritiva foi a teoria do impacto desproporcional, uma vez que o referido entendimento implicaria em uma maior oneração das entidades que defendem direitos fundamentais de grupos vulneráveis e minoritários. Sendo assim, por produzir um impacto desproporcional sob tais grupos, o entendimento restritivo não se compatibilizaria com a ideia de igualdade, de modo que também as entidades representativas de minorias e grupos vulneráveis estariam abarcadas no conceito de “entidades de classe de âmbito nacional”.
O conteúdo das duas decisões citadas revela-se de extrema importância para a abertura popular da jurisdição constitucional no Brasil e para o aumento da sua legitimidade democrática.
Entretanto, além das sinalizações individuais, impende que o Supremo Tribunal Federal - por meio de uma manifestação institucional - supere expressamente a sua jurisprudência excludente e estabeleça novos parâmetros para a conceituação das entidades de classe de âmbito nacional. Esses critérios devem possibilitar uma abrangência ampla e alcançar todas as entidades que representam interesses acolhidos pela ordem constitucional.
Por isso, defende-se que a extensão do referido conceito apenas às entidades representativas de grupos minoritários - na esteira do entendimento adotado na ADPF 527 - revela-se insuficiente, na medida em que outros setores provenientes da sociedade civil organizada também merecem a devida legitimação. A amplitude dessa nova interpretação aqui sugerida será melhor abordada nas considerações finais desta pesquisa.
3.2 O julgamento do Agravo Regimental na ADPF 262 e o indicativo de mudança
Embora o plenário da Suprema Corte ainda não tenha categoricamente procedido ao overruling do precedente citado no tópico 2.2 deste trabalho, que delimita o conceito de “entidade de classe de âmbito nacional” às organizações que representam interesses de categorias econômicas ou profissionais, a discussão travada no julgamento do Agravo Regimental na ADPF 262 indica que essa guinada jurisprudencial está próxima, por se tratar de medida acolhida por vários Ministros do STF.
Por outro lado, na ADPF em evidência, o colegiado superou a necessidade de que as entidades legitimadas representem uma categoria homogênea. Dessa forma, no julgamento do Agravo, realizado no dia 17/10/2018, conferiu-se permissão para a propositura da predita ação constitucional a uma entidade que engloba categorias econômicas distintas.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 262 foi proposta pela Confederação das Associações Comerciais do Brasil (CACB) contra atos do Poder Público que disciplinaram a penhora de dinheiro por meio eletrônico. Por meio de decisão monocrática publicada em 01/02/2013, o então Relator do feito - Ministro Ricardo Lewandowski - negou seguimento à ação, sob o fundamento de que a referida entidade é “constituída, genericamente, por filiados heterogêneos, que desenvolvem diferentes atividades econômicas, circunstância que impede sua caracterização como representante de uma classe bem definida e distinta de todas as demais”.
Posteriormente, o Agravo Regimental interposto pela entidade foi provido, por unanimidade, tendo o Colegiado reformado o provimento jurisdicional anterior. O acórdão[18] acabou por reconhecer a legitimidade ad causam da CACB para ajuizar a mencionada ação.
Algumas características peculiares da CACB - como a sua expressividade histórica e a sua imensa representatividade - foram objeto de destaque em diversas passagens. Apesar disso, por um imperativo isonômico e também em decorrência da própria argumentação dos Ministros, depreende-se que o colegiado efetivamente superou a imposição geral de que as entidades de classe legitimadas sejam apenas as representativas de uma categoria homogênea.
Logo, a partir de então, abriu-se a jurisdição constitucional a novos atores, o que pode ser compreendido como um avanço. Essa abertura, todavia, deve ser celebrada apenas se entendida como o primeiro passo na evolução jurisprudencial do Supremo em termos de legitimação, uma vez que o acesso ao controle abstrato permanece restrito às entidades de classe que representam categorias profissionais ou econômicas. De todo modo, convém analisar as manifestações empreendidas pelos Ministros do STF no julgamento do Agravo Regimental na ADPF 262, a fim de se perquirir a real inclinação da Corte quanto à ampliação da legitimidade às entidades representativas de outros segmentos da sociedade civil.
De início, aponta-se que os Ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski estavam ausentes na referida sessão. Portanto, apenas 8 (oito) Ministros expressaram suas convicções sobre o tema. Dos julgadores presentes, 5 (cinco) deles, além de admitirem a legitimidade ad causam da CACB e refutarem o requisito da homogeneidade, também demonstraram o seu apreço por uma maior democratização do acesso à jurisdição constitucional. Senão vejamos.
No seu voto, o Ministro Luiz Fux sustentou que, nos moldes da doutrina estrangeira, “o que se preconiza é que se deve conferir legitimidade a toda entidade que veicule uma pretensão séria e que tenha reflexos sobre a ordem econômica e social”. Já a Ministra Cármen Lúcia apontou que, com a apresentação desse tema, finalmente deu-se ”mais um passo no sentido de uma ampliação que propicia maiores condições de verificação de todos os temas de interesse do Brasil, da sociedade”. Por sua vez, a Ministra Rosa Weber afirmou que “está na hora sim de alargarmos a compreensão que, talvez por questão de política judiciária, tenha levado esta Corte a uma visão mais restritiva”.
Da mesma forma, o Ministro Marco Aurélio observou que “passados 30 anos, sinal dos ares democráticos da Carta de 1988”. E concluiu: “vejo frutificar abertura maior, que sempre preconizei. Tem-se o acesso ao Judiciário, garantido pela Constituição Federal”. Por fim, as declarações do Ministro Roberto Barroso também foram ao encontro dessa abertura: “havendo representatividade adequada na entidade que propõe a ação, justifica-se o alargamento. Porém, o que é inequívoco é que temos flexibilizado este quesito de legitimação ativa, até mesmo porque as restrições que a jurisprudência criou não estão previstas na Constituição, foram criações jurisprudenciais, desde a pertinência temática até a exigência de que fosse representativo de uma classe econômica, até a exigência de que houvesse homogeneidade de todos os integrantes da sociedade”.
Por outro lado, os Ministros Edson Fachin, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes concentraram suas reflexões no caso concreto, sem adiantar as suas posições sobre um eventual elastecimento do conceito de “entidade de classe de âmbito nacional” às demais organizações da sociedade civil. Mas é certo que as referidas autoridades tampouco demonstraram nos seus votos algum tipo de oposição a essa abertura.
Por todo o exposto, espera-se que o Supremo Tribunal Federal, por meio de uma posição colegiada, supere definitivamente a sua jurisprudência excludente em relação ao direito de propositura das entidades não relacionadas às atividades econômicas ou profissionais. Como já demonstrado, a ampla legitimação mostra-se adequada sob os âmbitos normativo e descritivo, e evita que a averiguação da legitimidade ativa ad causam para o controle concentrado responda a casuísmos interpretativos - ao invés de um necessário senso de justiça.
Esse trabalho abordou a legitimidade das entidades de classe de âmbito nacional no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Criticou-se, sob os mais diversos pontos de vista, a restrição interpretativa do STF que exige a representação de interesses econômicos ou profissionais para que as entidades mencionadas possam ingressar com ações constitucionais. Apontou-se, também, os prejuízos decorrentes dessa interpretação para a qualidade da jurisdição constitucional no Brasil.
Sob outra vertente, a teoria dos diálogos institucionais e a teoria dos diálogos sociais foram sugeridas como meios de se conciliar uma eficaz proteção de direitos com uma construção coletiva do melhor sentido das normas constitucionais, na qual a ampla possibilidade de acesso ao controle concentrado se incluí.
Demonstrou-se ainda que recentes decisões judiciais apontam para uma iminente guinada jurisprudencial do Supremo com a consequente revisão da sua jurisprudência restritiva sobre a legitimidade das entidades de classe de âmbito nacional. Contudo, se já há um mínimo de consenso no STF quanto à necessidade de superação da referida jurisprudência, ainda não se sabe qual será a amplitude interpretativa deste novo entendimento da Corte.
Por fim, essa pesquisa defendeu a imprescindibilidade de que a sociedade civil seja compreendida como verdadeira agente no processo interpretativo da Constituição - e não como mera espectadora -, de modo que se propõe a seguinte tese interpretativa ao Supremo Tribunal Federal: as entidades de classe de âmbito nacional autorizadas a promover o controle concentrado de constitucionalidade são todas aquelas que, cumprindo os requisitos da pertinência temática e da abrangência nacional, representam quaisquer interesses protegidos pela ordem constitucional.
Dentro do conceito retromencionado incluem-se, portanto, as entidades representativas de minorias, as entidades de representação dos estudantes, as entidades que defendem direitos fundamentais e todas as demais entidades provenientes da sociedade civil organizada, desde que seus objetivos sejam lícitos e amparados pela Constituição Federal de 1988. Conforme já propunha um antigo filósofo, a solução para os males da democracia é e sempre será a incansável busca por mais democracia. É preciso dar voz à sociedade civil também na jurisdição constitucional.
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[1] As origens do controle jurisdicional de constitucionalidade nos Estados Unidos da América remontam ao caso Marbury v. Madison, julgado em 1803 pela Suprema Corte. Desse modo, a despeito da inexistência de autorização constitucional explícita, o “Judicial Review” foi desenvolvido naquele país por meio de uma construção jurisprudencial.
[2] Sobre o assunto, conferir: Waldron, J. (2006). “The Core of the Case against Judicial Review”. Yale Law Journal, 115, 1346-1406.
[3] A propósito, desde a Constituição Republicana de 1891, o ordenamento jurídico brasileiro permite o controle jurisdicional de constitucionalidade realizado de modo difuso e incidental.
[5] Sobre o assunto, importa registrar o debate travado no julgamento da Reclamação nº 849 (STF, Rel. Min.. Adalício Nogueira, julgada em 10/03/71), proposta pelo Movimento Democrático Brasileiro em face do despacho do Procurador-Geral da República que mandou arquivar petitório em que aquele formulou arguição de inconstitucionalidade em abstrato do Decreto-Lei 1.077, de 26/10/70, que instituiu a censura prévia na divulgação de livros e periódicos, nociva à segurança nacional. Do inteiro teor do citado julgamento, extrai-se do voto vencido do Min. Adauto Cardoso as seguintes inquietações advindas da exclusividade de legitimidade ativa conferida ao Chefe do Ministério Público Federal: ”Tenho a observar-lhe que de janeiro de 70 até hoje não surgiu e certamente nem surgirá, ninguém, a não ser o partido político da oposição, que a duras penas cumpre o seu papel, a não se ele, que se abalance a arguir a inconstitucionalidade do decreto-lei que estabelece a censura prévia”.
[11] Art. 511. É lícita a associação para fins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses econômicos ou profissionais de todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou profissão ou atividades ou profissões similares ou conexas. (Grifo Nosso).
[12] Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
[13] A tendência de objetivação do controle difuso de constitucionalidade decorre da criação do requisito da repercussão geral. Por meio desse filtro, o STF seleciona e julga apenas as ações que envolvem questões constitucionais relevantes e que ultrapassam os interesses subjetivos daquele processo específico. Além disso, a decisão final deve ser seguida pelas instâncias inferiores em casos semelhantes.
[18] EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. CONFEDERAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES COMERCIAIS E EMPRESARIAIS DO BRASIL - CACB. ENTIDADE DE ÂMBITO NACIONAL. CARACTERIZAÇÃO. ATUAÇÃO TRANSREGIONAL. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. 1. O acesso à jurisdição constitucional não deve ser visto de maneira a levar a efeito uma compreensão que, na interpretação constitucional, prestigie o sentido que dificulte ou impossibilite o exercício dessa importante atribuição constitucional. 2. As Confederações Nacionais são entidades de alcance nacional e atuação transregional dotadas de expresso mandato para representação de interesses de setores econômicos, comportando diversas classes. 3. A Confederação das Associações Comerciais do Brasil - CACB pode ser considerada, pela sua história e representatividade, entidade de âmbito nacional, para os efeitos do inciso IX do art. 103 da Constituição da República. 4. Agravo regimental provido, para dar seguimento à arguição de descumprimento de preceito fundamental, reconhecida a Confederação das Associações Comerciais do Brasil - CACB como legitimada ativa para a presente ação.
Advogado. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UNB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MATHEUS GEORGE GOUVêA DA NóBREGA, . Legitimidade ativa das entidades de classe de âmbito nacional: a voz da sociedade civil na jurisdição constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2022, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60687/legitimidade-ativa-das-entidades-de-classe-de-mbito-nacional-a-voz-da-sociedade-civil-na-jurisdio-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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