O artigo 196 da Constituição Federal estabeleceu o direito à saúde à todos os membros da sociedade, pelos seguintes termos “a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas, que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação.
O direito a saúde foi classificado como um direito subjetivo constitucionalmente tutelado. Essa garantia ampla do artigo 196 da CF impacta sobremaneira a judicialização da saúde, interferindo nas políticas públicas de saúde e ocasionando um número extremamente elevado de ações judiciais, mais de 2 milhões no último relatório CNJ de 2019.
Um dos temas julgados recentemente pelo STF é o tema 1033 que trata do ressarcimento de hospitais, tratamentos particulares na impossibilidade de atendimento pelo SUS, cuja ementa se transcreve:
Direito constitucional e sanitário. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Impossibilidade de atendimento pelo SUS. Ressarcimento de unidade privada de saúde.1. Em razão da ausência de vaga na rede pública, decisão judicial determinou o atendimento de paciente em hospital privado, às expensas do Poder Público. Discute-se, no presente processo, o critério a ser utilizado para esse ressarcimento. 2.O acórdão recorrido fixou o reembolso no montante cobrado pelo estabelecimento hospitalar privado, que considerou ser o valor praticado no mercado. O Distrito Federal, por sua vez, postula no presente recurso que o valor do ressarcimento tenha como limite a Tabela do SUS. 3. A Constituição admite duas modalidades de execução de serviços de saúde por agentes privados: a complementar e a suplementar. A saúde complementar designa ações e serviços de saúde que a entidade privada pratica mediante convênio com o Poder Público e sujeitando-se às regras doSUS.4. A saúde suplementar, por sua vez, abrange atividades de profissionais de saúde, clínicas, hospitais particulares e operadoras de planos de saúde que não têm uma relação negocial com o Poder Público, sujeitando-se, apenas, à regulação da Agência Nacional de Saúde ANS.5. O ressarcimento, segundo as diretrizes e valores do SUS, a um agente privado que não aderiu ao sistema público pela celebração de convênio, viola a livre iniciativa (CF, art. 170, caput) e a garantia de propriedade privada (CF, arts. 5º, XXII e 170,II). Por outro lado, a execução privada do serviço de saúde não afasta sua relevância pública (CF,art. 177).6. Diante disso, é razoável que se adote, em relação ao ressarcimento da rede privada, o mesmo critério utilizado para ressarcimento do Sistema Único de Saúde por serviços prestados a beneficiários de planos de saúde. Até dezembro de2007, tal critério era a Tabela Única Nacional de Equivalência de Procedimentos TUNEP. Após, passou a ser a Tabela do SUS, ajustada de acordo com as regras de valoração do SUS e multiplicada pelo Índice de Valoração do Ressarcimento IVR.7. Os valores de referência constantes da TUNEP, bem como o IVR multiplicador da Tabela do SUS, são fixados pela ANS, que tem o dever de atuar como árbitro imparcial do sistema. Naturalmente, sempre poderá ser feita uma avaliação da existência efetiva e razoabilidade dos tratamentosadotados.8. Recurso extraordinário provido em parte, com afixação da seguinte tese de julgamento: “O ressarcimento de serviços de saúde prestados por unidade privada em favor de paciente do Sistema Único de Saúde, em cumprimento de ordem judicial, deve utilizar como critério o mesmo que é adotado para o ressarcimento do Sistema Único de Saúde por serviços prestados a beneficiários de planos de saúde”. (RE 666094, Relator(a):ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em30/09/2021, PROCESSO ELETRÔNICOREPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-020DIVULG 03-02-2022 PUBLIC 04-02-2022)”.
No caso concreto o autor necessitava com urgência de leito de UTI e não havia disponibilidade na rede pública do Distrito Federal. Com o ingresso da ação o autor conseguiu uma liminar para ser internado em uma instituição particular as expensas do Poder Público.
O juízo de primeira instância entendeu que o Distrito Federal deveria pagar ao hospital particular o mesmo valor que seria pago para a rede credenciada do ente público. O Tribunal de Justiça reformou a decisão com o seguinte fundamento:
“Entendo que os valores a serem pagos pelo Distrito Federal não devem sofrer limitação da tabela SUS, sobrelevando notar, no ponto, que, ao contrário do que se passa com a instituições privadas que participam de forma complementar do sistema único de saúde (art. 199, p.1. da CR), no caso a autora não firmou qualquer contrato ou convênio com o Distrito Federal, tendo em verdade, sido compelida, por decisão judicial, a internar e a dispensar o devido tratamento médico ao paciente.
Pensar de maneira diversa terminaria por prejudicar o hospital particular, que, apesar de haver contribuído com o ente público, suprindo uma deficiência da rede pública de saúde, receberia menos do que o esperado pelos seus serviços, sobretudo porque, para atender ao sujeito beneficiário da tutela antecipada, deixaria de atender outra pessoa nas condições de mercado.”
O Distrito Federal então interpôs o Recurso Extraordinário 666094 com o fundamento de que a imposição judicial de atendimento em unidade de saúde privada, se equipara a contratação de instituições privadas no SUS. Assim, os valores pagos deveriam ser estabelecidos pela Tabela SUS, como havia sido decidido na sentença inicialmente proferida.
Não são raros os casos em que o Estado de São Paulo enfrenta parecidos com o narrado. Muitas vezes o autor já se interna em hospital particular por sua livre vontade, depois não consegue arcar com a conta da internação e pede liminar e ressarcimento de todo o período. Os prejuízos são enormes pois a conta repassada pelo hospital particular é toda discriminada, desde o algodão utilizado, o remédio ou qualquer mínimo insumo ou atendimento tem a sua fatura cobrada muitas vezes em valores muito acima do mercado.
O método de cobrança de uma conta SUS difere das apresentadas por outras entidades, pois não há a discriminação de gastos dos itens que compõe esta conta, apenas o procedimento principal (tratamento) ao qual o paciente foi submetido remunerando a conta de forma agrupada, já considerando embutido o preço de medicamentos e descartáveis por exemplo. A princípio, isso gera uma discrepância grande de valores, mas os valores cobrados pelas entidades privadas também costumam ser exarcebados e fora de mercado.
Com tais fundamentos a Advocacia Geral da União atuou como amicus cúriae no referido processo juntando auditoria do Tribunal de Contas do Mato Grosso que verificou o superfaturamento de mais de R$8,6 milhões quanto aos valores cobrados por hospital particulares para atender pacientes do SUS em demandas judiciais. Segundo a AGU: “foram apurados apenas 28 casos de um universo de mais de 10.000 entre 2014 e 2016. Pelo levantamento, em um deles a conta de R$2,1 milhões foi superfaturada em mais de R$1,1 milhão, mais que o dobro do praticado no mercado.”
O Supremo tribunal Federal então adotou uma terceira via na solução do Recurso Extraordinário. O ressarcimento não se daria pela Tabela SUS (considerando a sua desatualização ao valor de mercado) nem tampouco o preço unilateralmente arbitrado pela instituição particular, que na maioria dos casos é mais caro que o praticado no mercado.
Para construir a terceira via o Ministro Luiz Roberto Barroso, Relator do Recurso definiu seu voto em três partes.
Na primeira contextualizou a judicialização da saúde como uma decorrência da criação do Sistema Único de Saúde, e da inviabilidade de atender todo o contingente de usuários. Antes de 1988 o sistema público atendia cinquenta milhões de pessoas, depois de 1988 passou a atender 145 milhões. Nessa primeira fase da judicialização, as tutelas eram sempre deferidas e os hospitais tinham que fazer milagre para conseguir vagas que não existiam. Nesse contesto o ilustre ministro coloca o caso concreto.
Na segunda parte do seu voto, há a distinção entre os modelos de prestação de serviço público de saúde por agentes privados: a saúde complementar e a saúde suplementar. A saúde complementar atua pelo SUS mediante convênio ou ato de natureza negocial. Assim, se o hospital adere a saúde complementar sua remuneração esta prevista na Lei 8080/90 que dispõe sobre a tabela SUS.
A saúde suplementar atua sobre o regime da livre iniciativa, não possui convênio com o SUS, são agentes como as operadoras de planos de saúde, os hospitais particulares, clínicas dentre outros.
Na terceira parte do seu voto o Ministro desvenda qual é a natureza do serviço prestado pela entidade particular para definir o critério do ressarcimento.
Quando um juiz profere uma liminar para que um hospital preste um serviço de saúde ele não está aderindo ao SUS. Para o Ministro Barroso seria o equivalente a uma “requisição administrativa” prevista no artigo 5, XXV da Constituição:
“XXV- no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;”
Ainda, o artigo 15, XIII, da Lei 8080 prevê:
Art. 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as seguintes atribuições:
(...)
XIII- para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização;
Seria, portanto, um caso de intervenção estatal na propriedade privada. Em relação ao ressarcimento, não seria justo a indenização pela tabela SUS uma vez que as entidades de saúde suplementar não celebraram nenhum convênio com o ente público, nem tampouco a livre fixação do preço por se tratar de uma situação de necessidade urgente e coletiva.
No ordenamento jurídico pátrio existe uma regra legal para o ressarcimento para o SUS pelo uso de hospitais públicos por operadoras de saúde. A situação inversa do caso analisado.
Segundo o artigo 32 da Lei 9656/98:
“Art. 32. Serão ressarcidos pelas operadoras dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, de acordo com normas a serem definidas pela ANS, os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde - SUS. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)”
O plano de saúde deve reembolsar o SUS pela tabela fixada pela ANS. A agência Nacional de Saúde é uma agência reguladora que regula os interesses da saúde pública, dos consumidores, das empresas privadas que atuam no setor. Para o Ministro Barroso se existe um critério para a reembolso ao SUS nada mais justo que esse mesmo critério seja aplicado a situação contrária.
A Resolução Normativa DC/ANS 185/2008 estabelece o critério de ressarcimento: índice de valoração do ressarcimento( IVR) estipulado em 1,5 pelo valor lançado no documento SUS.
O Ministro Ricardo Lewandowski em seu voto solicitou a possibilidade de que o hospital particular comprove e justifique detalhadamente caso as despesas tenham sido maiores que os valores obtidos pela tabela da ANS. O Ministro Nunes Marques ressaltou a importância do pagamento ser feito com prévia indenização sem se submeter ao regime de precatórios para não onerar o ente privado.
Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal concluiu essa importante decisão do tema 1033 gerando uma proposta razoável ,justa e compatível com a legislação pátria não onerando em demasia os entes públicos nem punindo os entes privados que atuam no setor.
Bibliografia
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma).Recurso Extraordinário 666.094 Distrito Federal. "O ressarcimento de serviços de saúde prestados por unidade privada em favor de paciente do Sistema Único de Saúde, em cumprimento de ordem judicial, deve utilizar como critério o mesmo que é adotado para o ressarcimento do Sistema Único de Saúde por serviços prestados a beneficiários de planos de saúde". . Recorrente:Distrito Federal. Recorrido:Unimed Brasília Cooperativa de trabalho médico. Relator: Min. Roberto Barroso,30 de setembro de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4178086. Acesso em: 17 dez 2022.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, [2016]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 mar. 2018.
BRASIL. Lei no 8.080/90, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [1990]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em: 5 dez 2022.
BRASIL. Lei no9656/98:, de13 de julho de 1998. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Brasília, DF: Presidência da República, [1990]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em: 5 dez 2022.
Procuradora do Estado de São Paulo. Formada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito do Estado pela Universidade Izabela Hendrix e ESPGE e Pós Graduanda em Direito e Economia pela Escola Superior da Procuradoria do Estado de São Paulo – ESPGE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, claudia beatriz maia. O Tema 1033 e o ressarcimento das entidades privadas pelo SUS. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 dez 2022, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60716/o-tema-1033-e-o-ressarcimento-das-entidades-privadas-pelo-sus. Acesso em: 23 dez 2024.
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