Resumo: O presente artigo analisa a recente mudança de jurisprudência dos Tribunais Superiores brasileiros (STF e STJ), além da alteração textual operada pela Lei 13.964/19, em relação ao art. 112 da Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84), com a consequente superação do entendimento ainda sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça no enunciado nº 491 e que veda a progressão de regime do preso do fechado diretamente para o aberto, sem passar pelo semiaberto, a chamada “progressão per saltum”.
Abstract: This article analyzes the recent change of jurisprudence of the brazilian Superior Courts (STF and STJ), in addition to the textual alteration operated by Law 13.964/19, related do the art. 112 of the Law of Criminal Executions (Law No. 7.210 / 84), with the consequent overcoming of the understanding still summed up by the Superior Court of Justice in the enunciation nº 491, that forbides the progression of the prisoner regime diretcly from the closed to the open without going through half open, the so-called “per saltum progression”.
Palavras-chave: execução penal; progressão de regime per saltum; Súmula 491 do STJ.
Keywords: penal execution; regimen progression per saltum; STJ draft 491.
Sumário: Introdução. 1. A Súmula 491 do STJ e vedação à progressão per saltum. 2. Superação (Overruling) da Súmula 491. 2.1. A partir da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 2.2. A partir das mudança operadas pela Lei 13.964/19. 2.3. Conjugação das mudanças jurisprudenciais e legislativas em favor da progressão per saltum. 3. Discussão atual: recursos repetitivos e Tema 1.165. Conclusão. Referências.
Introdução
Talvez um dos posicionamentos jurisprudenciais que se poderia reputar entre os mais consolidados no âmbito do Superior Tribunal de Justiça dizia respeito à vedação à chamada progressão de regime prisional per saltum, consistente na passagem do condenado do regime fechado diretamente ao regime aberto. Tal entendimento ainda está registrado na Súmula daquele tribunal, sob o verbete nº 491, nos seguintes termos: “É inadmissível a chamada progressão per saltum de regime prisional.”
A vetusta jurisprudência do Tribunal da Cidadania, contudo, parece ter cedido espaço a uma nova interpretação permissiva da progressão per saltum, especialmente a partir da alteração do art. 112 da Lei de Execuções Penais (LEP) pela Lei 13.964/19 e da consolidação do entendimento, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, acerca da natureza declaratória da decisão judicial que reconhece o direito do apenado à progressão de regime e, via de consequência, dos seus efeitos retroativos à data do cumprimento dos seus requisitos legais, com importantes efeitos sobre a data-base para a progressão seguinte.
É sobre essa mudança da LEP e da jurisprudência do STF e, especialmente, do STJ sobre o assunto, autêntico caso de superação (overruling) em relação ao entendimento outrora sedimentado, que trataremos nas linhas seguintes.
1.A Súmula 491 do STJ e a vedação à progressão per saltum
Como sabido, em 8/8/2012, o Superior Tribunal de Justiça editou, em sua Súmula, o enunciado nº 491, dispondo que “É inadmissível a chamada progressão per saltum de regime prisional.” (TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08/08/2012, DJe 13/08/2012).
O referido enunciado teve como questão principal a interpretação do art. 112 da Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84, ainda com a redação dada pela Lei 10.792/03), que assim dispunha, antes da alteração feita pela Lei 13.964/19:
Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.
Assim, para progredir do regime fechado para o semiaberto, além de ostentar bom comportamento carcerário, o apenado tinha de cumprir, pelo menos, um sexto do tempo de sua condenação naquele primeiro regime. Sucessivamente, para progredir do semiaberto para o aberto, precisaria cumprir mais um sexto do tempo remanescente, também com bom comportamento.
Até aí, nada demais. O problema efetivamente surgia quando, tendo cumprido, no regime fechado, os requisitos legais para a progressão, o apenado não era transferido ao regime semiaberto, em razão da mora judiciária ou administrativa. E mais problemas ainda haveriam de surgir quando, durante esse tempo em que permaneceu ilegalmente no regime fechado (quando já deveria estar no semiaberto), cumpria mais um sexto de sua pena, isto é, tempo suficiente para uma nova progressão, desta vez ao regime aberto.
A situação que se apresenta em tais casos, portanto, é a seguinte: se o apenado tivesse sido transferido, no tempo certo, do regime fechado para o semiaberto, já teria cumprido tempo de pena suficiente, no regime intermediário, para sua progressão ao aberto. Ou seja, se o direito tivesse sido observado à risca, o apenado já estaria no regime mais brando, contudo, em razão da mora judicial ou administrativa, ainda está no regime mais gravoso, para além do tempo que deveria.
Surge, então, a questão: o tempo que o apenado ficou indevidamente no regime fechado – posterior à data em que preencheu os requisitos legais para a progressão ao regime intermediário – pode ser contado como tempo de cumprimento do regime semiaberto, para efeitos de progressão ao aberto?
A doutrina sempre classificou o direito do apenado à progressão de regime como um direito público subjetivo, exigível do Estado a partir do cumprimento dos requisitos legais (MARCÃO, 2022, p. 335). Ademais, não se poderia punir o condenado por omissão exclusiva do Poder Judiciário ou da Administração Pública penitenciária, especialmente considerando-se os princípios da individualização da pena e da razoável duração do processo, nos termos da Constituição Federal, artigo 5º, incisos XLVI e LXXVIII (ROIG, 2022, RB-1.4, 1.11 e 11.3).
Assim, para a doutrina, a interpretação que melhor resolvia o problema da mora estatal em reconhecer e concretizar o direito do apenado à progressão de regime era a que considerava a decisão judicial concessiva da progressão uma decisão declaratória e, portanto, com efeitos retroativos (ex tunc) à data da implementação dos requisitos legais (MAIA, 2021, p. 119-121).
Sob tal entendimento, o tempo de cumprimento da pena no regime fechado, após o cumprimento dos requisitos objetivos e subjetivos para progressão ao regime semiaberto, isto é, de forma ilegal e prejudicial ao condenado, deveria ser computado como efetivo tempo de cumprimento de pena no regime semiaberto, contado, especialmente, para a progressão seguinte ao regime aberto (LIMA, PERALLES, 2002, p. 49; SANTOS, 2005, p. 57). E se ocorresse de alguém ficar preso, no regime fechado, por tempo suficiente tanto para a progressão ao regime semiaberto quanto deste para o aberto, não haveria óbice à sua progressão do regime fechado diretamente para o aberto, ocorrendo, assim, a chamada progressão per saltum (BRITO, 2022, p. 739-743). Somente assim, os direitos subjetivos do preso estariam resguardados contra a omissão do Estado e efetivados os princípios fundamentais da individualização da pena e da razoável duração do processo (ROIG, 2022, RB-1.11).
Não obstante, o entendimento do STJ era em sentido diametralmente oposto. Para o Tribunal, a decisão judicial concessiva da progressão não teria natureza declaratória, mas constitutiva. Desse modo, geraria efeitos tão somente a partir de sua publicação, não retroagindo à data da implementação dos requisitos legais pelo apenado. Por essa interpretação, o tempo mínimo de cumprimento de pena (um sexto) no semiaberto, para progressão ao aberto, só poderia ser contado a partir da data da efetiva transferência do preso para o regime intermediário, não podendo ser computado, para efeitos de progressão, o tempo que ficou a mais no regime fechado. Nesse sentido, eram os conteúdos das decisões do STJ sobre o tema:
O sistema progressivo de execução das penas privativas de liberdade expressamente veda que o condenado que cumpre pena em regime fechado seja transferido diretamente para o regime aberto, sem que antes evolua para o regime intermediário (Precedentes). [...] (HC 46.478 PR, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 26/04/2007, DJe 04/08/2008)
Assim, só se pode considerar uma data que seja marco para a progressão para o regime aberto, aquela em que efetivamente corresponda ao início do cumprimento da pena no regime semiaberto, que é a data da decisão que beneficiou o paciente com sua transferência ao regime intermediário. (HC 151.268/PR, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 20/04/2010, DJe 10/05/2010)
Devem ser respeitados os períodos cumpridos em cada regime prisional. Nem mesmo o fato de a paciente ter cumprido tempo suficiente para os dois estágios no regime fechado autoriza a progressão direta do regime fechado para o aberto. [...]" (HC 175.477 SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 15/02/2011, DJe 09/03/2011)
Portanto, de acordo com aquele entendimento do STJ, a melhor interpretação do art. 112 da LEP seria no sentido de que cada fração de 1/6 para progressão teria de ser cumprida, necessariamente, no regime anterior, não se podendo considerar cumprido o tempo de um regime como se fosse de outro, ainda que mais gravoso. Desse modo, o tempo de pena cumprida no regime fechado, mesmo depois de preenchidos os requisitos legais para progressão ao regime semiaberto, não poderia ser considerado como tempo de cumprimento ficto do regime intermediário, para progressão ao aberto.
Em outras palavras, de nenhum modo poderia o apenado progredir do regime fechado direto para o aberto, não importando se o atraso na sua progressão decorria de omissões ou erros do Poder Judiciário ou da Administração Pública penitenciária. Essa interpretação restritiva do art. 112 da LEP seria o que ficou conhecido como a vedação à progressão per saltum.
Com base nesses fundamentos e na qualidade do STJ como Corte legitimada à unificação da interpretação da legislação federal infraconstitucional, nos termos do art. 105, III, “c”, da Constituição Federal, editou-se a Súmula 491 e as instâncias ordinárias passaram a adotar o entendimento de que o preso não poderia, em nenhuma hipótese, progredir do regime fechado diretamente para o aberto, sem passar, antes, pelo regime semiaberto e nele cumprir a fração legal de tempo da pena remanescente.
2.Superação (overruling) da Súmula 491 do STJ
2.1 A partir da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
O entendimento consolidado e sumulado, no entanto, começou a ceder espaço a uma nova interpretação do art. 112 da LEP, desta vez, à luz do princípio constitucional da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF), realizada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 115.254/SP, em 15/12/2015, cuja ementa restou assim redigida (grifos nossos):
Habeas Corpus. 2. Execução Penal. Progressão de regime. Data-base. 3. Nos termos da jurisprudência do STF, obsta o conhecimento do habeas corpus a falta de exaurimento da jurisdição decorrente de ato coator consubstanciado em decisão monocrática proferida pelo relator e não desafiada por agravo regimental. Todavia, em casos de manifesto constrangimento ilegal, tal óbice deve ser superado. 4. Na execução da pena, o marco para a progressão de regime será a data em que o apenado preencher os requisitos legais (art. 112, LEP), e não a do início do cumprimento da reprimenda no regime anterior. 5. A decisão que defere a progressão de regime tem natureza declaratória, e não constitutiva. 6. Deve ser aplicada a mesma lógica utilizada para a regressão de regime em faltas graves (art. 118, LEP), em que a data-base é a da prática do fato, e não da decisão posterior que reconhece a falta. 7. Constrangimento ilegal reconhecido, ordem concedida.
(HC 115.254/SP, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 15/12/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-036 DIVULG 25-02-2016 PUBLIC 26-02-2016)
Do voto do relator, acompanhado à unanimidade pela Turma, dessume-se que o caso concreto tratou de um apenado que implementou o requisito objetivo para a progressão do regime fechado ao semiaberto em 21/10/2004, mas só o teve reconhecido e aplicado, por decisão do juiz da execução, em 28/9/2007. Dois anos depois, usando como data-base 21/10/2004, sua defesa requereu a progressão para o regime aberto. Em 18/2/2009, foi o pleito deferido também pelo juiz de execução penal. Houve agravo do MP, provido pelo TJSP, para considerar como data-base a data do efetivo início do cumprimento da pena (28/9/2007), ao que se seguiu a impetração de habeas corpus pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo perante o STJ, que negou a ordem, aplicando o seu conhecido entendimento no sentido de que “devem ser respeitados os períodos de tempo a serem cumpridos em cada regime prisional, não sendo admitida a progressão ‘por salto’”, concluindo que “o marco para a progressão ao regime aberto será aquela data que efetivamente corresponda ao início do cumprimento da pena no regime anterior – semiaberto – e não aquela que supostamente lhe daria tal direito”.
A Suprema Corte, no entanto, salientou que o caso dos autos não iria de encontro à clássica vedação da progressão per saltum, e destacou, ainda, que “a decisão do juiz que deferir a progressão, sobrevinda, logicamente, ao preenchimento dos requisitos legais pelo apenado, é declaratória, e não constitutiva” e que “considerar a data-base para benefícios futuros somente como o dia da decisão de deferimento proferida pelo magistrado, seria fazer vista grossa à mora judiciária em detrimento do apenado cumpridor de suas obrigações”, contribuindo a manutenção do vetusto entendimento para a superlotação carcerária. Assentou-se que a mora do Poder Judiciário em analisar e conceder a progressão de regime, em tempo razoável, configura “omissão judicial inaceitável” e “causa constrangimento ilegal ao apenado”. Em arremate, concluiu-se (grifos nossos):
Dessa forma, o marco para a progressão será a data que efetivamente corresponda ao preenchimento dos requisitos legais, e não a do início do cumprimento da reprimenda no regime anterior, sob pena de constrangimento ilegal. Essa é a melhor leitura da regra explicitada pelo artigo 112 da Lei de Execução Penal, entendendo a decisão judicial como declaratória do direito do apenado, com base no mesmo raciocínio aplicado à penalidades disciplinares decorrentes de falta grave, conforme previsão do artigo 118 do mesmo diploma legal. Dessa forma, faz-se um sistema lógico e justo.
Por todo o exposto, voto no sentido de conceder a ordem para restabelecer a decisão do Juízo das Execuções Penais que deferiu a progressão de regime usando como data base 21.10.2004.
Essa decisão do Supremo teve repercussão direta sobre a jurisprudência do STJ, que, curvando-se à interpretação do art. 112 da LEP à luz do inc. LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal, passou a comungar do entendimento de que a decisão judicial que reconhece como presentes os requisitos legais para a progressão de regime tem natureza declaratória e, por isso, retroage à data do preenchimento desses requisitos, servindo essa data, ainda, como data-base para o início da contagem do tempo de progressão do semiaberto para o aberto. Esse efeito retroativo, que corrige a mora judiciária em concretizar o direito do apenado à progressão, por outro lado, não impede que o apenado seja transferido do regime fechado ao aberto, sem passar pelo semiaberto, se isso decorreu de omissão ilegal do Poder Judiciário na análise e declaração de tal direito depois de cumpridos os requisitos legais. Essa mudança de entendimento do STJ, em conformidade com o decidido pelo STF, deu-se originalmente no julgamento do AgRg no REsp 1.582.285/MS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 09/08/2016, DJe 24/08/2016, cuja ementa restou assim redigida (grifos nossos):
EXECUÇÃO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PROGRESSÃO DE REGIME. MARCO INICIAL. DATA DA EFETIVA DO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO ART. 112 DA LEP. PRECEDENTE DO STF. AGRAVO PROVIDO.
1. Revisão da jurisprudência da Quinta Turma desta Corte Superior, para adequar-se ao posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no HC 115.254, Rel. Ministro GILMAR MENDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/12/2015, DJe 26/2/2016, no sentido de que a data inicial para a progressão de regime deve ser aquela em que o apenado preencheu os requisitos do art. 112 da Lei de Execução Penal, e não a data da efetiva inserção do reeducando no atual regime.
2. Aplica-se à progressão de regime, por analogia, o regramento da LEP sobre a regressão de regime em caso de falta grave (art. 118), que estabelece como data-base a prática do fato, e não da decisão posterior que reconhece a infração.
3. É de se considerar a necessidade de que os direitos sejam declarados à época adequada, de modo a evitar que a inércia estatal cause prejuízo ao condenado.
4. Agravo regimental a que se dá provimento.
(AgRg no REsp 1.582.285/MS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 09/08/2016, DJe 24/08/2016)
Cabe, por fim, salientar que não se trata de provimento isolado, o que é evidenciado pelos diversos julgados subsequentes, também do STJ, no mesmo sentido, de ambas as turmas criminais (Quinta e Sexta), a exemplo dos seguintes: AgRg no HC n. 713.813/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 22/2/2022, DJe de 25/2/2022; HC n. 692.369/RS, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Quinta Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 15/12/2021; AgRg no HC 462.263/SC, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 13/08/2019; HC 449.221/RJ, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 21/06/2018, DJe 29/06/2018; HC 488.140/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 21/03/2019, DJe 28/03/2019; AgRg no HC 362.554/RS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 20/04/2017, DJe 28/04/2017; entre outros.
2.2 A partir das mudanças operadas pela Lei 13.964/19
Para além da mudança na jurisprudência do STF e do STJ, há também razões legais para se concluir que não há mais nenhuma vedação à progressão per saltum, do regime fechado diretamente para o aberto.
O principal fundamento legal evocado para aplicar-se o entendimento restritivo era a expressa previsão do art. 112 da LEP de que o preso teria de cumprir a fração mínima de pena “no regime anterior”. Com base nisso, entendia-se que, para passar do regime semiaberto para o aberto, o apenado, necessariamente, teria de cumprir um sexto da pena no regime intermediário, já que o regime fechado não era o regime imediatamente anterior ao aberto (BRITO, 2022, p. 719).
Esse fundamento legal, contudo, foi superado pela Lei 13.964/19, que, ao dar nova redação ao art. 112 da LEP, retirou a previsão de que a progressão pressupõe o cumprimento das frações (agora, porcentagens) de pena no regime anterior. Com efeito, a atual redação fala apenas que “A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos:[...]”.
Em razão dessa alteração, a doutrina já conclui pela ausência de qualquer mandamento legal no sentido de que o apenado tenha de, obrigatoriamente, passar pelo regime anterior para progredir ao menos gravoso, especialmente, em caso de mora judiciária ou administrativa, quando a progressão per saltum passa a ser uma medida cogente de salvaguarda dos direitos do preso. Nesse sentido, BRITO (2022, p. 720-721, grifos do original):
Uma primeira observação e que me parece de elevada importância é que a redação do art. 112 não mais prevê que a progressão dependa de certo período de cumprimento “no regime anterior”. Este era inclusive o fundamento para que não se permitisse a progressão por salto, tema inclusive sumulado e que agora me parece não possuir mais amparo legal. Pela redação legal, basta apenas que as porcentagens aconteçam, e se os patamares forem atingidos em cumulação, o preso poderá simplesmente alcançar o regime equivalente.
No mesmo sentido, ROIG (2022, RB-11.3):
Com a modificação do art. 112 da LEP pela Lei n. 13.964/2019, apesar de minoritária, a admissibilidade da progressão por salto parece ter se tornado inquestionável. Se a redação anterior exigia que o apenado cumprisse parcela de sua pena “no regime anterior”, tal óbice legal não mais existe. O atual texto do art. 112 da LEP prevê apenas possibilidade de transferência para “regime menos rigoroso”, não significando a necessidade de passagem pelo semiaberto.
Nesse novo cenário normativo, ainda que possam subsistir interpretações distintas, deve prevalecer aquela mais favorável ao condenado (favor rei), que, sem dúvida, é a que dá ao art. 112 da LEP sentido permissivo da progressão per saltum, ao menos nos casos em que a mora no reconhecimento do direito do preso à progressão somente possa ser imputado ao Estado (ROIG, 2022, RB-11.3) Ademais, incide nesses casos o princípio fundamental da legalidade penal (CF, art. 5º, XXXIX), como instrumento constitucional de proteção do indivíduo e que jamais pode ser subvertido e usado como arma argumentativa em seu desfavor (XIMENES, 2010, p. 132).
Por fim, indispensável destacar uma abordagem conglobante do sistema de cumprimento de penas privativas de liberdade e que inclui tanto a progressão quanto a regressão de regime, de modo a eliminar incongruências entre os institutos. O art. 118, I, da LEP prevê a possibilidade de regressão diretamente do regime aberto para o fechado em caso de condenação por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da pena em execução, torne incabível o regime. Se para a regressão a lei admite o “salto” do regime aberto para o fechado, não se pode extrair dessa mesma lei a vedação do contrário, isto é, da progressão do regime fechado diretamente para o aberto (ROIG, 2022, RB-11.3). Assim, por uma questão de coerência normativa, tanto a regressão quanto a progressão de regime podem ocorrer sem a passagem do apenado pelo regime intermediário, desde que isso seja feito sempre de forma motivada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor, nos termos do art. 112, §2º, e 118, da LEP.
2.3 Conjugação das mudanças jurisprudenciais e legislativas em favor da progressão per saltum
Desse modo, seja pela alteração da jurisprudência, seja pela da Lei de Execuções Penais, uma vez implementados os requisitos legais do art. 112 da LEP, pelo preso, para a progressão de regime, a decisão que reconhece tal direito tem natureza declaratória e, como tal, tem efeitos retroativos (ex tunc) à data do cumprimento dos requisitos objetivo e subjetivo (o que ocorrer por último). Esse marco temporal passa a constituir a data-base ou a data de início para a contagem da fração de do tempo para a progressão do regime semiaberto para o aberto, independentemente de efetiva transferência do preso do regime fechado para o regime intermediário (semiaberto).
Em outras palavras, a mora judiciária em reconhecer a concretização do direito à progressão não pode prejudicar o apenado, o que implica em não se poder considerar como data-base para a progressão subsequente (do regime semiaberto para o aberto) a efetiva transferência do preso para o semiaberto, como ocorria na interpretação conferida pela Súmula 491 do STJ. À luz do art. 5º, inc. LXXVIII, da Constituição Federal (princípio da razoável duração do processo), a data-base para progressão do regime semiaberto para o aberto deve, portanto, ser a data do preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos do art. 112 da LEP, notadamente, cumprimento da fração ou porcentagem correspondente da pena e bom comportamento carcerários; se esses requisitos forem cumpridos e o Judiciário não efetivar a imediata progressão, mantendo o preso em regime mais gravoso (fechado), não pode tal fato impedir, no futuro, a transferência do preso do regime fechado diretamente ao aberto.
Com essa mudança de entendimento do STJ e com a alteração do art. 112 da LEP pela Lei 13.964/19, é possível afirmar que os fundamentos do enunciado da Súmula n. 491 não mais subsistem e que o mesmo está, portanto, superado pela novel jurisprudência, tanto do Supremo Tribunal Federal, quanto do Tribunal da Cidadania, em autêntico caso de overruling, nos termos do art. 489, §1º, e do art. 927, §1º, ambos do NCPC[i] c/c o art. 3º do CPP[ii]. A essa nova interpretação do art. 112 da LEP preferimos nos reportar como a constitucional admissão da progressão retroativa, em contraposição à outrora vedada progressão per saltum.
Compete, agora, à 3ª Seção do STJ, órgão competente para a unificação da jurisprudência criminal do referido tribunal, após o julgamento do REsp Repetitivos selecionados, propor, nos termos dos arts. 926 e 927 do CPC e de seu regimento interno, o cancelamento ou a revisão do enunciado da Súmula nº 491, a fim de adequá-la à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e ao entendimento pacificado em ambas as suas Turmas (Quinta e Sexta) competentes para a interpretação da legislação federal penal, notadamente do art. 112 da Lei nº 7.210/84.
3.Discussão atual: recursos repetitivos e Tema 1.165.
Sedimentada a superação da vedação à progressão per saltum e faltando apenas o cancelamento formal da Súmula 491, o STJ, agora, debruça-se sobre outras questões atinentes à progressão de regime. A discussão mais atual, nessa seara, diz respeito ao julgamento do Tema 1.165, afetado, em 23/8/2022, ao rito dos recursos especiais repetitivos (art.1.036 e ss. do CPC), para julgamento, pela Terceira Seção do STJ, e tendo como representativos da controvérsia o seguintes casos: REsp n. 1.972.187/SP, REsp 1.973.105/SP, REsp 1.976.210/RS, REsp 1.973.589/SP e REsp 1976197/RS. A delimitação da controvérsia é a seguinte:
A decisão que defere a progressão de regime não tem natureza constitutiva, senão declaratória. O termo inicial para a progressão de regime deverá ser a data em que preenchidos os requisitos objetivo e subjetivo descritos no art. 112 da Lei 7.210, de 11/07/1984 (Lei de Execução Penal), e não a data em que efetivamente foi deferida a progressão. Essa data deverá ser definida de forma casuística, fixando-se como termo inicial o momento em que preenchido o último requisito pendente, seja ele o objetivo ou o subjetivo. Se por último for preenchido o requisito subjetivo, independentemente da anterior implementação do requisito objetivo, será aquele (o subjetivo) o marco para fixação da data-base para efeito de nova progressão de regime.
Percebe-se que a natureza declaratória e os efeitos retroativos da decisão que reconhece o direito à progressão e regime estão incluídos na temática a ser julgada pelo rito dos recursos especiais repetitivos. Além disso, também se inclui a data em que preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos para progressão do fechado para o semiaberto, como a data-base para a contagem do tempo para a próxima progressão (do semiaberto para o aberto), e não mais a data em que efetivada a transferência para o regime intermediário. Finalmente, debater-se-á, em definitivo, a situação em que os requisitos objetivo e subjetivo são preenchidos em momentos diversos, o que ocorre, normalmente, com os casos em que se determina a realização de exame criminológico.
Espera-se que, na ocasião do julgamento desses recursos especiais representativos da controvérsia, a Terceira Seção do STJ aproveite a oportunidade para cancelar, de uma vez, a ultrapassada Súmula 491.
Conclusão
O entendimento de que o art. 112 da Lei de Execuções Penais vedava a progressão de regime do preso do fechado diretamente para o aberto, sem passar pelo regime semiaberto, não resistiu à sua confrontação com o princípio da razoável duração do processo previsto no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.
Por esse princípio, entendeu o Supremo Tribunal Federal que a mora judiciária em reconhecer e concretizar o direito público subjetivo do preso à progressão de regime configura omissão judicial inaceitável e constrangimento ilegal ao apenado, não podendo, por isso, constituir-se em óbice à transferência do preso ao regime aberto; ou seja, se, mantido no regime fechado por mais tempo do que a lei permite, tiver cumprido o tempo necessário para as sucessivas progressões ao regimes mais brandos, ainda que não tenha passado um dia sequer em estabelecimento adequado e sob as condições do regime semiaberto.
Em termos práticos, a data de preenchimento dos requisitos legais (objetivos e subjetivos) da progressão do regime fechado para o semiaberto – e não mais a data da decisão judicial que os reconhece como preenchidos – deverá ser a data-base ou a data de início para a contagem do tempo de progresso do regime semiaberto para o aberto. E mais importante: se o Judiciário não reconhecer esse direito em tempo hábil – preferencialmente antevendo a data exata em que ele vai ocorrer e preparando-se para a imediata transferência do preso no dia certo – mantendo, assim, o preso por mais tempo do que o legalmente permitido no regime fechado, não poderá invocar a sua própria mora em prejuízo do apenado, devendo tal tempo ser computado como efetivo cumprimento do regime semiaberto, para efeitos de progressão ao aberto e ainda que isso implique, pelo atraso do provimento judicial, transferência do preso diretamente do regime fechado para o aberto.
Não é preciso muito esforço para concluir que a mudança de entendimento dos Tribunais Superiores é exemplo da mais perfeita técnica de interpretação da lei (de execução) penal à luz das garantias fundamentais constitucionais e que tem e terá importante impacto positivo na redução da superlotação carcerária e na reinserção célere e progressiva do apenado no meio social, mitigando, com isso, o já reconhecido estado de coisas inconstitucional (ADPF 347/DF)[iii] em que se encontra o sistema carcerário brasileiro.
Referências:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 28 out. 2019.
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______. Lei de Execução Penal. Brasília, 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 28 out. 2019.
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ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.
SANTOS, José Carlos Daumas. Princípio da legalidade na execução penal. São Paulo: Manole, 2005.
XIMENES, Rafson. Progressão por salto e racionalidade. In: XIMENES, Rafson; DO PRADO, Daniel Nicory (Coords.). Redesenhando a execução penal. A superação da lógica dos benefícios. Salvador: Faculdade Baiana de Direito, 2010.
[i] Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
[...]
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
[...]
§ 1º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1º , quando decidirem com fundamento neste artigo.
[ii] Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.
[iii] ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016.
Mestre em Direito Processual (2018) e graduado em Direito (2015) pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Coordenador da Câmara de Coordenação e Revisão Criminal da Defensoria Pública da União Defensor público federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BORTOLON, Nícolas Bortolotti. Possibilidade de progressão (per saltum) do regime fechado direto para o aberto e a inevitável superação da Súmula 491 do STJ Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jan 2023, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60736/possibilidade-de-progresso-per-saltum-do-regime-fechado-direto-para-o-aberto-e-a-inevitvel-superao-da-smula-491-do-stj. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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