Resumo: O artigo visa examinar os fundamentos jurídico-constitucionais do direito à segurança social e os impactos das novas plataformas de trabalho digitais na sustentabilidade do sistema constitucional de segurança social. A análise tem por foco a marginalização dos trabalhadores dessas plataformas do sistema de segurança social, suas consequências em longo prazo, e as responsabilidades individuais e públicas pela garantia do direito à segurança social desses trabalhadores. Partindo desse cenário, o trabalho busca examinar experiências estrangeiras e propostas de inclusão no âmbito da União Europeia.
Palavras-chave: segurança social; trabalhadores; plataformas de trabalho digitais; responsabilidade; inclusão.
Abstract: The article aims to examine the legal and constitutional foundations of the right to social security and the impacts of new work digital platforms on the sustainability of the constitutional social security system. The analysis focuses on the marginalization of these workers of the social security system, its long-term consequences, and the individual and public responsibilities for guaranteeing the right to social security for these workers. Based on this scenario, the work seeks to examine foreign experiences and proposals for inclusion within the European Union.
Keywords: social security; workers; work digital platforms; responsibility; inclusion.
1.Introdução
Em Les Misérables (1862), Victor Hugo retrata o cenário de profunda desigualdade social e miséria enfrentadas pela população na França do século XIX. A história da personagem Fantine apresenta especial interesse para o presente trabalho. Fantine foi demitida da fábrica onde trabalhava depois que seu supervisor descobriu que, no passado, ela engravidou de um estudante que a abandonou, e deu à luz a uma filha “ilegítima”, chamada Cosette. Após sua abrupta demissão, Fantine foi relegada a um cenário de absoluta miséria, vendo-se obrigada a vender os próprios cabelos, os dentes e até a se prostituir para obter o mínimo para sua própria subsistência e de sua filha.
Ao analisar a situação da população judaica pobre antes da criação do Estado de Israel (1948), Michael Walzer aponta a dependência do tzedaká,[1] um mandamento moral de caridade judaico que possui duas dimensões, a da filantropia (doação) e da justiça social (obrigação). O autor, então, observa como um sistema de solidariedade unicamente privado, baseado na caridade, pode ser prejudicial para a concretização da justiça social, uma vez que permite aos ricos decidirem quanto e quais bens irão doar e submete os pobres à posição de pedintes.[2]
Embora obviamente distintas, as duas situações narradas possuem um ponto em comum: tanto na França do século XIX, como no caso da população judaica dispersa pelo mundo, não havia um Estado Social que garantisse o direito à segurança social e protegesse os direitos mínimos da população em casos de vulnerabilidade.
Em um ou outro caso, a inexistência de um sistema de segurança social sujeitava os indivíduos, nos momentos de maior necessidade material - seja pelo desemprego, invalidez, velhice - ao total desamparo ou, quando muito, à caridade dos mais ricos.
A segurança social surge, neste sentido, para garantir a todos os indivíduos o mínimo de dignidade existencial, em sua acepção individual, mas também para assegurar o bem-estar social, na sua acepção coletiva.
No presente trabalho, inicialmente, de forma bastante resumida, serão resgatadas as origens e finalidades essenciais da segurança social, como forma de contextualizar as discussões atuais.
Em um segundo momento, o estudo será voltado para o regime constitucional da segurança social na Constituição da República Portuguesa de 1976 e o papel do Estado como provedor do direito à segurança social, assim como a divisão de responsabilidades pela concretização desse direito entre os particulares e Estado. Em seguida, serão expostas as linhas gerais da arquitetura geral do sistema português de segurança social e as críticas quanto à sustentabilidade do sistema.
Ultrapassadas as linhas gerais, serão abordadas as novas relações de trabalho em plataformas digitais, a marginalização dos trabalhadores desse setor do sistema de seguridade social e os possíveis riscos sociais aos quais estão submetidos. Também neste tópico, será examinado o tratamento atual dessas novas relações pelo ordenamento jurídico e as perspectivas futuras.
Por fim, as ideias serão sumarizadas e apresentadas de maneira conjugada, a fim de fazer um panorama da importância da segurança social, a sua proteção constitucional e os desafios trazidos pelas novas tecnologias, que incitam a sua adaptação e revisão constantes.
2.O direito à segurança social: linhas gerais
O desenvolvimento dos sistemas estatais de segurança social está fortemente ligado à revolução industrial, em finais do século XIX, quando os indivíduos deixaram a vida rural, a economia de subsistência, e passaram a trabalhar nas indústrias, por conta de outrem. A mecanização da produção, combinada com longas jornadas de trabalho, e total desregulação das relações trabalhistas, conduziram a um cenário de miséria, exclusão social e insegurança, que exigiam mudanças, seja do ponto de vista individual, seja do coletivo.
Também não se pode olvidar que, nesse mesmo contexto, cresciam os movimentos da classe operária, as reivindicações de sufrágio universal, o desenvolvimento do pensamento marxista e a introdução do princípio do Estado Social no cenário constitucional.[3]
Neste processo, foram desenvolvidos dois modelos básicos de segurança social, o primeiro por Bismark, na Alemanha, e o segundo por Beverigde, no Reino Unido.
O sistema alemão proposto por Bismark foi revolucionário para a época, na medida em que criou um seguro obrigatório e imprimiu ao Estado o papel de promotor do bem-estar da coletividade e principalmente dos mais necessitados. A reforma bismarckiana criou o seguro doença (1883), o seguro de acidente de trabalho (1884) e o seguro de invalidez e velhice (1889). Contudo, a proteção atingia parcela restrita da sociedade,[4] ou seja, não era universal.
Esse modelo tem matriz comutativa, isto é, visa assegurar a cada trabalhador, nos períodos de inatividade, uma renda em contrapartida às suas contribuições. Em outras palavras, o sistema se baseia na máxima “à chacun selon son travail”.[5] O sistema bismarckiano, assim, promoveu uma integração do proletariado, ou da comunidade do trabalho, mas deixou à margem aqueles que não estavam nela inseridos.
Após a emergência do capitalismo e a crise da bolsa de Nova Iorque de 1929, o modelo de Bismark, pela sua limitação, mostrou-se insuficiente para fazer frente a todas as mazelas sociais que assolavam a população. Esse contexto foi agravo pela crise social verificada durante a Segunda Guerra Mundial, o que levou o Sir Beveridge, em 1942, a propor um novo sistema de segurança social, que tinha como objetivo garantir uma segurança social universal e uniforme,[6] que visava a proteção de todos os cidadãos, perante todos os riscos de necessidade, incluindo os cuidados de saúde, desde o nascimento até a morte.[7]
Esse modelo ganhou mais força após a Segunda Guerra Mundial, momento de grave crise social e grande ascensão dos direitos humanos, nomeadamente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),[8] e de afirmação do papel do Estado como responsável pela concretização desses direitos.
Neste cenário, o direito à segurança social, apesar de assumir contornos jurídicos diferentes em cada Estado, a depender da estrutura de governo, econômica, social e cultural, surgiu com finalidades similares: garantir um mínimo de segurança material individual e ao mesmo tempo, uma integração coletiva, mais forte ou mais fraca.[9]
A proteção da segurança social é o reconhecimento, individual e coletivo, de que a condição humana é dotada de vulnerabilidade. Como afirma João Carlos Loureiro “vulnerabilidade que rima com necessidade acrescida de proteção”.[10]
Assim, a segurança social é uma resposta coletiva a um conjunto de necessidades socialmente reconhecidas, selecionadas pelo critério do mínimo existencial, em que o Estado, seja diretamente ou com a cooperação de entidades não governamentais, assume o dever de, por meio de prestações em dinheiro ou espécie, garantir a satisfação, cobrindo os défices individuais de rendimento, surgidos em função de alguma privação, seja temporária ou permanente.[11]
3.O regime constitucional da segurança social
A Constituição da República Portuguesa de 1976, no seu artigo 63.º, prevê que “todos têm direito à segurança social” e que “o sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho”.
Neste sentido, o direito à segurança social se articula com dois princípios basilares da Constituição portuguesa: a dignidade da pessoa humana e a solidariedade, previstos simbolicamente no artigo 1º da carta constitucional.
Numa perspectiva kantiana, ao declarar a dignidade da pessoa humana como base de todo o ordenamento jurídico e da República, a Constituição de 1976 coloca a pessoa como fundamento e fim da sociedade e do Estado.[12]
Como ressalta Jorge Miranda “a dignidade da pessoa é da pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é de um ser ideal e abstracto. É o homem ou a mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível, insubstituível e irrepetível e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege”.[13] Em outras palavras, não é possível ignorar as diversas realidades sociais e comunitárias em que as pessoas estão inseridas. É por esta razão que a concretização do direito à dignidade da pessoa humana impõe ações positivas, a fim de superar as desigualdades sociais, pois não é possível uma sociedade livre sem garantir o mínimo necessário à dignidade de todos.
Neste sentido, a dignidade aponta para uma articulação com a solidariedade, como “expressão de uma exigência de cuidado fundamental com o outro”.[14] Solidariedade, portanto, não apenas no sentido de caridade, que é facultativa, mas no de justiça social, como um dever de todos. Michael Walzer relembra a noção antiga de justiça social, no sentido de que “[...] some part of everyone's wealth belongs to the political community, which makes economic activity and peaceful accumulation possible and it can and should be used to promote the well-being of all the members of the community”.[15]
Dessa forma, o direito à segurança social vem garantir que o acesso a certos bens (no sentido fático e jurídico), por responderem a necessidades básicas a uma existência digna, devem ser assegurados a todos, independentemente da capacidade econômica, do mérito, ou outros fatores.
3.1 O Estado Social como provedor da segurança social
O artigo 63.º da Constituição da República Portuguesa estabelece que “incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários.”
A norma vem na esteira do princípio da socialidade (ou da democracia econômica, social e cultural, como prefere chamar J. J. Gomes Canotilho), consagrado no núcleo firme do Estado Cosntitucional democrático (artigos 2.º, 9.º, 80.º e 81.º).
Como leciona J. J. Gomes Canotilho, a socialidade é uma “imposição constitucional conducente à adopção de medidas existenciais para os indivíduos e grupos que, em virtude de condicionalismos particulares ou de condições sociais, encontram dificuldades no desenvolvimento da personalidade em termos econômicos, sociais e culturais. (ex.: rendimento mínimo garantido, subsídio de desemprego)”.[16]
Nesse contexto, o Estado Social assume o papel de protagonista e responsável principal pela promoção do direito à segurança social, devendo garantir os direitos básicos de subsistência dos cidadãos, a justiça social, o bem-estar coletivo e o enfrentamento das desigualdades sociais.
Na medida em que o funcionamento do mercado, o laissez-faire, não conduz automaticamente à distribuição dos bens e direitos de forma igualitária entre os cidadãos, a Constituição impõe ao Estado Social a função de promover a adequada redistribuição justa dos bens sociais.
Assim, na Constituição portuguesa, o Estado Social deve garantir a todos o acesso a um sistema de segurança social, que assegure as condições materiais mínimas para a existência humana condigna.[17]
3.2 Segurança social: responsabilidade do Estado e a responsabilidade individual na balança
Apesar do protagonismo constitucional do Estado Social na proteção e na concretização do direito à segurança social, a Constituição da República Portuguesa não exclui a responsabilidade pessoal e coletiva na prossecução dos valores jurídicos tutelados. Pelo contrário. No artigo 63.º da Constituição, nota-se que a segurança social pressupõe a cooperação entre Estado e sociedade na busca dos fins constitucionais.
No seu relatório publicado em 1942, Beveridge já lançava luz ao princípio da cooperação entre Estado e indivíduo para o alcance da segurança social, e salientava que, a par do mínimo nacional garantido pelo sistema, caberia a cada indivíduo voluntariamente buscar mais para si mesmo e sua família.[18]
Daí advém a ideia de subsidiariedade da segurança social, que decorre da noção de responsabilidade própria pela dignidade da pessoa humana.[19] Contudo, essa subsidiariedade não deve ser entendida em um sentido de hierarquia, ou seja, a responsabilidade primária do indivíduo e secundária do Estado, mas de cooperação.
Quanto a essa questão, interessante observar as diferenças apontadas por Amartya Sen quanto à divisão de responsabilidades pela segurança social entre o Estado e o indivíduo nos Estados Unidos da América e na Europa. Enquanto a cultura norte-americana do “self-help” imprime principalmente ao indivíduo a responsabilidade para obter os direitos básicos como saúde e segurança social, a Europa tende a imputar o peso dessa responsabilidade majoritariamente ao Estado Social. [20]
A ausência de políticas públicas de segurança social nos Estados Unidos gera impactos relevantes em termos de desigualdade, como no exemplo citado por Amartya Sen sobre taxa de mortalidade e esperança de vida dos negros, que possuem indicativos piores que países como Sri Lanka, Índia e Kerala. [21]
Por outro lado, a sobrecarga da responsabilidade do Estado pode levar a duas consequências negativas: de um lado, pode ocasionar o esgotamento dos recursos financeiros, a instabilidade fiscal e, consequentemente, a ineficácia do direito à segurança social; por outro, pode produzir um desincentivo à iniciativa e aos esforços individuais.
Nesta linha, Amartya Sen propõe o direcionamento das políticas públicas que foquem no combate à privação das capacidades básicas, e não apenas da renda. Segundo o autor, esse tipo de abordagem tende a ser mais eficaz contra a pobreza, pois afasta distorções que podem ser criadas pelo próprio beneficiário e garante que as políticas atinjam quem realmente necessita e cumpram as suas finalidades sociais. Além disso, Amartya Sen também ressalta que o direcionamento das políticas públicas gratuitas deve visar o público-alvo dos necessitados, e não aqueles que podem pagar por elas. Desse modo, a disponibilização deve apurar a capacidade econômica do indivíduo, a partir do “teste de meios”.[22]
A aplicação dessa técnica no sistema português pode gerar algumas polêmicas, pois admite uma mitigação do princípio da universalidade previsto no artigo 63.° da CRP. No entanto, a análise sistemática das normas constitucionais permite a interpretação da “universalidade na necessidade”, ou seja, deve ter acesso à prestação do Estado, aquele que demonstre não ter os meios necessários à sua subsistência.
3.3. A responsabilidade do mercado
Além de contribuírem de forma geral para a justiça social por meio dos impostos, as empresas também têm sua responsabilidade direta na promoção dos direitos sociais de seus trabalhadores, dentre os quais o direito à segurança social.
Neste sentido, teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que determina o cumprimento desses direitos também nas relações entre particulares, decorre do reconhecimento de que as desigualdades estruturantes da sociedade não se situam apenas na relação entre o Estado e os particulares, mas também entre os próprios particulares.
No caso dos direitos econômicos, sociais e culturais, nos quais se insere o direito à segurança social, a principal corrente doutrinária aponta para uma eficácia horizontal “mediata” ou “indireta”, que impõe ao legislador a tarefa de concretizar os direitos sociais nas relações privadas; e obriga o intérprete a uma interpretação conforme a constituição (daí se falar, atualmente, em “constitucionalização” do direito civil, laboral, consumerista, entre outros).[23]
Sobre essa matéria, J. J. Gomes Canotilho afirma que a Constituição portuguesa aponta para uma eficácia horizontal dos direitos econômicos, sociais e culturais. Em suas palavras: “o comércio jurídico privado está, portanto, vinculado pelos direitos fundamentais sociais sobretudo no que respeita ao núcleo desses direitos intimamente ligados à dignidade da pessoa humana”.[24]
Assim, o mercado tem participação fundamental na promoção da segurança social, de modo que as empresas devem ser chamadas a contribuir para a proteção do direito em favor dos seus trabalhadores, na medida em que se beneficiam diretamente desse trabalho.
4. A arquitetura do sistema português de segurança social
O sistema de segurança social português está estruturado nos seguintes princípios: i) princípio da universalidade, que garante o acesso de todos à proteção contra os riscos sociais;[25] ii) princípio da igualdade, que assegura a não discriminação dos beneficiários; iii) princípio da equidade social, que se propõe a garantir a igualdade material, isto é, o tratamento diferente em situações desiguais; iv) princípio da coesão intergeracional, fundado no equilíbrio e equidade geracionais na assunção das responsabilidades do sistema; v) princípio da solidariedade, que aponta a responsabilidade coletiva pela realização das finalidades do sistema; vi) princípio da subsidiariedade, que indica o papel essencial das pessoas, famílias e outras instituições na prossecução dos fins da segurança social; vii) princípio da participação, que pressupõe a participação dos interessados na definição, planeamento e gestão do sistema; e, por fim, viii) princípio do primado da responsabilidade pública, que transfere ao Estado o principal papel na criação de condições necessárias à efetivação do direito à segurança social.[26]
De acordo com a arquitetura desenhada na Lei de Bases da Segurança Social (Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro), o sistema se divide em Sistema Previdencial, e Sistema de Proteção Social e Cidadania, além do Sistema Complementar.
O Sistema Previdencial está assente na solidariedade profissional, um modelo que tem base contributiva, de responsabilidade dos beneficiários e dos empregadores, e lógica comutativa, de modo que só tem acesso aos benefícios aqueles que contribuem para esse subsistema. Assim, o subsistema previdencial visa garantir a segurança dos trabalhadores em casos de eventualidades como invalidez, desemprego, doença, maternidade, paternidade, adoção e na velhice.
A norma portuguesa impõe a obrigatoriedade de inscrição no Sistema Previdencial apenas para os trabalhadores por contra de outrem, em relação aos quais a contribuição é custeada pelo empregador em benefício do trabalhador, e para os trabalhadores independentes, cuja contribuição é paga pelo próprio beneficiário.
Já o Sistema de Proteção Social e Cidadania, funda-se na solidariedade nacional, de base não contributiva, e tem por finalidade efetivar o direito ao mínimo de existência condigna de todos, garantir a igualdade de oportunidades, bem como promover o bem-estar e a coesão social. Esse subsistema protege a generalidade das pessoas em situações de vulnerabilidade, sendo financiado através de transferências do Orçamento de Estado (sobretudo impostos) e outras bases (transferências da União Europeia, jogos sociais, por exemplo).
Neste contexto, João Carlos Loureiro ressalta a função da segurança social para a promoção da cidadania ao atuar como "um direito gerador de igualdade", na medida em que “a igualdade de oportunidades é elemento essencial na estruturação de uma cidadania social”. Em outras palavras, “trata-se de permitir o acesso a um conjunto de bens básicos, independentemente do mérito ou da capacidade de pagamento, mas a partir da necessidade”.[27]
A partir da estrutura exposta, é possível observar que o sistema de segurança social português (assim como muitos outros no mundo) mescla os modelos laboral-contributivo e assistencial-não contributivo, admitindo-se, no primeiro caso, a limitação da proteção social a um certo grupo de pessoas. No segundo caso, porém, considera-se que a essencialidade dos bens protegidos é tão evidente, que deve ser garantida a todos, independentemente de qualquer condição.
Por fim, o Sistema Complementar visa o reforço da segurança social, a partir de iniciativas coletivas (regimes profissionais complementares) ou individual (poupança-reforma, seguros de vida, entre outros).
4.1. Crise à vista
A partir de 1980, os sistemas de segurança social são afetados por uma crise financeira ou de capacidade, de eficiência e de legitimidade.[28] Desde então, tem-se observado, com frequência, diversas críticas ao Estado Social, por vezes tido por paternalista ou assistencialista, ineficiente e insustentável.
Embora algumas críticas tenham caráter meramente ideológico, muitas parecem ter fundamento. Neste sentido, Miguel Coelho aponta diversas fragilidades do sistema de segurança social português atual, tais como a complexidade, a iniquidade, dificuldade de controle, arquitetura financeira inadequada, e fraco desenvolvimento do sistema complementar.[29]
Além dos problemas de administração do sistema, há questões demográficas, econômicas e sociais que ameaçam o futuro do sistema de segurança social. Por exemplo, segundo Miguel Coelho, a sustentabilidade do Sistema de Proteção Social de Cidadania dependerá do crescimento econômico do País, uma vez que as transferências do Orçamento do Estado já têm um grande peso no PIB e seria inaceitável aumentar a já excessiva carga fiscal.[30]
Neste sentido, Pereirinha aponta que, caso não adotadas as reformas necessárias, o sistema enfrentará grandes desafios para sua sobrevivência: i) a sustentabilidade dos riscos sociais clássicos (desemprego, pensões, doenças, etc.); ii) proteção dos novos riscos sociais inerentes às transformações sociais e econômicas; e a estes acrescenta o desafio de “garantir que ambos os riscos sociais (os riscos sociais clássicos e os novos riscos sociais) são protegidos de forma ‘adequada’ (isto é, que garantam a dignidade humana na realização desses direitos – satisfação das necessidades sociais) e de forma a assegurar a equidade na sua realização”.[31]
5. As novas tecnologias de serviços em plataformas digitais a segurança social
É notório o crescimento das plataformas digitais nos últimos anos. Hoje, é comum a utilização dos serviços disponibilizados on-line por plataformas digitais de delivery de refeições, compras, transporte individual, de mercadorias, entre outros.
Muitas vezes chamadas de “economia compartilhada”, “economia colaborativa” ou “gig economy”, as plataformas digitais de trabalho podem ser definidas como redes digitais que coordenam prestações de serviços de mão-de-obra por meio de algoritmos.[32]
Não há dúvidas de que a entrada dessas empresas na economia gera oportunidades de inserção no mercado de trabalho para muitos que estavam em situação de desemprego ou subutilização e surge como uma nova fonte de renda, o que contribui para a subsistência pessoal e da família.[33]
Contudo, apesar do grande festejo dessas novas tecnologias, é preciso lembrar que elas dependem do trabalho de seres humanos. Não há Uber, Glovo, Ifood, sem o trabalho dos entregadores e motoristas.
Ocorre que, o modelo de negócio adotado pela maioria das plataformas digitais não trata o trabalhador como empregado, mas, sim, como um prestador de serviços independente, muitas vezes utilizando termos atraentes como “parceiro de negócios”. Consoante o Relatório da Comissão Europeia produzido pelo Joint Research Centre (JRC) em 2018, as condições laborais, a representação laboral e a proteção social neste tipo de contratação “are at best unclear, at worst clearly unfavourable”.[34]
Por um lado, a prestação de serviço pelas plataformas digitais envolve um grau de flexibilidade e autonomia que muitos consideram incompatível com o conceito tradicional de relação de emprego, que exige a presença de subordinação. Por outro lado, há estudos que indicam a presença de “dependência econômica”[35] nas relações entre trabalhadores e plataformas digitais, que conduziriam a uma relação de “parassubordinação”[36]. A reforçar esse argumento, aponta-se que os contratos são de adesão, isto é, elaborados unilateralmente pelas plataformas e, além disso, são elas que detêm o controle da gestão do trabalho, fixam os preços, as condições do serviço, escolhem o cliente, além de possuírem diversos mecanismos de controle do serviço prestado pelo trabalhador.
Para além das diversas questões laborais subjacentes à relação entre as plataformas e o trabalhador, importa analisar, para fins do presente estudo, os riscos sociais aos quais estão submetidos esses trabalhadores, decorrentes da marginalização do sistema previdencial, e os reflexos de um possível sobrecarregamento do sistema assistencial, e as expectativas futuras para o enfrentamento da questão.
5.1. A marginalização dos trabalhadores do sistema de segurança social
Em estudo realizado pela Comissão Europeia, verificou-se que, dentre os trabalhadores que usam as plataformas digitais como principal fonte de renda, o perfil mais comum é de homens jovens.[37] Por sua vez, a composição familiar majoritária indica que os trabalhadores estão inseridos em casais com filhos dependentes.[38]
Tais dados são importantes para desmistificar a ideia do trabalhador de plataforma digital como “jovem solteiro” e apontar para as preocupações sociais em termos de responsabilidade familiar, o que inclui os direitos das crianças dependentes, não apenas de subsistência financeira, mas de cuidado, convívio e lazer.
Os dados da Comissão Europeia também denotam o nível de dependência financeira desses trabalhadores em relação às plataformas digitais, e principalmente, o vínculo direto entre a remuneração e a performance no trabalho.[39] Não há remuneração por horas de descanso, como almoço, férias, e nem em caso de afastamento por razões médicas.
Pelo tipo de contratação atualmente praticada no mercado de plataformas digitais, os trabalhadores não têm o mesmo status legal de “empregado” ou “trabalhador por conta de outrem”, o que gera inúmeras consequências em termos de proteção social. De fato, em muitos ordenamentos jurídicos, o sistema de segurança social só é obrigatório para o “empregado” tradicional, e não confere o mesmo regime de proteção social a outros tipos de segurados facultativos.[40]
Em termos globais, o inquérito do Bureau Internacional do Trabalho (BIT) de 2017 revelou que a cobertura da proteção social nos serviços de plataformas digitais é inversamente proporcional ao grau de dependência do indivíduo em relação ao trabalho nas plataformas digitais.[41] Ou seja, os trabalhadores que usam as plataformas digitais como principal fonte de renda são os mais desprotegidos, principalmente no que diz respeito a planos de pensão ou de reforma.[42]
Disso resulta o aumento dos riscos sociais ligados a uma interrupção do trabalho desses trabalhadores, como nos casos de desemprego, doença, acidentes de trabalho, maternidade, paternidade, adoção, invalidez e velhice. Dessa forma, a proteção social inadequada pode colocar os trabalhadores de plataformas digitais em um alto risco de pobreza e exclusão social, elevando os níveis de desigualdade social.
Para além disso, a marginalização desses trabalhadores dos sistemas previdenciais pode resultar no subfinanciamento do sistema de segurança social,[43] já que não haverá contribuição empresarial e quotização dos trabalhadores. Com isso, há o risco de sobrecarregar o sistema assistencial, uma vez que, se o trabalhador não encontra amparo no sistema previdencial, o grau de suscetibilidade à pobreza se eleva, aumentando a necessidade dos benefícios do sistema assistencial.
Considerando a ausência ou limitações orçamentárias já encontradas nos sistemas assistenciais, um cenário desse tipo gera uma previsão nada favorável aos sistemas de segurança social.
5.2. Modelos e propostas de inclusão
O Direito, enquanto estratégia de condução social, se baseia no momento passado para reger relações futuras. Não se trata, pois, de um fenômeno estático, mas em constante construção.
No caso do mercado de trabalho, as novas modalidades laborais, por meio de plataformas digitais, distanciaram-se significativamente das relações de emprego tradicionais, o que gera insegurança jurídica quanto aos direitos de proteção social dessas novas classes de trabalhadores.
Neste contexto, um cenário de “plataformização” do mercado de trabalho e das condições laborais exige uma profunda revisão das instituições laborais e dos sistemas de segurança social.[44]
Em Portugal, a proporção de trabalhadores em plataformas digitais já atingiu uma estimativa de 10.6% da população adulta em 2017, a terceira maior taxa da União Europeia, atrás apenas do Reino Unido (12%), em primeiro lugar, e da Espanha (11.6%), em segundo.[45]
Diante do cenário de insegurança jurídica atual, organizações trabalhistas e trabalhadores individuais travam uma luta pela equiparação à figura do “empregado” tradicional ou do “trabalhador por conta de outrem”, a fim de obterem os direitos e garantias mínimos laborais e de proteção social.
No entanto, como já dito, diante das especificidades dessa nova modalidade de trabalho, há certa dificuldade em enquadrá-la dentro das características do conceito de relação de emprego tradicional, o que, muitas vezes, resulta na frustração da proteção dos direitos desses trabalhadores.
Ainda que não se reconheça o vínculo de emprego tradicional, os mandamentos constitucionais sobre a segurança social exigem uma resposta por parte do Estado para a proteção desses trabalhadores.
Neste sentido, algumas propostas sugerem a criação de uma nova categoria sui generis de beneficiário da segurança social, uma espécie de “trabalhador equiparado”,[46] que garanta um nível mínimo de proteção social para os trabalhadores de plataformas digitais e responsabilize a empresa ou o cliente pelo financiamento.[47]
Embora possa enfraquecer a luta pela equiparação desses trabalhadores à figura do “empregado” tradicional, a criação de uma nova modalidade pode ser mais adequada à realidade da relação laboral, e por fim à insegurança sobre a proteção social desses trabalhadores.
Outro ponto importante em uma proposta de regulação dessa nova relação consiste na responsabilidade pelo financiamento do sistema. Isso porque, é preciso ter cautela para não deslocar a responsabilidade pelo financiamento da empresa para o trabalhador.
Em um contexto de economia globalizada e altamente digitalizada, marcada pela presença da “gig economy”, como já referido, a desigualdade intrínseca nas relações de trabalho se torna flagrante, acentuando a vulnerabilidade e hipossuficiência do trabalhador. Para ilustrar o que foi dito, basta observar que os contratos de trabalho são de adesão, ou seja, elaborados unilateralmente pelas plataformas sem qualquer intervenção do trabalhador, as comissões são geralmente baixas,[48] e a interação se dá completamente por meio de máquinas, o que dificulta o exercício de qualquer tipo de manifestação pelo trabalhador.
Dessa forma, embora seja discutível o reconhecimento do vínculo laboral tradicional, ante a constatação de certa flexibilização nessa nova forma de trabalho, constata-se uma relação de dependência econômica e desigualdade contratual.
É necessário, portanto, reconhecer a responsabilidade das plataformas digitais, que se beneficiam e lucram com a atividade prestada pelo trabalhador, pela promoção da segurança social. Neste sentido, Amartya Sen relembra, ainda, o papel da ética empresarial, que é pouquíssimo reconhecido, e muitas vezes ignorado, em economias capitalistas desenvolvidas.[49]
Assim, sob o enfoque da eficácia horizontal da socialidade, é necessário que o legislador crie meios de responsabilizar a plataforma digital pela garantia da proteção do direito à segurança social dos trabalhadores.
Abaixo serão analisados alguns exemplos do tratamento atual do tema, e as iniciativas no âmbito da União Europeia.
5.2.1. O modelo português
No sistema português, já foi dito que o Sistema Previdencial tem base de incidência contributiva, de modo que o acesso é limitado aos trabalhadores inscritos no sistema, sendo obrigatória nas categorias de trabalhador por conta de outrem ou trabalhador independente.
Considerando que os trabalhadores de plataformas digitais não estão inseridos no primeiro grupo, restar-lhes-iam a inserção no grupo de trabalhadores independentes, para os quais a contribuição prevista na lei gira em torno de 20% sobre uma base de 70% dos rendimentos do trabalhador.
Neste contexto, o Decreto-Lei n.º 2/2018, de 9 de janeiro, reformulou o regime contributivo dos trabalhadores independentes, com o objetivo de combater a precariedade nas relações laborais destes trabalhadores, de forma a tornar o regime mais amplo e acessível.
Contudo, o enquadramento dos trabalhadores de plataformas digitais nesta categoria pode não ser adequado aos fins constitucionais da segurança social. Isso porque, ao contrário dos tradicionais “recibos verdes”, que em geral prestam serviços intelectuais, são autônomos ou empreendedores, a realidade de grande parte dos trabalhadores digitais é de dependência econômica e desigualdade contratual em relação aos “gig economy”.
Disso decorre que, ao deslocar todo o ônus pelo financiamento do sistema ao próprio trabalhador, sem qualquer contribuição da plataforma, há uma distorção do princípio da solidariedade que rege o sistema. Mais ainda, isso pode gerar uma rede de informalidade, com a total marginalização desses trabalhadores do Sistema Previdencial e, consequentemente, a perda de benefícios como seguro doença, seguro maternidade, paternidade e adoção, seguro desemprego, seguro de acidentes de trabalho e doenças profissionais, pensão por invalidez, velhice e morte.[50]-[51]
Por outro lado, a marginalização desses trabalhadores pode ocasionar o subfinanciamento do Sistema Previdencial e o consequente sobrecarregamento do Sistema de Proteção Social de Cidadania, que como apontado em tópico anterior, já está no seu limite.
Recentemente, o governo português deu indicativos de que está em linha com as mudanças, ao apresentar o Livro Verde do Futuro do Trabalho,[52] no qual aponta para a necessidade de adequação do sistema de segurança social às novas formas de trabalho. No capítulo dedicado ao trabalho em plataformas digitais, o mencionado Livro sugere como linhas de reflexão: i) “regular o trabalho em plataformas digitais e criar um sistema contributivo e fiscal adaptado a esta nova realidade”, ii) ‘criar uma presunção de laboralidade”, iii) “garantir o acesso a proteção social adequada dos trabalhadores”, e iv) “melhorar o enquadramento contributivo e fiscal destas atividades, tanto na ótica da clarificação e efetividade das obrigações dos empregadores como do acesso a mecanismos contributivos e direitos por todos os trabalhadores da plataforma”.
No entanto, pelo fato de o Livro Verde não ter força normativa, é possível dizer que ele representa apenas um passo preliminar nas mudanças que devem ser implementadas no sistema português, diante da crise que se anuncia, para garantir a adequada proteção social desses trabalhadores e a sustentabilidade do sistema.
5.2.2. O caso inglês
Em 19 de fevereiro de 2021, a Suprema Corte do Reino Unido concluiu o julgamento do caso Uber BV and others v. Aslam and others,[53] que originalmente cuidou de ação laboral proposta por ex-trabalhadores que usavam o aplicativo de transporte Uber para prestar serviços de transporte em Londres. Na decisão, o Lord Leggatt analisa o sistema da plataforma Uber e concluiu que as características contratuais, nomeadamente, (i) a gestão do serviço é feita pela plataforma (remuneração, preços, termos e condições de serviço, gestão de clientes, etc.), e (ii) as diversas formas de controle do trabalhador constantes no aplicativo (taxas de aceitação e cancelamento de viagens, avaliações dos clientes, etc.), e (iii) a ausência de comunicação entre o trabalhador e o cliente, apontam para um quadro de “dependência e subordinação”. No entanto, a Suprema Corte concluiu que os trabalhadores não se enquadram no conceito típico de “employee”, uma vez que possuem certa flexibilidade e autonomia, mas no conceito de “worker”, previsto na seção 230(3) do Employment Rights Act 1996:
(b) any other contract, whether express or implied and (if it is express) whether oral or in writing, whereby the individual undertakes to do or perform personally any work or services for another party to the contract whose status is not by virtue of the contract that of a client or customer of any profession or business undertaking carried on by the individual;
Apesar da relevância da decisão, não ficou claro se o reconhecimento do status de “worker” garantirá os mesmos direitos de proteção social que o “employee”, uma vez que o Employment Rights Act 1996, ao tratar do seguro doença, maternidade, paternidade, entre outros, usa especificamente o termo “employee”.
De qualquer forma, a decisão teve repercussões favoráveis no plano fático, pois a plataforma digital decidiu reclassificar todos os trabalhadores do Reuni Unido como “worker” e garantir direitos mínimos como férias, salário mínimo, e inscrição em um plano de previdência, com financiamento da empresa e dos trabalhadores e a manutenção de seguro privado em caso de doença, acidente, e licença parental.[54]
5.2.3. As iniciativas da União Europeia
O direito à segurança social está positivado em diversos diplomas da União Europeia, tais como no artigo 153. do Tratado de Lisboa (2007), no artigo 34.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000), além de ter sido elegido em diversos princípios do Pilar Europeu dos Direitos Sociais (2017).
Em tempos de globalização e digitalização, torna-se importante a criação de um tratamento comum sobre a proteção mínima social para essa nova modalidade de trabalho, assim como as condições de pagamento das contribuições sociais ao nível da União Europeia.
Desde 2016, a Comissão Europeia tem envidado esforços para entender as especificidades dessas novas modalidades de trabalho, com o escopo de orientar os Estados-Membros e definir um tratamento uniforme e coerente com os direitos protegidos pelo direito comunitário.
Em 2017, o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão proclamaram o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, em que são indicados os princípios para conduzir a uma Europa “justa, inclusiva e plena de oportunidades”, relacionados ao mercado de trabalho e a proteção da segurança social. Além dessa, outras ações foram apresentadas para lidar com as mudanças nas instituições laborais dos últimos anos, como a Diretiva (UE) 2019/1152 relativa a condições de trabalho transparentes e previsíveis na União Europeia, e Diretiva (UE) 2019/1158 relativa a Conciliação entre a vida profissional e a vida familiar dos progenitores e cuidadores.
Além disso, em 2019, o Conselho adotou uma Recomendação (UE) 2019/C 387/01, relativa ao acesso à proteção social dos trabalhadores por conta de outrem e por conta própria, na qual estabelece, como princípio geral, “a cobertura efetiva de todos os trabalhadores, independentemente do tipo de relação de trabalho, e dos trabalhadores por conta própria”.
6. Conclusão
O direito à segurança social é corolário dos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade e adquiriu status de direito social universal na Constituição da República Portuguesa de 1976.
A Constituição portuguesa garante a todos o direito à proteção social e impõe ao Estado Social o dever de criar o meios necessários ao exercício deste direito. Contudo, apesar do protagonismo do Estado, a responsabilidade pela segurança social exige a cooperação do indivíduo, da sociedade e, inclusive, do mercado.
As inovações no mercado de trabalho desafiam os sistemas tradicionais de segurança social e exigem transformações. O trabalho em plataformas digitais possui especificidades atípicas e encontra dificuldades de enquadramento nas categorias legais dos regimes de segurança social. Embora não se enquadre na típica relação de “trabalhador por conta de outrem”, há indicativos de “dependência econômica” e hipossuficiência desses trabalhadores em relação às plataformas.
Dessa insegurança jurídica decorre a marginalização desses trabalhadores do Sistema Previdencial e a consequente perda de proteção contra doenças, acidente de trabalho, licença parental, pensão de invalidez e velhice, o que resulta na elevação da pobreza e da exclusão social.
Assim, independentemente do enquadramento laboral, cabe ao Estado tomar as medidas necessárias para garantir a proteção do direito à segurança social desses trabalhadores, seja por meio de alterações nas categorias existentes ou na criação de uma nova categoria.
No processo de inclusão social desses trabalhadores, tendo em vista as características de dependência existentes, é importante atrair a participação das plataformas digitais no financiamento do Sistema Previdencial, como mecanismo de solidariedade, justiça social e cidadania.
As novas tecnologias, sem afastar o importante papel econômico que desempenham, não podem ficar à margem da regulação estatal e devem assumir o seu compromisso na contribuição para uma sociedade livre, justa e solidária.
Ao contrário dos habitantes de Riohacha, que, mesmo cientes, nada fizeram para evitar o assassinato de Santiago Nasar na famosa obra Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Marquez, o Estado precisa agir para evitar o colapso da segurança social que se anuncia caso não sejam adotadas as medidas para inclusão dos trabalhadores de plataformas digitais no sistema.
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________________Employment Rights Act 1996.
[1] A origem da palavra deriva do hebraico tzedek, que pode ser traduzido por justiça ou justiça social.
[2] WALZER, Michael. "On Humanitarianism: Is Helping Others Charity, or Duty, or Both."Foreign Affairs, vol. 90, no. 4, July/August 2011, p. 73.
[3] LOUREIRO, João Carlos. Cidadania, Proteção Social e Pobreza Humana. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 90, no. 1, 2014, p. 77-78.
[4] Apenas abrangia trabalhadores que recebiam salários inferiores a uma certa faixa cf. DUPEYROUX, Jean-Jacques. Droit de la sécurité sociale. 17ª Ed., 2011, Dalloz, p. 23.
[6] De acordo com Dupeiroux, o seguro seria uniforme no sentido de ser fixado em uma base mínima igual para todos os cidadãos (DUPEYROUX, Jean-Jacques. Op. cit., p. 35)
[8] Artigo 22º (seguridade social), artigo 23º (direito ao trabalho e à proteção contra o desemprego) e artigo 25º (mínimo existencial).
[10] LOUREIRO, João Carlos. Cidadania, Proteção Social e Pobreza Humana. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 90, no. 1, 2014, p. 76.
[11] LOUREIRO, Joao Carlos. A segurança social, o seguro social: novos perímetros e universalidade. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 94, no. 1, 2018, p. 672.
[12] MIRANDA, Jorge. A Constituição e a Dignidade da Pessoa Humana. Didaskalia, XXIX, 1999, p.473-485.
[14] LOUREIRO, João Carlos. Constituição da Seguranca Social: Sujeitos, Prestações e Princípios. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2008, 84, p. 189-250.
[16] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Ed., Almedina, 2018, p. 342.
[17] LOUREIRO, João Carlos. Adeus ao Estado Social: O Insustentável Peso do Não-Ter. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 83, 2007, p. 124.
[19] LOUREIRO, João Carlos. Constituição da Seguranca Social: Sujeitos, Prestações e Princípios, 2008, p.194.
[20] Sen, Amartya. "Inequality, Unemployment and Contemporary Europe." International Labour Review, vol. 136, no. 2, Summer 1997, p. 155-172.
[22] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Companhia de Bolso. Tradução Laura Teixeira Motta, 2010. E-book;
[25] Cf. afirma João Carlos Loureiro, o acesso vai além da noção de cidadão para abranger estrangeiros e apátridas, todos os indivíduos que se encontrem no território de Portugal (A segurança social, o seguro social... Op. cit., p. 673).
[26] COELHO, Miguel Teixeira. Segurança Social: Passado, Presente e Futuro. Vida Econômica – Editorial S.A., 2019.
[31] PEREIRINHA, J.A. Pobreza e novos riscos sociais em Portugal: uma análise da despesa social. In Albuquerquer, C. & Luz, H.A. (coord.). Políticas Sociais em tempos de crise – perspectivas, tendências e questões críticas. Lisboa: Pasctor, 2016, pp.127-143.
[32] Cf. EUROPEAN COMISSION. Joint Research Centre (JRC) Technical Reports. Digital Labour Platforms in Europe: Numbers, Profiles, and Employment Status of Platform Workers. Cesira Urzì Brancati, Annarosa Pesole, Enrique Fernández-Macías, 2019. Disponível em: < https://publications.jrc.ec.europa.eu/repository/handle/JRC112157>. Acesso em 30/04/2021.
[33] Cf. Relatório JRC cit., 10% da população adulta europeia já prestou serviços para plataformas digitais e 2% tem esse trabalho como principal fonte de rendimento. Disponível em: < https://publications.jrc.ec.europa.eu/repository/handle/JRC112157>. Acesso em 30/04/2021.
[34] Disponível em: < https://publications.jrc.ec.europa.eu/repository/handle/JRC112157>. Acesso em 30/04/2021.
[35] CHESALINA, Olga. Access to social security for digital platform workers ins Germany and in Russia: a comparative study. Spanish Labour Law and Employment Relations Journal. N.º 1-2, Vol. 7, noviembre 2018, p. 19.
[36] A noção de parassubordinação foi desenvolvida na doutrina italiana, no qual foi criada a figura da parasubordinazione, para contemplar as relações de trabalho em que há um vínculo de dependência substancial e disparidade contratual. Outros países europeus possuem figura semelhante, como a Alemanha (Arbeitnehmehrähnliche), a Inglaterra (workers), e Espanha (trabajadores autónomos económicamente dependientes) cf. SILVA, Otávio Pinto e. O trabalho parassubordinado. 2002). O trabalho parassubordinado. Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, 97, 195-203.
[37] Cf. Relatório JRC cit., 37.8% são homens jovens (abaixo dos 35 anos), 35.9% homens acima dos 35 anos, 15.7% mulheres jovens, e 10.6% mulheres acima dos 35 anos.
[38] Cf. Relatório JRC cit., 29% fazem parte de casais acima dos 35 anos com filhos, e 27% casais jovens com filhos.
[39] Cf. Relatório JRC cit., a remuneração normalmente é baseada na performance (61%), sendo que grande parte é associada a um valor fixo pago diária ou mensalmente pela prestação de serviços (39%). A renda proveniente do trabalho nas plataformas representa, para 38% dos trabalhadores, 25% da renda pessoal; para 29% dos trabalhadores, ela representa entre 26 e 50%, e para 6% dos trabalhadores, representa entre 76% e 100%.
[40] No sistema alemão, por exemplo, não há obrigatoriedade de inscrição dos trabalhadores digitais no sistema de segurança social cf. CHESALINA, Olga. Access to social security for digital platform workers ins Germany and in Russia: a comparative study. Spanish Labour Law and Employment Relations Journal. N.º 1-2, Vol. 7, noviembre 2018, pp. 17-28.
[41] Bureau Internacional do Trabalho (BIT), 2017. Relatório Mundial sobre Proteção Social 2017–19: Proteção social universal para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Genebra).
[42] Apenas cerca de 16% desses trabalhadores estavam cobertos por um plano de reforma, em comparação com 44% daqueles para quem o trabalho nas plataformas digitais não era a principal fonte de rendimento.
[43] Bureau Internacional do Trabalho (BIT), 2020. As plataformas digitais e o futuro do trabalho: Promover o trabalho digno no mundo digital. (Genebra).
[44] Relatório da Joint Research Centre (JRC) em 2018. Disponível em: <https://publications.jrc.ec.europa.eu/repository/handle/JRC112157>. Acesso em 30/04/2021
[46] Na mesma linha das categorias de parassubordinação, com a regulação dos direitos laborais e o reconhecimento de proteção social para esses trabalhadores.
[47] Cf. CHESALINA, Olga. Access to social security for digital platform workers ins Germany and in Russia: a comparative study. Spanish Labour Law and Employment Relations Journal. N.º 1-2, Vol. 7, noviembre 2018, pp. 17-28
[48] Na Uber, a remuneração é composta por um valor base de R$ 1,50 por viagem, somado ao valor do Km rodado, que em São Paulo é de R$ 1,05, e ao valor de tempo transcorrido de R$ 0,19 por minuto. Assim, por exemplo, uma viagem de 10 Km e 20 minutos, irá render R$15,80, sendo que do total do rendimento, cerca de 20% é repassado para a Uber. Ver: < https://www.uber.com/pt-BR/blog/entenda-taxa-servico/>.
[49] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Companhia de Bolso. Tradução Laura Teixeira Motta, 2010. E-book;
[50] CHESALINA, Olga. Access to social security for digital platform workers ins Germany and in Russia: a comparative study. Spanish Labour Law and Employment Relations Journal. N.º 1-2, Vol. 7, noviembre 2018, pp. 17-28
[52] O Livro Verde é um documento preparatório de consulta aos cidadãos, cujo objetivo é fomentar o debate público. Disponível em: https://www.staaezn.pt/_files/200000901-9c5ef9c5f4/LivroVerdeFuturoTrabalho_300321_CPCS.pdf . Acesso em 01/05/2021.
[53] UNITED KINGDOM. The Supreme Court. Uber BV and others (Appellants) v Aslam and others (Respondents). Judgment given on 19 february 2021. Disponível em: https://www.supremecourt.uk/cases/docs/uksc-2019-0029-judgment.pdf. Acesso em 30/04/2021.
Advogada, Procuradora do Município de São Paulo, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra. Pós-graduada em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Bianka Zloccowick Borner de. O direito à segurança social e as plataformas de trabalho digital: crônica de uma morte anunciada? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 fev 2023, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61114/o-direito-segurana-social-e-as-plataformas-de-trabalho-digital-crnica-de-uma-morte-anunciada. Acesso em: 21 nov 2024.
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