A análise que faço do disposto no § 1°, do art. 1.182, do Código de Processo Civil, ainda tem sentido de ser porquanto muitos processos estão até agora em grau de recurso nos tribunais estaduais, regionais e superiores quando os julgamentos que deram origem aos seus respectivos inconformismos recursais ocorreram na vigência do Código de Processo Civil anterior.
O provimento ou não desses recursos terão de observar a legislação vigente à época, e não se deve entender que a lei processual, nessas hipóteses de recurso, tem aplicação imediata, pois a lei processual não pode retroagir para prejudicar atos processuais e situações jurídicas consolidadas pela norma revogada nem cobrar providências processuais não exigidas anteriormente no instante do manejo do instrumento recursal adequado.
A propósito, o doutor Marcus Vinícius Furtado Coêlho é bem enfático a respeito dessa temática:
Ainda no capítulo sobre a aplicação das normas processuais, o CPC disciplina como se dará a aplicação da lei processual no tempo, previsão constante do art. 14, in verbis: "A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada".
O Código de 2015 adotou a teoria do isolamento dos atos processuais, que compreende cada ato de forma autônoma, de modo que a nova lei processual tem aplicação imediata, respeitando-se os atos já realizados e os efeitos por eles produzidos sob o regime da legislação anterior.
É certo que há situações em que não é tão simples estabelecer os limites dos atos processuais e, portanto, qual a lei a ser aplicada, tendo em vista que o processo é uma entidade complexa, cujos atos se inter-relacionam. É o que acontece, por exemplo, com a contagem de prazos em casos de redução ou aumento, a produção de determinada prova que já foi deferida, mas ainda não produzida, entre outros.
Os tribunais têm firmado que a lei sob a qual foi publicada a decisão regerá o respectivo recurso. Assim, proferida determinada sentença, por exemplo, o prazo para recorrer será o previsto pela lei antiga, vigente à época da prolação da decisão, ainda que o referido prazo tenha sido modificado, como ocorreu com o advento da contagem de prazos em dias úteis, por exemplo.
Em decisão sobre o tema3, o STJ assim consignou: "A nova lei processual se aplica imediatamente aos processos em curso (ex vi do art. 1.046 do CPC/2015), respeitados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, enfim, os efeitos já produzidos ou a se produzir sob a égide da nova lei. Considerando que o processo é constituído por inúmeros atos, o Direito Processual Civil orienta-se pela Teoria dos Atos Processuais Isolados, segundo a qual, cada ato deve ser considerado separadamente dos demais para o fim de determinar qual a lei que o regerá (princípio do tempus regit actum). Esse sistema está inclusive expressamente previsto no art. 14 do CPC/2015".
O acórdão também asseverou: "Esta Corte de Justiça estabeleceu que a lei que rege o recurso é aquela vigente ao tempo da publicação do decisum. Assim, se a decisão recorrida for publicada sob a égide do CPC/1973, este Código continuará a definir o recurso cabível para sua impugnação, bem como a regular os requisitos de sua admissibilidade. A contrario sensu, se a intimação se deu na vigência da lei nova, será ela que vai regular integralmente a prática do novo ato do processo, o que inclui o cabimento, a forma e o modo de contagem do prazo".
A estipulação de uma regra explícita sobre direito intertemporal atende a um valor caro a qualquer ordenamento jurídico, que é a segurança, especialmente quando se trata de uma alteração substantiva do sistema processual pátrio, como a promovida pelo CPC. O art. 14 do diploma, nesse sentido, deve ser interpretado à luz do art. 5º, XXXVI da Constituição, que consagra como direito fundamental o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito. Garantia esta também contemplada no art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo o qual "a Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada". Nesse sentido, pode-se falar em direito adquirido processual, tendo em vista que a lei processual nova não pode retroagir para prejudicar direito processual adquirido nos termos da lei revogada. (Arts. 13, 14 e 15 do CPC - Aplicação das normas processuais. Internet, sítio Migalhas)
Quanto à admissibilidade recursal, o Superior Tribunal de Justiça aprovou os seguintes Enunciados Administrativos:
Enunciado administrativo número 2
Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas, até então, pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Enunciado administrativo número 3
Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC.
Acontece que o Superior Tribunal de Justiça, por sua Terceira Turma, pontificou que o Ministério Público, na vigência do Código de Processo Civil anterior, poderia, com espeque no § 1°, do art. 1.182, funcionar no processo de curatela (chamado anteriormente de processo de interdição) como curador especial.
Aplicou processualmente a legislação anterior, haja vista a impossibilidade de retroatividade da lei processual civil.
A ementa do referido acórdão é esta:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. INTERDIÇÃO. NOMEAÇÃO DE CURADOR ESPECIAL. DESNECESSIDADE. INEXISTÊNCIA DE CONFLITO DE INTERESSES. REPRESENTAÇÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO. SÚMULA Nº 83/STJ.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
2. No procedimento de interdição não requerido pelo Ministério Público, quem age em defesa do suposto incapaz é o órgão ministerial. Assim, resguardados os interesses do interditando, não se justifica a nomeação de curador especial (arts. 1.182, § 1º, do CPC/1973 e 1.770 do CC/2002). Precedente.
3. Agravo interno não provido.
(AgInt no REsp 1652854/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/03/2019, DJe 21/03/2019)
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça também nesse norte, em 2014, não deu provimento a um recurso especial:
PROCEDIMENTO DE INTERDIÇÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO. CURADOR ESPECIAL. NOMEAÇÃO. CONFLITO DE INTERESSES. AUSÊNCIA. INTERESSES DO INTERDITANDO. GARANTIA. REPRESENTAÇÃO. FUNÇÃO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DECISÃO SINGULAR DO RELATOR (CPC, ART. 557) NULIDADE. JULGAMENTO DO COLEGIADO. INEXISTÊNCIA.
1. Eventual ofensa ao art. 557 do CPC fica superada pelo julgamento colegiado do agravo regimental interposto contra a decisão singular do Relator. Precedentes.
2. A designação de curador especial tem por pressuposto a presença do conflito de interesses entre o incapaz e seu representante legal.
3. No procedimento de interdição não requerido pelo Ministério Público, quem age em defesa do suposto incapaz é o órgão ministerial e, portanto, resguardados os interesses interditando, não se justifica a nomeação de curador especial.
4. A atuação do Ministério Público como defensor do interditando, nos casos em que não é o autor da ação, decorre da lei (CPC, art.
1182, § 1º e CC/2002, art. 1770) e se dá em defesa de direitos individuais indisponíveis, função compatível com as suas funções institucionais.
5. Recurso especial não provido.
(REsp 1099458/PR, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 02/12/2014, DJe 10/12/2014)
O fundamento legal utilizado pelo relator foi este:
Art. 1.179. Quando a interdição for requerida pelo órgão do Ministério Público, o juiz nomeará ao interditando curador à lide (art. 9º).
Art. 1.182. Dentro do prazo de 5 (cinco) dias contados da audiência de interrogatório, poderá o interditando impugnar o pedido.
§ 1º Representará o interditando nos autos do procedimento o órgão do Ministério Público ou, quando for este o requerente, o curador à lide.
(Código de Processo Civil de 1973)
Pelos dispositivos legais supracitados, o Ministério Público representava o interditando no processo de interdição, sem necessidade de nomeação de curador à lide.
O Tribunal de Justiça da Bahia, por sua Quinta Câmara Cível, seguiu o mesmo posicionamento jurídico da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE INTERDIÇÃO. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE DETERMINOU A INTIMAÇÃO DO REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA REPRESENTAR O INTERDITANDO NOS AUTOS DA AÇÃO DE INTERDIÇÃO ORIGINÁRIA E MANIFESTAR-SE NOS TERMOS DO QUANTO PREVISTO PELO ART. 1.182, § 1º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. REFORMA DA DECISÃO AGRAVADA. DESNECESSIDADE. I - Submete-se à apreciação desta Corte a pretensão do Agravante (Ministério Público do Estado da Bahia) de reformar a decisão agravada em que o Juízo a quo determinou a sua intimação para representar o interditando nos autos da Ação de Interdição e manifestar-se, no prazo de cinco dias, conforme preceitua o art. 1.182, § 1º, do Código de Processo Civil. II - Da análise dos dispositivos legais constantes no Código Civil (Lei nº 10.406/2002) atinentes aos interditos, verifica-se, claramente, no art. 1.770, que "Nos casos em que a interdição for promovida pelo Ministério Público, o juiz nomeará defensor ao suposto incapaz; nos demais casos o Ministério Público será o defensor". (Grifou-se) III - Na hipótese dos autos, o Agravante (Ministério Público do Estado da Bahia) sustenta que "a regra inscrita no § 1º do art. 1.182, do Código de Processo Civil, não foi recepcionada pela atual ordem constitucional", defendendo, deste modo, que desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 não se reconhece mais a competência do Órgão Ministerial para representar incapazes. Com esse entendimento, o Agravante pugna pela reforma da decisão recorrida que determinou a sua intimação para representar o interditando nos autos da Ação de Interdição e manifestar-se, no prazo de cinco dias, conforme preceitua o art. 1.182, § 1º, do Código de Processo Civil. IV - Entretanto, a irresignação do Recorrente não merece prosperar. Isso porque, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial (REsp 1.099.458-PR), de Relatoria da Min. Maria Isabel Gallotti, pacificou as discussões referentes ao tema ora analisado ao consolidar, no Informativo de Jurisprudência nº 553, o entendimento de que "Nas ações de interdição não ajuizadas pelo MP, a função de defensor do interditando deverá ser exercida pelo próprio órgão ministerial, não sendo necessária, portanto, nomeação de curador à lide". V - Ademais, na esteira do posicionamento prevalente no STJ, "proposta a ação pelos demais legitimados, caberá ao MP a defesa dos interesses do interditando, fiscalizando a regularidade do processo, requerendo provas e outras diligências que entender pertinentes ao esclarecimento da incapacidade e, ao final, impugnar ou não o pedido de interdição, motivo pelo qual não se faz cabível a nomeação de curador especial para defender, exatamente, os mesmos interesses pelos quais zela o MP. A atuação do MP como defensor do interditando, nos casos em que não é o autor da ação, decorre da lei (art. 1.182, § 1º, do CPC e art. 1.770 do CC) e se dá em defesa de direitos individuais indisponíveis, função compatível com as suas funções institucionais (art. 127 da CF)". VI - Desse modo, agiu acertadamente o Juízo precedente ao determinar a intimação do representante do Ministério Público para representar o interditando nos autos da Ação de Interdição originária e manifestar-se, no prazo de cinco dias, conforme preceitua o art. 1.182, § 1º, do Código de Processo Civil, pois a decisão agravada encontra-se em consonância com o entendimento consolidado no STJ e veiculado no Informativo de Jurisprudência nº 553, conforme visto acima. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E IMPROVIDO. (TJ-BA - AI: 00215086520158050000, Relator: CARMEM LUCIA SANTOS PINHEIRO, QUINTA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 25/02/2016)
Diametralmente, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça apresentou depois outra fundamentação jurídica, acertadamente, no sentido de que o Ministério Público não poderia haver atuado, na vigência do Código de Processo Civil de 1973, como representante do incapaz, na defesa dos interesses deste:
RECURSO ESPECIAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AUSÊNCIA. AÇÃO DE INTERDIÇÃO. AJUIZAMENTO PELA IRMÃ DA CURATELANDA. NOMEAÇÃO DE CURADOR ESPECIAL. DEFENSORIA PÚBLICA. FUNÇÃO INSTITUCIONAL ATÍPICA E EXCLUSIVA. AUSÊNCIA DE ÓRGÃO NA COMARCA. OBSERVÂNCIA DAS NORMAS LOCAIS. JULGAMENTO: CPC/73.
1. Ação de interdição ajuizada em 27/09/2013, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 24/11/2015 e redistribuído ao gabinete em 23/05/2019.
2. O propósito recursal é dizer sobre a negativa de prestação jurisdicional, bem como se é atribuição do Ministério Público atuar como defensor da curatelanda na ação de interdição proposta por sua irmã, tendo em vista a ausência de órgão da Defensoria Pública na comarca.
3. Devidamente analisadas e discutidas as questões de mérito, e suficientemente fundamentado o acórdão recorrido, de modo a esgotar a prestação jurisdicional, não há falar em violação do art. 535, II, do CPC/73.
4. A ação de interdição se funda na dignidade da pessoa humana e tem cunho protecionista, razão pela qual só se justifica para atender os interesses e as necessidades próprias do curatelando.
5. Considerando que a atuação do Ministério Público, enquanto fiscal da ordem jurídica na ação de interdição da qual não é o autor, impede que ele atue, simultaneamente, como defensor do curatelando; que a legislação prevê a nomeação de curador especial ao incapaz, para garantir a tutela dos seus próprios interesses e necessidades; e que a curadoria especial é função atípica e exclusiva da Defensoria Pública; forçoso reconhecer a falta de atribuição do Parquet para funcionar nos autos como defensor da curatelanda.
6. A inexistência, em determinada comarca, de órgão da Defensoria Pública do Estado para exercer a curadoria especial deve ser suprida segundo as normas locais que regulamentam a sua organização e o seu funcionamento e, na impossibilidade de tal suprimento, há de ser designado advogado dativo.
7. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 1824208/BA, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/12/2019, DJe 13/12/2019)
Antes, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi enfático pela impossibilidade de o Ministério Público atuar como representante do interditando, mesmo com espeque em dispositivo legal do Código de Processo Civil revogado:
Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. CURATELA. AÇÃO DE INTERDIÇÃO. DECISÃO AGRAVADA PUBLICADA AINDA NA VIGÊNCIA DO CPC/73. DIREITO INTERTEMPORAL. NOMEAÇÃO DE CURADOR ESPECIAL À DEMANDADA. PERTINÊNCIA. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL DE O MINISTÉRIO PÚBLICO ATUAR COMO REPRESENTANTE JUDICIAL DE PARTE.
1. Aos recursos interpostos em face de decisões publicadas até 17 de março de 2016 aplicam-se, no que tange ao cabimento e aos requisitos de admissibilidade, as regras previstas no Código de Processo Civil de 1973. De acordo com a doutrina, por publicação da decisão entende-se "a data em que foi efetivamente publicada a decisão impugnável. No primeiro grau, a decisão é publicada quando o juiz a entrega ao escrivão, quando não mais pode alterá-la".
2. É pertinente e adequada a nomeação de curador especial ao demandado em ação relativa à curatela que não possua advogado constituído nos autos, mormente porque o art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal assegura a todos os litigantes a ampla defesa.
3. Embora o § 1º do art. 1.182 do já revogado CPC/73 mencionasse que, nos processos de interdição não ajuizados pelo Ministério Público, a representação do interditando competiria ao Parquet, com o advento da Constituição Federal de 1988, restou expressamente vedada a atuação do MP como representante judicial de parte em qualquer hipótese (art. 127 da CF). Portanto, ainda na vigência do CPC/73 já era imprescindível a nomeação de curador especial quando inexistisse advogado constituído nos autos para defender os interesses do interditando. Não por outra razão o CPC/15, em seu art. 752, § 2º e 3º, bem delimita e separa a atuação do Ministério Público e do curador especial, estabelecendo que o Parquet intervirá como fiscal da ordem jurídica, e que "o interditando poderá constituir advogado, e, caso não o faça, deverá ser nomeado curador especial", a quem competirá o exercício da defesa. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Agravo de Instrumento, Nº 70069155182, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em: 15-09-2016). Assunto: Direito de Família. Curatela. Interditando. Defesa. Advogado. Não constituição. Representante judicial. Ministério Público. Atuação. Não possibilidade. Curador especial. Nomeação. Cabimento. (TJRS, Oitava Câmara Cível, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 15-09-2016, Publicação: 19-09-2016)
O Tribunal de Justiça do Paraná já havia igualmente entendido que, na vigência do Código de Processo Civil de 1973, o Ministério Público não podia exercer a dupla função de curador e fiscal da ordem jurídica, verificada que a incompatibilidade de atuação era manifesta:
DECISÃO MONOCRÁTICA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE
INTERDIÇÃO. NOMEAÇÃO DE CURADOR AO INTERDITANDO.
MINISTÉRIO PÚBLICO. ATUAÇÃO COMO CUSTUS LEGIS.
INCOMPATIBILIDADE DE FUNÇÕES. NECESSIDADE DE SE NOMEAR
CURADOR ESPECIAL AO INTERDITANDO, SOB PENA DE VIOLAÇÃO
AO CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA. RECURSO PROVIDO.
(TJPR – 12º Câm. Cível – Agr. Inst. n. 1.331.900-5 – Rel.: Des. Mário Helton Jorge – Unân. – j. 10/03/2015)
Dessarte, poderia o Ministério Público ser representante (defensor como tratava o Código Civil) da parte requerida judicialmente no processo de jurisdição voluntária de interdição, doravante processo de curatela? A resposta é inafastavelmente não!
O § 1°, do art. 1.182, do Código de Processo Civil de 1973, não foi recepcionado pela Carta Magna vigente.
A atuação do Ministério Público, este de indiscutível caráter nacional, tem seu fundamento primeiro de validade na Constituição Federal como instituição, não em artigos, parágrafos, incisos ou alíneas da legislação codificada, estatutos ou em leis esparsas.
É preciso dizer isso porque muitos estudiosos do Direito gostam de fazer citação de algum artigo de lei para querer justificar a atuação do Ministério Público em determinado processo judicial, o que não é correto. Primeiro, tem de observar a compatibilidade do dispositivo legal com a Constituição Federal, sob pena de inconstitucionalidade ou não receptividade pela Lei Magna.
Pois bem. O § 1º, do art. 1.182, do CPC de 1973, não foi recepcionado pela atual Constituição Federal.
O Ministério Público passou a ter a seguinte formatação na Constituição Federal de 1988 quanto às suas atribuições extrajudiciais e judiciais:
Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;
V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;
VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;
VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;
VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;
IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.
Para o tema aqui em discussão, é providência indiscutível a leitura do art. 127 com o inciso IX, do art. 129, todos da Lei Maior.
O que estava previsto no Código de Processo Civil de 1973 deveria estar em compatibilidade com esses dispositivos supracitados. Como anota Edilson Santana: (…) Em conclusão, resta repetir que a norma constitucional (CR, art. 129, inciso IX) permite, sempre que haja compatibilidade com sua destinação, o exercício de outras atribuições, desde que em consonância com as funções insculpidas no ordenamento constitucional. Trata-se, pois, de enumeração meramente exemplificativa ou não taxativa. (SANTANA, EDILSON; FILHO, EDILSON SANTANA. DICIONÁRIO DE MINISTÉRIO PÚBLICO: MINISTÉRIO PÚBLICO DOS ESTADOS E DA UNIÃO (p. 665). Edição do Kindle)
Mesma assertiva invoca Brenno Tardelli:
Neste artigo estão indicadas as atribuições conferidas ao Ministério Público, sem prejuízo do exercício de outras funções que lhe forem conferidas por lei, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica a entidades públicas – a cargo da Advocacia pública. Tais funções só podem ser exercidas por integrantes da carreira que deverão, como regra, residir na Comarca, salvo autorização do Procurador-Geral ou de órgão colegiado integrante da cúpula da Instituição. A propósito, o ingresso na carreira do Ministério Público far-se-á mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em sua realização, exigindo-se do bacharel em Direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e observando-se, nas nomeações, a ordem de classificação. (Tardelli, Brenno. Comentários críticos à Constituição da República Federativa do Brasil (Justiça Plural) (pp. 457-458). Editora Jandaíra. Edição do Kindle)
A função do Ministério Público tem de ser exercida de acordo com as suas finalidades institucionais (art. 127 ao art. 130, da Constituição Federal).
A defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, juntamente com as funções institucionais, funda o comando da atuação do Ministério Público.
A afirmação de que o Ministério Público deve “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedadas a representação judicial e a consultoria jurídica das entidades públicas” (art. 129, IX, da Constituição Federal) não tem aplicação no caso em estudo, sabido que não é e nunca foi finalidade institucional do Parquet atuar na defesa processual do interditando, hoje curatelando. Sua obrigação institucional sempre foi ser fiscal da lei (melhor fiscal da ordem jurídica), o que é inacumulável com o exercício de uma curadoria processual de incapaz. Como também não serve como argumento jurídico sustentar que o Ministério Público promove a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis para tentar justificar qualquer atuação no processo civil.
A função institucional do Ministério Público é bem explicada por Ana Paula Barcellos, de forma bem prática:
De forma simples, o Parquet, em qualquer das atividades que desempenha, não atua como um advogado propriamente. O advogado fala, nos limites da ética, em nome e no interesse do seu cliente. O Ministério Público não tem, a rigor, qualquer cliente, mas deve atuar, nos termos do art. 127 da Constituição, na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Ou seja: em toda sua atuação, o Ministério Público deve agir de forma independente, não dirigido a “ganhar” qualquer espécie de disputa, mas na defesa daquilo que considere corresponder à defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Esse ponto é importante, pois o Parquet, para levar a cabo seu papel, tem atribuição para desenvolver várias atividades, entre as quais ajuizar demandas. Cabe-lhe, por exemplo, privativamente, promover a ação penal pública (art. 129, I), ajuizar ações civis públicas para a defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, como os dos grupos indígenas (art. 129, III e V) e ajuizar ações de controle de constitucionalidade (art. 129, IV), por exemplo. Cabe-lhe ainda manifestar-se em determinadas ações como custos legis, nas hipóteses previstas em lei, e exercer o controle externo da atividade policial (art. 129, VII), entre outras atribuições. Nada obstante, ao ser o “autor” de determinada demanda, o compromisso do Ministério Público não é “ganhar” a causa, mas promover a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Se ao longo da demanda ele verificar que sua improcedência ou uma solução diversa da pedida inicialmente é o que promove a defesa daqueles elementos, caberá a ele se manifestar nesse sentido. (Barcellos, Ana Paula. Curso de Direito Constitucional (p. 463). Forense. Edição do Kindle)
Não se pode olvidar de que o Tribunal de Justiça do Paraná, há mais de uma década, foi preciso, na sua hermenêutica, ao evidenciar a atuação do Ministério Público conforme os princípios constitucionais:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - INTERDIÇÃO REQUERIDA PELA GENITORA DO INCAPAZ - ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO COMO CURADOR ESPECIAL DA PARTE - DESCABIMENTO - NORMA CONSTITUCIONAL QUE ATRIBUIU AO MINISTÉRIO PÚBLICO A FUNÇÃO DE DEFENDER INTERESSES SOCIAIS E INDIVIDUAIS INDISPONÍVEIS (CF, ART. 127) - INCOMPATIBILIDADE NO ACÚMULO DAS FUNÇÕES DE FISCAL DA LEI E DE DEFENSOR DOS INTERESSES PRIVADOS (CF, ART. 129, INC. IX) - NECESSIDADE DE SE NOMEAR DEFENSOR AO INTERDITANDO - EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL (CF, ARTS. 133 E 134) - INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DOS ATS. 1.179 E 1.182, DO CPC COM A ORDEM CONSTITUCIONAL VIGENTE - RECURSO PROVIDO. A Constituição Federal de 1988 veda expressamente ao Ministério Público representar judicialmente a parte ou interessado (artigo 129, inciso IX), isto porque, tal função foi atribuída à Defensoria Pública através do artigo 134 do texto constitucional e do artigo 4º, inciso VI da Lei Complementar n.º 80/94. (TJPR - 18ª C.Cível - AI - 313983-5 - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADOR RENATO NAVES BARCELLOS - Unânime - J. 14.06.2006)
Ao participar de um processo de curatela, o Ministério Publico desempenha a sua função institucional na fiscalização da ordem jurídica principalmente em respeito à Constituição Federal e as leis subsequentes compatíveis com esta, mesmo quando atua como substituto processual (princípio da especialidade como defende Costa Machado). A curadoria especial, por sua vez, é algo particularizado, voltado pelo interesse de defesa de quem está carente de proteção jurídica, que pode até caracterizar respeito à ordem jurídica, mas não necessariamente, portanto tal função não pode ser exercida pelo Parquet.
A curadoria especial, registre-se, não se limita à garantia dos princípios constitucionais da isonomia, da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal, visto que a sua atuação, para ser compatível com o instituto e o Direito Constitucional moderno, deve enfrentar as questões de direito material com substância de argumentação jurídica, não simplesmente um espaço conferido ao exercício do contraditório no seu âmbito formal, como infelizmente algumas vezes acontece na prática nos processos de curatela com a errônea interpretação do art. 341, do CPC, o qual só deve ser utilizado se a Defensoria Pública não está estruturada ou por ausências de informação e documentação a serem prestadas pelas pessoas vulneráveis atendidas.
Destarte, utilizando-se da interpretação teleológica sem olvidar da interpretação sistêmica que o caso impõe, o Ministério Público não tem nem nunca teve nenhuma vocação para o exercício de curador especial, tanto que o atual Código de Processo Civil (art. 752, §§ 1º e 2º) retirou do Parquet esdrúxulo encargo.
Tudo o que aqui foi colocado serve com a mesma força argumentativa para o art. 1.770, do Código Civil, atualmente revogado.
Conclusão: a curadoria especial do curatelando nos processos precedentes ao novo Código de Processo Civil deveria ter sido realizada pela Defensoria Pública, com espeque no art. 4º, XVI, da LC nº 80/94, combinado com o art. 9º, I, do CPC revogado (Lei nº 5.869/73), não ao Ministério Público, haja vista não possuir este atribuição específica para tal mister.
Promotor de Justiça do Estado da Paraíba, Assessor Técnico do Procurador-Geral de Justiça, ex-Promotor de Justiça Corregedor, ex-Presidente da Associação Paraibana do Ministério Público – APMP, ex-Vice-Presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – Conamp e ex-Professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público - Fesmip.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TEIXEIRA, alexandre cesar fernandes. O Ministério Público como curador especial (§ 1º, do art. 1.182, do CPC de 1973). Não receptividade pela Constituição Federal de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 abr 2023, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61267/o-ministrio-pblico-como-curador-especial-1-do-art-1-182-do-cpc-de-1973-no-receptividade-pela-constituio-federal-de-1988. Acesso em: 23 dez 2024.
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