RESUMO: O presente artigo tem como escopo a análise da decisão do Supremo Tribunal Federal, publicada no Informativo 1086, acerca da inconstitucionalidade da determinação judicial de que sejam preenchidos cargos de defensores públicos em Comarcas desamparadas e com atendimento jurídico gratuito precário.
Palavras-chave: Separação de Poderes. Sistema de freios e contrapesos. Preenchimento de cargos. Autonomia da Defensoria Pública. Inconstitucionalidade.
ABSTRACT: The purpose of this article is to analyze the decision of the Federal Supreme Court, published in Newsletter 1086, about the unconstitutionality of the judicial determination that positions of public defenders be filled in destitute Districts and with precarious free legal assistance.
Keywords: Separation of Powers. System of brakes and balances. Filling positions. Autonomy of the Public Defender. Unconstitutionality.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DO SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS. DA AUTONOMIA DA DEFENSORIA PÚBLICA. DA ANÁLISE DO ARTIGO 98 DO ATO CONSTITUCIONAL DAS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS. DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (INFORMATIVO 1086). CONCLUSÃO.
INTRODUÇÃO
Em decisão recente, formada sob o rito da repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal adentrou à análise sobre a possibilidade, ou não, de que decisões judiciais determinem o preenchimento de cargos por defensores públicos naquelas localidades que se encontram desamparadas.
A discussão se deu no âmbito de Ação Civil Pública, ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Ceará, tendo, o juízo de primeiro grau, acolhido o pedido ministerial, para determinar ao estado a obrigação de prover imediatamente o cargo de defensor público na Comarca de Jati-CE, seja pela convocação de candidatos aprovados, remanescentes do último concurso, ou mediante designação de defensor lotado em comarca próxima, para exercício temporário, ao menos um dia na semana.
O governo estadual recorreu ao Tribunal de Justiça do Estado, que reformou a decisão. Segundo o acórdão, compelir o Estado do Ceará a nomear um defensor público para a localidade, violaria o principio da separação dos Poderes e comprometeria a própria autonomia da Defensoria Pública que, além de independência organizacional, detém a melhor possibilidade de mensurar as necessidades administrativas e possibilidades orçamentárias.
1. DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DO SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS
A história da separação dos poderes é a história da evolução da limitação do poder político, objetivo fundamental da doutrina da separação dos poderes.
O Sistema de Freios e Contrapesos consiste no controle do poder pelo próprio poder, sendo que cada Poder teria autonomia para exercer sua função, mas seria controlado pelos outros poderes. Isso serviria para evitar que houvesse abusos no exercício do poder por qualquer dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Desta forma, embora cada poder seja independente e autônomo, deve trabalhar em harmonia com os demais Poderes.
A Teoria da Separação dos Poderes surgiu na época da formação do Estado Liberal baseado na livre iniciativa e na menor interferência do Estado nas liberdades individuais. Essa tripartição clássica dos poderes se dá até hoje, na maioria dos Estados, e está consolidada pelo artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e prevista no artigo 2º da nossa Constituição Federal brasileira, deixando claro a intenção do constituinte em separar funções de cada poder constituído, que assim dispõe:
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
No que diz respeito à separação de Poderes em contraposição com o ativismo judicial, o foco estará no avanço do Poder Judiciário para cima de competências expressamente asseguradas para os outros dois Poderes, alterando e rompendo a normativa traçada pela Constituição Federal. Entretanto, como é sabido, o Supremo Tribunal Federal, no papel de guardião máximo das normas constitucionais, só tem aceito a ingerência do Poder Judiciário na atividade do Poder Executivo de forma excepcional, nos casos em que se pretende garantir políticas públicas previstas no texto constitucional[1]. Em outros casos, impera-se a separação das atividades, em respeito à autonomia de cada Ente, conforme entende o Supremo Tribunal Federal, cuja ementa se segue:
APELAÇÃO. REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ESCOLA PÚBLICA ESTADUAL. ADEQUAÇÃO. OBRIGAÇÃO DE FAZER. MÍNIMO EXISTENCIAL. POSSIBILIDADE DO JUDICIÁRIO DETERMINAR POLÍTICAS PÚBLICAS EM CASOS EXCEPCIONAIS DIANTE DA INÉRCIA DO EXECUTIVO. CONSECUÇÃO DE DIREITOS CONSTITUCIONAIS. AUSÊNCIA DE FERIMENTO À SEPARAÇÃO DOS PODERES. A RESERVA DO POSSÍVEL NÃO PODE SER ALEGADA DIANTE DA NECESSIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS IMPRESCINDÍVEIS. AS REGRAS ORÇAMENTÁRIAS PODEM SER EXCEPCIONADAS EM HIPÓTESES EXTREMAS. RECURSOS DESPROVIDO. AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.251.593. Relator: Min. Edson Fachin. Dje 08/09/21.
2. DA AUTONOMIA DA DEFENSORIA PÚBLICA
A Emenda Constitucional n.º 80/2014 representou um marco na história da Defensoria Pública do país. Dentre outras determinações, garantiu à instituição um capítulo próprio no texto constitucional.
Apesar do relevante destaque, foi com a Emenda Constitucional n.º 45/2004 que se garantiu às Defensorias Públicas dos Estados a autonomia funcional e administrativa, nos termos do parágrafo 2º do artigo 134:
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)
§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
A garantia constitucional da autonomia defensorial foi reafirmada pelo STF na Ação Direta de Constitucionalidade 5296, ajuizada pela Presidência da República em 2015, questionando a constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 74, que garantiu a autonomia administrativa e financeira da Defensoria Pública da União (DPU).
Em seu voto, a relatora da ação, ministra Rosa Weber, ressaltou que a EC nº. 74/2013 conserva aderência à separação dos Poderes e apenas complementou o parágrafo 2º do artigo 134 da Constituição Federal, que já assegurava às Defensorias Públicas estaduais autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária, mas dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias.
Nas palavras da relatora, "a interpretação da Constituição Federal ampara e legitima o reconhecimento da autonomia das Defensorias, direcionadas ao aperfeiçoamento do sistema democrático. A assistência jurídica aos hipossuficientes (artigo 5º, LXXIV), lembrou a ministra, é um direito fundamental, na linha do amplo acesso à Justiça, e cabe a essas instituições concretizar esse direito fundamental que, além de tratar de inclusão, é um mecanismo que garante o exercício, por toda uma massa de cidadãos até então sem voz, dos demais direitos assegurados pela Constituição do Brasil e pela ordem jurídica”[2].
Veja-se a ementa do julgado em questão:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 134, § 3o, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, INCLUÍDO PELA EMENDA CONSTITUCIONAL No 74/2013. EXTENSÃO, ÀS DEFENSORIAS PÚBLICAS DA UNIÃO E DO DISTRITO FEDERAL, DA AUTONOMIA FUNCIONAL E ADMINISTRATIVA E DA INICIATIVA DE SUA PROPOSTA ORÇAMENTÁRIA, JÁ ASSEGURADAS ÀS DEFENSORIAS PÚBLICAS DOS ESTADOS PELA EMENDA CONSTITUCIONAL No 45/2004. EMENDA CONSTITUCIONAL RESULTANTE DE PROPOSTA DE INICIATIVA PARLAMENTAR. ALEGADA OFENSA AO ART. 61, § 1o, II, “c”, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. USURPAÇÃO DA RESERVA DE INICIATIVA DO PODER EXECUTIVO. INOCORRÊNCIA. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 2o E 60, § 4o, III, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. SEPARAÇÃO DE PODERES. INOCORRÊNCIA. PRECEDENTES. IMPROCEDÊNCIA. ADI nº. 5.295/DF. Relatora Min. Rosa Weber. Dje 04/11/20.
Nesse sentido, o ordenamento jurídico pátrio consagrou o direito das Defensorias Públicas de auto-gestão. É ela quem celebra contratos, convênios, elabora folha de pagamentos, responde ao Tribunal de Contas do Estado, sem depender do Poder Executivo. Além do que, com a EC nº 80/14, passa a competir privativamente à Defensoria Pública propor ao Poder Legislativo alteração de número de membros, bem como a criação e extinção de carreiras de apoio (art. 96, II, “a” e “b”).
3. DA ANÁLISE DO ARTIGO 98 DO ATO CONSTITUCIONAL DAS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS
O tema exposto no presente artigo remonta à discussão sobre a imposição constitucional da estruturação das Defensorias Públicas constante no artigo 98 e seus parágrafos do Ato Constitucional das Disposições Transitórias (ADCT).
Em resumido relato, a Emenda Constitucional nº. 80/2014, conforme acima exposto, trouxe um grande avanço para a Defensoria Pública. A Instituição ganhou, com a “PEC das Comarcas", um novo perfil constitucional, o qual a projetou para um patamar normativo inédito, trazendo, além da obrigação do Poder Público de universalizar o acesso à Justiça e garantir a existência de defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais no prazo máximo de oito anos, as seguintes inovações: 1) inserção da Defensoria Pública em sessão exclusiva no rol das funções essenciais à Justiça, separada, agora, da advocacia; 2) explicitação ampla do conceito e da missão da Defensoria Pública; 3) inclusão dos princípios institucionais da Defensoria Pública no texto constitucional; e 4) aplicação de parte do regramento jurídico do Poder Judiciário, no que couber, à Defensoria Pública, principalmente a iniciativa de lei.
A referida emenda, especificamente quanto ao artigo 98 e parágrafos, do ADCT, determina que o número de Defensores em cada unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda. Assim, nos próximos oito anos a União, o Distrito Federal e os Estados deveriam contar com um Defensor Público em cada Comarca do país. Durante o prazo, a alocação dos defensores deverá ser garantia nos locais de maior densidade populacional.
Ocorre que, tal prazo, findou-se em meados do ano de 2022, sem que todos os Estados dessem integral cumprimento à determinação, encontrando, ao longo desses oito anos, diversos empecilhos para tanto, com destaque para as barreiras orçamentárias.
Diante desse cenário, algumas questões foram levantadas sobre o descumprimento da norma constitucional, como no âmbito da Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Ceará, o que levou o Supremo Tribunal Federal a se manifestar sobre o tema, como se exporá a seguir.
4. DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (INFORMATIVO 1086)
Trata-se, como dito, de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Ceará, buscando uma decisão judicial com o fim de, coercitivamente, determinar o preenchimento de cargos de defensores públicos em comarcas com deficiência de atendimento jurídico.
Em que pese a relevância do tema para a Defensoria Pública, o objeto da ação por legitimado que não seja a própria instituição viola a autonomia administrativa, ou seja, a sua capacidade de auto-gestão e a competência privativa de propor ao Poder Legislativo alteração de número de membros, bem como a criação e extinção de carreiras de apoio.
Nesse mesmo sentido decidiu a Suprema Corte no RE 887.671/CE, fixando a seguinte tese:
"É inconstitucional — por violar a autonomia administrativa da Defensoria Pública — a imposição, por via judicial, de lotação de defensor público em divergência com os critérios prefixados pela própria instituição, quando estes já considerem a proporcionalidade da efetiva demanda de seus serviços e a respectiva população na unidade jurisdicional, com prioridade de atendimento às regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado Democrático de Direito (CF/1988, art. 134), uma vez que promove a efetivação dos direitos fundamentais, notadamente para a igualdade e a dignidade de pessoas hipossuficientes, assim como o acesso à Justiça. A partir da EC 80/2014, foi assegurado à Defensoria Pública o poder de autogoverno na tomada de decisões, razão pela qual lhe cabe, por meio de seus órgãos de direção, decidir onde deve lotar os seus membros, com a devida observância aos critérios por ela mesma preestabelecidos, em atenção especial à efetiva demanda, à cobertura populacional e à hipossuficiência de seus assistidos. Na espécie, o Ministério Público estadual ajuizou ação civil pública com fins de obrigar o Estado do Ceará a preencher cargo de defensor público na comarca de Jati/CE. Apesar de julgada procedente pelo juízo de primeiro grau, o tribunal de justiça local reformou a sentença. Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, ao apreciar o Tema 847 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário, mantendo o acórdão recorrido. Por unanimidade, o Tribunal fixou a tese supracitada”.[3]
A decisão coloca fim à discussão que permeia os Tribunais nacionais e representa mais um avanço no reconhecimento da Defensoria Pública como instituição permanente, essencial e, significativamente, autônoma, garantindo-se que ingerências externas não encontrem espaço, e possibilitando, cada vez mais, o fortalecimento da instituição.
CONCLUSÃO
Por meio do breve relato exposto, resta-se claro que o princípio da separação dos Poderes e o sistema de freios e contrapesos apresentam-se como mecanismos pilares do funcionamento do Estado Democrático de Direito, que conferem segurança jurídica e harmonia ao sistema pátrio. Em respeito ao princípio, deve-se garantir que os Poderes e órgãos, constitucionalmente previstos, exerçam sua autonomia e capacidade de auto-organização e auto-gestão.
Por essa razão, evidente que a ingerência do Poder Judiciário na atividade organizacional da Defensoria Pública, determinando o preenchimento de cargos, em sobreposição à instituição defensorial, viola o texto constitucional e caracteriza retrocesso às conquistas e lutas da Defensoria Pública ao longo dos anos, por fortalecimento e reconhecimento no cenário nacional.
Por fim, o Supremo Tribunal Federal, decidindo na mesma linha, entendeu pela impossibilidade de que o Poder Judiciário se imiscua na autonomia administrativa da Defensoria Pública, que detém competência e legitimidade para organizar sua estrutura administrativa e de seus membros.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao. htm>. Acesso em: 22 de março de 2023.
Portal STF. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/pesquisarInteiroTeor.asp>. Acesso em: 26 mar. 2023.
advogada; pós graduação em direito civil, processo civil e consumidor; pós-graduação em execução criminal e tribunal do júri.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUZ, Aline Dayane Ribeiro da. A (in)constitucionalidade da determinação judicial para preenchimento de cargo de defensor público à luz da autonomia administrativa da Defensoria Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 abr 2023, 04:09. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61300/a-in-constitucionalidade-da-determinao-judicial-para-preenchimento-de-cargo-de-defensor-pblico-luz-da-autonomia-administrativa-da-defensoria-pblica. Acesso em: 23 dez 2024.
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