WINSTON DE ARAÚJO TEIXEIRA [1]
(orientador)
RESUMO: Este estudo tem por objetivo geral a análise do processo de impeachment estadual, com foco no Estado do Amazonas, comparando-o com o procedimento à nível nacional, previsto na Constituição Federal de 1988 e na Lei nº 1.079/1950, que define os crimes de responsabilidade e regulamenta o respectivo processo e julgamento. Como objetivos específicos busca-se compreender o conceito e peculiaridades do impeachment; averiguar a disciplina legal do instituto, com ênfase no procedimento e traçar uma análise comparativa do processo previsto na Lei nº 1.079/1950 e na Constituição do Estado do Amazonas à luz da ADI nº 4.771. Trata-se de temática relevante, posto que há uma tendência na discussão do impeachment do Chefe do Executivo Federal, ignorando a questão quando se trata de governos dos Estados. A pesquisa classifica-se como dedutiva, descritiva e bibliográfica. Constata-se que a Constituição do Estado do Amazonas não se adequa ao texto constitucional federal quando exige autorização da Assembleia Legislativa para processar e julgar o Chefe do Executivo Estadual, bem como a previsão expressa de julgamento pela Assembleia, o que pode comprometer a responsabilização do Governador, motivo pelo qual teve a inconstitucionalidade declarada pelo STF, devendo o procedimento ser conduzido conforme a Constituição de 1988 e a Lei nº 1.079/1950.
Palavras-chave: Impeachment. Responsabilização. Chefe do Executivo. Impeachment Estadual. Amazonas.
ABSTRACT: This study has as a general objective the state impeachment process, focusing on the State of Amazonas, comparing it with the procedure at the national level, provided in the Federal Constitution of 1988 and Law No. 1,079/1950, which defines the crimes of responsibility and regulates the respective process and judgment. Specific objectives seek to understand the concept and peculiarities of impeachment; to investigate the legal discipline of the institute, with an emphasis on the procedure; and draw a comparative analysis of the process provided in Law No. 1,079/1950 and the Constitution of the State of Amazonas according to the ADI No. 4,771. It is a topic of relevance, since there is a tendency to discuss the impeachment of the Head of the Federal Executive, ignoring the issue when it comes to governments of the States. The research is classified as deductive, descriptive and bibliographic. It is found that the Constitution of the State of Amazonas does not fit the federal constitutional text when it requires authorization of the Legislative Assembly to process and judge the Chief of State Executive, as well as the express provision of judgment by the Assembly, which may compromise the accountability of the Governor, which is why it had the unconstitutionality declared by STF, so the procedure should be conducted according to the 1988 Constitution and Law No. 1,079/1950.
Keywords: Impeachment. Accountability. Chief Executive. State Impeachment. Amazon.
1 INTRODUÇÃO
O processo de impeachment é um tema extremamente relevante devido à desconfiança jurídico-política estabelecida no ordenamento jurídico brasileiro.
Para se ter uma ideia, desde 1990 foram propostos mais de 130 (cento e trinta) casos de impeachment ou enviadas denúncias contra Presidentes da República. Apenas para ilustrar, e conforme ensinamentos de Fernandes (2017), o ex-Presidente Fernando Collor de Mello foi alvo de 29 pedidos, enquanto Fernando Henrique Cardoso de 17 pedidos, o que não afasta, claro, os demais Presidentes que governaram desde 1988. Dilma Rousseff, também citada por Fernandes (2017), e última Presidente a sofrer um processo de impeachment, foi alvo de 49 pedidos, sendo que 35 foram propostos apenas no seu segundo mandato.
Contudo, há divergências entre os números apresentados pelo supracitado autor e outras fontes, tal como o site “Agência Pública”, que imputa a Fernando Henrique Cardoso 24 pedidos de impeachment, a Luiz Inácio Lula da Silva 37 pedidos, a Dilma Rousseff 68 pedidos e a Michel Temer 31 pedidos de impeachment, acrescentando que apenas nos dois primeiros anos de mandato Jair Messias Bolsonaro já contava com 126 pedidos de impeachment (OS PEDIDOS..., 2021). Já a CNN Brasil, por exemplo, noticia que em seu único mandato Jair Messias Bolsonaro acumulou 158 pedidos de impeachment (AMARAL, 2023).
Não se ignora que várias são as motivações populares que fomentam as cobranças por pedidos de impeachment no país, a exemplo da crise econômica e social, dos escândalos envolvendo casos de corrupção, dentre outras. Nesse contexto, a sociedade, ao questionar os parlamentares e clamar pela saída do chefe do executivo, busca uma solução para os problemas enfrentados, sendo que alguns lutam por mudanças e outros preconizam a necessidade de um governo estável.
Apesar da relevância do instituto em comento, é certo que na seara acadêmica ainda é pouco explorando, com bibliografia limitada, principalmente quando se trata dos pedidos e processos contra governadores de Estados.
É nesse cenário que se situa o presente estudo, que tem por objetivo analisar o processo de impeachment estadual, ou seja, a nível subnacional, com foco no Estado do Amazonas, comparando-o com o procedimento à nível nacional, previsto na Constituição Federal e na Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, a qual define os crimes de responsabilidade e regulamenta o respectivo processo e julgamento.
Como objetivos específicos busca-se compreender o conceito e peculiaridades do impeachment; averiguar a disciplina legal do instituto, com ênfase no procedimento e, ainda, traçar uma breve análise comparativa do processo a previsto na Lei nº 1.079/1950 e o disposto na Constituição do Estado do Amazonas à luz da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.771.
Desta feita, inicialmente será feita uma breve introdução do instituto do impeachment no país, bem como será analisada a legislação nacional para saber como o processo foi disciplinado e como esta determinou que fosse o instituto utilizado pelos outros entes federativos. Após, será analisado como a Constituição do Estado do Amazonas definiu o processo, observando os pontos de similaridade e dissemelhança com a legislação nacional, bem como será analisada a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.771, ajuizada pela OAB Nacional, que questionou dispositivos da Constituição Estadual do Amazonas referentes ao processo de impeachment estadual.
Destarte, para alcançar os objetivos supra, adota-se como método de abordagem o dedutivo e, como método de procedimento, o descritivo. No que diz respeito à técnica de pesquisa, classifica-se como bibliográfica, pois se busca na doutrina, legislação, artigos, jurisprudência, dentre outras fontes, elementos para a compreensão do tema.
2 IMPEACHMENT: ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS
Tratar do impeachment, como procedimento, denota reconhecer, inicialmente, que há uma relação entre Direito e Política, já que ambos atendem primordialmente a vida em sociedade. Porém, nem sempre foi assim.
Na contemporaneidade, e “visando a tornar efetiva a responsabilização do Poder Executivo, a Constituição adotou um processo parlamentar, fiel ao princípio de que toda autoridade deve ser responsável e responsabilizável” (BROSSARD, 1992, p. 04), é que se instituiu o impeachment. Trata-se de procedimento que surgiu na Inglaterra e foi posteriormente adaptado pelos Estados Unidos, sendo instituto afeto ao Direito Constitucional.
Antes, porém, de se adentrar na análise específica do instituto, cumpre destacar que há diversas maneiras pelas quais Direito e Política podem se relacionar, o que foi alterando-se ao longo dos tempos.
Na Antiguidade, a relação entre Direito e Política era tão próxima que praticamente não havia distinção alguma. Um exemplo disso é encontrado na obra Política, de Aristóteles, que mescla indistintamente elementos fáticos, colocando o poder em primeiro plano, e elementos prescritivos, que buscam determinar como devem ser a constituição da pólis. Da perspectiva aristotélica, não haveria razão para que Política e Direito fossem vistos separadamente (ARISTÓTELES, 2002).
Como resultado de eventos históricos, essa visão de união absoluta entre Direito e Política foi sendo abandonada. Maquiavel talvez seja o principal representante dessa nova forma de relação entre Direito e Política. Para ele, a Política deve ser vista como algo que atende exclusivamente a um fim e o Direito não seria determinante para isso. Ele não nega que possa existir uma relação entre Direito e Política, mas, havendo, que seja necessária e inevitável (MAQUIAVEL, 2009).
No século XX, com as atrocidades cometidas pelo regime Nacional Socialista[2] durante a Segunda Guerra Mundial, a preocupação com os abusos que a Política pode exercer como mecanismo de organização e social se acentuou. Assim, o positivismo passou a ser defendido como a forma mais adequada de relação entre a Política e o Direito, justamente para evitar que este fosse utilizado como simples instrumento daquela. Para Kelsen (2002), a política, assim como ideias de justiça, de moral e crenças religiosas, deve ser afastada do objeto de investigação da Ciência Jurídica. Na forma atual, a positivação do Direito mudou substancialmente a relação entre Direito e Política, predominante até então.
Na forma atual, a positivação do Direito mudou substancialmente a relação entre Direito e Política, predominante até então. Essa separação entre Direito e Política pode ser encontrada na obra de vários autores contemporâneos, a exemplo de Niklas Luhmann, que trata desse tema a partir da teoria dos sistemas, através da qual procurou construir um Direito autônomo e fechado (NEVES, 2009).
Dando seguimento, vale ressaltar que a política também é um sistema de comunicação que atua mediante clausura operacional, é autorreferente e produz operações específicas que confirmam a sua diferença funcional, embora o tipo de comunicação seja diferente daquela produzida pelo sistema jurídico (VAZ, 2016).
Em termos práticos, pode-se dizer que o Direito não sofre influência dos demais subsistemas sociais como a política e vice-versa. Apenas para ilustrar, a interferência da Política no Direito é vista pela teoria dos sistemas como um problema que o sistema jurídico deve enfrentar para manter a sua autonomia (LUHMANN, 1983). As decisões judiciais, portanto, devem ser tomadas a partir de argumentos que reflitam o código do sistema jurídico, de modo que argumentos externos são – ou devem ser - rechaçados a priori pelo sistema jurídico. Quando a política interfere no Direito, de modo a comprometer a sua autonomia, ocorre que se convenciona chamar de corrupção sistêmica.
Exatamente por isso o processo de impeachment possui suas peculiaridades, pois não observa um procedimento judicial como ocorre com outras questões, a exemplo da responsabilização por atos de improbidade administrativa[3]. Ele busca assegurar a autonomia política, e essa característica existe desde o surgimento do instituto na Inglaterra.
Diniz (2010), ao tratar do instituto nacionalmente, o define como um processo político-criminal com escopo de apurar crimes de responsabilidade resultantes da má gestão dos negócios públicos, de violação dos deveres funcionais e de falta de decoro.
Em sentido diametralmente oposto, Miranda (1987, p. 417-418) defende a tese de que o impeachment é um processo de natureza penal, não se tratando, portanto, de julgamento político:
O instituo da responsabilidade política é inconfundível com o governo coincidente com a maioria, e que se prendem os fatos políticos da moção de confiança, que é comunicação de vontade de eficácia declarativa do status quo, ou moção de desconfiança, comunicação de vontade, explícita ou implícita, às vezes tácitas, de eficácia constitutiva negativa provável (Inglaterra) ou necessária (parlamentarismo apriorístico). [...] Não; os atos que se encadeiam desde a denúncia ou queixa até a sentença final são atos de processo, para aplicação de regras jurídicas, concernentes ao investido de função pública, regras que incidiram. A fortiori, não se trata se trata de instituo de coincidência da vontade popular com o governo [..]. Temos, pois, que os princípios que regem a responsabilidade do Presidente da República (e de Governadores estaduais e de Prefeitos) são princípios de direito constitucional e princípios de direito processual.
A doutrina majoritária, contudo, assim como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, vem se consolidando no sentido de atribuir ao impeachment natureza mista, sendo em parte de natureza política e em parte de natureza penal, conforme entende Bastos (2002, p. 610).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se consolidou no sentido de ser o impeachment um processo de natureza jurídica e política, ou porque “só pode ser motivado pela perpetração de um crime definido em lei anterior, dando lugar à destituição do cargo e à incapacidade para o exercício de outro qualquer” (PINTO, 1992, p. 151).
O impeachment, portanto, não pode ser confundido com a moção de desconfiança no regime parlamentarista, no sistema de governo parlamentarista, o parlamento tem o poder de destituir o governo, bastando que manifeste seu descontentamento com a política governamental.
O impeachment também não se confunde com o recall, isto é, a revogação popular do mandato (MIRANDA, 1987), instituto peculiar às democracias semidiretas, como é o caso dos Estados Unidos e da Suíça.
Ao contrário da moção de desconfiança no parlamentarismo e do recall nos modelos de democracia semidireta, aqui no Brasil o impeachment pressupõe a configuração e a comprovação de um crime de responsabilidade, como textualmente estabelece a Constituição de 1988[4].
Essa característica do crime de reponsabilidade e o respectivo processo e julgamento, no direito brasileiro, busca obstar que o Presidente da República torne-se refém de maiorias eventuais e seja destituída arbitrariamente (FERNANDES, 2017). Não obstante, há quem defenda, por exemplo, que a ex-Presidente Dilma Rousseff foi vítima de um “golpe”, na medida em que sua destituição se deu arbitrariamente, contando com a maioria do Congresso Nacional. Logo, o processo, como imaginado, foi desvirtuado no caso em comento (MARTUSCELLI, 2020).
Há, ainda, autores como Brossard (1992, p. 128) que defendem tratar-se de uma “técnica adotada pela Constituição para proteger-se de ofensas do chefe do Poder Executivo”, o que leva a reconhecer que o impeachment é uma sanção extrema contra o abuso e a perversão do poder político. Para o autor, o abuso e a perversão descaracterizam a própria razão de ser da democracia, na medida em que o governante passa a exorbitar de suas funções e deixa de atender àqueles que o elegeram, ignorando o bem comum, os anseios da coletividade.
Portanto, e de acordo com a Constituição de 1988, o impeachment não é um processo estritamente político, como a simples moção de desconfiança do sistema parlamentarista. Ele exige a configuração e a comprovação de um crime de responsabilidade, através da apreciação de provas produzidas em contraditório, não podendo o julgamento fundamentar-se simplesmente em juízos informativos. Sem que esteja devidamente configurado e comprovado o crime de responsabilidade, o Poder Legislativo deve recuar, como advertia Rui Barbosa (1953, p. 109):
Raras vezes no moderno regime constitucional, raras vezes no regime republicano, se terá de verificar a acusação do Chefe do Estado, se terá de tornar efetivo esse recurso extremo contra abusos supremos do poder; muitas vezes, reconhecendo mesmo a existência de faltas, de erros e de violação das leis, o Congresso terá de recuar ante as consequências graves de fazer sentar o Chefe do Estado no banco dos réus.
No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 378, o Supremo Tribunal Federal assentou que a Câmara dos Deputados, ao deliberar sobre a admissibilidade do processo de impeachment, emite “um juízo eminentemente político sobre os fatos narrados, que constitui condição para prosseguimento da denúncia”, ao passo que a competência do Senado Federal envolve tanto o “julgamento inicial de instauração ou não do processo” já autorizado pela Câmara, quanto o julgamento final de mérito (BRASIL, 2015).
Há um juízo político a envolver a análise da conveniência e oportunidade na instauração do processo de impeachment, feito pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, e outro, jurídico, relativo à operação de subsunção realizada pelo Senado Federal, como preceitua o art. 86 da Constituição Federal.
O julgamento de mérito feito pelo Senado Federal no processo de impeachment deve observar os pressupostos de condenação definidos pelo sistema jurídico. As engrenagens da estrutura dialógica colaborativa entre os Poderes são aquelas definidas pela Política na Constituição. O impeachment é um processo jurídico-político, instaurado, instruído e julgado por políticos, mas que deve observar, como em qualquer processo sancionatório, o código do sistema jurídico.
Para Neves (2006, p. 89), o Estado de Direito atua como elemento de distinção entre lícito e ilícito para a Política, de modo que todas as decisões do sistema político estão subordinadas ao Direito:
No modelo teórico sistêmico, o Estado de Direito pode ser definido, em princípio, como relevância da distinção entre lícito e ilícito para o sistema político. Isso significa que "todas as decisões do sistema político estão subordinadas ao direito". Não implica, porém, uma indiferenciação do político sob o jurídico. O que resulta é uma interdependência entre esses sistemas. Da presença do segundo código não decorre a superposição das preferências "poder" e "lícito" ou "não-poder" (Ohnemacht) e "ilícito", mas sim que "as disjunções poder/não-poder e lícito e ilícito referem-se reciprocamente". Assim como as decisões políticas subordinam-se ao controle jurídico, o direito positivo não pode prescindir, por exemplo, de legislação controlada e deliberada politicamente.
Desta feita, não se trata de anular a Política através do Direito, mas apenas de colocá-la dentro do quadro constitucional, na medida em que o “tribunal” do impeachment é político, mas o seu julgamento não pode desconsiderar o código primário do sistema jurídico. Se esse tribunal (as Casas Legislativas) pudesse decidir sem que estivesse configurado e comprovado crime de responsabilidade, o impeachment seria equivalente a moção de desconfiança ou mesmo ao recall, com a quebra da autonomia do sistema jurídico.
Destarte, e independentemente de qual seja a instituição detentora da “última palavra”, o fato é que o julgamento do impeachment deve ser pautado pela legislação do sistema jurídico, por se tratar de garantia constitucional do acusado ao devido processo legal.
Estabelecida essa premissa, passa-se a abordar o procedimento e julgamento do impeachment segundo da Constituição Federal e a Lei nº 1.079/1950.
3 IMPEACHMENT: FUNDAMENTOS LEGAIS E ASPECTOS PROCEDIMENTAIS
Na vigência da Constituição brasileira de 1824, o impeachment era um processo criminal destinado a apurar a responsabilidade dos Ministros de Estado, mas não do Imperador (que, nos termos do artigo 99 daquela Constituição, não estava “sujeito a responsabilidade alguma” por seus atos) (BRASIL, 1824). Inspirada no modelo inglês, tendo caracterizado o crime de responsabilidade como ilícito penal, o impeachment não resultava no afastamento do cargo, mas na incriminação da autoridade processada.
Com a República essa orientação mudou. Inspirando-se no símile estadunidense, o constituinte atribuiu ao impeachment natureza jurídica diversa. Ele deixou de ser um processo criminal, julgado pelo Poder Judiciário, para se configurar em juízo político, sob a responsabilidade do Poder Legislativo, sendo que, no Brasil, como dito alhures, prevalece atualmente o entendimento de que se trata de um processo misto, segundo posicionamento dos Tribunais Superiores. Contudo, e como lembra Fernandes (2017), quando do advento da Constituição de 1891, primeira da República, adotou-se o modelo estadunidense do instituto do impeachment.
A Constituição de 1891 previu os crimes de responsabilidade do Presidente da República (artigo 54), bem como a necessidade de duas leis: uma, de direito material, para definição desses delitos, e outra dispondo sobre o processo e julgamento. A Câmara dos Deputados fazia o juízo prévio de admissibilidade, seja para os crimes comuns, seja para os crimes de responsabilidade, cabendo ao Senado Federal, sob a presidência do Presidente do Supremo Tribunal Federal julgar o Presidente da República por crimes de responsabilidade (BRASIL, 1981).
A Constituição de 1934 é documento de época, com características expressivas de seu tempo, marcado por algumas inovações e singularidades. Uma delas foi a consagração de um modelo unicameral no processo legislativo (BONAVIDES, 2009), retirando do Senado Federal a competência para julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade, e atribuindo essa competência a um Tribunal Especial, constituído de 03 (três) Ministros do Supremo Tribunal Federal, 03 (três) Senadores e (03) três Deputados Federais, sob a presidência do Presidente do Supremo Tribunal Federal. O procedimento estava todo contemplado no artigo 58 da Constituição de 1934 (BRASIL, 1934).
A fórmula engendrada pela Constituição de 1934, notadamente em relação ao Tribunal Especial, parece atender a garantia de um julgamento qualificado, defendida por Perlingeiro (2018, p. 162), para quem, a “qualificação técnica dos parlamentares-magistrados é essencial ao controle jurisdicional efetivo sobre uma contenda jurídica e deve ser evidenciada, de modo a conferir credibilidade à decisão a ser proferida”.
A Constituição de 1937 restitui a competência para julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade à Câmara Alta, por ela denominada de Conselho Federal, mediante aprovação prévia da Câmara dos Deputados por 2/3 (dois terços), remetendo a definição desses delitos, bem como o processo e julgamento para uma lei especial (arts. 85 e 86) (BRASIL, 1937).
As Constituições de 1946 e 1967, com pequenas mudanças, mantêm a tônica da Constituição de 1937. A Constituição de 1946 incluiu a sanção de inabilitação por 05 (cinco) anos (BRASIL, 1946) e a de 1967 estabeleceu o prazo de 60 (sessenta) dias, a partir da procedência da acusação, e a suspensão do Presidente do exercício de suas funções para a conclusão do processo, sob pena de arquivamento (artigo 85, §2º) (BRASIL, 1967).
A orientação republicana assenta-se, portanto, na possibilidade de responsabilização, penal e político-constitucional, de seus governantes. A sujeição do Chefe do Poder Executivo às consequências jurídicas e políticas de seu comportamento compõe o postulado republicano adotado por todas as Constituições republicanas brasileiras.
É importante considerar que a Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei nº 1.079/1950), foi formalmente recepcionada pela Constituição de 1988, segundo a interpretação do Supremo Tribunal Federal[5] (BRASIL, 2015).
É precisamente no descompasso histórico entre a Constituição de 1988 e a Lei nº 1.079/1950, que pode residir um defeito estrutural do processo de impeachment no Brasil. Enquanto a Constituição de 1988 exige a prática comprovada de um crime de responsabilidade para destituição do Presidente da República, a lei recepcionada está articulada na lógica de destituição do Presidente muito mais como uma reprovação política de seu desempenho administrativo, provocando a perda do mandato.
Em que pese tal crítica, fato é que de acordo com a Constituição Federal de 1988 e a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950 (BRASIL, 1950), o processo de impeachment do Presidente da República é bifásico, contemplando a apreciação tanto da Câmara dos Deputados quanto do Senado Federal. Permite-se, assim, que a grave deliberação de destituição do chefe do Poder Executivo seja examinada e decidida pelas duas casas do Congresso Nacional, o que se compatibiliza com a sistemática constitucional do bicameralismo no Brasil.
A Câmara dos Deputados é o órgão competente para receber a denúncia e realizar o juízo político de admissibilidade, nos termos dos arts. 51, I, e 86, caput, da Constituição Federal de 1988. Atendido o quórum qualificado de dois terços de seus membros para a admissibilidade, o Senado Federal torna-se o órgão competente para processar e julgar o Presidente da República, nos termos do artigo 52, I, da Constituição Federal de 1988.
Até então não se pode falar, a rigor, em processo propriamente dito. Este só se instaura após o recebimento da denúncia no Senado Federal. Daí que a autorização política da Câmara dos Deputados configura pressuposto processual para o recebimento da denúncia.
Segundo a Constituição brasileira de 1988 (artigo 86), admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade (BRASIL, 1988). O afastamento, em definitivo, do Presidente da República, mediante a imputação da prática de crime de responsabilidade (BRASIL, 1988), implica restrição a direito individual e depende, portanto, de um prévio processo legal, como dispõe o artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição de 1988.
O entendimento atual do Supremo Tribunal Federal sobre o processo de impeachment está definido no acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 378, o qual detalhou aspectos do rito do impeachment na Câmara dos Deputados e no Senado Federal (BRASIL, 2015), mas pouco ou nada avançou sobre a viabilidade e os limites do controle judicial da sentença condenatória proferida pelo Senado Federal.
Anote-se, ainda, que no ordenamento jurídico brasileiro a interrupção do mandato presidencial pelo processo de impeachment, segundo a Constituição Federal, exige a demonstração inequívoca de que o Presidente da República, no exercício do seu mandato, tenha praticado ato que a lei defina como crime de responsabilidade. Mais do que isso: exige que o crime tenha sido praticado dolosamente, o que ocorre “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”, conforme definição do artigo 18, inciso I, do Código Penal, aplicado à lei especial reguladora dos crimes de responsabilidade por força do que dispõe o artigo 12 do mesmo Código. Esse arranjo constitucional, no sistema presidencial, impede que o Presidente da República torne-se refém de maiorias eventuais e seja destituída arbitrariamente.
Pontes de Miranda, comentando a Constituição de 1946, sempre rejeitou a viabilidade de o Presidente da República ser deposto num “julgamento político, sensu stricto”. O julgamento, segundo esse autor, “é jurídico”.
Na vigência da Constituição de 1988, o Pleno do Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante 17, de acordo com a qual “a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento são da competência legislativa privativa da União”.
Tendo em vista a motivação política da denúncia e a forma jurídica de seu processamento, pode-se dizer que os crimes de responsabilidade situam-se a mesmo ponto entre Direito e Política e o seu processo, do mesmo modo, numa área de intersecção entre processo administrativo (parlamentar) e processo penal.
É por essa razão que a doutrina atribui ao impeachment por vezes a natureza de um “processo de acusação de natureza política” (CRETELLA JÚNIOR, 2011, p. 499), “um processo misto (REALE, 2011, p. 545), eminentemente político (PINTO, 2016), ou ainda de um processo de natureza jurídica e mesmo penal (MIRANDA, 1987). Contudo, como já dito, a natureza mista do instituto foi consagrada no atual entendimento do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da Medida Cautelar na ADPF nº 378 (BRASIL, 2015).
Em síntese, a Corte assentou que a natureza do “processo de impeachment é jurídico-política, passível de controle judicial apenas e tão somente para amparar as garantias judiciais do contraditório e do devido processo legal. Além disso, o instituto é compatível com a Constituição e concretiza o princípio republicano, exigindo dos agentes políticos responsabilidade civil e política pelos atos que praticam no exercício de poder” (BRASIL, 2015).
Portanto, e do aqui exposto, percebe-se que o afastamento, em definitivo, do Presidente da República, mediante imputação da prática de crime de responsabilidade, implica restrição a direito individual (perda de cargo e inabilitação para o exercício de outras funções públicas) e depende, portanto, de um prévio processo legal, cujos fundamentos encontram-se no artigo 5º, incisos LIV e LV da Constituição de 1988.
4 O IMPEACHMENT NA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO AMAZONAS E O ENTENDIMENTO DO STF NA ADI 4.771
Como visto nos tópicos anteriores, de acordo com a Constituição de 1988, o impeachment só pode ser submetido ao juízo político do Congresso Nacional quando o Presidente da República houver cometido ato materialmente tipificado como crime de responsabilidade. Em outros termos: no processo de impeachment, Câmara e Senado estão autorizados a exercer suas respectivas competências porque há norma constitucional que lhes garante agir.
Quando a Câmara dos Deputados decide autorizar ou não a abertura de processo contra o Presidente da República, por crime de responsabilidade ou por infração penal comum, estará formulando juízos de constitucionalidade e de legalidade, interpretando e aplicando o Direito. O mesmo ocorre com o Senado Federal por ocasião do julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade, ainda que o faça a partir de conceitos jurídicos indeterminados[6] como, por exemplo, a “probidade na administração”.
Portanto, em se tratando de Presidente da República, a responsabilização por crimes de responsabilidade encontra na Constituição Federal de 1988 e na Lei nº 1.079/1950 seu fundamento, sua razão de ser, que é a preservação da forma de Estado e de governo, sendo que a Lei nº 1.079/1950, embora anterior ao texto constitucional vigente, com ela se coaduna desde que interpretada conforme a Constituição vigente.
Quanto ao impeachment do Governador do Estado, Chefe do Poder Executivo do referido ente estatal, cabe à legislação estadual, em consonância com a federal, inclusive a Constituição de 1988, regulamentar o procedimento para responsabilização por crime de responsabilidade.
Ao analisar o impeachment em nível subnacional, Sgarbossa e Iensue (2020) destacam que coexistem, no país, diversos modelos de impedimento do Chefe do Executivo Estadual, ou seja, tanto cameral (compete apenas ao Poder Legislativo, mormente a Assembleia Legislativa ou Câmara Legislativa, o processamento e julgamento) quanto judicial (julgamento fica a cargo de um Tribunal) e misto (no qual coexistem a atuação do Poder Legislativo e de um Tribunal Especial). Este último modelo, qual seja, o misto, é que se aproxima do modelo adotado em nível federal. Significa dizer, portanto, que não foram todos os Estados que adotaram procedimento semelhante àquele previsto na Lei nº 1.079/1950, no que diz respeito à forma de processamento:
No que diz respeito ao julgamento do governador do Estado, caso mais emblemático e relevante na esfera estadual, prepondera largamente, no texto das constituições estaduais, o modelo cameral, embora haja alguns Estados dele tenham se apartado em princípio, acabando por adotar em suas cartas, originalmente, o sistema misto de julgamento por tribunal ad hoc ou especial, como se verá em maior detalhe – e embora recentes decisões proferidas pelo STF tenham exercido forte impacto na matéria. No que diz respeito ao impedimento de outras autoridades estaduais ou municipais, as diversas constituições tenderão a adotar hipóteses que se amoldam ao modelo cameral e hipóteses que se amoldam ao modelo judicial (SGARBOSSA; IENSUE, 2020, p. 09).
Buscando exemplificar as diferenças quanto à regulamentação pelos Estados, Sgarbossa e Iensue (2020) citam a Constituição do Estado de Minas Gerais, promulgada em 1989, que prevê a competência da Assembleia Legislativa do Estado no que diz respeito à admissibilidade do processo para eventual responsabilização do Governador do Estado por crimes de responsabilidade, a teor do que dispõe o art. 91, § 3º[7], e art. 62, incisos XIII e XIV.
Não obstante, a mesma Constituição do Estado de Minas Gerais também prevê algumas hipóteses de atribuição de poderes ao Tribunal de Justiça, a exemplo do processamento e julgamento do impedimento de Secretários de Estado, juízes do Tribunal de Justiça Militar, juízes de Direito e membros do Ministério Público, por exemplo (SGARBOSSA; IENSUE, 2020).
Portanto, Minas Gerais adotou um sistema semelhante àquele que vigora no âmbito federal, com a coexistência do modelo cameral e judicial, a depender da hipótese, ou seja, daquele que será julgado.
Porém, o que ocorre no Estado de Minas Gerais, citado por Sgarbossa e Iensue (2020), não se repete em todos os Estados da Federação. Diversas são as divergências que se notam nas Constituições Estaduais, não sendo possível apontar um modelo único ou padrão, em nível subnacional. Por exemplo, no que tange o quórum para admissibilidade, a quase totalidade dos Estados brasileiros preveem a competência para análise da Assembleia Legislativa e exige 2/3 para que o procedimento tenha início. Porém, a Constituição da Paraíba diverge sobremaneira, pois prevê maioria absoluta (SGARBOSSA; IENSUE, 2020).
Quanto ao julgamento também há divergências. Estados como Pernambuco, Rio Grande do Norte e São Paulo consagram a competência para julgamento e condenação do Tribunal Especial, sendo que os demais asseguram à Assembleia Legislativa, ou a Câmara Legislativa, no caso do Distrito Federal, tal competência (SGARBOSSA; IENSUE, 2020).
Quanto ao quórum para condenação a divergência é ainda maior. Várias Constituições Estaduais, a exemplo da Constituição do Estado do Amazonas, é omissa, tal como também ocorre com os Estados da Bahia e Mato Grosso do Sul, e outros. Já Estados como Rondônia e Sergipe preveem 2/3 para votação, enquanto Roraima exige maioria de votos (SGARBOSSA; IENSUE, 2020).
Sem a pretensão de esgotar a questão, verifica-se que não há uma padronização na regulamentação do procedimento em nível estadual, o que decorre até mesmo do modelo federativo e da autonomia concedida aos entes federados para diversas questões.
Diante disso é que Sgarbossa e Iensue (2020) concluem que a maioria esmagadora das Constituições Estaduais, num total de 24, endossam o modelo cameral adaptado, “reservando a competência para admissibilidade e para processo do impeachment dos governadores ao legislativo estadual”, enquanto uma parte significativa prevê a maioria qualificada, ou seja, 2/3 dos integrantes da Assembleia Legislativa, seja para a admissibilidade (26 Constituições Estaduais), seja para julgamento de procedência (13 Constituições Estaduais), aderindo assim ao modelo federal.
Para os autores supracitados, portanto, embora não seja possível apontar um padrão na regulamentação do processo de impeachment em nível subnacional, apenas três Constituições Estaduais, a saber, dos Estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte e São Paulo, é que adotam uma jurisdição mista, enquanto apenas duas Constituições Estaduais – Paraíba e Roraima é que disciplinam o julgamento do impeachment de forma diversa da Lei nº 1.079/1950 (SGARBOSSA; IENSUE, 2020).
Das breves considerações acima verifica-se que há assimetria entre a legislação federal, mormente a Constituição Federal de 1988 e a Lei nº 1.079/1950, e as normas subnacionais no que diz respeito principalmente à recepção do sistema cameral pelos Estados-membros da Federação.
Não se pode ignorar que as adequações são imprescindíveis, uma vez que há, no âmbito federal, o bicameralismo, ou seja, Senado Federal e Assembleia Legislativa. Já no âmbito estadual, por força do art. 27 da Constituição Federal de 1988, adota-se o modelo unicameral, contando apenas com uma casa legislativa, e não duas.
Portanto, não há como reproduzir, nas Constituições dos Estados-membros, o que dispõe, por exemplo, o art. 80 da Lei nº 1.079/1950, que dispõe sobre a atuação das duas Casas do Congresso Nacional, uma atuando como tribunal de pronúncia ou acusação e outra voltada ao julgamento (BRASIL, 1950). Daí, repita-se, as necessárias adequações.
Em meio a esse cenário é que Sgarbossa e Iensue (2020) apontam que o unicameralismo estadual afasta a própria essência do processo de impeachment, na medida em que este pressupõe duas Casas legislativas, com funções bem diversas. Quando se adota o unicameralismo, para os autores supracitados, há uma repercussão negativa na lógica inerente ao instituto em comento, pois o modelo cameral, adotado pela maioria dos Estados-membros, leva a Assembleia Legislativa a atuar como tribunal de pronúncia e julgamento. Daí a afirmativa de que apenas Pernambuco, Rio Grande do Norte e São Paulo preveem a competência do Tribunal Especial para julgamento, afastando do Legislativo estadual a competência para processar e julgar.
Dando seguimento, tem-se que no Estado do Amazonas, cuja Constituição foi promulgada em 1989, prevalece, então, quanto à admissibilidade, a competência da Assembleia Legislativa, com quórum de 2/3 dos membros da Casa (art. 56, Constituição do Estado do Amazonas); e, a competência para julgamento e condenação, também é da Assembleia Legislativa (art. 56, Constituição do Estado do Amazonas), sendo a Constituição do Estado omissa quanto ao quórum para condenação do Governador do Estado.
De fato, e a teor do que dispõem os arts. 55 e seguintes da Constituição do Estado do Amazonas, o pedido de responsabilização do Governador, no Estado do Amazonas, será admitida por dois terços dos integrantes da Assembleia Legislativa e submetido à julgamento perante o Superior Tribunal de Justiça, nos casos de infrações penais comuns, ou perante a própria Assembleia Legislativa, nos crimes de responsabilidade (AMAZONAS, 1989).
Nos termos do § 1º, do art. 56 da Constituição do Estado em comento, o Governador ficará suspenso desde o recebimento da denúncia ou queixa-crime pelo Superior Tribunal de Justiça, quando se tratar de infrações penais comuns, ou após a instauração do processo pela Assembleia Legislativa, nos crimes de responsabilidade (AMAZONAS, 1989).
O § 2º, por sua vez, dispõe que cessará o afastamento do Governador do Estado caso o julgamento não seja concluído no prazo de 180 dias, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo de impeachment (AMAZONAS, 1989). Tem-se, também, disposição semelhante ao § 2º, do art. 86 da Constituição Federal de 1988.
O art. 57 da Constituição do Estado do Amazonas é o último da Seção III, que trata da responsabilidade do Governador, demonstrando como é superficial a disciplina do impeachment do Chefe do Executivo Estadual, já que não trata de maneira analítica o procedimento de impeachment, nem remete a questão a lei específica.
Nesse ponto ganha relevo a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.771, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2017, que declarou a inconstitucionalidade da expressão “admitida por dois terços dos integrantes da Assembleia Legislativa, a acusação contra o Governador do Estado” e “ou perante a Assembleia Legislativa nos crimes de responsabilidade” (BRASIL, 2017).
A ADI em comento foi ajuizada ainda em 2012 para questionar exatamente a constitucionalidade o art. 56 da Constituição do Estado do Amazonas[8], bem como o disposto no art. 28, inciso XXI, do mesmo texto constitucional[9]. O autor da ação foi o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
Os dispositivos acima mencionados estabelecem a competência da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas para processar e julgar o Governador nos crimes de responsabilidade, bem como determinam a necessidade de autorização da Casa Legislativa, pelo voto de 2/3 dos seus membros, para que o Chefe do Executivo Estadual seja submetido à julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça em infrações comuns, e pela própria Assembleia em crimes de responsabilidade.
A alegação do autor da ADI é que os dispositivos mencionados violam formal e materialmente o disposto nos art. 1º, 2º, 5º, XXXV e LIV, e 22, I, todos da Constituição Federal de 1988, principalmente por estabelecerem regras processuais para processamento e julgamento dos crimes eventualmente praticados pelo Governador do Estado, contrariando entendimento do Supremo Tribunal Federal quanto à competência reservada à União[10].
Acrescentou o autor da ADI que há, na legislação federal, mormente a Lei nº 1.079/1950, normas próprias para o julgamento de crimes de responsabilidade praticados pelo Governador do Estado, por um Tribunal Especial de composição mista, ou seja, formado por membros do Poder Judiciário e do Legislativo.
Logo, quando trata do julgamento pela Assembleia Legislativa, afasta o sistema misto e adota o cameral, como já apontado alhures.
Continua o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil que a regulamentação diversa daquilo que dispõe a Lei nº 1.079/1950, principalmente quanto à composição mista para julgamento, clama a intervenção da mais alta Corte para obstar assimetria.
Outrossim, vislumbra também a inconstitucionalidade no que diz respeito à necessária autorização da Assembleia Legislativa para a instauração de persecução criminal em desfavor do Governador do Estado ou outras autoridades estaduais e distritais, o que inexiste na Constituição Federal de 1988. Desta feita, na visão do autor da ADI, não há que se falar em se estender condição de procedibilidade penal que se aplica ao Presidente da República ao Governador do Estado, por violação ao princípio republicando e a separação de Poderes, sendo inconstitucional a exigência de autorização do Poder Legislativo prevista no texto da Constituição do Amazonas, na medida em que inviabiliza a persecução criminal das autoridades dada a realidade dos arranjos políticos que existem no âmbito dos Estados-membros.
Nesse contexto é que buscou a declaração, em medida liminar, da inconstitucionalidade dos artigos já mencionados e, ao final, a interpretação conforme da Constituição Federal de 1988 aos artigos da Constituição do Estado do Amazonas, com vistas a estabelecer que o julgamento do Governador do Estado seja pautado no previsto no art. 78 da Lei nº 1.079/1950, ou seja, um Tribunal Especial, misto.
Julgada em 09 de junho de 2017, a Corte Suprema destacou a incompetência do Estado-membro para legislar acerca de processo e procedimento em casos de responsabilização do Governador do Estado e outros por crime de responsabilidade, ressaltando o que já havia sido decidido no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 5.540 e nº 4.798[11].
A assimetria entre o disposto na Constituição do Estado do Amazonas e o que prevê a Constituição Federal de 1988 é, talvez, o ponto central da discussão no Supremo Tribunal Federal, na medida em que não se exige, no âmbito federal, obrigatoriedade de autorização da Assembleia Legislativa para procedimento de julgamento do Governador do Estado por crime comum ou por crime de responsabilidade.
E a previsão que há, quanto à autorização para processar o Chefe do Executivo Federal se justifica, na medida em que eventual afastamento alcança não apenas o Chefe de Governo, mas também o Chefe de Estado, o que gera graves consequências ao país. Em se tratando de Governador, segundo o Supremo Tribunal Federal, estender a exigência de autorização prévia, tal como ocorre no art. 51, inciso I e art. 86, caput, § 1º, inciso I, ambos da Constituição Federal de 1988, aos Chefes do Executivo Estadual, é ignorar as peculiaridades de cada Chefe do Executivo e o fato de que eventual afastamento do Governador retira tão somente o Chefe de Governo da unidade federativa, que embora possua autonomia não é soberana.
Por conseguinte, a assimetria, nesse ponto, se justifica, pois exigir autorização prévia para processar um Governador do Estado viola sim, o princípio republicano, como expos o Relator da ADI nº 4.771:
O processamento e julgamento de Governador do Estado por crime comum já foi alçado à jurisdição especial do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, a, CRFB) para o fim de se evitar que a persecução criminal contra o Governador esteja permeada por vícios ou influências políticas regionais. Querer estabelecer, além dessa prerrogativa, uma condição de procedibilidade não prevista pela Constituição é estabelecer privilégio antirrepublicano (BRASIL, 2017).
Ainda, segundo o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, na busca de simetria a Constituição do Estado do Amazonas ignorou a separação dos Poderes ao exigir a autorização prévia, o que é inviável em um Estado também pelos arranjos governamentais, não sendo raro que os Chefes do Executivo Estadual possuam amplo apoio na Assembleia Legislativa, para assegurar a governabilidade, o que pode gerar problemas em casos de eventual responsabilização.
Nesse contexto é que o Supremo Tribunal Federal, em decisão de relatoria do Ministro Edson Fachin, julgou procedente a ADI nº 4.771, para:
“(i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “admitida por dois terços dos integrantes da Assembleia Legislativa a acusação contra o Governador do Estado”, constante do caput do art. 56, da Constituição do Estado do Amazonas; (ii) declarar a inconstitucionalidade das expressões “processar e julgar o Governador” e “nos crimes de responsabilidade”; “ou perante a Assembleia Legislativa nos crimes de responsabilidade”, contidas, respectivamente, no inciso XXI do art. 28 e no caput do art. 56, todos da Constituição do Estado do Amazonas; (iii) declarar a inconstitucionalidade por arrastamento do inciso I, §1º do art. 56, da Constituição do Estado do Amazonas (BRASIL, 2017).
A decisão transitou em julgado em 10 de agosto de 2017, mas é bom ressaltar que o texto da Constituição do Estado do Amazonas não foi alterado[12] até a presente data, apesar da declaração da inconstitucionalidade de trechos do disposto no art. 56.
Resta, portanto, que não podem os Estados-membros, como fez o Estado do Amazonas, disciplinar o impeachment ao arrepio do que dispõe a Constituição Federal de 1988 e a Lei nº 1.079/1950, principalmente no que diz respeito à exigência de prévia autorização do Poder Legislativo Estadual para processamento e julgamento do Chefe do Executivo. E, deve ainda, assegurar o julgamento por um Tribunal Especial, ou seja, um julgamento misto, com integrantes do Poder Legislativo e do Judiciário.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se, ao longo deste estudo, refletir sobre o processo de impeachment, previsto na Constituição Federal de 1988, e que busca assegurar a responsabilização do Chefe do Executivo Federal, trazendo a análise para o Estado do Amazonas, à luz do entendimento do Supremo Tribunal Federal consagrado no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.771.
Verificou-se que de origem inglesa, e com alterações quando disciplinado nos Estados Unidos da América, o impeachment é de grande relevo na responsabilização do Chefe do Executivo, estando previsto no ordenamento jurídico brasileiro desde a primeira Constituição, ainda na fase imperial, outorgada em 1824.
Constatou-se, também, que desde então o instituto sofreu diversas alterações, inclusive quanto à sua própria natureza, pois se inicialmente era iminentemente criminal, com o advento da Constituição Federal de 1988 tem sua natureza mista consagrada (no qual coexistem a atuação do Poder Legislativo e de um Tribunal Especial), entendimento este pacificado no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Viu-se, ainda, que a Lei nº 1.079/1950, embora editada antes da vigente Constituição Federal, é o diploma legal que regulamenta o instituto do impeachment, e prevê, em apertada síntese, o julgamento por um Tribunal Especial, misto, atendo à estrutura bicameral da União, ou seja, a existência de duas Casas Legislativas.
No que se refere aos Estados-membros, constatou-se que na busca por simetria, mormente quanto à necessária autorização da Assembleia Legislativa para processamento e julgamento do Governador do Estado por crimes comuns e de responsabilidade, o constituinte estadual acabou por incorrer no vício de inconstitucionalidade. Isso se deve porque não se pode equiparar o Governador ao Presidente da República, que como sabido é o Chefe de Governo e o Chefe de Estado e, por isso, o seu afastamento gera consequências muito graves para o país.
Portanto, coube ao Supremo Tribunal Federal apreciar a constitucionalidade da exigência de autorização prévia da Assembleia Legislativa do Amazonas, mas também o julgamento por esta Casa Legislativa em caso de crimes de responsabilidade. A questão foi objeto da ADI nº 4.771, julgada em 2017, e que declarou a inconstitucionalidade do disposto no art. 56, caput, da Constituição do Estado do Amazonas, e determinou a intepretação conforme a Constituição da República.
Resta, portanto, que embora a assimetria seja geralmente alvo de críticas, em se tratando do processo de impeachment em nível subnacional deve ser respeitada, até mesmo porque não se pode criar obstáculos à responsabilização do Governador do Estado, seja por crimes comuns, quando será julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, seja por crimes de responsabilidade, quando o Tribunal Especial será responsável pelo julgamento, a teor do que dispõe a Lei nº 1.079/1950.
Contudo, não se pode ignorar que a maioria dos Estados-membros da Federação preveem o julgamento pela Assembleia Legislativa, até mesmo porque não há, no âmbito dos Estados, o sistema bicameral que norteia o Legislativo Federal, o que é alvo de críticas quanto à própria essência do impeachment em nível subnacional.
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[1] Doutor em Ciências Jurídicas pelo PPGCJ/UFPB. Mestre em Direito pela UFRN. Professor do curso de Direito da Universidade Federal do Amazonas – UFAM e da Faculdade Metropolitana de Manaus – FAMETRO.
[2] O Regime Nacional Socialista, em alemão Nationalsozialismus, foi um movimento ideológico-político totalitário instituído por Adolf Hitler entre os anos de 1993 e 1945, na Alemanha, que se baseava na doutrina nazista e assentava-se fundamentalmente na supremacia estatal sobre o indivíduo, exaltando a superioridade dos arianos sobre os demais povos. Decorreu do regime de extrema-direita que surgiu no Estado Alemão ainda na década de 1920 e teve seu ápice na segunda metade da década de 1930.
[3] Prevista no artigo 37, §4º da Constituição, regulamentado pela Lei nº 8.429/1992, alterada pela lei nº 14.230/2021.
[4] Ao tratar especificamente da responsabilidade do Presidente da República, a Constituição de 1988 primeiro adota uma tipificação jurídico-política dos crimes de responsabilidade (art. 85 e seus incisos), depois exige lei especial em sentido estrito para definição destes crimes e das respectivas normas de processo e julgamento (art. 85, parágrafo único), e por fim, atribui à Câmara dos Deputados o poder de admitir ou a denúncia (arts. 51, inciso I, e 86, caput) e ao Senado Federal o de instaurar o processo (art. 86, § 1º, inciso II) e de processar e julgar o Presidente (arts. 52, inciso I, e parágrafo único, e 86, caput).
[5] O entendimento atual do Supremo Tribunal Federal sobre o processo de impeachment está definido no acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 378.
[6] Paulo Nader traz a diferença entre conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas abertas, e define que em ambos há certa vaguidade nos conceitos, todavia, naqueles a vaguidade está na hipótese, ou seja, no campo de aplicação (NADER, 2017)
[7] Tratando da responsabilidade do Governador do Estado, a Constituição do Estado de Minas Gerais dispõe que nos crimes de responsabilidade, o Governador será submetido a processo e julgamento perante a Assembleia Legislativa, se admitida a acusação por dois terços de seus membros.
[8] Art. 56. Admitida por dois terços dos integrantes da Assembleia Legislativa a acusação contra o Governador do Estado, será ele submetido a julgamento perante o Superior Tribunal de Justiça, nas infrações penais comuns, ou perante a Assembleia Legislativa, nos crimes de responsabilidade.
§ l.º. O Governador do Estado ficará suspenso de suas funções:
I - desde o recebimento da denúncia ou queixa-crime pelo Superior Tribunal de Justiça, quando se tratar de infrações penais comuns;
II - após a instauração do processo pela Assembleia Legislativa, nos crimes de responsabilidade.
§ 2º. Cessará o afastamento do Governador do Estado se o julgamento não estiver concluído no prazo de cento e oitenta dias, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo
[9] Art. 28. É da competência exclusiva da Assembleia Legislativa:
[...]
XXI - processar e julgar o Governador e o Vice-Governador, nos crimes de responsabilidade, e os Secretários de Estado, nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles (AMAZONAS, 1989).
[10] No julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 5.540 e nº 4.798, o Supremo Tribunal Federal já havia se manifestado quanto à inadmissibilidade de autorização da Assembleia Legislativa dos Estados para processar e julgar os governadores pela prática de crimes comuns. A ADI nº 5.540 foi julgada em 2017 e questionou o disposto no art. 92 da Constituição do Estado de Minas Gerais, enquanto a ADI nº 4.798, também julgada em 2017, questionando a constitucionalidade de trechos de dispositivos da Constituição do Estado do Piauí. Em ambos os julgamentos as normas questionadas dispunham sobre processo e julgamento de crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas) dos Chefes do Executivo Estadual, e condicionando à prévia autorização da Assembleia Legislativa a instauração, perante o Superior Tribunal de Justiça, de ação penal em caso de crime comum, de forma semelhante à Constituição do Estado do Amazonas.
[11] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4995078 e https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4258992.
[12] A decisão que declara a inconstitucionalidade de uma lei tem eficácia genérica, válida contra todos e obrigatória. A lei também diz que se gera o efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal, que não podem contrariar a decisão. Portanto, o fato de não ter sido alterado o texto da Constituição do Estado do Amazonas, até o presente momento, não afasta a inconstitucionalidade da norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e muito menos autoriza a sua aplicação.
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERNANDES, Lucas Pinto. Análise do processo de impeachment estadual à luz da Constituição Federal, da Lei nº 1.079/1950 e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (ADI 4.771) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 maio 2023, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61478/anlise-do-processo-de-impeachment-estadual-luz-da-constituio-federal-da-lei-n-1-079-1950-e-da-jurisprudncia-do-supremo-tribunal-federal-adi-4-771. Acesso em: 23 dez 2024.
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