RESUMO: Apesar de o ativismo judicial estar sendo debatido no mundo jurídico há mais de uma década, recentemente a temática ganhou uma nova conotação ao se popularizar no seio social, de forma equivocada e por meio de uma confusão semântica, de forma que o povo passou a confundir decisões judiciais contramajoritárias com decisões ativistas. Essa prática famigerada de financiamento da desinformação vem acarretando um notório desgaste do Poder Judiciário, principalmente do Supremo Tribunal Federal, a quem compete decidir questões da mais alta complexidade, de forma que guarneça e faça prevalecer os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.
Palavras-chave: Ativismo Judicial; Contramajoritárias; Direitos Fundamentais.
JUDICIAL ACTIVISM AND THE JUDICIALIZATION OF POLICY AGAINST THE CONSTITUTIONAL JURISDICTION
ABSTRACT: Although judicial activism has been debated in the legal world for more than a decade, the theme has recently gained a new connotation when it was mistakenly popularized in society, through a semantic confusion, so that people began to confuse decisions. countermajoritarian judicial decisions with activist decisions. This infamous practice of financing disinformation has been causing a notorious erosion of the Judiciary, especially the Federal Supreme Court, which is responsible for deciding issues of the highest complexity, in a way that guarantees and enforces the fundamental rights provided for in the Federal Constitution.
Keywords: Judicial Activism; countermajoritarian; Fundamental rights.
1. INTRODUÇÃO
Não obstante o fenômeno ativismo judicial atualmente seja difundido mundialmente, foi no território estadunidense que o historiador Arthur Schlesinger, influenciado pelo cenário econômico da época, publicou o artigo The Supreme Court: 1947, na Revista Fortune, relatando a atuação ativista da Suprema Corte dos Estados Unidos da América frente às medidas político-econômicas do, na época Presidente Ameriacano Roosevelt, ao declarar inconstitucionais as leis que favoreciam pacotes de medidas econômicas do governo.
Embora o termo tenha surgido apenas em 1947, a Corte Americana já apresentava uma postura ativista, tendo como emblemático o caso Marbury v. Madison, em que a Corte, liderada pelo Juiz Jonh Marshal, mesmo não amparado pela Constituição Americana, exerceu controle difuso de constitucionalidade.
No Brasil, o termo ativismo judicial ainda é embrionário, carente de uma conceituação firme, rígida, impeditiva das mais diversas interpretações. Isso porque atualmente inexiste liame delimitador entre ativismo judicial e judicialização da política, considerando-se ativista toda e qualquer decisão que, aos olhos dos desinformados, ultrapasse a esfera dos demais poderes, olvidando-se dos direitos fundamentais previstos e garantidos pela Constituição Federal.
A complexidade do conteúdo é incalculável, decerto quando se trata de temática abstraída e importada de um sistema jurídico diverso do brasileiro, que historicamente influenciado pelo sistema romano-germânico da Civil Low, em que adota a lei como principal fonte do direito, envereda de forma a se aproximar, cada vez mais, do sistema anglo-saxônico do Common Low, sistema que enaltece a jurisprudência através dos usos e costumes, secundarizando a lei positivada.
Após a segunda guerra mundial, período catastrófico e avassalador dos direitos humanos, comprovou-se a ineficácia do direito positivo, surgindo a corrente pós-positivista, de forma que houve uma reaproximação entre o direito, moral e ética, reconhecendo os princípios como normas jurídicas dotadas de normatividade, além das regras jurídicas, tudo em busca de decisões mais justas. Sob esse novo prisma, após longos anos de uma política autoritária, em 1988 surge uma nova Constituição, denominada Constituição Cidadã. Dotada de força normativa, firma o Poder Judiciário como protagonista da jurisdição constitucional de forma que possa concretizar os mais diversos direitos e garantiais fundamentais nela previstos, sejam eles direitos sociais, individuais, políticos, dentre outros direitos garantidos constitucionalmente.
Georges Abboud conceitua ativismo como sendo[1] toda decisão judicial que se fundamente em conviccções pessoais ou no senso de justiça do intérprete, à revelia da legalidade vigente, entendida aqui como legitimidade do sistema jurídico, e não como mero positivismo estrito ou subsunção rasteira do fato ao texto. O autor defende que não devemos confundir ativismo judicial como mera concretização da Constituição, problema que o Brasil atualmente vem enfrentando, já que diuturnamente, o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, ao proferir julgamentos e concretizar direitos fundamentais, vem sofrendo severas críticas diante do cenário de desinformação que vivenciamos.
Não ousaria discutir que não há decisão ativista por parte de alguns membros do judiciário, nem que decisões ativistas são boas ou ruins, ao contrário, antecipadamente firmo entendimento acerca da existência de decisões ativistas, que elas não estão adstritas à Suprema Corte, e que não há ativismo bom, pois a partir do momento que o juiz, no exercício do Poder Jurisdicional, em busca de uma decisão justa, se afasta das leis em prol de convicções pessoais, desconfigurando legislação em conformidade com a constituiçao existente, de forma a criar direitos, há sim, uma sobreposição aos demais poderes legítimos, configurando um evidente ativismo judicial.
Note-se que o mundo vem sofrendo transformações, que essa tendência mais atuante do judiciário não se limita ao cenário nacional, mas que no Brasil ganha relevância diante do Princípio da Separação dos Poderes, quando o judiciário adentra no Poder Executivo ao decidir acerca de alguma política pública, e do Poder Legislativo ao exercer o controle de constitucionalidade, seja ele difuso ou concentrado, assim como ao tomar decisões dotadas de eficácia erga omnes, como veremos no decorrer do presente trabalho.
São várias as razões, portanto, que conduzem o judiciário a uma atuação mais ativa, destarte, necessário que haja compreensão da diferença entre decisões solipsistas, dotadas de abstratividade, discricionariedade e, porque não, arbitrariedade, de judicialização da política, sob pena do enfraquecimento do Estado Democrático de Direito, das Instituições e dos Poderes já consagrados em nossa Constituição, embora haja um populismo autoritário saudosista que tenta desconstruir a nossa Democracia.
2.DEMOCRACIA E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Visando entender essa crise política que hodiernamente o Brasil vive, imprescindível adentrarmos no tema democracia e estado democrático de direito. De origem grega, o termo demos significa povo, enquanto Kratia significa governo, que quer dizer governo do povo. Esse tipo de regime político ganhou proeminência com o fim da segunda guerra mundial, quando houve uma mobilização internacional pela manutenção da paz e das garantias aos direitos humanos, de forma que os países, com prisma na dignidade da pessoa humana, passaram a abandonar regimes autoritários e adotar o regime democrático. Adepto de tal regime político, Bobbio defende que “a democracia é o único caminho possível para um sistema político que vise o bem da população”. Como reflexo de tal adesão, em 1945 foi criada a Organização das Nações Unidas – ONU e, três anos após, proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No Brasil, nem sempre a democracia prevaleceu, sendo considerada uma realidade bastante recente, tendo perpassado por longos e árduos conflitos até que se chegasse em sua “plenitude”. Embora tenha havido alguns poucos momentos de tentativa de se implementar a democracia no Brasil, principalmente com o advento do período republicano, tais períodos foram interrompidos por duros golpes militares e ditatoriais, acarretando num verdadeiro retrocesso mediante intensa repressão e violenta restrição de direitos civis e políticos. Apenas a partir da década de 80, iniciou-se o movimento popular das Diretas Já, período em que os brasileiros, após diversos anos de opressão, foram às ruas clamar por eleições diretas, de forma que pudessem, de forma legítima, escolher seus representantes, consolidando-se a plena democratização com a promulgação da Constituição Federal de 1988, mais conhecida como Carta Cidadã.
Somente sob a égide da Constituição de 1988 houve o pleno direito ao sufrágio universal, consolidando-se tal direito como cláusula pétrea, com o nítido objetivo de assegurar o exercício da cidadania a todos, implementando mecanismos que viabilizam a efetiva participação popular em decisões políticas do país, além de garantir diversos direitos sociais, individuais e coletivos. Num país democrático, portanto, as decisões políticas do país devem estar em conformidade com o desejo do povo, com a vontade popular, sendo efetivado no Brasil através do modelo representativo, de forma que o povo elege seus representantes para tomarem decisões em nome deles.
Daí advém o estado de direito, já que para concretização dos direitos previstos na Constituição e garantia do modelo político democrático, o Estado deve ter seu poder limitado às leis e ao direito, não podendo o Estado, através de seus representantes, ultrapassar os limites legais. Nesse diapasão, o Brasil não apenas adota o Estado de Direito, mas em complemento, o estado democrático de direito, pois além de o Estado ter as leis como limites de atuação, os direitos fundamentais instituídos devem ser sopesados na tomada de decisões, com vistas a garantir e proteger os direitos dos cidadãos, os reais detentores do poder.
3.A SEPARAÇÃO DOS PODERES E O SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS
A expressividade da temática ativismo judicial traz à tona uma rediscussão acerca do princípio da Separação dos Poderes, consagrado na Constituição Federal de 1988 como direito fundamental. Isto porque, os críticos defendem a tese de que decisões ativistas afrontam o estado democrático de direito e a separação dos poderes, quando o judiciário interfere em decisões que deveriam ficar restritas aos Poderes Legislativo e Executivo.
A teoria da separação dos poderes se discute há milhares de anos, não sendo tema recente, nem restrito ao direito brasileiro. Platão[2], em sua obra “A República” já previa noções de separação e limitação do poder quando discorre acerca da necessidade de distribuição de funções entre os membros de uma comunidade, como sinônimo de justiça. Discípulo de Platão, Aristóteles, na obra “A Política” reacende a discussão acerca da separação dos poderes, dividindo o governo nos poderes deliberativo, executivo e judiciário. Outros grandes filósofos contribuíram, consideravelmente, para a atual sistemática da teoria da separação dos poderes que hoje vigora no Brasil, mas foi o filósofo francês Montesquieu[3], impulsionado pelas ideias de John Locke, no livro “Do Espírito das Leis” que impulsionou a ideia de implementação da divisão tríplice dos poderes, não se limitando a separar os poderes, mas também delimitar a função de cada um deles. São eles: poderes legislativo, executivo e judiciário, encarregados de legislar, administrar e julgar, respectivamente. Vejamos:
Há em cada Estado três espécies de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Pelo primeiro pode o príncipe ou magistrado cria as leis para um tempo determinado ou para sempre, e corrige ou ab-roga aquelas que já estão feitas. Pelo segundo, determina a paz e ou guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as questões dos indivíduos. Chamaremos este último “o poder de julgar”, e o outro chamaremos simplesmente “o poder executivo do Estado.
[...] tudo estaria perdido se o mesmo ou o mesmo corpo de principais, ou o dos nobres, ou o do povo, exercesse esses três poderes: o de criar leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes e as querelas dos particulares.
Influenciadas pela teoria de Montesquieu, todas as Constituições brasileiras preveem o princípio da separação dos poderes, com exceção da Era Vargas, em que tal preceito não ficou definido no texto constitucional. Na Constituição Cidadã, o princípio da Separação dos Poderes, elevado ao status de cláusula pétrea pelo Art. 60, §4º, está previsto expressamente no Art. 2º da CF/88. In Verbis:
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;
II - do Presidente da República;
III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
§ 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.
§ 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.
§ 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
§ 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.
Observa-se, portanto, a tripartição dos poderes no ordenamento jurídico brasileiro, independentes e harmônicos entre si, de forma que cabe ao Poder Legislativo legislar por meio do Congresso Nacional no âmbito da União, à Assembléia Legislativa, no âmbito dos Estados e à Câmara Municipal, no âmbito dos Municípios. Ao Poder Executivo cabe a chefia do Estado, do governo e da administração pública, sendo exercido pelo Presidente da República, com auxílio dos Ministros de Estado, no âmbito da União, aos Governadores de Estado, com auxílio dos secretários de estado, no âmbito dos Estados, e dos Prefeitos, com auxílio dos Secretários municipais, no âmbito dos Municípios. Por fim, cabe ao Poder Judiciário, por meio dos Juízes e Tribunais, a tarefa de julgar, substituindo a vontade das partes.
Em um Estado de Direito, não seria suficiente delimitar a função de cada poder, visto que os poderes devem ser limitados de forma que resguardem os intereses do povo. Para isso, além da distribuição de funções, típicas ou atípicas, a Constituição prevê controle entre os poderes, de forma que tal controle não prejudique a independência e a harmonia entre eles, ao contrário, permite que garanta o equilibrio necessário à manutenção da democracia e da concretização dos direitos fundamentais, denominando-se tal fenômeno como sistema de freios e contrapesos (checks and balances).
4.O NEOCONSTITUCIONALISMO E A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA
Desde os primórdios, a aplicação do direito e a conceituação do significado de justiça sofre influências diretas das correntes filosóficas do direito. Para os jusnaturalismo, ou escola de direito natural, se dava primazia aos princípios e regras naturais, de origem divina, mas por ser considerado abstrato e anticientífico, baseado em pressupostos metafísicos, acabou cedendo espaço para a escola positivista.
A corrente positivista tratou de equiparar o direito à letra fria da lei, dissociando-se totalmente da ética, da moral e dos valores. Direito seria o que está positivado em texto legal, tenho ganho diversos defensores, visto prezar pela segurança jurídica e reduzir o grau de subjetividade na aplicação do direito. A segunda guerra mundial, no entanto, foi preponderante para desmistificar a perfeição da corrente positivista. Isto porque evidenciou-se, com as inúmeras atrocidades e violações aos direitos humanos, que a lei, por si só, seria incapaz e insuficiente para explicar o direito, já que não se analisa se a lei é justa ou injusta, mas sua mera literalidade.
Da decadência do positivismo, surge a escola pós-positivista, não mais aceitando o império da lei tirânica, aproximando a moral e os valores ao direito, buscado parâmetros de justiça e equidade quando da aplicação do direito. Carreando os valores necessários a se buscar uma decisão justa, os princípios ganharam uma nova dimensão, passando ao centro dos sistemas constitucionais e levando consigo os valores que lhe dão sustentação. Essa corrente, ao contrário do que alguns pensam, não significa uma ruptura com o positivismo, mas uma evolução da corrente filosófica, de forma que regras e princípios são reconhecidamente normas jurídicas.
Nessa concepção, surge a Constituição Federal de 1988, a nova constituição, Carta Cidadã que consagra e garante diversos direitos individuais, coletivos, sociais, políticos, ditos direitos fundamentais. Um novo período em que a Constituição torna-se o epicentro do ordenamento jurídico, reconhece a força normativa da Constituição, dos princípios constitucionais, prepondera a concretização dos direitos fundamentais e o poder judiciário passa a ser protagonista da judicialização constitucional.
Com vistas a garantir a efetividade imediata da Constituição e concretizar direitos nela consagrados, diante da inércia dos demais poderes, seja do legislativo em se omitir no seu dever de legislar, seja o executivo em seu dever de implementar políticas públicas, diariamente são interpostas demandas com o fim de o judiciário, com espenque nas normas constitucionais, decidir de acordo com o caso concreto, ditando e muitas vezes criando direitos. Essa supremacia do Poder Judiciário frente à nova visão constitucional vem gerando dissabores entre os poderes, por entenderem estar o judiciário ultrapassando sua esfera de competência ao transcender a tripartição de poderes.
Na visão dos críticos, essa supremacia do poder judiciário gera instabilidade entre as instituições e viola o princípio da separação dos poderes, na contramão do Estado Democrático de direito, tratando-se de decisões ilegítimas, já que, ao decidir matéria adstrita aos demais poderes, se sobrepõe aos poderes legislativo e executivos, os verdadeiros poderes dotados de legitimidade democrática, já que neles estão os verdadeiros representantes do povo, escolhidos por meio do sufrágio universal, diferentemente do que ocorre no poder judiciário, em que juízes ingressam no cargo mediante concurso público, enquanto desembargadores dos Tribunais e Ministros dos Tribunais Superiores são escolhidos à revelia da vontade popular.
Não somente se contesta a legitimidade democrática das decisões, mas também o poder de hermenêutica constitucional dos juízes e tribunais no exercício do poder jurisdicional, quando utilizando-se do caráter normativo dos princípios constitucionais, muitas vezes dotados de abstratividade, ultrapassam norma já instituída por regramento jurídico, acarretando em decisionismos e decisões solipsistas, quando, utilizando-se do critério de discricionariedade, decidem aplicar uma norma em face de outra, denominando esse fenômeno de proatividade do judiciário como ativismo judicial.
Os defensores da atual postura judicante defendem essa nova forma de enxergar a constituição, justificando a conduta mais proativa de forma a concretizar direitos fundamentais previstos na constituição, pois dotada de força normativa e efetividade imediata. Para isso, em contraposição ao denominado ativismo judicial, alegam a legitimidade de suas atuações, pois possuem o dever de dar uma resposta ao jurisdicionado quando provocado a dirimir conflitos, denominando-se este fenômeno de judicialização da política, e não ativismo judicial. Ademais, justificam a proatividade em prol da omissão sistêmica dos demais poderes.
Antes de adentrar na temática da judicialização da política e do ativismo judicial, perfilho entendimento de que não há poder mais legítimo que outro diante do fato de a Constituição Federal fazer previsão de eleições diretas aos Poderes Legislativo e Executivo, concurso público ao Juízes e escolha política aos desembargadores e Ministros. Embora o poder emane do povo, o Poder Judiciário é um Poder Constitucionalmente instituído, sendo defeso alegar a sobreposição de um poder em face de outro, sendo todos eles legítimos. Ademais, coaduno do entendimento de que os poderes são tripartites, possuem funções típicas, mas também possuem funções atípicas relevantes, assim como poder de controle sobre os demais poderes, e, ao contrário da pregação da supremacia do judiciário ao adotar alguma postura mais ativa, não esqueçamos do executivo quando edita alguma medida provisória, adotando medidas legislativas por natureza, assim como do legislativo quando, no exercício do poder judicante, julga o Presidente da República por crime de responsabilidade ou destitui alguém de um cargo político por meio do impeachment.
Entendo que o mundo passa por constantes transformações, que o direito, infelizmente, não está acompanhando o desenvolvimento e a complexidade que o rodeia, evidencia-se com notoriedade uma omissão por parte dos Poderes Legislativo e Executivo no exercício de suas funções típicas e que, ao Poder Judiciário, não podendo se esquivar de sua função judicante, por dever legal, dirime as controvérsias que batem a sua porta, motivo pela qual seu papel vem ganhando preponderância no cenário jurídico e político, já que com o novo formato constitucional, o Judiciário concretiza e cria direitos. Essa preponderância não significa dizer que não há erros na tomada de decisões, sequer que inexistem ativismos por parte do judiciário. O que se tenta, com o presente trabalho, é desmistificar a crença de que decisões políticas se confunde com ativismo judicial e que, embora possamos nos deparar com algumas decisões possivelmente equivocadas, tais equívocos não são exclusivos de um só poder, nem devem ser capazes de aniquilar o Estado Democrático de Direito, pautado nas leis e na Constituição.
O governo de todos e para todos, ainda muito recente no Brasil, talvez não esteja acostumado com as adversidades, diferenças, opiniões contrárias, mas isso é democracia, e no combate ao populismo autoritário e à política de desinformação, não podemos permitir o enfraquecimento das instituições e dos poderes, que na harmonia de suas respectivas independências, devem se fortalecer em momentos de crise em que o Brasil vivencia, salvaguardando os diversos direitos conquistados após anos de dor e de luta.
5.ATIVISMO JUDICIAL X JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
O ativismo judicial, como diversos outros temas jurídicos que atualmente se discute no cenário jurídico brasileiro, tem como origem o direito estadunidense, e certamente esse é o motivo da dificuldade de se extrair um conceito coeso do que é ativismo, já que, assim como os precedentes judiciais, estamos importando conteúdo de um país que adota o sistema jurídico do Common Low, protagonizando a jurisprudência como principal fonte do direito, diverso do sistema do Civil Low, adotado pelo direito brasileiro e que protagoniza as leis como principal fonte do direito, verificando-se, de antemão, um problema gestacional, embora na atualidade evidencie-se uma verdadeira aproximação entre os dois sistemas.
Embora surgido nos Estados Unidos ao longo dos séculos XIX e XX, foi no emblemático caso Marbury vs. Madison que o tema ganhou relevância, quando a Suprema Corte Americana, num posicionamento mais proativo, declarou a inconstitucionalidade de uma lei contrária aos preceitos constitucionais, daí advindo o controle de constitucionalidade difuso, importado pelo direito brasileiro com as devidas adequações, pois embora as decisões proferidas em sede de controle difuso americano tenham efeito erga omnes, não se limitando ao caso concreto em respeito aos precedentes judiciais, o modelo brasileiro de controle difuso possui eficácia inter partes, sem vinculação às esferas judiciais inferiores.
No Brasil, o debate somente ganhou relevância com o movimento neoconstitucionalista, o qual resultou na promulgação da Constituição Federal de 1988 e instituiu um novo modelo de atuação estatal, o Estado Democrático de Direito, o qual enfatizou e protagonizou a figura do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal. Assim reproduz o pensamento do jurista Maurício Santos Raupp[4], in verbis:
o surgimento do protagonismo do ativismo judicial no Brasil remonta à Constituição Federal de 1988, fruto do movimento neoconstitucionalista pósSegunda Guerra Mundial, donde se ergueu um cenário propício ao desenvolvimento de um poder judiciário mais intenso e participativo nas diversas questões sociais.
Nesse mesmo sentido é o pensamento do Ministro Luis Roberto Barroso,[5] quando justifica o caráter mais ativo do judiciário devido à redemocratização do país, que teve como ponto culminante a CF/88, denominando o caráter mais ativo do judiciário de judicialização. Vejamos:
A primeira grande causa da judicialização foi a redemocratização do país, que teve como ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988. Nas últimas décadas, com a recuperação das garantias da magistratura, o Judiciário deixou de ser um departamento técnico-especializado e se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes.
Aos que defendem a postura mais proativa do judiciário, sustentam a imprescindibilidade de tal conduta face à concretização dos direitos fundamentais previstos pela norma constitucional, e que o judiciário decidir questões de larga repercussão política ou social não significa ativismo judicial, mas judicialização, decorrente do modelo institucional brasileiro. O Ministro Luis Roberto Barroso[6], grande defensor de tal tese, aponta três causas que justificam a demasiada judicialização no Brasil, sendo elas: (i) redemocratização, (ii)constitucionalização abrangente, (iii) sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.
Segundo Barroso, com a redemocratização, a magistratura resgatou suas garantias, tornou-se protagonista na efetivação dos direitos fundamentais consagrados nas leis e na Constituição, houve maior disseminação de informações ao povo brasileiro, repercutindo na busca pela proteção de seus direitos, aliado ao fortalecimento do sistema de justiça através da expansão do Ministério Público e da Defensoria Pública, resultando no aumento da demanda por justiça.
A Constitucionalização abrangente, como segunda causa de judicialização, decorre de a CF/88 ser analítica, consagradora de diversos direitos e garantias individuais, coletivas, políticas e sociais, prevendo matérias de grande amplitude, que uma vez não implementadas, tornam-se propensas demandas judiciais.
Por fim, como terceira causa, aponta o sistema misto de controle de constitucionalidade adotado pelo direito brasileiro, de forma que, tanto pelo controle difuso, em que qualquer juiz ou Tribunal exerce, como pelo concentrado, realizado pelo Supremo Tribunal Federal, é possível se declarar leis e atos como inconstitucionais, ressaltando, ainda, o extenso rol de legitimados previstos no Art. 103 da CF/88, e a atuação nos limites dos pedidos formulados após provocação, não agindo de ofício.
Agir com deferência aos demais Poderes e preencher lacunas, quando se verifica omissão estatal, mesmo que se trate de matéria de cunho legislativo ou administrativo, não é ativismo judicial, mas atuação legítima do judiciário na concretização de direitos fundamentais. Vejamos as palavras de quem defende tal posicionamento, começando por Barroso[7]:
Como é intuitivo, o Supremo Tribunal Federal desempenha um papel de maior destaque quando o Poder Legislativo não tenha atuado. É nas lacunas normativas ou nas omissões inconstitucionais que o Tribunal assume um papel de eventual protagonismo. Como se conclui singelamente, no fundo no fundo, é o próprio Congresso que detém a decisão acerca do grau de judicialização da vida.
Nessa mesma linha de pensamento, segue o renomado Mauro Capelletti[8]:
[…] não seria somente um fenómeno inevitável, mas também necessário e recomendável em países democráticos, responsável por reforçar o Estado Democrático de Direito e por concretizar direitos individuais e coletivos constitucionalmente, ainda que, para isso, tenham que interferir no campo de atuação dos Poderes Legislativo e Executivo.
Adepto dessa corrente, também temos o grande estudioso e doutrinador George Abboud[9], quem conceitua com brilhantismo o termo ativismo judicial, vejamos:
O ativismo deve ser compreendido como a atuação dos juízes a partir de um desapego da legalidade vigente para fazer prevalecer, por meio da decisão, sua própria subjetividade.
O ativismo judicial, portanto, não se confunde com decisão judicial que adentre em outra esfera de poder quando esta se omite na função institucional que lhe cabe, mesmo que tal decisão desagrade uma maioria, pois agir contramajoritariamente, mas nos ditames da lei, trará ao judiciário legitimidade de suas decisões, não permitindo que se distancie do direito.
O ativismo judicial se dá quando o juiz se distancia do direito, à revelia da legalidade, fundamentando suas decisões com base em convicções e subjetivismos pessoais, se caracterizando como ativista não somente o caráter proativo de uma decisão, que partirá de um juiz mais progressista, podendo também se caracterizar como ativista uma postura omissiva do juiz, quando se tratar de um conservador. Decisões que contrariam as leis e o ordenamento jurídico devem ser rechaçadas, motivo pela qual não se apoia decisão ativista, por acarretar insegurança jurídica e arbitrariedades. Nesse sentido se apoiam os críticos, cujo expoente temos o jusfilósofo Lenio Streck, o qual equipara ativismo judicial ao subjetivismo, correlacionando o ativismo a um ato de vontade do julgador no momento de interpretar e aplicar o direito, extrapolando os limites legais estabelecidos pela Constituição. Aduz que a função de guardião da Constituição concedida ao STF não o permite que faça interpretação desconexa com o regramento legal já existente. Assim se posiciona Lenio Streck[10]:
O ativismo judicial situa-se na discricionariedade e, a partir disso, se elabora uma divisão entre escolha e decisão judicial, que, para ele não são sinônimas. Segundo ele a decisão judicial não pode ser o resultado de escolhas políticas elaboradas, a priori, pelo juiz, num grau zero de sentido, de acordo com suas convicções pessoais de mundo em detrimento do Direito.
Nesse mesmo sentido aponta Elival da Silva Ramos[11], o qual defende que o ativismo judicial afronta a separação dos Poderes por meio da interferência do judiciário nas funções atribuídas aos demais Poderes. Os críticos do ativismo, como verificamos, rechaçam a discricionariedade do julgador ao interpretar o direito, quando, por meio de concepções ideológicas, à revelia da lei, julgam conforme sua vontade, utilizando-se de princípios, muitas vezes dotados da abstratividade. E daí as críticas à principiolatria e ao pamprincipiologismo, cujos princípios, criados sob retórica, sem qualquer força normativa, mas que com espenque na hermenêutica constitucional, à revelia de regras já consolidadas no ordenamento jurídico, no exercício do poder jurisdicional, juízes e Tribunais criam direitos, dando azo a decisões solipsistas, acarretando em insegurança jurídica e arbitrariedade judicial, destituídas de legitimidade democrática ao se sobrepor aos demais poderes.
Nas duas esteiras, o que se percebe é que ambas as posições se contrapõem ao ativismo judicial. A linha que adota uma posição mais ativa do judiciário alega tratar-se de judicialização da política, e não ativismo, de forma que defende a atuação do judiciário como legítima ao, após demandado, e em face de alguma omissão dos demais poderes constituídos, no papel de protagonista da judicialização constitucional, concretiza direitos fundamentais consagrados na Carta Cidadã, emitindo decisões, muitas vezes políticas, ao decidir pela implementação de políticas públicas, ou decidir questões de grande repercussão sem previsão legal, mesmo que tais decisões sejam contramajoritárias.
Nesse diapasão, verifica-se que há um consenso entre as duas correntes de que não há ativismo bom, pois ativismo é sempre ruim, e que decisões distantes do direito serão sempre decisões frágeis e arbitrárias, uma vez que mudar as regras do jogo após seu início gera insegurança jurídica. Isto posto, verifico a existência da política da desinformação, onde o povo enxerga toda decisão de grande repercussão e contramajoritária como sendo ativista, e de reconhecimento por parte do judiciário, e frise, não somente do STF, ao já ter agido com ativismo judicial, ao decidir à revelia da lei. O problema é que grande parte das decisões judiciais emitidas pelo STF, por exemplo, não são ativistas, embora tal equívoco já tenha ocorrido em algumas decisões que merecem ser levantadas.
6.JULGADOS DOS TRIBUNAIS SUPERIORES COM CONOTAÇÃO ATIVISTA
Conforme supracitado, há um populismo autoritário interessado em acabar com a harmonia e independência entre os poderes, de forma que muitos balançam a bandeira para fechamento do Supremo Tribunal Federal, diga-se de passagem, Tribunal Superior constitucionalmente reconhecido como guardião da Constituição e que, diuturnamente, toma decisões relevantes, sem falar que ativismo não é tema restrito ao STF, mas a todo o Poder Judiciário. Não se defende que não haja decisão ativista, equivocada, muito pelo contrário, há sim, e importante que se reconheçam os possíveis equívocos para o fim da manutenção do Estado Democrático de Direito e harmonia entre os Poderes.
Ocorre que muitas decisões tomadas pelo STF, por serem contramajoritárias, e diante da política de desinfoamação, vem repercutindo como ativistas, e por isso devemos diferecia-las. Como já dizia Sócrates, mesmo que uma decisão seja 100% contrária ao que pensa a maioria, se baseada no direito, tal decisão será legítima. E assim deve decidir o Juiz ou Tribunal, de acordo com o direito, mesmo que repercuta negativamente. Prova disso foram as decisões tomadas em sede de ADPF 54 (aborto de anencéfalo), ADI 4277 e ADPF 132 (equiparação das uniões homoafetivas às uniões heteroafetivas), ADI 3510 (permissão de pesquisas com células tronco-embrionárias), ADPF 186 e ADC 41 (legitimidade de cotas raciais em favor de negros nas Universidades Publicas e em cargos públicos), em que se abordou diversos temas relevantes e sensíveis, não regulamentados no ordenamento jurídico brasileiro, e que em que pese não ter agradado a uma boa parcela da população, foram decisões baseadas em princípios constitucionais, não se tratando de decisões ativistas.
Ao revés das decisões acima elencadas, há, sim, várias decisões no Supremo Tribunal Federal com um viés ativista, e para fins de demonstração, sem possibilidade de esgotá-las, explanarei as decisões acerca do direito de greve pelos servidores públicos civis e a prisão em segunda instância, esta, por entender ser a decisão que, diante do cenário político em que vivemos, mais tenha repercutido negativamente, reacendendo o tema ativismo judicial. Foram decisões em que o Tribunal, além de realizar a função típica de julgar, ora atuou como legislador, ora mudou posicionamento já firmado, utilizando-se, segundo os críticos, de fundamentos ideológicos, norteado por interesses políticos.
No que tange ao direito de greve, resta esclarecer se tratar de um direito assegurado constitucionalmente aos trabalhadores de iniciativa privada e servidores civis, nos arts. 9º e 37, VII, respectivamente, ambos dependentes de norma regulamentadora. Em 1989, houve a edição da lei n. 7.783/89, dispondo sobre o exercício do direito de greve para o setor privado, jamais tendo sido editada norma regulamentadora de tal direito aos servidores públicos civis. Visando o combate a uma inércia legislativa que inviabilize o exercício de direitos e liberdades constitucinais, há o remédio denominado mandado de injunção, previsto no Art. 5º, LXXI, da CF/88. Durante anos, quando demandado através de tal remédio constitucional para se manifestar acerca do direito de greve, o STF se manifestou pela impossibilidade do exercício do direito aos servidores civis diante da ausência de lei complementar que regulamentasse a matéria, restringindo-se a declarar a mora do Congresso Nacional na elaboração da lei. Assim ocorreu no MI nº 20/DF, julgado em 19/05/1994, MI nº 485/MT, julgado em 25/04/2002, MI nº 585/TO, julgado em 15/05/2002, além de vários outros julgados.
Somente com o julgamento dos MIs 670/ES, 712/PA e 708/DF, julgados em 25/10/2007, o STF modificou sua postura e, além de declarar a mora legislativa, determinou a aplicação da lei 7.783/89 ao direito de greve dos servidores públicos civis enquanto não editada lei específica pelo Congresso Nacional, quem detem legitimidade para tanto. Foi mais além, ao estender os efeitos da decisão, pois apesar de o MI ser ação de natureza concreta, que vincularia apenas as partes (inter partes), o Tribunal deu a ela efeito erga omnes. Em 2016, a discussão dos efeitos da decisão em sede de mandado de injução encerrou ao ser promulgada, pelo Congresso Nacional, a Lei n. 13.300 de 23 de junho de 2016, de forma que em seu art. 9º, §1º disciplina a possibilidade de se conferir eficácia erga omnes à decisão em sede de MI, quando inerente ou indispensável ao exercício do direito, da liberdade ou da prerrogativa, objeto da impetração.
Mais acalorada é a discussão acerca da possibilidade da execução provisória da pena após condenação em segunda instância. Perceba-se que até fevereiro de 2009, o STF entendia pela possibilidade da execução provisória da pena a partir da condenação em segunda instância, e o fundamento para tal entendimento era que os recursos aos Tribunais Superiores não têm efeito suspensivo. Destarte, em fev/2009, com o julgamento em HC n. 84078, entendeu-se pela impossibilidade da execução provisória da pena, pois incompatível com o princípio da presunção de inocência, reconhecido constitucionalmente. Já em 2016, no julgamento do HC 126292, o STF muda o posicionamento outrora firmado, voltando a reconhecer a possibilidade da prisão em segunda instância, diante da ausência suspensiva recursal, o que exauriria a presunção de não culpa.
Observa-se que, no decorrer dos votos, há como fundamento da decisão a ponderação entre principio da presunção de inocência e a efetividade da justiça, o equilíbrio entre o interesse social e do acusado, além da morosidade do sistema de justiça penal, dificultando o combate à corrupção e à impunidade. Inobstante, ao julgar as ADCs 43,44 e 54, em 2019, apenas 3 anos após firmar entedimento acerca da possibilidade de cumprimento da pena após condenação em 2ª instancia, o STF, na contramão dos anseios sociais por uma justiça mais eficiente, retrocede ao considerar inconstitucional a prisão após condenação em 2ª instância, ao declarar a constitucionalidade do Art. 283 do CPP, que prevê apenas a possibilidade de prisões cautelares antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, resultando, esse novo entendimento, em um cenário de hostilidade de boa parcela da sociedade perante o STF, pois além do descrédito decorrente da morosidade do sistema criminal e do caráter procrastinatório do sistema recursal brasileiro, a decisão trouxe conotação política ao resultar na soltura de diversas autoridades que foram presas no maior esquema de corrupção, até agora descoberto, do país.
O Superior Tribunal de Justiça tambem passa por severas críticas ao declararem muitas de suas decisões como solipsistas. Isso ocorre porque o STJ vem decidindo, com fundamento em princípios constitucionais, muitas vezes dotados de abstratividade, na contramão de regras legais já existentes. Dou como exemplo a decisão no EResp n. 1.582.475-MG (penhorabilidade de salário do devedor) , em que a Corte Especial, contrariamente ao que dispoe o Art. 833, IV do CPC/2015, criando exceção da exceção, permitiu a penhorabilidade de percentual dos vencimentos do devedor, além da hipótese excepcionada em lei, desde que preservado percentual das verbas capaz de guarnecer a dignidade do devedor e de sua família, com a manutenção do mínimo existencial.
Embora tenha explanado decisões de Tribunais Superiores, vale esclarecer que o popularizado ativismo judicial também atinge os juízes de piso, muito recorrentes quando proferem decisões em ações civis públicas. Embora tenha esposado 03 (três) decisões em tese ativistas, verifica-se que quando da decisão do direito de greve pelos servidores civis, a crítica ocorreu pelo fato de o STF ter atuado como legislador e ampliado os efeitos da decisão. No caso do julgamento da execução da pena após condenação em 2ª instância, as criticas se deram por conta da mudança de entendimento em detrimento do cenário político que nos encontramos. Já o julgado do STJ, acerca da penhorabilidade do salário, o Tribunal decide sobrepondo princípios às regras, contrariando regra legal já existente.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após os diversos apontamentos no decorrer do presente artigo científico, percebe-se a dificuldade em se estabelecer um conceito de ativismo judicial. Há quem considere ativista decisões contramajoritárias, o que discordo veementemente, já que decisões fundamentadas no direito, por mais que gere insatisfação, devem ser reconhecidas, respeitadas e acatadas. Há ainda quem considere ativista a decisão judicial que, diante de uma omissão legislativa, legisla positivamente até que o órgão legitimado desempenhe seu papel. Por fim, há os que defendem ser ativista a decisão baseada em convicções pessoais e senso de justiça do juiz intérprete.
Décadas discutindo o tema, e não se chega a um consenso. Particularmente, não considero que o problema do ativismo seja o neoconstitucionalismo, em que põe o Judiciário como protagonista para concretização dos direitos e garantias fundamentais, dando força normativa à Constituição. Muito pelo contrário, a nova constituição, denominada Constituição Cidadã, consagra diversos direitos conquistados após anos de luta e opressão, direitos estes que não podem retroceder e que devem abarcar a todos, mesmo que todos abranja uma minoria, pois isso é ser democrático.
É latente a omissão do Congresso Nacional frente às necessidades sociais, seja na esfera religiosa, política, científica, e várias outras searas. O Poder executivo, na mesma direção, demonstra sua omissão para com a implementação de políticas públicas sempre sob o amparo da escassez de orçamento público. Ao revés disso, atualmente, temos um judiciário atento às complexidades que norteiam as relações sociais, emitindo decisões de altíssima relevância e repercussão, vinculativas à Administração Pública e ao Executivo. E aí vem à tona a desinstabilidade do princípio da separação dos poderes quando o judiciário, após provocado, “ultrapassa” sua esfera de atuação a, além de julgar, criar direitos. Há quem defenda que a solução seja a autocontenção do judiciário, de forma que ele prório reconheça os limites de sua atuação, reduzindo sua interferência em questões atinentes aos outros poderes, papel desempenhado até o advento da CF/88.
Daí resta a pergunta: como se concretizariam os direitos fundamentais sob a nova óptica do neoconstitucionalismo? Será que o ativismo não é proveniente do “omissionismo” dos demais poderes? Digo isto porque certamente não teríamos holofotes exclusivos ao judiciário se todos os poderes cumprissem seu papel. E prova disso é o direito de greve aos servidores civis, pois o legislativo, desde o julgamento dos MIs 670/ES, 712/PA e 708/DF no ano de 2007, jamais regulamentou o direito de greve. Todas as decisões proferidas pelo STF, inclusive a decisão de impossibilidade de execução da pena após condenação em segunda instância, que porventura o legislativo interprete que não atendem aos anseios sociais ou que seja contrária ao direito, não o vincula, podendo legislar de forma contrária, mas o que vemos é um legislativo telespectador.
Se essa atuação mais ativa do judiciário, no intuito de concretizar direitos, pode gerar efeito backlash, entendo, em minha humilde opinião, que tal dissenso é legítimo, faz parte do jogo democrático e que isso, sim, é harmonia e independência entre os poderes. O controle de constitucionalidade pelo poder judiciário é regra constitucionalmente expressa, não sendo tais decisões vinculativas ao legislativo, de forma que podem inovar através da atividade legiferante. Assim também se estende ao executivo, quando a constituição lhe permite conceder graça e indulto, contrariando decisão outrora imposta.
Ativismo, portanto, não se confunde com ser ativo, sobretudo quando se verifica evidente omissão legislativa, mas sim, quando a decisão se distancia do direito e o juiz julga conforme suas convicções pessoais, conforme seu sentimento de justiça e sua livre convicção. Ao meu ver, e após momentos de reflexão, como defensora da força normativa da constituição e em busca da concretização dos direitos fundamentais, sou adepta da posição de que o judiciário não deve se imiscuir da obrigação de julgar, mesmo que porventura resulte em backlash, e que concretizar direitos fundamentais e, por vezes, implementar políticas públicas, não se trata de ativismo judicial, mas judicialização da política. Deveras, decisões distanciadas do direito, sim, devem ser sopesadas, pois geram insegurança jurídica e arbitrariedades, mas o remédio para isso não é o fechamento de Tribunais Superiores, quiçá retroceder ao juiz bouche de la loi.
O ideal é que os poderes encontrem o equilíbrio na aplicação do direito, que somente será alcançado após uma revisão da força normativa das regras e princípios, já que hodiernamente princípios constitucionais, dotados de abstratividade, se sobrepoem às regras jurídicas, regras criadas por meio da legitimamente democrática. O cerne da discussão remonta, portanto, às teorias de aplicação do direito, pois no conflito entre regras se aplica a prática da subsunção, no conflito entre princípios a regra da ponderação, mas diante do conflito entre regras e princípios, motivo preponderante de decisionismos, há de se estabelecer um limite na hermenêutica constitucional, pois a desconstrução desenfreada das regras jurídicas sob o prisma da verticalidade dos princípios constitucionais desnorteia a sistemática jurídica romano-germânica da Civil Low adotada pelo Brasil, tornando as regras jurídicas passíveis das mais diversas interpretações possíveis, trazendo à tona a tão indesejada insegurança jurídica.
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[1] Abboud, 2022, p. 14.
[2] PLATÃO, 2008, p. 53-150
[3] MONTESQUIEU, 2010, p. 165.
[4] RAUPP, 2016, p. 84.
[5] BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/synthesis/article/view/7433/5388. Acesso em 14/11/2022.
[6] Idem, p. 24.
[7] BARROSO, Luis Roberto. Constituição, direito e política: O Supremo Tribunal Federal e os poderes da República. https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/58748/57541. Acesso em 14/11/2022.
[8] CAPELLETTI, 1999, p. 116-133.
[9] ABBOUD, 2022, p. 111.
[10] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5.ed.rev.mod.eampl.São Paulo:Saraiva, 2014, p.107.
[11] RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicia: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p.117.
Delegada de Polícia Civil do Estado do Amazonas. Especialista em Direito Constitucional pela UNISUL. Mestranda em Função Social do Direito - FADISP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RITA DE CáSSIA CARVALHO TENóRIO, . O ativismo judicial e a judicialização da política frente à jurisdição constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jun 2023, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61713/o-ativismo-judicial-e-a-judicializao-da-poltica-frente-jurisdio-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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