DÉBORA JAQUELINE GIMENEZ FERNANDES FORTUNATO
(orientadora)
RESUMO: Este artigo tem como objetivo discutir, com base em fundamentos jurídicos, o reconhecimento da multiparentalidade e todos os efeitos decorrentes das relações parentais. Isso inclui a possibilidade de estabelecer múltiplos vínculos parentais em relação ao estado de filiação, seja ele presumido, biológico ou afetivo, à luz de princípios norteadores estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, e de demais disposições pertinentes ao assunto. O objetivo é demonstrar como a parentalidade socioafetiva é aceitável no contexto do ordenamento jurídico brasileiro, por meio da análise das decisões tomadas pelo Judiciário.
Palavras-chave: Multiparentalidade. Afetividade. Família. Parentesco.
ABSTRACT: This article aims to discuss, based on legal principles, the recognition of multiparentality and all the effects resulting from parental relationships. This includes the possibility of establishing multiple parental bonds in relation to the status of filiation, whether it is presumed, biological, or affective, in light of guiding principles established by the Federal Constitution of 1988 and other relevant provisions. The objective is to demonstrate how socio-affective parenthood is acceptable within the Brazilian legal framework through an analysis of decisions made by the Judiciary.
Keywords: Multiparentality. Affection. Family. Kinship.
A busca pela felicidade, um dos maiores anseios da humanidade, engloba a aspiração por laços afetivos nutridos no contexto do cotidiano, permeados por carinho, amor e generosidade entre progenitores e descendentes. A instituição familiar, por sua vez, passa por transformações sociais que afetam suas ações, comunicações e expressões, à medida que assimila novos valores e formas, reconfigurando sua estrutura.
Diante do rompimento dos vínculos familiares, emerge a necessidade de uma nova configuração familiar, na qual novos indivíduos se inserem como pais e filhos, originando laços com pessoas que, anteriormente, não compartilhavam do mesmo círculo familiar. Vínculos esses estabelecidos por questões afetivas.
O direito tem como objetivo acompanhar a realidade daqueles que são tutelados por suas normas. A evolução legislativa, portanto, exige uma postura ativa para garantir a proteção dos direitos relacionados às novas configurações familiares. O papel do afeto na formação das novas famílias e os efeitos e repercussões decorrentes do reconhecimento de laços afetivos são aspectos fundamentais a serem abordados por essa pesquisa.
2 MULTIPARENTALIDADE
Ao longo dos anos, observamos transformações estruturais significativas no âmbito das relações familiares, o que resultou no surgimento de novos arranjos familiares. Essas mudanças inevitáveis demandaram a revisão e reconstrução dos conceitos preexistentes sobre o tema. O Direito de Família, por sua vez, não permaneceu imune a essa mutação.
Nesse contexto, a multiparentalidade emerge com o propósito de se adaptar às novas formas de família que atualmente existem. Tal fenômeno se justifica pelo fato de que menores não apenas enxergam a figura parental em seus genitores, mas também em terceiros, responsáveis por sua criação e educação, com base exclusivamente na relação de afeto, amor e respeito que se desenvolveu ao longo do tempo, podendo e devendo ser reconhecida a filiação socioafetiva.
A multiparentalidade representa, de fato, o reconhecimento do afeto e do amor construídos entre as partes envolvidas, sem que isso implique na substituição do vínculo biológico. Assim sendo, todos os princípios inerentes à dignidade da pessoa humana devem ser invocados para proteger e resguardar os direitos da criança.
2.1 O SURGIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE
Alguns autores conceituam a multiparentalidade como sendo o fenômeno em que uma pessoa simultaneamente mantém dois vínculos de filiação no grau ascendente de primeiro grau, seja no âmbito materno ou paterno. Nesse contexto, abarcar-se-ia a hipótese de adoção homoafetiva, por meio da qual o adotado passa a contar com dois pais ou duas mães.
O reconhecimento da igualdade, como ponto de partida para a transformação em nosso país, teve sua origem na Constituição de 1988, por meio do princípio da família e do princípio da igualdade entre os cônjuges e seus direitos em relação aos filhos. Com eles, o casamento deixou de ser o único elemento central na definição legítima da paternidade no Brasil, e, assim, a Constituição determinou o fim das discrepâncias entre os filhos, independentemente de sua origem biológica.
Também, a partir do notável progresso jurídico propiciado pela Constituição de 1988, uma era científica foi inaugurada, permitindo a utilização do exame de DNA para determinar a ascendência biológica e, assim, desencadeando avanços significativos no campo da medicina genética.
Pode-se afirmar que a concepção de paternidade/maternidade compreende três elementos fundamentais: o aspecto presumido, o biológico e o afetivo. Além disso, compreende-se a possibilidade de registrar mais de dois genitores para uma criança, dando origem à multiparentalidade, que harmoniza com o imperativo do princípio da igualdade, uma vez que todos são equiparados perante a lei, valorizando-se, desse modo, o afeto estabelecido entre os envolvidos.
2.2 ESPÉCIES DE FILIAÇÕES
O tema da multiparentalidade em questão busca o reconhecimento das múltiplas formas de filiação, abrangendo a filiação socioafetiva, biológica ou natural e registral. É crucial mencionar, ainda, os três tipos de Direito de Família, os quais direcionam o indivíduo de maneira simultânea.
Em última análise, compreende-se que não existem impedimentos dentro do ordenamento jurídico para a formação da família multiparental, uma vez que tanto o pai quanto o filho possuem o direito de escolher sua origem. Dessa forma, diversos conflitos entre pais biológicos e pais afetivos são solucionados, visando o respeito aos direitos de todos os envolvidos.
Além disso, em 2009, o Conselho Nacional de Justiça estabeleceu um modelo para a elaboração das certidões de nascimento, permitindo que não haja restrições quanto ao número ou às pessoas que devem constar no campo da filiação. Essa medida proporciona e simplifica a inclusão de mais uma figura parental no registro.
2.2.1 FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
A filiação socioafetiva, caracterizada pelo elo emocional de afeto, carinho e cuidado, transcende o vínculo biológico. Ser reconhecido como filho implica ser tratado, tanto perante a sociedade quanto diante da própria família, de maneira indistinta, sendo um ato de vontade, respeito e afeição que se desenvolve ao longo do tempo, desvinculado de uma definição meramente filial.
A filiação socioafetiva deriva da cláusula geral que ampara a tutela da personalidade humana, considerando a filiação como um elemento fundamental para a construção da identidade e personalidade.
O Código Civil ampliou o conceito de parentesco civil, abarcando todos aqueles que integram a unidade familiar, independentemente de laços consanguíneos. Uma lacuna foi aberta pelo artigo 1.593, que faz menção ao parentesco com outra origem, enquanto o artigo 1.596 estabelece que não há distinções entre os filhos, consolidando a plena igualdade:
Art. 1593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou outra origem. [...] Art. 1596. Os filhos havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. (BRASIL, 2022)
As menções preconizam o artigo 227 da Constituição Federal:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988)
O princípio da afetividade encontra-se intrinsecamente ligado ao princípio da igualdade entre os filhos, salvaguardados como direitos fundamentais. Conforme enfatizado por Jorge Fujita:
Filiação socioafetiva é aquela consistente na relação entre pai e filho, ou entre mãe e filho, ou entre pais e filho, em que inexiste liame de ordem sanguínea entre eles. (FUJITA, 2010, p, 475)
O autor, na mesma senda, equipara o afeto a um "elemento aglutinador", como uma argamassa sólida que os une em suas relações, tanto pessoais quanto patrimoniais. É impossível exercer a paternidade socioafetiva e biológica sem a presença de afeto, segurança, carinho e igualdade.
Na empreitada de estabelecer critérios distintivos para o reconhecimento da filiação socioafetiva, a doutrina direciona sua atenção a três elementos fundamentais: a) tratamento dispendido ao filho de forma a ser reconhecido como tal, educado, criado e apresentado como membro legítimo da família (tractatus); b) o uso do sobrenome familiar e a autoidentificação com tal (nominatio); c) e o reconhecimento público perante a sociedade como integrante efetivo da família de seus pais (reputatio).
Tal abordagem sempre observa a importância de reconhecer a paternidade baseada no afeto, garantindo que seus efeitos sejam reconhecidos tanto nos aspectos pessoais quanto patrimoniais, sempre levando em conta o princípio da dignidade humana e o melhor interesse da criança ou adolescente.
2.2.2 FILIAÇÃO BIOLÓGICA OU NATURAL
A filiação biológica decorre da relação de parentesco consanguíneo, baseada na comprovação genética. No tocante a esse assunto, Clovis Beviláqua destaca:
O parentesco criado pela natureza é sempre a cognação ou consanguinidade, porque é a união produzida pelo mesmo sangue. O vínculo do parentesco estabelece-se por linhas. Linha é a série de pessoas provindas por filiação de um antepassado. É a irradiação das relações consanguíneas. (BEVILÁQUIA, 1975, p. 769)
Diante desse contexto, duas consequências emergiram:
Nunca foi tão fácil descobrir a verdade biológica, mas essa verdade tem pouca valia frente à verdade afetiva. Tanto assim que se estabeleceu a diferença entre pai e genitor. Pai é o que cria, o que dá amor, e genitor é somente o que gera. Se durante muito tempo por presunção legal ou por falta de conhecimentos científicos confundiam-se essas duas figuras, hoje possível é identificá-las em pessoas distintas. (DIAS, 2009, p. 331)
Em suma, compreende-se que a filiação biológica/natural figura como uma das manifestações cotidianas e evolutivas que, até os dias atuais, se beneficia amplamente do progresso tecnológico, notadamente no que concerne aos exames de DNA, os quais têm desempenhado um papel crucial, mas que pode-se valer que a paternidade socioafetiva tem um valor maior do que o simples reconhecimento biológico, seguindo a ideia de que um verdadeiro pai é aquele que cria e ama, indo além de apenas gerar e trazer uma criança ao mundo.
2.2.3 FILIAÇÃO CIVIL
A filiação civil/registral é aquela que deriva do ato de registro de nascimento, estabelecendo-se por meio da parentalidade registral, na qual se presume a veracidade dos fatos registrados. O registro de nascimento representa uma das modalidades de reconhecimento da filiação, juntamente com a escritura pública, escritura particular, testamento e declaração.
Além disso, o parentesco civil também pode ser estabelecido por meio da adoção. Desse modo, percebe-se que nem toda filiação biológica se converte em filiação civil, da mesma forma que nem toda filiação civil possui natureza biológica.
3 DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES
A efetivação da multiparentalidade requer a observância de diversos princípios fundamentais que orientam e viabilizam sua concretização, sendo notáveis, a título exemplificativo, os princípios da dignidade da pessoa humana, da vedação ao retrocesso social e da afetividade.
3.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Esse referido princípio revela-se de maneira intrínseca e simbiótica em relação aos anseios mais primordiais inerentes a todo ser humano, ou seja, o sentimento de "paternidade" e "maternidade" e o sentimento de "filiação", conforme estabelecido nos artigos 1º, III e 226, § 7º da Constituição de 1988:
Art. 1º [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...] Art. 226 [...] § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos. (BRASIL, 1988)
Nesse sentido, Maria Berenice Dias ressalta que
O princípio da dignidade humana é o mais universal de todos os princípios. É um macroprincípio do qual se irradiam todos os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, uma coleção de princípios éticos [...] O princípio da dignidade humana significa, em última análise, igual dignidade para todas as entidades familiares (DIAS, 2013, p. 65).
À luz do exposto, é possível constatar que, para além dos diversos conceitos e abordagens, esse princípio representa o cerne da própria sociedade e da instituição familiar, não se limitando apenas a restringir a atuação do Estado, mas também orientando sua atuação.
3.2 PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL
Este referido princípio exerce uma influência primordial no âmbito da abordagem dos direitos familiares, uma vez que se constitui como um fundamento intransponível que impede o retrocesso diante das obrigações que não são legalmente reconhecidas, preservando o patamar alcançado pelo reconhecimento dessas obrigações. Nesse contexto, a importância desse princípio é indubitável, uma vez que o ordenamento jurídico nacional busca abranger e proteger as famílias que adotam novas configurações, como a multiparentalidade.
Ao longo de sua formação, a sociedade brasileira foi moldada por diversas culturas, o que se revela como um dos fundamentos para o surgimento de formas e estruturas familiares modernas. É essencial que se extraiam das riquezas desse multiculturalismo as perspectivas necessárias para elucidar a imperiosidade de o Estado brasileiro conferir uma proteção essencial a essas novas configurações familiares.
Embora esse direito seja, em larga medida, subjetivo, ele constitui uma garantia protegida de forma constitucional, escapando à competência da legislação infraconstitucional para limitar tal proteção. Dessa forma, a legislação nacional não pode pretender retroceder ao estado anterior ao da promulgação da Constituição de 1988.
Esse princípio exprime a proibição do retrocesso social em relação aos direitos fundamentais, conferindo-lhes uma posição de destaque em relação aos direitos sociais, e exigindo que sejam mantidos de forma estável. O progresso alcançado pela Constituição de 1988 não pode ser aniquilado. Portanto, é vedado ao Estado modificar tais direitos, seja por mera liberalidade ou como pretexto para sua efetivação.
3.3 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE
A supremacia da afetividade sobre todos os demais vínculos emergiu da própria dinâmica das relações sociais, uma vez que se reconheceu que a afetividade é intrínseca ao sentimento humano, não podendo ser dissociada do âmbito familiar. Essa relação pode se estabelecer por meio da convivência e constituição da família. Diante disso, impôs-se ao Estado o dever de conferir o devido reconhecimento normativo e legitimar a multiparentalidade, incumbindo-lhe adotar meios legais para resolver e implementar os efeitos decorrentes por meio dos princípios presentes na Constituição, introduzidos pelo legislador constituinte.
Nesta mesma linha de raciocínio Tartuce e Simão explicam que:
O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a expressão afeto do texto maior como sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade da pessoa humana. (TARTUCE; SIMÃO, 2010, p. 47)
Assim, os tribunais brasileiros devem reconhecer que o afeto transcendeu a mera função agregadora da família, tornando-se um valor jurídico capaz de fundamentar as decisões judiciais.
4 DAS FORMAS DE FAMÍLIA
Ao longo dos anos, verificou-se uma significativa adaptação dos conceitos preexistentes acerca das configurações familiares, as quais foram completamente reformuladas e ajustadas às circunstâncias atuais que permeiam o mundo contemporâneo.
4.1 FAMÍLIA NATURAL
A família natural é aquela que deriva da consanguinidade, sendo privilegiada em relação às demais formas de família e, geralmente, é considerada a forma tradicional de família, composta por pai, mãe, filhos e filhas. Tal definição encontra respaldo no artigo 25 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece:
Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes. (BRASIL, 1990)
Sobre tal conceito de família, é importante ressaltar a obsolescência da ideia de "pátrio poder", na qual o pai era considerado o chefe da família, detentor de todas as decisões que afetavam o núcleo familiar, enquanto a mulher tinha apenas a incumbência de cuidar dos filhos, da casa e do marido.
4.2 FAMÍLIA EXTENSA
Tal modelo familiar também encontra respaldo no artigo 25 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu parágrafo único:
Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. (BRASIL, 1990)
Consoante à doutrina, a família extensa é configurada pela relação entre um indivíduo e seus familiares próximos, desde que haja uma convivência ininterrupta e uma afinidade notória. No que tange aos menores, privilegia-se a colocação em família extensa em detrimento da inserção em uma família substituta.
4.3 FAMÍLIA SUBSTITUTA
A inserção de uma criança em uma família substituta retrata a viabilidade de um menor que foi abandonado e/ou rejeitado encontrar amparo psicológico, econômico, cultural e social, além de estabelecer uma base estrutural para si, bem como exercer o seu direito familiar, consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A colocação em família substituta pode ocorrer mediante três modalidades distintas, a saber: guarda, tutela e adoção, em consonância com o disposto no Artigo 28 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):
Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei: § 1º Sempre que possível, a criança ou o adolescente será previamente ouvido por equipe interprofissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada. § 2º Tratando-se de maior de 12 (doze) anos de idade, será necessário seu consentimento, colhido em audiência. § 3º Na apreciação do pedido levar-se-á em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as consequências decorrentes da medida. § 4º Os grupos de irmãos serão colocados sob adoção, tutela ou guarda da mesma família substituta, ressalvada a comprovada existência de risco de abuso ou outra situação que justifique plenamente a excepcionalidade de solução diversa, procurando-se, em qualquer caso, evitar o rompimento definitivo dos vínculos fraternais. § 5º A colocação da criança ou adolescente em família substituta será precedida de sua preparação gradativa e acompanhamento posterior, realizados pela equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com o apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar. (BRASIL, 1990)
5 OS EFEITOS DA MULTIPARENTALIDADE
Os desdobramentos decorrentes da multiparentalidade derivam do reflexo do parentesco, uma vez que abrangem efeitos patrimoniais e deveres até o quarto grau em linha reta colateral, envolvendo tanto a família do pai biológico como a família afetiva, com base nas disposições legais que regulam o instituto familiar.
No contexto do parentesco na mesma linha reta colateral, o parentesco socioafetivo produz os mesmos efeitos, incluindo o registro no nome da família e as restrições estabelecidas no ordenamento jurídico, resultando em obrigações alimentares, sucessórias, previdenciárias e até mesmo eleitorais.
Em conformidade com o princípio da igualdade, consagrado no artigo 227, §6º da Constituição Federal, fica evidente que todos os filhos gozam dos mesmos direitos, independentemente de serem biológicos ou não.
Art. 227 [...] § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. (BRASIL, 1988)
Uma vez que a Multiparentalidade é reconhecida, os direitos sucessórios recairão sobre ela, uma vez que a divisão da herança não pode ser desigual. O filho multiparental se tornará herdeiro de cada pai e mãe que estiverem registrados.
Dessa forma, o filho multiparental possui direitos e deveres em relação aos pais, independentemente de serem biológicos ou afetivos. Conforme evidenciado no artigo 1.835 do Código Civil:
Art. 1.835. Na linha descendente, os filhos sucedem por cabeça, e os outros descendentes, por cabeça ou por estirpe, conforme se achem ou não no mesmo grau. (BRASIL, 2002)
Maico Pinheiro da Silva, Nelton Torcani Pellizzoni e Lucas Maldonado Diz Latini lecionam:
Com efeito, um indivíduo que possua, por exemplo, dois pais, não podem ser privados de seus direitos de herdar bens de ambos, uma vez que, aos olhos do próprio ordenamento jurídico, a filiação é absolutamente legítima. Ademais, limitar o direito sucessório deste indivíduo seria ferir a própria lei, caracterizando uma espécie de discriminação absolutamente infundada. Contudo, devemos ressaltar que, ao indivíduo que possua múltiplos genitores ou genitoras, é ressalvado o direito de renúncia, ou seja, ele possui plenamente o direito de herdar de todos os pais e mães, porém também possui o direito de renunciar a essa herança. (SILVA; PELLIZZONI; LATINI, 2017, p. 2)
Conforme já explanado anteriormente, a negação da paternidade socioafetiva não isenta os herdeiros do falecido dos efeitos financeiros da sucessão. Caso o pai registral não tenha contestado sua paternidade em vida, não terá meios para desfazer o vínculo sucessório.
Cabe ressaltar que a renúncia à herança é uma questão distinta de uma possível proibição legal, uma vez que o ordenamento jurídico não impede que um indivíduo herde bens de mais de dois pais. No entanto, é garantido a esse indivíduo o direito de renunciar a tal sucessão.
No que diz respeito aos alimentos, é necessário considerar o propósito essencial de prover a sobrevivência da pessoa, não permitindo que aquele que recebe os alimentos enriqueça injustamente. O filho tem o direito de requerer alimentos de um ou ambos os pais, de modo que cada um contribua de acordo com suas possibilidades e proporções, a fim de colaborar para o seu desenvolvimento.
Assim como um pai tem o dever de prover alimentos a seus filhos por meio da multiparentalidade, independentemente de sua quantidade, os filhos também devem fornecer alimentos aos pais caso estes necessitem.Nessa mesma linha de pensamento, ressalta que os pais têm direito a receber alimentos de seus filhos.
No artigo 1.696 do Código Civil, estabelece-se que o direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e também se estende aos demais ascendentes, conforme o grau de parentesco. De forma semelhante, o artigo 1.697 do mesmo Código prevê que na ausência de ascendentes, sejam eles parentes biológicos, civis ou socioafetivos, a obrigação de prover alimentos será transferida aos descendentes que mantenham o mesmo tipo de parentesco dos ascendentes mencionados no artigo 1.696.
No caso do falecimento do pai, é conferido ao filho afetivo o direito de receber, de forma acumulativa, no mínimo três pensões por morte, independentemente do regime previdenciário ao qual os pais estejam vinculados. A legislação, embora omissa em relação à cumulação de benefícios em caso de óbito, não impede tal acumulação.
O reconhecimento da multiparentalidade acarreta grandes repercussões, não apenas no âmbito jurídico, mas também na esfera social, o que se reflete de modo geral no direito público, inclusive no campo do direito eleitoral, por meio da aplicação da inelegibilidade aos filhos socioafetivos.
5.1 POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS SOBRE O TEMA
O Supremo Tribunal Federal, em tempos recentes, proferiu sua sentença a respeito de uma tese de suma importância no âmbito do direito familiar. A partir de seus julgamentos e deliberações, o tema abordado concentra-se na abrangência da multiparentalidade:
O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, fixou tese nos seguintes termos: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”, vencidos, em parte, os Ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio. Ausente, justificadamente, o Ministro Roberto Barroso, participando do encontro de juízes de Supremas Cortes, denominado Global Constitutionalism Seminar, na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 22.09.2016. (STF, 2016)
A mencionada decisão consolida, com base na esfera jurídica, a possibilidade de haver dois pais e duas mães devidamente registrados nos documentos oficiais, estabelecendo, assim, um progresso significativo no sistema legal. Essa determinação viabiliza o reconhecimento jurídico tanto dos laços afetivos como dos biológicos, abraçando, desse modo, a noção de família multiparental.
No plenário, um acalorado debate ocorreu e, por uma maioria expressiva de votos, a tese jurídica da multiparentalidade foi aprovada. O voto proferido pelo Ministro Luiz Fux enfatizou a importância de reconhecer a pluriparentalidade, asseverando que:
Da mesma forma, nos tempos atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos. Do contrário, estarse-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não o contrário. (STF, 2016)
O Ministro compreende que o Princípio da paternidade engloba tanto o vínculo afetivo como o vínculo biológico, sem haver qualquer impedimento em relação a ambas as formas de paternidade, sendo o interesse do filho o fator determinante.
A decisão leva em conta não apenas o afeto em si, mas também um sentimento intrínseco e pessoal que se manifesta no contexto social, rompendo com a hierarquia tradicionalmente associada à paternidade. Esses avanços progressivos gradualmente estão adquirindo forma por meio de doutrinas jurídicas e precedentes jurisprudenciais, que estão sendo refinados e aprimorados.
Diante da repercussão geral, estão sendo avaliadas novas decisões que buscam um entendimento mais sólido, a fim de evitar possíveis adversidades na hora de reconhecer essas relações complexas.
5.2 CONSEQUÊNCIAS DA MULTIPARENTALIDADE
Claramente surgirão desafios diante das situações de partilha dos alimentos, da guarda compartilhada e dos poderes compartilhados entre os pais. No que tange aos conflitos de decisões relacionados à educação do filho, não se vislumbra uma solução clara, exceto pela aplicação do princípio do melhor interesse.
Com o reconhecimento da multiparentalidade, o filho socioafetivo torna-se um herdeiro necessário, desfrutando de duplo direito à herança, o que representa uma vantagem em relação ao irmão socioafetivo em comparação ao irmão biológico.
Essa incerteza nas decisões judiciais decorre do temor de que possam surgir demandas motivadas por interesses mercenários relacionados aos bens patrimoniais. Assim, cabe ao juiz resolver os problemas oriundos das relações socioafetivas que se tornam questões complexas no âmbito do poder judiciário, buscando a justiça diante das dificuldades de entendimento na divisão dos bens.
Além disso, existem grandes desafios a serem enfrentados, demandando dos profissionais do direito um esforço considerável para encontrar soluções que visem sempre ao melhor interesse do filho e à boa-fé, analisando cuidadosamente a melhor abordagem para cada caso específico.
5.3 SOLUÇÃO DA MULTIPARENTALIDADE
A terminologia de filiação, seja ela biológica ou socioafetiva, emana do conceito de parentalidade, o qual transcende a noção de gênero, atribuindo aos pais, sejam eles pai ou mãe, a responsabilidade pelos seus filhos.
A parentalidade pode assumir tanto uma forma biológica quanto socioafetiva. No entanto, o desafio emerge quando diferentes formas de vínculos parentais se entrelaçam, como os laços consanguíneos, os registros civis e as relações advindas da socioafetividade.
No âmbito do sistema judiciário, tornam-se cada vez mais recorrentes os casos que envolvem complexas configurações de relações parentais reunidas em um único indivíduo.
As doutrinas e jurisprudências atuais, ao abordarem a questão da parentalidade biológica e socioafetiva, tendem a escolher apenas uma delas, não admitindo a possibilidade de se estabelecer critérios múltiplos que possam influenciar tanto no âmbito pessoal quanto no patrimonial.
Diante da constatação de um vínculo parental, o reconhecimento desse laço se insere na obrigação constitucional do Estado de salvaguardar os direitos fundamentais de todas as partes envolvidas, especialmente a dignidade da pessoa humana. Caso haja uma decisão que se oponha ao reconhecimento da multiparentalidade, tal situação acarretará insegurança jurídica e uma miríade de incertezas quanto aos possíveis direitos e deveres no âmbito das relações familiares.
Os efeitos benéficos e práticos da multiparentalidade são equivalentes aos exercidos pela parentalidade biológica tradicional, que já admite a presença de mais de um pai e mais de uma mãe. Assim, a eficácia do parentesco se estende tanto no âmbito pessoal quanto no patrimonial.
Conforme estabelecido, a filiação no contexto do poder familiar abarca a convivência diária com os genitores, incumbindo-lhes os deveres de educar, orientar, prover sustento, nutrir com amor e suprir todas as necessidades do filho que esteja sob sua guarda. O artigo 1.634 do Código Civil, ao retratar os encargos advindos da parentalidade, desvela as possibilidades de exercício dessas funções por parte de múltiplos pais e mães simultaneamente, o que propicia uma convivência harmoniosa entre filhos e seus genitores, mesmo diante de eventuais conflitos familiares.
Dessa forma, a fim de produzir efeitos benéficos, a multiparentalidade deve ser reconhecida nos termos dispostos no artigo 1.609 do Código Civil ou por meio de decisões judiciais. É relevante ressaltar que tal reconhecimento, seja ele de natureza biológica, socioafetiva ou registral, é irrevogável, salvo se comprovado algum vício, uma vez que possui caráter declaratório, com efeitos retroativos (ex-tunc) e abrangência a todos (eficácia erga omnes).
6 DA JURISPRUDÊNCIA
A seguir, apresentam-se alguns casos juridicamente favoráveis ao assunto mencionado acima:
APELAÇÃO. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE MULTIPARENTALIDADE. Sentença que reconheceu a paternidade biológica, porém determinou a exclusão do pai registral do registro de nascimento do menor. Inconformismo dos requerentes. Acolhimento. Observância do Tema 622 do STF. Prova técnica que constatou a existência de socioafetividade entre o pai registral e o menor. Observância do princípio do melhor interesse da criança. Boa convivência entre as partes. Reconhecimento da multiparentalidade. Recurso provido. (TJSP. Apelação Cível 1002375-67.2018.8.26.0020. Relatora Hertha Helena de Oliveira; 2ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XII - Nossa Senhora do Ó - 2ª Vara da Família e Sucessões; Julgamento 03/08/2021; Publicação 04/08/2021)
Cita-se uma outra ementa de igual teor:
APELAÇÃO. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RELAÇÃO DE PARENTESCO. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. MULTIPARENTALIDADE. RECONHECIDA A EXISTÊNCIA DE DOIS VÍNCULOS PATERNOS, CARACTERIZADA ESTÁ A POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE. TEMA Nº 622 DA REPERCUSSÃO GERAL DO STF. EM JUIZO DE RETRATAÇÃO, DERAM PROVIMENTO AO RECURSO. (TJRS. Apelação Cível, Nº 70073977670. Sétima Câmara Cível, Relatora Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado 12/12/2017, Publicação 14/12/2017)
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constatou-se que o reconhecimento exclusivo do vínculo biológico como fundamento da instituição familiar vem gradativamente cedendo espaço, sendo eclipsado pela importância cada vez maior conferida ao elemento afetivo, que tem adquirido uma posição de primazia na formação das famílias. Atualmente, o afeto é enaltecido e acolhe diversas formas de relacionamento pautadas nesse sentimento.
Com o surgimento da família multiparental, são admitidos e equiparados tanto os direitos afetivos quanto os biológicos, em consonância com os demais direitos estabelecidos pelo ordenamento jurídico. Essa concepção reafirma a não hierarquização entre os vínculos parentais, representando um notável avanço conquistado sob o manto do princípio da dignidade humana, fundamentado na Constituição Federal de 1988.
A multiparentalidade, enquanto modalidade de filiação que pressupõe a demonstração de afeto e vontade das partes envolvidas, requer um cuidado adicional, a fim de evitar possíveis complicações futuras. Nesse sentido, torna-se imperativo agir com prudência a fim de prevenir eventuais impasses.
Além disso, é de suma importância atentar-se à questão do enriquecimento ilícito, que desponta como um dos principais desafios nas relações multiparentais, haja vista a ampla gama de direitos que incidem sobre as famílias multiparentais, abrangendo aspectos alimentícios, sucessórios, previdenciários, bem como uma série de outros direitos inerentes a esse tipo de estrutura familiar.
Portanto, qualquer posicionamento desfavorável à multiparentalidade seria injusto, tendo em vista que tanto a relação biológica quanto a socioafetiva são responsáveis pelo cuidado, afeto, e educação, conferindo ao indivíduo o direito fundamental de ter uma família estruturada, feliz e capaz de proporcionar o amparo necessário para sua segurança e desenvolvimento emocional.
Em resumo, é indubitável que o direito à família é consagrado explicitamente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, não estabelecendo qualquer tipo de discriminação em relação a sua conceituação, deixando essa definição para ser abordada à luz do ordenamento jurídico interno. Nesse sentido, por meio de uma interpretação sistemática das disposições da Constituição Federal, torna-se evidente que a família, juntamente com os laços que dela decorrem, independentemente de sua natureza sanguínea ou não, constitui um direito fundamental, sendo a base da dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
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Discente da Universidade Brasil. Curso de graduação em Direito. Campus Fernandópolis. (2023).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENEZES, Guilherme Favaro Santana de. Multiparentalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jun 2023, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61763/multiparentalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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