DÉBORA JAQUELINE GIMENEZ FERNANDES FORTUNATO.
(orientadora)
RESUMO: O presente estudo buscou analisar o §2º do artigo 10 da Lei 9.263/96 em consonância com o §7º do artigo 226 da CF/88, com o intuito de incluir a possibilidade de realização da cirurgia de laqueadura durante o parto cesariana na rede pública de saúde, possibilitando às mulheres de baixa renda um adequado acesso ao planejamento familiar, evitando uma nova cirurgia após o parto, bem como um ciclo de gestações subsequentes, que acaba por ser mais custoso aos cofres públicos. O estudo foi realizado pelo método de raciocínio hipotético-dedutivo, utilizando o procedimento hermenêutico e o histórico, relacionando princípios constitucionais. Concluiu-se que a Lei do Planejamento Familiar deve ser revista, uma vez que diverge da Carta Magna, bem como impede que as mulheres, principalmente as menos favorecidas economicamente, exerçam livremente a autonomia sobre sua vida privada, intensificando ainda mais os problemas estruturais de cunho social.
Palavras-chave: Liberdade; Dignidade; Laqueadura; Cesariana.
ABSTRACT: The present study sought to analyze Paragraph 2 of Article 10 of Law 9.263 / 96 in line with Paragraph 7 of Article 226 of the CF / 88, with the aim of including the possibility of performing ligation surgery during cesarean delivery in the public network health care, allowing low-income women adequate access to family planning, avoiding further surgery after childbirth, as well as a cycle of subsequent pregnancies, which turns out to be more costly to public coffers. The study was carried out by the hypothetical-deductive reasoning method, using the hermeneutic and historical procedure, relating constitutional principles. It was concluded that the Family Planning Law should be revised since it diverges from the Magna Carta, as well as preventing women, especially the less favored economically, from freely exercising autonomy over their private life, further intensifying structural problems of a nature Social.
Keywords: Freedom. Dignity. Tubal ligation. Caesarean.
A situação do planejamento familiar atual mostra um número crescente de mulheres grávidas, em sua maioria jovens e pobres e que, com pouca idade, já são mães de dois, três ou mais crianças e vivem em situação de extrema pobreza. Mas nem sempre esta é a vontade dessas mulheres que poderiam fazer a cirurgia de laqueadura durante o parto de seu próximo filho, evitando assim um novo procedimento cirúrgico posterior. Assim, mulheres que possuem condições financeiras de realizar a cirurgia durante o parto, conseguem adequado planejamento familiar. Entretanto, aquelas que precisam se utilizar do Sistema Único de Saúde são proibidas, e entre essas mulheres existem as maiores necessidades. Demonstrando assim mais uma lacuna, uma diferenciação decorrente das diferenças sociais existentes no Brasil.
O presente estudo buscou analisar o §2º do artigo 10 da Lei 9.263/96 em consonância com o §7º do artigo 226 da CF/88, com o intuito de incluir a possibilidade de realização da cirurgia de laqueadura durante o parto cesariano na rede pública de saúde, possibilitando às mulheres de baixa renda um adequado acesso ao planejamento familiar, evitando uma nova cirurgia após o parto, bem como um ciclo de gestações subsequentes, que acaba por ser mais custoso aos cofres públicos.
O método utilizado foi o de raciocínio hipotético-dedutivo, utilizando o procedimento hermenêutico e histórico, relacionando princípios constitucionais.
O planejamento familiar, mais do que um direito previsto no ordenamento jurídico ordinário, é princípio constitucional corolário da dignidade da pessoa humana.
Sob o aspecto do neoconstitucionalismo, os princípios transcritos em nossa Carta Magna são normas jurídicas concretamente observáveis que não só bastam para a hermenêutica constitucional, mas revelam a própria força normativa da constituição.
Nesse sentido da hermenêutica e da obrigatoriedade da norma jurídica, impossível analisar a problemática apresentada sem que seja lançada luz aos preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana e, mais especificamente, do próprio planejamento familiar.
1.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O Estado brasileiro tem sua organização concentrada no ser humano. Não se funda na propriedade, nas classes sociais, nas corporações, nas organizações religiosas ou no próprio Estado, se funda na pessoa humana, como um valor Jurídico Fundamental na nossa sociedade.
A dignidade tem o papel de "valor guia" na interpretação dos direitos fundamentais e na de todo o ordenamento jurídico. Vários valores decorrem da ideia de dignidade da pessoa humana, sejam eles o direito à vida, à intimidade, à honra, à imagem e a tantos outros.
Neste sentido, as precisas lições de Éden Nápoli, ao discorrer sobre a dignidade da pessoa humana, alçando-o ao patamar de meta-princípio informador e originador de todos os demais dele decorrentes, in verbis:
Trata-se de princípio que tem origens no cristianismo e é anterior a qualquer criação jurídica. A dignidade da pessoa humana se apresenta, assim, como o fundamento maior do Estado brasileiro. De todos os princípios, tem-se que este se apresenta como o "carro-chefe" dos direitos e garantias fundamentais. É o princípio meta, princípio fim de todo o ordenamento. E isso o distingue dos demais. Lembre-se que o Estado não é um fim em si mesmo. Pelo contrário, o objetivo do Estado é ajudar o homem a encontrar o seu fim. [...]. O fato de ser um princípio meta, fim do ordenamento, significa que em face de um eventual conflito de princípios, a solução deverá ser aquela que mais se aproxima da dignidade da pessoa humana. E essa solução, longe de ser prévia e abstrata, dependerá sempre da análise criteriosa de cada caso concreto. (NÁPOLI, 2016, p. 139)
No mesmo sentido e ofertando relevante grau de importância à dignidade humana, Marcelo Novelino destaca a relação de dependência existente entre o princípio meta (dignidade da pessoa humana) e os direitos fundamentais:
Existe uma relação de mútua dependência entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, pois, ao mesmo tempo em que estes surgiram como uma exigência da dignidade de proporcionar o pleno desenvolvimento da pessoa humana, somente por meio da existência desses direitos a dignidade poderá ser respeitada, protegida e promovida.
A dignidade é o fundamento, a origem e o ponto comum entre os direitos fundamentais, os quais são imprescindíveis para uma vida digna. Nas palavras de Jürgen HABERMAS, “a dignidade humana, que é uma e a mesma em toda parte e para todos, fundamenta a indivisibilidade de todas as categorias dos direitos humanos. Só em colaboração uns com os outros podem os direitos fundamentais cumprir a promessa moral de respeitar igualmente a dignidade humana de cada pessoa”.
A intenção específica da consagração de um conjunto de direitos fundamentais é explicitar uma ideia de ser humano, manifestada juridicamente no princípio da dignidade da pessoa humana. Esta se constitui na referência valorativa de todos os direitos fundamentais, delimitando, desse modo, o âmbito de sua matéria. Os direitos fundamentais constituem um sistema estruturado em referência a esse valor que os fundamenta.
O reconhecimento de certos direitos fundamentais é uma manifestação necessária da primazia da dignidade da pessoa humana, núcleo axiológico da Constituição. É certo, no entanto, nem todos os direitos fundamentais derivam da dignidade humana com a mesma intensidade: enquanto a vida, a liberdade e a igualdade decorrem de forma direta (derivação de 1° grau), outros são apenas derivações indiretas (derivação de 2° grau).
Uma questão interessante pode ser suscitada no que se refere à relação entre os direitos fundamentais e a dignidade: se a dignidade, de fato, é o fundamento dos direitos fundamentais, como explicar o fato de que somente após a Segunda Guerra Mundial ela começou a desempenhar um papel central nas Constituições? Por que esta noção não estava presente na clássica declaração de direitos humanos do século XVIII nem nas Constituições até metade do século XX? Por que começou a se falar de direitos humanos/fundamentais muito antes de se falar em dignidade humana? Será que apenas após o Holocausto a ideia de direitos humanos se torna, por assim dizer, retrospectivamente carregada com o conceito de dignidade?
Contrariamente à hipótese de uma carga moral retrospectiva dos direitos humanos, HABERMAS defende a tese de que esta conexão conceitual existe desde o início, ainda que apenas de forma implícita. Adotando como ponto de partida histórico a ideia de que os direitos humanos sempre foram o produto de resistência ao despotismo, à opressão e à humilhação, HABERMAS conclui que a conexão conceitual entre a dignidade humana e os direitos humanos tem evidentes traços em comum desde o início do desenvolvimento. O filósofo alemão conclui, então, no sentido de que a “dignidade humana significa um conceito normativo de fundo a partir do qual os direitos humanos podem ser deduzidos ao especificar as condições em que a dignidade é violada”. (NOVELINO, 2022)
Nesse contexto, a problemática relacionada ao procedimento de esterilização deve ser interpretado à luz da dignidade humana, entendido como direito fundamental e corolário dos demais direitos a seguir analisados.
Consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, a fim de manter a isonomia.
Portanto nem todo tratamento desigual é inconstitucional. A lei pode estabelecer certas diferenciações ("descrímen") visando atenuar as desigualdades existentes.
Existem dois tipos de Igualdade, a igualdade formal que vem da concepção clássica de que todos são iguais perante a lei e a igualdade material, também chamada de efetiva, real ou concreta, esta busca uma igualdade de fato, na vida econômica e em todos os aspectos da vida social, exige ações positivas por parte do Estado para reduzir as desigualdades sociais e regionais, neste mesmo entendimento escreve Novelino:
O dever de igualdade jurídica, ao mesmo tempo em que não pode exigir que todos sejam tratados exatamente da mesma forma, para ter algum conteúdo não pode também permitir toda e qualquer diferenciação. Um ponto de partida que serve como meio-termo entre os dois extremos é a utilização da fórmula proposta por Aristóteles há mais de 2 mil anos: tratar igualmente o igual e desigualmente o desigual. Nesse sentido, a lição de Rui BARBOSA ao afirmar que “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”. A fórmula aristotélica é frequentemente citada nas decisões do STF.
O imperativo de igual respeito e consideração impõe que, não sendo as pessoas iguais, o tratamento a ser dado a cada uma delas deve ser diferente (por exemplo: os cuidados com uma criança, um adulto ou um idoso devem ser distintos para que sejam tratados com o mesmo respeito e consideração). Assim, mais do que uma regra que impõe uma igualdade absoluta e em todos os planos, o princípio da igualdade pode ser compreendido como um “regulador das diferenças”, cuja função “é muito mais auxiliar a discernir entre desigualizações aceitáveis e desejáveis e aquelas que são profundamente injustas e inaceitáveis.”
Para que a igualdade jurídica não se torne uma simples exigência de fundamentação de normas que estabelecem tratamentos iguais ou desiguais, é necessário que exista uma assimetria entre os dois tipos de tratamentos, o que pode ser estabelecido por meio de um ônus argumentativo para o tratamento desigual [...]. (NOVELINO, 2022)
Neste contexto destaca-se a diferenciação entre mulheres que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS) para a realização da esterilização voluntária e mulheres que possuem recursos financeiros para tal procedimento.
Ademais, observa-se que o Direito à saúde é universal no ordenamento jurídico, portanto, a distinção em classes sociais quanto ao direito de escolha pela laqueadura no momento do parto deveria ser idêntico a qualquer que dele necessite ou queira assim se submeter.
Inviabilizar a laqueadura apenas àquelas mulheres que necessitam submeter-se ao procedimento cesariano por meio do sistema único de saúde é restrição arbitrária em contraposta ao princípio da igualdade no seu aspecto material.
O princípio da Liberdade traduz a possibilidade de escolher entre duas ou mais alternativas de acordo com a própria vontade, sem coação ou constrangimentos. Para que a pessoa seja livre é indispensável que os outros respeitem sua liberdade.
Com base nesse princípio e objetivando o respeito aos direitos da personalidade, a autonomia e intimidade de cada indivíduo, fica evidente que a decisão em relação ao procedimento de esterilização deve caber unicamente a mulher interessada. Em concordância com esse entendimento têm-se que:
[...] liberdade e autonomia andam de mãos dadas. A autonomia da vontade representa um dos princípios mais importante do sistema normativo privado. Em síntese, está ligada à faculdade do indivíduo de poder decidir conforme o seu querer, embora isto venha a ser limitado pelas regras supremas do ordenamento jurídico. Assim, com base na liberdade, a pessoa é capaz de tomar decisões a respeito da sua própria vida, determinando seu destino, inclusive sobre seu corpo, de forma livre, de acordo com suas convicções. Nesta esteira, o médico, como profissional responsável pelo tratamento da pessoa enferma, deve exercer seus deveres nos termos do ordenamento vigente24, dentre elas o Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931/2009); contudo ele deverá respeitar a vontade e, consequentemente, as decisões que vierem a ser tomadas pelo paciente. (GOZZO, MOINHOS, 2014)
1.4 Princípio da Paternidade Responsável
O princípio da paternidade responsável é garantido expressamente no artigo 226 da Constituição Federal, ao tratar da família, a Carta Magna, além de a considerar como base da sociedade, no §7º do artigo 226, diz ser o planejamento familiar de livre decisão do casal. A lei 9.263/96 veio regulamentar esse parágrafo da Carta Constitucional, estabelecendo em seu artigo 2º o planejamento familiar como “o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal” (Lei 9.263/96, art. 2º).
O princípio da paternidade responsável, abrange muito mais do que direitos e deveres em relação aos filhos, mas a capacidade dos pais, com base no planejamento familiar, entenderem os limites numéricos da prole para ofertar-lhes, dentro de suas capacidades, o cuidado necessário e indispensável para o desenvolvimento dos filhos.
Neste cenário, cada família com suas vicissitudes e desafios, condições sociais, financeiras, econômicas deve ter a liberdade de limitar a sua prole de acordo com o seu entendimento, evitando superioridade numérica de descendentes que dependam de pais incapazes de ofertar uma paternidade responsáveis a elevado número de filhos.
2 PLANEJAMENTO FAMILIAR COMO DIREITO FUNDAMENTAL
O Planejamento Familiar foi consagrado tanto em sede legal, quanto constitucional, senão vejamos:
"O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas" (CC, art. 1565, §2º).
"Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas" (CF, art. 226, §7º).
O referido princípio encontra-se regulamentado na Lei nº 9.263/1996, que assegura a todo cidadão, não só ao casal, o planejamento familiar de maneira livre, não podendo nem o Estado, nem a sociedade ou quem quer que seja estabelecer limites ou condições para o seu exercício dentro do âmbito da autonomia privada do indivíduo.
Dessa forma, resta-nos concluir que o livre planejamento familiar, tratando-se de um direito fundamental, não pode ser restringido, devendo ter seus inúmeros obstáculos efetivamente enfrentados e vencidos.
Como direito fundamental que é, ao livre planejamento familiar é conferido uma eficácia reforçada em sua aplicabilidade, dado que os direitos fundamentais, considerados em seu sentido amplo, ainda que não tenham sua intangibilidade expressamente assegurada, afiguram-se como pontos indissociáveis da própria condição de subsistência da Lei Maior.
Também chamada de ligadura das trompas, consiste num procedimento cirúrgico que tem por objetivo realizar a interrupção da passagem de ambas as trompas de Falópio, que fazem parte do sistema reprodutivo feminino, impossibilitando que o espermatozoide chegue ao encontro do óvulo.
“A laqueadura é um dos tipos mais efetivos de controle de natalidade. É permanente e mais de 99% efetivo na prevenção da gravidez” (OPAS, 2019), podendo ser considerada o método contraceptivo mais eficaz.
4 CONDIÇÕES PARA ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA
A lei 9.263/96, conhecida como Lei do Planejamento Familiar, tem por finalidade regulamentar o §7º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, conceituando planejamento familiar e o reconhecendo como um direito de todo cidadão. Grande parte do seu conteúdo foi dispensado à regulamentação da esterilização voluntária, determinando requisitos para sua realização e estabelecendo penalidades ao agente que praticar o procedimento em desacordo com a referida lei.
O artigo 10 da lei de planejamento familiar define estes requisitos, limitando o exercício do livre planejamento familiar.
Art. 10, lei 9.263/96. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações: (Artigo vetado e mantido pelo Congresso Nacional - Mensagem nº 928, de 19.8.1997)
I - em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce;
II - risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.
§ 1º É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes.
No parágrafo segundo do referido artigo há a vedação da realização da laqueadura durante os períodos de parto ou aborto, tendo como argumento de que a mulher não seria capaz de expressar sua vontade plenamente, como vemos in verbis:
Art. 10, lei 9.263/96. §2º É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.
Porém em análise dos princípios relacionados anteriormente e tendo como principal objetivo o respeito aos direitos da personalidade, a autonomia e intimidade de cada indivíduo, fica evidente que a decisão em relação ao procedimento de esterilização deve caber unicamente a mulher interessada. Neste mesmo sentido entende-se que:
[...] as limitações deixam de corresponder às expectativas, pois a medida que as informações são mais facilmente acessadas, a mulher, sujeito de direito e plenamente capaz, passa a ter certeza do seu lugar na sociedade e de como pretende constituir sua família, decidindo sobre quando, quantos ou se terá filhos. Assim, hoje, a manifestação de vontade da mulher que quer se submeter a laqueadura torna-se o único requisito cabível ao caso. (SOUZA, 2019)
O tema sobre a realização de laqueadura tubária realizada durante o parto pelo SUS já foi muito discutido, sendo tema de vários artigos.
O promotor de Justiça Eduardo Martins Boiati escreveu sua opinião para o Jornal Carta Forense, onde salientou a inconstitucionalidade da proibição da laqueadura tubária durante o parto. Relata que durante seus anos atuando na Promotoria de Justiça tem atendido um número cada vez maior de mulheres grávidas, a maioria com um ou mais filhos vivos que buscam a realização da cirurgia de laqueadura durante o parto, diz ainda que em sua maioria são mulheres jovens e pobres que não possuem condições de sustentar nem os filhos que já possui, e que o fato das gestações acontecerem com pouca diferença de tempo, impedem que a mãe volte ao mercado de trabalho, o que agrava a situação de miséria.
Essas mulheres quando maiores de 25 anos, ou com pelo menos dois filhos vivos, procuram pela Promotoria de Justiça, com uma decisão amadurecida de que apenas realizar a laqueadura tubária lhes interessam por vários motivos pessoais. Quando são casadas ou possuem companheiros, estas costumam ser acompanhadas e apoiadas por eles a realizar o procedimento.
Porém, a questão é que essas mulheres buscam evitar a submissão de um novo procedimento cirúrgico, uma vez que consideram que estariam expostas a mais riscos, e buscam pela realização da laqueadura tubária durante o parto.
Um ponto importante observado por Boiati é que mulheres com condições financeiras mais favoráveis tem melhor acesso à informação, aos métodos contraceptivos e até mesmo às laqueaduras tubárias realizadas durante partos que, apesar de vedadas pela lei 9.263/96, são acessíveis às parturientes que não dependam do serviço público de saúde para a realização do parto.
Assim, ressalta que os casais com melhores condições conseguem adequado planejamento familiar, enquanto os menos afortunados estão sujeitos a ter prole numerosa, contra suas vontades e condições financeiras, assim perpetuando a miséria.
6 (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO §2º DA LEI 9.263/96 (LEI DE PLANEJAMENTO FAMILIAR)
Fazendo uma análise do texto constitucional, conclui-se que o artigo 10, §2º da lei 9.263 que proíbe a realização da laqueadura tubária durante o parto é inconstitucional. Dizendo o artigo 226, §7º, da Constituição Federal que:
Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. (CF, art. 226, §7º)
Tal dispositivo constitucional foi regulado pela Lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996. O artigo 1º, da referida lei dispõe que: “o planejamento familiar é direito de todo cidadão, observado o disposto nesta lei” (Lei 9.263/96, art. 1º) e o artigo 2º reza que "para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.” (Lei 9.263/96, art. 2º)
Salienta-se ainda que o planejamento familiar se orienta pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para contracepção (Lei 9.263/96, art.4º) e é dever do Estado, por meio do SUS, promover meios necessários que garantam o livre exercício do planejamento familiar (Lei 9.263/96, art.5º).
O art. 10, da Lei 9.263/96, permite a esterilização voluntária nas condições que foram elencadas em capítulo anterior.
Porém, o artigo 10, § 2º veda a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto em casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.
Tal dispositivo legal está em total dissintonia com art. 226, §7º, da Constituição Federal, uma vez que o art. 226, §7º estabelece que o planejamento familiar é livre decisão do casal e que compete ao Estado promover recursos para o exercício desse direito, que inclusive é fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.
O §7º, do art.226 da Constituição Federal é uma norma constitucional de eficácia plena, não dependendo de qualquer outra norma infraconstitucional para que seja aplicada, também não há previsão de que possa ser restringida por outra normal infraconstitucional.
Segundo o doutrinador José Afonso da Silva, normas constitucionais de eficácia plena são:
[...] aquelas que, desde a entrada em vigor da Constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular (SILVA, 2012)
Portanto, quaisquer das restrições que foram impostas pela lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996, em especial o §2º, do artigo 10, que veda a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, é inconstitucional, uma vez que restringe uma normal constitucional de eficácia plena.
Embora o §2º do artigo 10 da Lei 9.263/96, traga em seu texto expressamente a vedação da esterilização cirúrgica em mulher durante o período de parto, a não ser nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores, esta vedação é aplicada somente em casos de mulheres em condições de vulnerabilidade, que necessitam da saúde pública, restringindo somente o exercício da liberdade de escolha do direito reprodutivo das mulheres de baixa renda o que acaba por ferir o princípio da liberdade e também o princípio da dignidade da pessoa humana, princípios estes basilares da Constituição Federal de 1988.
O atual regramento tem por finalidade efetivar o acesso à laqueadura em condições seguras, contudo não está sendo corretamente aplicada, principalmente para a grande parcela de mulheres que se utilizam do SUS e não possuem interesse em ter mais filhos, não sendo esse propósito obtido, portanto a vedação a esterilização voluntária cirúrgica em mulher durante o parto disposto na Lei de Planejamento Familiar é inconstitucional pois confronta o disposto no artigo 226 da Constituição Federal, afrontando ainda o direito à liberdade e disponibilidade física do corpo e dignidade da pessoa humana.
Concluindo-se que a Lei do Planejamento Familiar deve ser revista nestes artigos uma vez que diverge da Carta Magna, bem como impede que as mulheres, principalmente as menos favorecidas economicamente, exerçam livremente a autonomia sobre sua vida privada, intensificando ainda mais os problemas estruturais de cunho social.
Além disso, tal inconstitucionalidade sobre a realização de laqueadura tubária durante o parto, enquanto não for declarada inconstitucional pelo STF, por meio de ação direta de inconstitucionalidade, pode ser declarada, por via de controle difuso ou aberto de constitucionalidade pelo Poder Judiciário em cada caso concreto. E essa declaração, terá efeitos, em regra, inter partes e serão ex tunc, podendo ser aplicável às partes no caso concreto.
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Graduanda em Direito pela Universidade Brasil. Campus Fernandópolis.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REBECA FERES OLIVEIRA DE DOMêNICIS, . Viabilidade da laqueadura durante o parto cesariano pelo Sistema Único de Saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jul 2023, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61909/viabilidade-da-laqueadura-durante-o-parto-cesariano-pelo-sistema-nico-de-sade. Acesso em: 23 dez 2024.
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