RESUMO: O presente estuda busca realizar uma breve análise da evolução histórica da participação da Administração Pública em procedimentos arbitrais, tanto na esfera legislativa quanto na esfera jurisprudencial. Os requisitos atualmente impostos para a participação de entes públicos são, em suma, os mesmos que aqueles para qualquer ente privado. Apesar de toda a evolução legislativa sobre o tema, e o suposto entendimento pacífico de que seria possível a participação da Administração Pública, o Superior Tribunal de Justiça proferiu recentes decisões que não se coadunam com o que até então se verificava na jurisprudência da Corte, em casos envolvendo a participação da União. Diante desses julgados e o que até então se vinha aplicando, busca-se com o presente fazer uma análise destes julgados e colocá-los em perspectiva diante de toda a evolução tida até então.
Palavras-chave: Arbitragem; Administração Pública; União Federal; Conflito de Competência; Superior Tribunal de Justiça.
ABSTRACT: The present study seeks to carry out a brief analysis of the historical evolution of the participation of the Public Administration in arbitration procedures, both in the legislative sphere and in the jurisprudential sphere. The requirements currently imposed on the participation of public entities are, in short, the same as those for any private entity. Despite all the legislative evolution on the subject, and the supposed peaceful understanding that it would be possible for the Public Administration to participate, the Superior Court of Justice issued recent decisions that are not in line with what until then had been verified in the Court's jurisprudence, in cases involving the participation of the Union. Faced with these judgments and what had been applied until then, an attempt is made to analyze these judgments and put them in perspective in view of all the evolution that had taken place until then.
Keywords: Arbitration; Public Administration; Federal Union; Conflict of Competence; Superior Court of Justice.
A utilização da arbitragem como método de resolução de conflitos oriundos de contratos administrativos e envolvendo entes da Administração Pública é tema há muito tempo debatido pela doutrina.
Mesmo antes da existência da Lei de Arbitragem brasileira, a questão já havia sido discutida pelo Supremo Tribunal Federal[1], em 1973. Ao longo dos anos, com a promulgação da Lei de Arbitragem e posteriormente com as mais diversas leis, o assunto passou a ser cada vez mais aceito pela doutrina e pelos Tribunais Brasil à fora.
Além disso, as vantagens trazidas pela arbitragem nos conflitos com a Administração Pública apenas fomentaram a prática e a presença de cláusulas compromissórias nos mais diversos tipos de editais e contratos administrativos.
Apesar de não ser o objeto do presente estudo, a existência de um panorama legislativo e jurisprudencial favorável à administração pública como parte em arbitragens pode ser considerado inclusive como incentivo à atração de investimentos estrangeiro direto.
Resultado dessa evolução e das vantagens que o instituto apresenta é justamente a raridade de casos envolvendo projetos de infraestrutura em que a Administração Pública está envolvida e que não esteja prevista a arbitragem como método de resolução de conflitos.
Não obstante esse panorama, recentemente o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisões que contrariam o posicionamento da própria corte.
O presente artigo pretende demonstrar brevemente esta evolução legislativa e jurisprudencial até estas mais recentes decisões do STJ e, a partir disso, analisar as decisões e os principais fundamentos para este novo posicionamento da Corte.
2.BREVE ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO TEMA NO BRASIL
Apesar de ainda existirem autores administrativistas que se opõem à utilização da arbitragem como meio adequado de resolução de conflitos oriundos de contratos administrativos[2], a atual evolução legislativa e jurisprudencial mostra estar seguindo um caminho oposto.
Antes da mais recente alteração à Lei de Arbitragem, diversas leis federais já veiculavam normas sobre a possibilidade de participação da Administração Pública em procedimentos arbitrais.
Dentre as principais leis federais neste sentido, podemos citar a título exemplificativo e para demonstrar essa evolução as seguintes leis: (i) Lei n. 9.472/1997[3], que dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações e criou a ANATEL; (ii) Lei n. 9.478/1997[4], que dispõe sobre a política energética nacional e instituiu o Conselho Nacional e Política Energética e a ANP; (iii) Lei n. 10.233/2001[5], que dispõe sobre a reestruturação dos transportes aquaviário e terrestre, criou o Conselho Nacional de Integração de Políticas Públicas de Transporte, a ANTT a Agência Nacional de Transportes Aquaviários e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes; (iv) Lei n. 10.848/2004[6], que dispõe sobre a comercialização de energia; (v) Lei n. 11.079/2004[7], que dispõe normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada; (vi) Decreto n. 8.465/2015, posteriormente revogado e alterado pelo Decreto n. 10.025/2019[8] que dispõe sobre a arbitragem no setor portuário; (vii) Lei n. 13.303/2016[9], também conhecida como Lei das Estatais; e (ix) mais recentemente, a Lei n. 14.133/21[10], que dispõe sobre licitações e contratos administrativos.
Ou seja, a adoção da arbitragem como método para resolução de disputas envolvendo a Administração Pública já indicava ser uma tendência desde final do século passado[11]. Diante desse cenário e evolução legislativa destes – pelo menos – 25 anos, verifica-se como possível, viável e até mesmo favorável a inclusão de cláusulas arbitrais em contratos administrativos.
Como se tudo isso já não bastasse, para dirimir de vez a questão sobre a possibilidade de participação da administração pública ou não em procedimentos arbitrais, a Lei n. 13.129/2015, que alterou a Lei de Arbitragem, fez questão de incluir expressamente em seu artigo primeiro, a menção de que “[A] administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”.
A alteração da Lei de Arbitragem nada mais foi do que a adoção expressa em lei daquilo que, na prática e em legislações esparsas já vinha sendo apresentado. Já há anos que a legislação e a jurisprudência brasileira vinham caminhando em direção à aceitação da arbitragem como método adequado para resolução de conflitos em que a administração pública é parte[12], para que enfim, em 2015, esta possibilidade fosse expressa na Lei de Arbitragem.
Justamente por este motivo, não seria nenhum absurdo afirmar que experiência brasileira com arbitragem envolvendo entes da Administração Pública tem sido cada vez mais positiva[13] e incentivada pela legislação, doutrina e aqueles que atuam neste mercado.
3.ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E ARBITRABILIDADE
Apesar do atual cenário favorável, muitos óbices já foram apresentados para impedir a Administração Pública de fazer parte de procedimentos arbitrais. Historicamente, dentre estes óbices dois se destacam: (i) princípio da legalidade; (ii) indisponibilidade do interesse público.
O primeiro diz respeito à necessidade de existência de lei prévia que expressamente permita a participação da Administração Pública em procedimentos arbitrais. Ou seja, a máxima de que a Administração Pública deve tão somente obedecer às leis, cumpri-as e pô-las em prática, além de não poder agir se não em virtude de lei que a permita[14]. O que, como vimos, pode ser entendido como superado, vez que, não apenas a própria Lei de Arbitragem expressamente autoriza esta participação, como diversas outras leis federais também o fazem.
O segundo ponto traz uma questão sobre a matéria que pode ser discutida em arbitragem. Ou, neste caso, que não poderia ser discutida.
O artigo 1º da Lei de Arbitragem estabelece que “[A]s pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”, ou seja, delimita o objeto de análise de procedimentos arbitrais para “direitos patrimoniais disponíveis. Assim, “interesse público”, por ser indisponível, não se enquadraria no permissivo legal do artigo 1º da Lei de Arbitragem.
Aqueles que defendem a impossibilidade da participação da Administração Pública em arbitragens, baseiam-se em grande medida, justamente no princípio da indisponibilidade do interesse público, e que, por este motivo, não haveria direito disponível capaz de ser discutido em sede arbitral.
Estes óbices levam à análise tanto da arbitrabilidade subjetiva dos entes da Administração Pública, quanto sobre a arbitrabilidade objetiva dos conflitos em que estes entes possam ser partes.
3.1 Arbitrabilidade Subjetiva – Quem pode discutir?
Como visto, a Lei Brasileira de Arbitragem prevê uma autorização geral aos entes de da Administração Pública para que revolvam conflitos por arbitragem, não apresentando qualquer restrição quanto ao sujeito que pode ser parte.
Para que não haja qualquer dúvida, o dispositivo ainda indica claramente que tanto os entes da Administração direta, quanto indireta podem ser partes de procedimentos arbitrais, não impondo qualquer condição adicional.
Diante disso, a conclusão que se apresenta é pela possibilidade incondicional de qualquer ente da Administração Pública de fazer uso da arbitragem como método de resolução de conflitos. Não há qualquer restrição legal no que diz respeito à arbitrabilidade subjetiva de quaisquer dos entes da Administração Pública, visto que superado esse ponto por expressa determinação legal.
3.2 Arbitrabilidade Objetiva – O que pode ser discutido?
Ultrapassada a discussão acerca da arbitrabilidade subjetiva da Administração Pública, cabe analisar se eventual conflito envolvendo a Administração Pública é passível de resolução pela via arbitral diante da matéria que será discutida. Em outras palavras, faz-se necessário uma análise do objeto posto para decisão do tribunal arbitral.
Via de regra, a análise aqui será a mesma que em qualquer outra arbitragem em que a Administração Pública não estivesse envolvida[15], vez que é o critério geral estabelecido pela própria Lei de Arbitragem em seu artigo 1º.
A interpretação da expressão “direitos patrimoniais disponíveis” deve ser entendida como aquele direito que “pode ser ou não exercido livremente pelo seu titular, sem que haja norma cogente impondo o cumprimento do preceito, sob pena de nulidade ou anulabilidade do ato praticado com sua infringência”[16], e que dos quais pode dispor o seu titular[17].
Neste ponto, algumas das normas citadas no tópico “2’, acima, trazem listas exemplificativas – e não taxativas – de possibilidades de conflitos que poderiam ser submetidos à arbitragem[18]-[19].
Um exemplo relevante para o presente estudo – conforme se verá no tópico “4”, abaixo – é o da cláusula arbitral contida no Estatuto Social da Petrobras. Como se sabe, referida companhia se trata de uma empresa estatal, da qual é acionista controlador a União Federal. O atual parágrafo único do artigo 59 do Estatuto Social da Petrobras prevê que a cláusula compromissória “não se aplica não se aplica às disputas ou controvérsias que se refiram às atividades da Petrobras fundamentadas no art. 1º da Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997 e observado o disposto neste Estatuto no que tange ao interesse público que justificou a criação da Companhia, bem como às disputas ou controvérsia que envolvam direitos indisponíveis” [20].
O Estatuto Social, portanto, restringe expressamente o âmbito de aplicação objetivo da cláusula compromissória ali prevista. Não apenas isso, mas também reforça a indisponibilidade do interesse público e de controvérsias que envolvam direitos indisponíveis, que não seriam arbitráveis.
Assim, entende-se por incontroversa a participação da Administração Pública em procedimentos arbitras[21], vez que legitimada a tanto por lei e detentora de direitos patrimoniais disponíveis. A análise da arbitrabilidade objetiva, portanto, se limita à identificação da disponibilidade do direito material ou não. Ou seja, se foi cumprido o requisito legal de arbitrabilidade objetiva ou não, e apenas isso.
4.PARTICIPAÇÃO DA UNIÃO EM ARBITRAGENS E O POSICIONAMENTO RECENTE DO STJ
Como visto, via de regra, a tendência legislativa e doutrinaria nacional tem sido pela possibilidade de participação da Administração Pública em procedimentos arbitrais. Até mesmo a jurisprudência do STJ indicava um posicionamento favorável da Corte à esta possibilidade[22].
Apesar de todo o recente desenvolvimento legal, doutrinário, e até mesmo jurisprudencial, o STJ recentemente proferiu decisões em sentido contrário em casos envolvendo a participação da União[23]. O segundo e mais recente caso não chegou a ser decidido pelo colegiado, diante do precedente formado pelo acórdão proferido no primeiro caso a Ministra Nancy Andrighi proferiu decisão monocrática no mesmo sentido – que será analisado abaixo. Por este motivo, será dado maior ênfase à análise do primeiro julgado.
O primeiro caso se refere ao acórdão proferido no Conflito de Competência nº 151.130. O caso, em suma, trata de controvérsia acerca de qual seria o órgão competente para apreciar a questão relativa ao alcance da cláusula arbitral contida no Estatuto Social da Petrobras. Lê-se de referida cláusula que “Deverão ser resolvidas por meio de arbitragem, obedecidas às regras previstas pela Câmara de Arbitragem do Mercado, as disputas ou Controvérsias que envolvam a Companhia, seus acionistas, os administradores e conselheiros fiscais, tendo por objeto a aplicação das disposições contidas na Lei nº 6.404, de 1976 (...)[24]”. O parágrafo único do mesmo artigo, por sua vez, determina que as deliberações da União por meio de voto proferido em Assembleia Geral “que visem a orientações de seus negócios, nos termos do artigo 238 da Lei nº 6.404, de 1976, são considerados formas de exercício de direitos indisponíveis e não estarão sujeitas ao procedimento arbitral previsto no caput deste artigo”.
Quando da análise da questão pelo STJ, havia uma arbitragem em curso, iniciada pelos acionistas minoritários da Petrobrás[25], em face da companhia, assim como da União, na qualidade de acionista majoritária. A arbitragem buscava resolver a discussão acerca da existência de eventual responsabilidade da União Federal pela desvalorização acionária excessiva, decorrentes dos escândalos de corrupção investigados pela Operação Lava-Jato e que envolviam diretamente a Petrobrás. O Tribunal Arbitral entendeu que essa cláusula seria ampla o suficiente para vincular também a União Federal ao procedimento.
A União, desde o início, se opôs à arbitragem. Sustentou, em suma, que a cláusula compromissória que baseava a disputa não seria a ela aplicável.
A câmara de arbitragem, em análise prima facie da matéria, decidiu pela manutenção da União na arbitragem e o prosseguimento do feito na seara arbitral com a União Federal e Petrobras no polo passivo e os investidores da companhia no polo ativo.
Diante desta decisão, a União ajuizou ação declaratória de inexistência de relação jurídica perante a Justiça Federal de São Paulo, a fim de que fosse determinada a sua retirada do procedimento arbitral. Sustentou, nesta ocasião, que o fato e ser acionista da Petrobras não seria suficiente para obrigá-la a participar da arbitragem. A justiça federal acatou o pedido da União e determinou sua abstenção do procedimento arbitral.
Diante da existência das decisões conflitantes da Justiça federal, de um lado, e da decisão da câmara de arbitragem, de outro, foi suscitado o conflito de competência pelos investidores da Petrobras em 2017.
A decisão do STJ não foi unânime, e Ministra Nancy Andrighi foi voto vencido, e a única a votar no sentido de que a União poderia sim estar presente no polo passivo da demanda.
Não obstante as análises realizadas tanto pelo Tribunal Arbitral quanto pelo STJ do mérito do litígio em questão, o que importa para o presente estudo é a análise feita no acórdão acerca da arbitrabilidade – tanto subjetiva quanto objetiva – do litígio no que tange à participação da União Federal.
Necessário lembrar que a análise do STJ, em tese, somente poderia ser realizada caso restasse absolutamente evidenciado, prima facie, a existência de uma cláusula compromissória patológica[26]. Caso contrário, a corte deveria observar o princípio da da kompetenz-kompetenz, reconhecido inclusivo pela Lei de Arbitragem[27].
4.1 Análise da arbitrabilidade subjetiva
Ao contrário do que se poderia esperar, seguindo o voto-vista do Ministro Luís Felipe Salomão, a 3ª Turma do STJ considerou que as condições para a participação do Estado na arbitragem não estavam preenchidas e que a cláusula arbitral não abrangia o litígio em questão.
Vale relembrar que a União Federal requereu a sua exclusão da arbitragem, com base principalmente me dois argumentos: (i) ausência de autorização expressa no Estatuto da Petrobras para sua submissão ao procedimento diante da não aplicabilidade da cláusula compromissória que a vincule na qualidade de acionista da Petrobras; e (ii) do caráter facultativo da arbitragem.
Apesar do voto favorável à declaração de competência do Tribunal Arbitral proferido pela Ministra Nancy Andrighi, o Ministro Luis Felipe Salomão abriu a divergência para declarar a competência do Juízo Federal suscitado.
Entre outros fundamentos, sustentou o Ministro que, "em se tratando da Administração Pública, a própria manifestação de vontade do ente está condicionada ao princípio da legalidade, mediante interpretação restritiva, nos termos da cláusula". O Ministro Marco Aurélio foi além ao indicar que no caso em análise não houve o consentimento da União para participar da arbitragem, mesmo diante do fato da existência da cláusula compromissória no Estatuto Social de empresa em que a União é acionista controladora.
Entendeu ainda, que o primeiro ponto que merece detida análise, envolve a anuência ou não da União à cláusula compromissória prevista no artigo 58 do Estatuto Social da Petrobras. A conclusão do Ministro foi no sentido de “que muito embora se alegue, no caso, a possibilidade da submissão do ente público à arbitragem, mesmo antes da edição da Lei nº 13.129/2015 – e até mesmo antes da edição da Lei nº 9.306/97 –, penso que tal não autoriza a utilização e extensão do procedimento arbitral à União na condição de sua acionista controladora, seja em razão da ausência de lei autorizativa, seja em razão do próprio conteúdo da norma estatutária, a partir da qual não se pode inferir a referida autorização”.
Ou seja, foi determinada a necessidade de lei autorizativa para a utilização e extensão do procedimento à União na condição de acionista, como se todas as leis autorizativas existentes não fossem suficientes. E mais, em seu voto, o Ministro Marco Aurélio ainda indicou que “não se pode afastar a exigência de regramento específico que apresente a delimitação e a extensão de determinado procedimento arbitral ao sócio controlador, notadamente em se tratando da ente federativo, no caso a União, em que a própria manifestação de vontade deve estar condicionada ao princípio da legalidade”.
Assim, foi afastada a arbitrabilidade subjetiva da União para participar no procedimento arbitral em questão, visto que o Estatuto Social expressaria apenas a vontade da Companhia em submeter-se à arbitragem, e não da União – mesmo na condição de acionista controladora.
Ao fim, no que tange à arbitrabilidade subjetiva, o acórdão reconheceu que, apesar de não restarem dúvidas acerca da possibilidade da adoção da arbitragem pela Administração Pública diante do cenário legislativo atual, não seria autorizada a utilização e a extensão do procedimento arbitral à União na condição de acionista controladora da Petrobrás em razão da ausência de lei autorizativa ou estatutária.
4.2 Análise da arbitrabilidade objetiva
A Ministra Nancy Andrighi entendeu que conflito submetido à resolução arbitral não diz respeito aos votos da União da assembleia de acionistas, não caindo a matéria dentro da exclusão expressa contida na cláusula compromissória do Estatuto.
No entanto, o voto vencedor entendeu que
Ao fim, por oito votos a um, o STJ decidiu o conflito de competência em favor da justiça federal, entendendo que caberia à justiça federal pronunciar-se, de maneira definitiva, sobre a eficácia da cláusula compromissória em relação à União, apesar de a Turma já ter decidido em seu acórdão.
No que tange ao objeto da arbitragem, teor da cláusula compromissória inserta no Estatuto da Petrobras evidencia que as disputas submetidas à arbitragem envolvem tão apenas "as disputas ou controvérsias que envolvam a Companhia, seus acionistas, os administradores e conselheiros fiscais, tendo por objeto a aplicação das disposições contidas na Lei n° 6.404, de 1976, neste Estatuto Social."[28]
O Ministro Marco Aurélio entendeu que o pedido dos investidores na arbitragem configura matéria que foi expressamente excluída pela cláusula compromissória do Estatuto.
Ao entender que a matéria em análise “ultrapassa, no tocante à União, os atos societários, porquanto as suscitantes pretendem a responsabilização solidária da União em virtude da escolha equivocada dos dirigentes da Petrobras e da ausência de fiscalização da atuação de tais agentes”, o Ministro Marco Aurélio indicou não entender pela existência de arbitrabilidade objetiva. Isso porque estaria a se tratar o mérito do caso de pleito de responsabilidade civil extracontratual em face da União, e não de questão de matéria societária, esta última sendo a única abarcada pela cláusula compromissória estatutária.
Por estes motivos, restou definido pelo acórdão que não haveria que se falar em princípio da competência-competência, vez que a discussão envolveria a análise pretérita da própria existência da cláusula compromissória, cabendo, neste caso, a análise imediata da jurisdição estatal.
Assim, quanto à arbitrabilidade objetiva, o acórdão entendeu que o conteúdo do pleito indenizatório subjacente ao conflito transcenderia o objeto indicado na cláusula compromissória do Estatuto da Petrobrás.
Os julgados acima analisados indicam perigoso precedente para o prosseguimento da arbitragem envolvendo entes da administração pública no Brasil, principalmente diante da fundamentação utilizada pela Corte.
Se hoje a arbitragem vinha sendo considerada como um poderoso instrumento para resolução de conflitos com a Administração Pública, já não se sabe como será a repercussão destes julgados no futuro próximo. Isso tanto no que diz respeito à adoção da arbitragem pelos entes públicos, quanto pelos particulares que com ela negociam.
A repercussão aqui pode inclusive extrapolar as fronteiras nacionais, vez que a possibilidade de utilização da arbitragem em conflitos com entes públicos é uma importante ferramenta para a atração de investidores estrangeiros[29].
Apesar de ainda não ser o entendimento pacífico ou majoritário – ao menos não neste momento – as recentes decisões do STJ quanto à participação da União em procedimentos arbitrais contrariam toda a evolução da modalidade que fora até então desenvolvida.
Entender pela ausência de arbitrabilidade subjetiva diante da ausência de lei autorizativa ou estatutária, ao passo em que tanto há lei expressa nesse sentido, quanto cláusula compromissória no Estatuto, não parece ser a resolução mais adequada para o conflito.
Não cabe analisar o mérito da questão e, se o direito material em questão seria oponível à União na capacidade de acionista da Petrobras. De qualquer maneira, mesmo que se entenda pela não oponibilidade, caberia ao Tribunal Arbitral excluir a União de eventual condenação, e não de se utilizar do argumento de ausência de arbitrabilidade subjetiva e objetiva.
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[1] Caso Lage – STF AI n.º 52.181/GB, rel. Ministro Bilac Pinto, RTJ 68/382.
[2] Neste sentido, veja-se: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015. p. 812; e MARTINS, Ricardo Marcondes. Arbitragem e Administração Pública: contribuição para o sepultamento do tema. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, v. 54, 2011. p. 194-209.
[3] Art. 93. O contrato de concessão indicará:[...] XV - o foro e o modo para solução extrajudicial das divergências contratuais.
[4] Art. 43. O contrato de concessão deverá refletir fielmente as condições do edital e da proposta vencedora e terá como cláusulas essenciais: [...] X - as regras sobre solução de controvérsias, relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem internacional;
[5] Art. 35. O contrato de concessão deverá refletir fielmente as condições do edital e da proposta vencedora e terá como cláusulas essenciais, ressalvado o disposto em legislação específica, as relativas a: [...] XVI – regras sobre solução de controvérsias relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem;
[6] Art. 4º Fica autorizada a criação da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica - CCEE, pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, sob autorização do Poder Concedente e regulação e fiscalização pela Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, com a finalidade de viabilizar a comercialização de energia elétrica de que trata esta Lei. [...] § 5º As regras para a resolução das eventuais divergências entre os agentes integrantes da CCEE serão estabelecidas na convenção de comercialização e em seu estatuto social, que deverão tratar do mecanismo e da convenção de arbitragem, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.
[7] Art. 11. O instrumento convocatório conterá minuta do contrato, indicará expressamente a submissão da licitação às normas desta Lei e observará, (...) podendo ainda prever: [...] III – o emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato.
[8] Art. 1º Este Decreto dispõe sobre a arbitragem, no âmbito do setor portuário e de transportes rodoviário, ferroviário, aquaviário e aeroportuário, para dirimir litígios que envolvam a União ou as entidades da administração pública federal e concessionários, subconcessionários, permissionários, arrendatários, autorizatários ou operadores portuários.
[9] Art. 12. A empresa pública e a sociedade de economia mista deverão: [...] Parágrafo único. A sociedade de economia mista poderá solucionar, mediante arbitragem, as divergências entre acionistas e a sociedade, ou entre acionistas controladores e acionistas minoritários, nos termos previstos em seu estatuto social.
[10] Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.
[11] ROST, Maria Augusta. Arbitragem como Política Pública: O efetivo combate aos cartéis em licitação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p.96.
[12] QUINTÃO, Luísa. Breves notas sobre arbitragem e administração pública no Brasil. Revista de Arbitragem e Mediação. Vol. 59/2018, out-dez / 2018, p. 121-146.
[13] LEMES, Selma Ferreira. Incentivos à arbitragem na administração pública. Valor Econômico. 05.09.2016. Disponível em: [https://valor.globo.com/noticia/2016/09/05/incentivos-a-arbitragem-na-administracao-publica.ghtml]. Acesso em: 05/12/2022.
[14] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015. p. 104.
[15] QUINTÃO, Luísa. Breves notas sobre arbitragem e administração pública no Brasil. Revista de Arbitragem e Mediação. Vol. 59/2018, out-dez / 2018, p. 121-146.
[16] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 38.
[17] QUINTÃO, Luísa. Breves notas sobre arbitragem e administração pública no Brasil. Revista de Arbitragem e Mediação. Vol. 59/2018, out-dez / 2018, p. 121-146.
[18] Como por exemplo o Decreto n. 8.465/2015 e a Lei n. 13.448/2017.
[19] Acerca da não taxatividade dos elementos apresentados nestas leis, Luisa Quintão entende que, mesmo que houvesse eventual restrição, esta não afetaria o critério de aferição de arbitrabilidade previsto na Lei. (QUINTÃO, Luísa. Breves notas sobre arbitragem e administração pública no Brasil. Revista de Arbitragem e Mediação. Vol. 59/2018, out-dez / 2018, p. 121-146).
[20] Petrobras. Relacionamento com Investidores. Estatuto Social. Disponível em: [https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/25fdf098-34f5-4608-b7fa-17d60b2de47d/31da34d0-1343-0014-c905-40108ec2c11e?origin=2]. Acesso em: 05.12.2022.
[21] MELLO, Rafael Munhoz de. Arbitragem e Administração Pública. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, Curitiba, v. 6, 2015. p. 47-81.
[22] Neste sentido, diversos foram os casos ao longo dos anos mostraram que o posicionamento geral da corte seria pró arbitragem. Dentre eles, podemos citar, a título de exemplo, os seguintes: (i) Caso AES-Uruguaiana (REsp n. 606.345/RS, relator Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Turma, julgado em 17/5/2007, DJ de 8/6/2007, p. 240); (ii) Caso Compagás (REsp n. 904.813/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/10/2011, DJe de 28/2/2012); (iii) Caso ANP-Petrobrás ((CC n. 166.681/PA, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 11/3/2020, DJe de 13/3/2020).
[23] CC n. 151.130/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 27/11/2019, DJe de 11/2/2020, e CC n. 177.437, decisão monocrática da Ministra Nancy Andrighi, julgado em 12/02/2021.
[24] Redação do artigo 58 do Estatuto Social da Petrobrás à época do julgamento da matéria. Na versão atualizada do estatuto a cláusula compromissória passou a ser o artigo 59 do documento. Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/25fdf098-34f5-4608-b7fa-17d60b2de47d/31da34d0-1343-0014-c905-40108ec2c11e?origin=2
[25] Procedimento Arbitral CAM 99-100/17.
[26] Foi nesse sentido, inclusive, que iniciou seu voto o Min. Marco Aurélio Belizze, que formou maioria para a decisão. Indicou o Ministro que “a doutrina especializada, assim como a jurisprudência desta Corte de Justiça, as admite excepcionalmente e em tese, sempre que restar absolutamente evidenciado, prima facie, a inexistência, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem (no caso, em relação à União Federal, alegadamente)”.
[27] Art. 8º: A cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória. Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória.
[28] Redação do artigo 58 do Estatuto Social da Petrobrás à época do julgamento da matéria. Na versão atualizada do estatuto a cláusula compromissória passou a ser o artigo 59 do documento. Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/25fdf098-34f5-4608-b7fa-17d60b2de47d/31da34d0-1343-0014-c905-40108ec2c11e?origin=2
[29] QUINTÃO, Luísa. Breves notas sobre arbitragem e administração pública no Brasil. Revista de Arbitragem e Mediação. Vol. 59/2018, out-dez / 2018, p. 121-146.
Advogado, especialista em direito empresarial pela FGV-SP e mestrando em direito pela PUCSP .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Caio Lopes da. Participação da Administração Pública e da União em Procedimentos Arbitrais: breve análise histórica e do julgamento do CC nº 151.130 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jul 2023, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61925/participao-da-administrao-pblica-e-da-unio-em-procedimentos-arbitrais-breve-anlise-histrica-e-do-julgamento-do-cc-n-151-130. Acesso em: 23 dez 2024.
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