WALTER MARTINS MULLER[1]
(orientador)
RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar a possibilidade da utilização da confissão como elemento probatório para o oferecimento da denúncia e consequentemente a instauração de uma ação penal ante o descumprimento do Acordo de Não Persecução Penal, tal análise será realizada tendo como alicerce o valor probatório da confissão. A confissão é um dos requisitos exigidos para que haja a propositura do acordo, devendo ela ser formal e circunstanciada. O legislador ao observar o abarrotamento de processos criminais no cotidiano forense brasileiro, buscou alternativas para que houvesse uma maior celeridade na resolução de casos. Dentro desse contexto, surgiu o Acordo de Não Persecução Penal. Este caracteriza-se como um dos institutos da chamada justiça negocial. Nessa perspectiva, há o questionamento sobre a possibilidade de utilização da confissão como elemento probatório em uma ação penal em caso de descumprimento do acordo, visto que a legislação pertinente não discorreu sobre o tema. No que se refere ao desenvolvimento, o trabalho foi estruturado por meio de revisão de literatura, com consulta a livros e legislação pertinente.
Palavras chaves: Acordo de Não Persecução Penal. Confissão. Ação Penal. Justiça negocial.
ABSTRACT: The objective of this work is to analyze the possibility of using confession as a evidentiary element for the offering of the complaint and consequently the initiation of a criminal action in the face of non-compliance with the Criminal Non-Prosecution Agreement, such analysis will be carried out based on the evidentiary value of the confession. Confession is one of the requirements required for the filing of the agreement, and it must be formal and detailed. The legislator, when observing the overcrowding of criminal cases in Brazilian forensic daily life, sought alternatives so that there was a faster resolution of cases, within this context, the Criminal Non-Prosecution Agreement emerged. This is characterized as one of the institutes of so-called bargaining justice. In this perspective, the question arises about the possibility of using confession as a evidentiary element in a criminal action in case of non-compliance with the agreement, since the relevant legislation did not discuss the subject. With regard to development, the work was structured through literature review, with consultation of books and relevant legislation.
Keywords: Non-Criminal Prosecution Agreement. Confession. Criminal Prosecution. Negotiating. Justice.
1 INTRODUÇÃO
O legislador na tentativa de projetar novos trajetos para a política criminal existente no país, expande o modelo consensual de solução de conflitos. A morosidade no trâmite dos processos é uma realidade, e tal morosidade é ainda mais impactante quando esta se relaciona com o processo penal, surgindo assim críticas sobre o modo de condução do sistema de justiça criminal.
Diante desse contexto, surgiram os institutos previstos na Lei nº 12.850/2013 e na Lei nº 9099/95, estes são caracterizados como despenalizadores e são eles, a composição civil, transação penal e a suspensão condicional do processo. Porém, essas medidas não foram suficientes para que houvesse a solução da alta demanda existente, ocorrendo, ainda assim, acúmulo de processos criminais nas mais diversas comarcas espalhadas pelo Brasil.
Desse modo, surgiu a necessidade da regulamentação de um novo instituto, o denominado Acordo de Não Persecução Penal. Tal instituto foi normatizado pela Lei n. 13.964/2019, sendo ele inserido no Código de Processo Penal (CPP), pela criação do artigo 28-A.
Cumpre esclarecer que, o instituto já existia antes de sua inserção no Código de Processo Penal, tendo sido regulamentado, anteriormente, pela Resolução n. 181/2017, realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Porém, a regulamentação foi alvo de ações diretas de inconstitucionalidade, propostas pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ADI n. 5790 e 5793, respectivamente.
Estas ações foram propostas diante da ilegitimidade do Ministério Público para dispor sobre normas envolvendo o Direito Penal, bem como Direito Processual Penal. Com o advento da Lei 13.964/2019, as discussões quanto a ilegitimidade de propositura foram extinguidas, abrindo espaço para outras discussões, dessa vez tendo como o alvo os requisitos exigidos para a propositura do acordo.
Dentre os requisitos exigidos está a confissão formal e circunstanciada do acusado, e, a partir disso, surge, então, a problemática: havendo descumprimento do acordo, poderá ser oferecida denúncia e instaurada a ação penal tendo como suporte probatório a confissão formal e circunstanciada do investigado?
Na oportunidade, será analisada a possibilidade da utilização da confissão em uma ação penal futura, ante a divergência doutrinária existente. Além disso, é plausível citar que a metodologia utilizada neste trabalho se alicerçou na análise do tema em doutrinas, artigos, revistas especializadas, periódicos, bem como no estudo da legislação constitucional e infraconstitucional concernentes à temática em controvérsia, caracterizando-se, consequentemente, como uma pesquisa qualitativa, de revisão bibliográfica.
2 OS REQUISITOS E AS CONDIÇÕES NECESSÁRIAS PARA A PROPOSITURA DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
O instituto em questão trata-se de um negócio jurídico processual formulado entre o Ministério Público, órgão acusador, e o investigado, este é assistido por um advogado. O acordo tem como objetivo evitar a instituição da ação penal. Importante destacar que, a ação somente será instituída se já estiverem preenchidos os requisitos para o oferecimento da denúncia.
O art. 28-A, do Código de Processo Penal, estabelece requisitos a serem preenchidos de forma simultânea e alternativa, podendo ser divididos em positivos e negativos. Para corrente minoritária, trata-se de um Direito público subjetivo do imputado, quando ele preenche os requisitos legais (LOPES JUNIOR, 2021). Os requisitos positivos se fazem presente no caput do dispositivo, já os negativos se encontram no parágrafo segundo do mesmo.
O primeiro requisito dispõe quanto as infrações que comportam a propositura, são as infrações com pena mínima cominada inferior a 4 (quatro) anos. O cálculo da pena mínima pondera a incidência das causas de aumento e diminuição, levando em conta a maior diminuição e o menor aumento.
Outro requisito exigido é que a infração penal tenha sido cometida sem violência ou grave ameaça. Além disso, de acordo com o que é previsto no caput, somente é possível a propositura se não for o caso de arquivamento da investigação.
Os requisitos necessários para propositura da denúncia devem ser preenchidos, havendo assim provas de existência do delito e indícios de autoria, como é previsto no artigo 41, e, artigo 395, do Código de Processo Penal.
A confissão é mais um dos requisitos presentes no caput, do artigo 28-A, do Código de Processo Penal. Diante da determinação legal nesse sentido, a confissão deve ser feita circunstancialmente, ou seja, os fatos devem ser explanados de forma detalhada, sem deixar dúvidas, atentando-se que não deve ter nenhuma coação, conforme traz o art. 8. 3 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (MOREIRA, 2020).
O objeto da confissão deve ser a narrativa dos fatos relativos a investigação que ocasionou a propositura do Acordo.
Importante salientar que a confissão deve ser tomada em termo próprio, ou seja, em instrumento diverso do Acordo de Não Persecução Penal, sendo registrada por meio audiovisual.
Além disso, neste dispositivo legal sua natureza difere daquela disposta no artigo 65, inciso II, alínea “d”, do Código Penal, bem como da presente nos artigos 197 a 200, do Código de Processo Penal. Enquanto o dispositivo do Código Penal prevê a confissão como uma atenuante de pena, o CPP a estabelece como meio de prova. (BADARÓ, 2021)
Por fim, o último requisito previsto no caput é que o instituto proposto deve ser suficiente para reprovar e prevenir outros possíveis crimes. O §2º, do art. 28-A, do CPP, apresenta os requisitos negativos para a propositura do mesmo. É previsto que não deve ser possível a aplicação da transação penal, tratando-se de infração de menor potencial ofensivo.
Segundo Guilherme Madeira Dezem: “Estabelece-se assim ordem de prioridade entre as opções consensuais. Trata-se de uma ordem de precedência, não de proibição, ou seja, caberá a transação penal, ainda que caiba acordo de não persecução penal” (2020, p.105).
Como o artigo 76, da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, a nº 9.099/95, a transação penal não exige que o acusado confesse e suas condições são mais brandas, sendo, desta maneira, mais benéfica ao indivíduo.
Estabelece, ainda, o artigo 28-A, §2º, inciso II, do CPP que não é possível a aplicação do acordo “se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem a conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas”. Sendo função do Ministério Público demonstrar a existência destes impedimentos.
Além disso, o parágrafo segundo do dispositivo em questão, expõe que se o investigado tiver sido beneficiado com uma das três soluções consensuais (transação penal, acordo de não persecução penal e suspensão condicional do processo) nos últimos cincos anos, não é dada a ele a possibilidade da realização do ANPP.
Por fim, impõe-se que não é possível a celebração do acordo em crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, bem como nos crimes cometidos contra a mulher por razões da condição do sexo feminino.
Esta última condição é condizente com a legislação penal aplicável em crimes envolvendo violência doméstica, bem como as questões de gênero. Com efeito, o art. 41, da Lei 11.340/2006, prevê que: “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de setembro de 1995”
No contexto social brasileiro, muitas mulheres são vitimadas por atos envolvendo as questões citadas acima. Assim, viabilizar a propositura do acordo em crimes dessa especificidade seria beneficiar o agressor.
O artigo 28-A, do CPP, nos incisos de seu caput, ainda prevê as condições do ANPP. Celebrado o negócio jurídico processual, o indivíduo assume o compromisso de cumprir certas obrigações que foram livremente pactuadas. Na hipótese do cumprimento integral dessas obrigações, a punibilidade será extinta.
Cumpre esclarecer que, tais condições previstas no caput do artigo, são sanções em sentido amplo, e são aplicadas de forma consensual. As condições podem ser ajustadas de forma isolada ou cumulativa a depender do fato em questão, bem como da adequação ao sujeito que praticou a ação.
A primeira condição é a reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, esta condição possui regramento previsto no artigo 5º, inciso XLV, da Constituição Federal, de 1988: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação de perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos seus sucessores e contra eles executadas até o limite do valor do patrimônio transferido”.
A segunda condição existente é a renúncia voluntária a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime. A indicação do MP deve ser fundamentada, levando em conta os elementos probatórios colhidos durante o processo de investigação. O produto da infração é obtido por meio do cometimento do delito, e o proveito do bem é contraído com o produto da infração.
A prestação de serviços à comunidade também é uma das condições exigidas para que o sujeito cumpra o acordo. Tal condição consiste em atribuição de tarefas gratuitas ao condenado, nos termos do artigo 46, §1º, do Código Penal.
A prestação será fixada de modo a não prejudicar a jornada formal de trabalho do indivíduo, devendo ser cumprida a maneira de uma hora de tarefa por dia do período estabelecido. Os locais de prestação poderão ser hospitais, escolas, orfanatos e estabelecimentos congêneres, programas comunitários ou estatais.
De mesmo modo, é possível a fixação de pagamento de prestação pecuniária, nos termos do inciso IV, do artigo 28-A, do CPP. Esta condição consiste no pagamento em dinheiro a entidade pública ou provada com destinação social.
Por fim, ainda há a possibilidade de o investigado cumprir, por prazo não determinado, condições diversas indicadas pelo parquet, desde que proporcionais e compatíveis com a infração penal imputada. Esta ocorrência deve-se a ideia de permitir um acordo mais customizado, mais adequado ao caso e ao investigado.
3 O VALOR PROBATÓRIO DA CONFISSÃO
Importante salientar que, a confissão apesar de considerada a “rainha das provas” por um longo período de tempo, atualmente detém valor probatório condizente com os outros meios de prova presentes na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. (LIMA, 2020)
Nos séculos anteriores, em tempos de vigência do sistema inquisitório, a confissão foi considerada com a prova suprema, não havendo espaço para tal conceituação nos tempos atuais. Assim, necessário que se desfaça o olhar de soberania da mesma, até para que injustiças venham a ser combatidas, passando assim a confissão a ser um elemento integrante para comprovação de um delito, na busca da verdade real.
Nessa linha de raciocínio, extrai-se que o Poder Judiciário deve publicizar e fundamentar suas decisões, cabendo ao magistrado, ao elaborar uma decisão, rebater todos os argumentos trazidos pelas partes. Tratando-se especificamente da análise das provas constante nos autos, o magistrado deverá realizar, de início, uma análise atomista, para que, posteriormente, proceda para uma análise holística, havendo assim uma avaliação de harmônica das provas constante nos autos.
Aury Lopes Junior (2020) defende que a culpa judaico-cristã é quem funda esse olhar antigo de soberania da confissão, no qual ao declarar a sua culpa, o acusado se arrepende do pecado que cometeu. Para o autor, é necessário que haja o direcionamento para o processo criminal acusatório, tendo este amparo constitucional.
A confissão não necessita ser espontânea, mas deve ser realizada por uma vontade autônoma do declarante, sem que haja qualquer interferência externa sobre o ato. A exemplo, uma confissão exposta no cumprimento de uma prisão preventiva sob uma estada de extrema pressão das autoridades e até mesmo coação, bem como promessa de liberdade de outros benefícios é ilegítima, não podendo ser considerada como meio de prova. (TAVARES, 2020)
Cumpre esclarecer que, no sistema acusatório, o interrogatório é caracterizado como um meio probatório e meio de defesa, assim, na hipótese de o acusado confessar a prática de um delito, esta confissão somente terá valor atribuído a si, na linha do que dispõe os artigos 197 a 200, do Código de Processo Penal, e deverá ser confrontada com os demais elementos probatórios existentes.
Nesse sentido, jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO CRIME DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES. SEMILIBERDADE. CONFISSÃO. DESISTÊNCIA DE PRODUÇÃO DE OUTRAS PROVAS. CERCEAMENTO DE DEFESA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.
O direito ao contraditório e à ampla defesa são consagrados no texto constitucional. A confissão da prática de ato infracional não exime o juiz de colher outras provas. Seja qual for a sua clareza, não se pode jamais considerá-la exclusivamente para efeito de uma condenação, sem confrontá-la com outros elementos, que possam confirmá-la ou contraditá-la. O direito de defesa é irrenunciável, não podendo dele dispor o acusado, seu advogado, o Ministério Público, pois o Estado/Juiz deve sempre buscar a verdade dos fatos.
WRIT CONCEDIDO para anular a decisão que não respeitou os princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal, determinando-se que o adolescente aguarde o desfecho do processo em liberdade. (HC n. 38.551/RJ, relator Ministro Paulo Medina, Sexta Turma, julgado em 16/11/2004, DJ de 6/12/2004, p. 373.)
Assim, elucidado o valor probatório da confissão, importante pontuar sobre a questão da retroatividade do ANPP, bem como realizar uma análise da possibilidade da utilização da confissão como instrumento acusatório em um processo judicial ante o descumprimento do Acordo de Não Persecução Penal.
4 A RETROATIVIDADE DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
Há entendimento doutrinário, no que concerne a norma híbrida, no sentido que aplica-se a generalidade da regra de irretroatividade, exceto nos casos em que ela for mais benéfica ao réu. Nesse toada, pode-se observar o entendimento do STF proferido na ADI Nº 1719-DF:
PENAL E PROCESSO PENAL. JUIZADOS ESPECIAIS. ART. 90 DA LEI 9.099/1995. APLICABILIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA EXCLUIR AS NORMAS DE DIREITO PENAL MAIS FAVORÁVEIS AO RÉU. O art. 90 da lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis aos processos penais nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada. Em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal. Interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réus contidas nessa lei. (STF - ADI: 1719 DF, Relator: JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 18/06/2007, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-072 DIVULG 02-08-2007 PUBLIC 03-08-2007 DJ 03-08-2007 PP-00029 EMENT VOL-02283-02 PP-00225 RB v. 19, n. 526, 2007, p. 33-35). (BRASIL, 2007).
Ainda nessa linha, há posicionamentos do STJ e do STF, salientando pela retroatividade do Acordo de Não Persecução Penal desde que não tenha havido o recebimento da denúncia:
O acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia. STJ. 5ª Turma. HC 607.003-SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 24/11/2020 (Info 683). Essa é também a posição da 1ª Turma do STF sobre o tema: HC 191464 AgR, Rel. Roberto Barroso, julgado em 11/11/2020. (CAVALCANTE, 2021).
Porém, a doutrina mais garantista sustenta a retroatividade do ANPP até mesmo para os casos com o trânsito em julgado, nesse sentido Betta (2021, n. p) destaca que:
Após estas ponderações, enfatizamos que a norma prevista no art. 28-A, que introduziu a acordo penal, que gera extinção da punibilidade e afasta a reincidência, deve retroagir aos fatos pretéritos, por ser norma de natureza híbrida, mais benéfica, nos termos do art. 5º LX da CRFB/1988 c/c art. 2º parágrafo único do CP, não podendo sofrer limitação temporal.
Essa linha de pensamento, entende que trata-se de um poder-dever do Ministério Público em oferecer o acordo, independentemente se estiver na fase investigativa ou com o processo já instaurado. Tal pensamento se respalda no fato imperativo da ação estatal, devendo o réu ter a possibilidade de entrever a extinção de sua punibilidade com as demais exigências previamente estabelecidas entre as partes.
Ocorre que, no julgamento do agravo regimental impetrado contra decisão que negou Habeas Corpus, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, mudou o entendimento acerca do tema.
Transcrevo os dizeres proferidos pelo ministro Ricardo Lewandowski envolvendo o HC: 20660, SC, com data de julgamento em 03/10/2022, no STF:
Com base no referido precedente da Segunda Turma desta Suprema Corte, que, em caso análogo, reconheceu a retroação de norma processual penal mais benéfica em ações penais em curso até o trânsito em julgado, e na mais atual doutrina do processo penal, entendo que o acordo de não persecução penal é aplicável também aos processos iniciados em data anterior à vigência da Lei 13.964/2019, desde que ainda não transitados em julgados e mesmo que ausente a confissão do réu até o momento de sua proposição. (2022, p.10)
5 A UTILIZAÇÃO DA CONFISSÃO COMO PROVA PARA O OFERECIMENTO DA DENÚNCIA ANTE O DESCUMPRIMENTO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
Existe divergência doutrinária quanto a possibilidade da utilização da confissão como suporte probatório para o oferecimento da denúncia ante o descumprimento do acordo.
A posição que defende esta possibilidade é encabeçada pelas lições do exímio doutrinador Norberto Avena (2022), não há objeção para a utilização da confissão, pois esta foi prestada de forma espontânea pelo investigado e, caso haja instauração da ação penal, esta deve-se ao fato de o indivíduo ter descumprido injustificadamente as condições que lhe foram ofertadas na propositura do acordo.
Ainda, na linha de pensamento de Norberto Avena (2022), não existe qualquer inconstitucionalidade ao estabelecer como requisito para formalização do ANPP a exigência de uma confissão formal e detalhada por parte do investigado. Isso ocorre porque a concretização do acordo é baseada na vontade intencional do investigado. Ele pode celebrar o acordo se assim desejar, sem ser coagido a fazê-lo. No entanto, caso deseje negociar com o Ministério Público, ele deverá submeter-se aos requisitos legalmente exigidos, incluindo a confissão. Sendo, importante, salientar ainda que, a formalização do acordo, ato voluntário do acusado, não viola o direito de vedação a autoincriminação, sendo que o cumprimento do acordo, nos termos do artigo 28-A, §13º, do CPP, gera à extinção da punibilidade, não ocorrendo a responsabilização criminal.
Nesse sentido, afim de contribuir com a atuação dos membros do Ministério Público, há o enunciado n. 27, dos Enunciados Interpretativos da Lei n. 13.964/2019, expedido pelo Grupo Nacional dos Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM), e pelo Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais: “Havendo descumprimento dos termos do acordo, a denúncia a ser oferecida poderá utilizar como suporte probatório a confissão formal e circunstanciada do investigado prestada voluntariamente na celebração do acordo.”
A posição acima representa o entendimento do Ministério Público, tendo como entendimento alicerçado ao fato de ser dado ao sujeito a garantia de ter o acompanhamento de uma defesa realizada de forma técnica e qualificada, tendo sido esclarecido a ele sobre o seu direito constitucional ao silêncio, bem como as consequências e as vantagens de uma possível confissão.
Ainda, essa linha de pensamento prioriza o cumprimento do que foi pactuado entre os dois sujeitos ativos. Com isso, busca-se uma melhor efetividade na prestação jurisdicional. Para esta corrente, a possível utilização da confissão em um processo judicial é vista como um estímulo para que o investigado cumpra o acordo.
Contudo, há a corrente doutrinária que defende não ser possível esta utilização, pois a confissão trata-se apenas de exigência formal para a concretização do acordo. Tal posição é adotada por Aury Lopes Júnior.
A confissão aspira constituir não mais que uma condição para que não ocorra a denúncia ou para que cesse o andamento do processo penal, sendo ela retratável e não produzindo efeitos acerca responsabilidade do indivíduo. Neste contexto, deve ocorrer a delimitação da utilização da confissão, com o objetivo de se evitar o uso indevido dessa declaração, especificamente em casos envolvendo o descumprimento do acordo ou com o objetivo de fundamentar processos em outras esferas jurídicas.
Assim, a confissão formal e circunstanciada tem como intuito preencher os requisitos mínimos para consecução do acordo de não persecução penal, não servindo como admissão de responsabilidade penal ou nas demais esferas do Direito, pois sua exigência é meramente processual para formalização do consenso, sem qualquer cunho probatório, sob pena de ofensa à presunção de inocência.
Nessa mesma linha, temos Rafael Soares Junior, Luiz Antonio Borri e Lucas Andrey Battini (2020, p.231), conforme citado por Aury Lopes Júnior (2021, p. 223):
A confissão efetuada pelo investigado atende meramente à exigência formal para concretização do acordo de não persecução penal, até mesmo por ocorrer em sede de investigação preliminar, vedando-se sua utilização em eventual processo criminal, em caso de descumprimento das condições, bem como na hipótese de instauração de processos cíveis ou administrativos
Cumpre esclarecer que, não há limitação na legislação brasileira sobre os efeitos da confissão, havendo um amplo caminho de discussão a ser percorrido.
De mesmo modo, Nucci (2022) defende que ante o descumprimento do acordo, enquanto não vigora os dizeres presentes no artigo 3º-C, §3º, do CPP, a alternativa é considerar o termo que ocorreu a confissão como prova ilícita, não havendo assim sua utilização no processo.
6 CONCLUSÃO
A evolução das relações sociais, bem como sua complexidade exigem um constante aprimoramento do ordenamento jurídico e de seus institutos. Nessa atmosfera, com a implantação do Estado moderno e o controle da sociedade através do Direito Penal que sofreu grandes modificações ao decorrer do tempo, assim uma das óticas de transformação do Direito Penal é a justiça penal negociada.
O cenário da política criminal brasileira fez com que o legislador buscasse alternativas para solucionar o abarrotamento processual, bem como para enfrentar a morosidade existente, tendo assim surgido os chamados institutos despenalizadores, estes inseridos em um sistema de justiça que busca a solução dos conflitos por meio da negociação e não do litígio propriamente dito.
A busca da solução dos conflitos por meio de negociação teve inspiração no sistema norte americano, o plea bergain. Nesse contexto, surgiu como uma das novas alternativas a inserção do Acordo de Não Persecução Penal no sistema jurídico nacional.
Quanto ao acordo de não persecução penal pode-se afirmar que sua origem histórica no Brasil demonstra que este foi embrionado pelos membros do Ministério Público e aprovado pelo Congresso Nacional com pequenas mudanças. Mesmo havendo debates quanto a sua natureza jurídica e a possibilidade de utilização de alguns requisitos, o presente artigo reconhece o avanço na otimização da prestação jurisdicional.
A proposta despenalizante pode ser benéfica para o autor da infração, bem como para o contexto social, constituindo, assim, maior pacificação, pois é inequívoca a intenção de evitar o prolongamento da lide com a solução simples e rápida do conflito, sendo uma grande benesse. Tratando-se de uma grande perspectiva a ser desenvolvida e aprimorada no âmbito da Justiça Criminal.
Como já demonstrado no presente trabalho, o acordo é um importante mecanismo de política criminal dentro do novo panorama do sistema acusatório nacional. Todavia, não é garantia ao acusado de um direito subjetivo. Além disso, deve-se verificar se o indivíduo não faz jus a propositura de outro instituto mais benéfico, como, por exemplo, a transação penal. Na transação penal, para que faça jus ao benefício, não há a exigência que o indivíduo confesse a prática do delito que lhe foi imputado.
Um dos requisitos exigidos para a propositura do acordo é a confissão formal e circunstanciada do delito. E, ao contrário dos tempos de vigência do sistema inquisitório, em que a confissão era vista como prova suprema, nos tempos atuais, a mesma é vista como parte de um conjunto probatório, não tendo preponderância sobre as demais, devendo ser analisada com os demais elementos existentes nos autos.
O presente artigo, outrossim, reconhece a possibilidade da utilização da confissão como elemento probatório no oferecimento da denúncia e no decorrer da ação penal ante o descumprimento do Acordo de Não Persecução Penal. Tal reconhecimento deve-se ao fato da
confissão ser prestada de forma voluntária na celebração do acordo, tendo sido conferido ao indivíduo uma defesa técnica e qualificada, e, o sujeito ao celebrá-lo, possui o devido conhecimento sobre as consequências do descumprimento do instituto, devendo ele arcar com as consequências jurídicas de suas escolhas.
AVENA, Norberto. Processo Penal. 14.ed. São Paulo: Grupo GEN, 2022. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559645084/. Acesso em: 26 jun. 2022.
BETTA, Emerson de Paula. A retroatividade do ANPP: impossibilidade de limitação temporal. Revista Consultor Jurídico, 26 de janeiro de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-26/tribuna-defensoria-retroatividade-anpp-impossibilidade-limitacao-temporal. Acesso em: 17 set. 2022.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 25 jul. 2022
BRASIL. Decreto-lei 3.689 de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm. Acesso em: 24 jul. 2022.
BRASIL. Enunciados interpretativos da lei anticrime (lei nº 13.694/2019). Grupo Nacional de Coordenadores de Centros de Apoio Criminal (GNCCRIM). Disponível em https://criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/GNCCRIM_-_ANALISE_LEI_ANTI-CRIME_JANEIRO_2020.pdf. Acesso em: 22 jul.2022
BRASIL. Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm. Acesso em: 24 jul. 2022.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. HC: 38551 RJ 2004/0136946-3, Relator: Ministro PAULO MEDINA, Data de Julgamento: 16/11/2004, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJ 06.12.2004. Acesso em: 25 jul. 2022
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 607.003-SC. Relator: Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Brasília, 04 de agosto de 2020. Diário da Justiça Eletrônica. Brasília, 24 nov. 2020. Disponível em: https://criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/EDcl_no_AgRg_no_Agravo_emREsp_n_1635787-SP_-_ANPP_-_Incompatibilidade_ANPP_pos_denuncia.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5790. Relator Min. Ricardo Lewandowski. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5283027. Acesso em: 26 julho. 2022.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5793. Relator Min. Ricardo Lewandowski. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5288159.Acesso em: 26 julho. 2022.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. HC nº 206660 SC, Relator: Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 03/10/2022, Data de Publicação: DJ 05.10.2022. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/1656278191/inteiro-teor-1656278192. Acesso em: 20 out. 2022.
CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual de Acordo de Não Persecução Penal -À luz da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Salvador: Ed.JusPodivm, 2020.
CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. A confissão circunstanciada dos fatos como condição para a celebração do acordo de não persecução penal. In: BEM, Leonardo Schmitt de (Org.); MARTINELLI, João Paulo (Org.). Acordo de não persecução penal. 1.ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/ddd1df443471e3abe89933f20d08116a. Acesso em: 30 out. 2022.
CUNHA, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei n. 13.964/2019: Comentários à salterações do CP, CPP e LEP. Salvador: Editora Juspodivm, 2020
DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal: volume único. 8ª ed. São Paulo: RT, 2022.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 7.ed.Salvador: Ed. JusPodivm, 2019.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 16.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
LOPES JUNIOR, Aury; JOSITA, Higyna. Questões polêmicas do acordo de não persecução penal. Revista Consultor Jurídico, não paginado, mar. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/limite-penal-questoes-polemicas-acordo-nao-persecucao-penal#_ftn3. Acesso em: 23 mai. 2020.
MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio; TORON, Zacharias, Toron; BADARÓ, Gustavo Henrique (Coords). Código de Processo Penal Comentado. 4ª ed. São Paulo: RT, 2021.
MOREIRA, Romulo de Andrade. O acordo de não persecução penal. In: BEM, Leonardo Schmitt de (Org.); MARTINELLI, João Paulo (Org.). Acordo de não persecução penal. 1.ed. São Paulo: D’Plácido, 2020.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. 19. Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2022. Disponível em: https:/app.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559644568/. Acesso em: 23 set. 2022.
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 18ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Atlas, 2014.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 23ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2015.
TÁVORA, Nestor e ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 14 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2021.
Graduando em Direito, Centro Universitário de Santa Fé do Sul – SP, UNIFUNEC
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TERNERO, Matheus José Cerezo. A utilização da confissão como prova ante o descumprimento do acordo de não persecução penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jul 2023, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/62014/a-utilizao-da-confisso-como-prova-ante-o-descumprimento-do-acordo-de-no-persecuo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Precisa estar logado para fazer comentários.