GUSTAVO ANTÔNIO NELSON BALDAN
(orientador)
RESUMO: O direito de família vem passando por inúmeras modificações com o passar dos anos, e o conceito de família vem se ampliando para abranger as mais diversas formas de núcleos familiares existentes, sendo uma delas a parentalidade. Nesse contexto, levando em consideração o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como a afetividade, a solidariedade e a ideia de família contemporânea plural, é provável que surjam novas decisões nesse sentido, consagrando a tendência do direito de família de se adaptar a uma nova realidade social, buscando assegurar direitos constitucionalmente protegidos. Preliminarmente será estudado o princípio da dignidade da pessoa humana e os princípios constitucionais norteadores da paternidade socioafetiva. Os modelos de família atual, serão analisadas as formas de gêneros na sociedade multicultural brasileira e as suas formas de reconhecimento extrajudicial. Por fim será estudado como os entendimentos judicias vem se posicionando em relação a socio afetividade familiar. Para tanto, servimo-nos da análise de manuais de direito de família, livros, artigos de revistas especializadas, material da internet, decisões dos tribunais e da legislação constitucional, civil e menorista em vigor.
Palavras-chave: Afetividade; Direito; Família; Parentalidade; Socioafetiva.
ABSTRACT: Family law has undergone numerous changes over the years, and the concept of family has been expanding to cover the most diverse forms of existing family groups, one of which is parenthood. In this context, considering the principle of human dignity, as well as affectivity, solidarity and the idea of a contemporary plural family, it is likely that new decisions will arise in this regard, enshrining the tendency of family law to adapt to a new social reality, seeking to ensure constitutionally protected rights. Preliminarily, the principle of human dignity and the guiding constitutional principles of socio-affective paternity will be studied. Current family models will be analyzed, gender forms in Brazilian multicultural society and their forms of extrajudicial recognition. Finally, it will be studied how judicial understandings have been positioning themselves in relation to family socio-affectivity. For that, we used the analysis of family law manuals, books, articles from specialized magazines, internet material, court decisions and constitutional, civil and minorist legislation in force.
Keywords: Affectivity; Family; Parenting; Right; Socioaffective.
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho alude acerca do vínculo de parentalidade socioafetiva no direito de família brasileiro, ao reconhecimento extrajudicial de paternidade socioafetiva no Brasil, após a Constituição Federal de 1988.
Atualmente na sociedade multicultural brasileira, dentre as formas de filiação existentes, destacam-se, a filiação socioafetiva decorrente da posse de estado de filho como filhos de criação e enteados. Sendo vedada qualquer discriminação estre as possíveis espécies de filiação, eis que todas estão no mesmo nível. Assim, os mesmos direitos que possui um filho de sangue, também possui um filho adotivo ou afetivo.
Contudo a possibilidade de reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva ocorre que a legislação federal brasileira, quando trata do reconhecimento extrajudicial de filho, refere-se apenas aos filhos biológicos, não disciplinando os procedimentos a serem adotados em relação aos filhos afetivos, a prioridade da efetividade da identificação das estruturas familiares levou a valoração do que se passou a chamar de filiação socioafetiva. Mas do que um direito, o afeto tornou-se um dever jurídico.
Onde se possuem sólidas relações de afeto com alguém que exerce a função paterna em suas vidas. Neste sentido, apenas seis Estados Brasileiros possuem normas específicas que autorizam o reconhecimento extrajudicial de filho socioafetivo, surgindo uma enorme lacuna em relação à interpretação e aplicação destas normas no restante do país, principalmente quando o filho é reconhecido extrajudicialmente perante o notário de um Estado que prevê esse procedimento, mas o registro de nascimento está em um cartório de outro Estado, onde não existe norma prevendo a inclusão do pai afetivo no assento de nascimento.
Sendo assim pretendo fazer os seguintes questionamentos: Em que medida deve ser aplicada a legislação federal de reconhecimento extrajudicial de filhos biológicos aos filhos socioafetivos (filhos de criação e enteados), eis que somente meia dúzia de Estados possuem normas próprias sobre o tema, e a Constituição Federal veda a diferenciação da filiação?
Pretendo traçar um panorama geral do tratamento dispensado pela doutrina, pela legislação e pela jurisprudência ao tema da filiação socioafetiva.
2. APRESENTAÇÃO DO TEMA
A família sempre desempenhou um papel importante na vida do homem, norteando a forma como este se relaciona com os demais no meio em que vive, nesse entretempo, a mudança de paradigmas influenciou diretamente a formação da sociedade, que se adequou às necessidades de seus integrantes.
A família é a primeira instituição conhecida pelo homem. Antes mesmo de o ser humano tornar-se sedentário, construir cidades, ou instituir o Estado, este ente social já existia e era o responsável pela transmissão de valores, costumes e conhecimento. Na obra “A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado”, Engels discorre sobre as modificações da família primitiva desde a união conjugal poligâmica até o casamento monogâmico. O autor defende que existiu um estado primitivo no qual todas as mulheres de uma tribo pertenciam a todos os homens da mesma e vice e versa. (ENGELS, 1984, p. 31).
A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece (XVI 3). A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.
Nesta linha, a dignidade consolidada na Carta Magna brasileira gerou uma gama de princípios, dentre os quais os de Direito de Família, que norteiam as relações familiares brasileiro. Dentre os princípios que irradiam do princípio da dignidade humana, destacam se: O princípio da afetividade, o princípio do pluralismo das entidades familiares, o princípio da solidariedade, o princípio da igualdade da filiação e o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.
A afetividade é um princípio que não está expresso em nossa Constituição, porém basta uma atenta leitura aos artigos 226 e 227 da carta Magna para compreender a sua existência. A família de hoje não está mais ligada pelo sangue, mas sim pelo afeto.
É necessário em primeiro momento fazer uma breve análise sobre os princípios que norteiam o direito de família, para que se possa ter uma visão ampla sobre os pilares do instituto.
Tais princípios podem se dividir, para fins didáticos, sob duas perspectivas, sendo a primeira parte relativa aos princípios aplicáveis ao direito de família, enquanto a segunda referente aos princípios peculiares à matéria especificamente abordada neste trabalho, qual seja, a paternidade socioafetiva.
O mandamento da afetividade é, sem dúvida, basilar para as relações de família. E, em verdade, um preceito muito controvertido quando se pensa em conceituação, pois alguns autores – tais como Maria Berenice Dias (2009), Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2013) – o ligam ao afeto e ao amor.
Por outro lado, o autor Paulo Luiz Lôbo, entende que tal princípio seja diferente de amor e de afeto, trazendo como lição: A afetividade, sob o ponto de vista jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, este de ocorrência real necessária. O Direito, todavia, converteu a afetividade em princípio jurídico, com força normativa, impondo dever e obrigação aos membros da família (LÔBO, 2006).
Percebe-se assim, a amplitude do conceito da paternidade socioafetiva. Ela está presente no filho biológico, assim como na adoção, na reprodução assistida homóloga ou heteróloga e também na criação natural de alguém que ocupa na família o lugar de um filho. Sempre que houver paternidade, haverá afeto. Quando não houver afeto, não haverá paternidade, haverá apenas um genitor.
O presente estudo vai ressaltar essas mudanças sociais e culturais que representam a sociedade moderna, as relações familiares e principalmente os tipos de formação das famílias vigentes que são totalmente diferentes e mais diversificadas que as famílias de antigamente. Entretanto, com o passar dos tempos vimos a transformação da família sendo extremamente necessário compreendermos a evolução histórica do Direito de Família, uma vez que esta precisa ter como base a construção e a aplicação de uma nova cultura jurídica.
2.1 A INSTITUIÇÃO CHAMADA FAMÍLIA
Percebemos que desde o início do século XIX até os dias atuais houveram grandes modificações na instituição chamada família. Com a modernização da sociedade e com grandes mudanças no âmbito da economia, política e cultura, afetando, notadamente, todos os aspectos da existência pessoal, social e psicológica. Essas mudanças repercutem fortemente na vida familiar, desde o modelo de formação até o provedor do sustento e entre outros aspectos.
Estudos apontam que a família, como é conhecida atualmente, teve sua origem na civilização romana, tomando como ponto de partida o modelo familiar patriarcal hierarquizado. Segundo Engels (1984, p. 61), a origem etimológica da palavra família vem do latim famulus, quer dizer escravo doméstico, isto é, família é o conjunto dos escravos pertencentes e dependentes de um chefe ou senhor. Assim era a família greco-romana, formada por um patriarca e seus famulus: esposa, filhos, servos livres e escravos.
Quanto ao conceito, o instituto família vem sendo alterado inúmeras vezes ao longo dos anos e com isso já recebeu diversas denominações. De acordo com Silvio Rodrigues (2004, p. 4), temos que: O vocábulo “família” é usado em vários sentidos, em um conceito mais amplo pode-se definir a família como formada por todas aquelas pessoas ligadas por vínculo de sangue, ou seja, todas aquelas pessoas provindas de um tronco ancestral comum, o que corresponde a incluir dentro da órbita da família todos os parentes consanguíneos.
Por inúmeros motivos, essas diversas formas de família encontram respaldo jurídico, entre os mais importantes podemos citar: a mudança de paradigma do Estado Liberal para um Estado Social que se preocupa com os interesses da coletividade como um todo; a valorização dos Direitos; no Direito de Família, a franca aplicação de preceitos constitucionais como isonomia, dignidade da pessoa humana e solidariedade (CAMACHO. Michele Vieira, 2020, p. 49).
Desse modo, analisando a evolução do conceito de família no ordenamento jurídico brasileiro e sua inegável obediência a ordem constitucional, é certo que o conceito de família tem como ingredientes o afeto, a ética, a solidariedade e a dignidade na busca da felicidade da pessoa humana e, por esse motivo, não se deve prender a preconceitos culturais, religiosos e sociais que esquecem a própria pluralidade existencial, de consciência e de opinião.
2.2 COMO O CÓDIGO CIVIL 1916 TRATAVA AS FAMILIAS E COMO O CÓDIGO CIVIL DE 2002 TRATA ATUALMENTE.
Na época do Código Civil de 1916 e, naquela sistemática da legislação civilista, Clóvis Beviláquia a conceituou como sendo a família legítima, ou seja, aquela advinda do casamento, valorizando assim o que entendia por estabilidade e moralidade com a finalidade de se cumprir sua função social.
O modelo era a família patriarcal, constituída apenas pelo casamento. A desigualdade entre cônjuges e filhos era legitimada pela subsistência dos poderes paternal e marital.
Com intensa influência do Direito Canônico, devido à grande ascendência exercida pela Igreja na sociedade da época (a despeito da recente separação entre Igreja e Estado), o Código de 1916 era taxativo no que diz respeito ao conceito de família, pretendendo, assim, conter a dinâmica social e conduzi-la a seguir um caminho por ele determinado. Imperava o pátrio para todos os filhos, exercido pelo marido na constância do casamento poder previstos nos artigos 379 a 395 do mesmo código.
Contudo a Constituição Cidadã inaugurou um paradigma familiar remodelado, seguindo as mudanças ocorridas na sociedade brasileira, conferindo outros alicerces fundamentais a proteção da família, refletidos nos seguintes princípios: Pluralismo político que reflete na democracia do lar conjugal (art. 1º, V); paternidade responsável e planejamento familiar (art. 226, § 7°); na tutela especial de proteção da família pelo Estado (art. 226, caput); pelo pluralismo dos tipos familiares (art. 226, § 1º ao 4º); pela dissolubilidade do vínculo conjugal (art.226 § 6º); pelo dever da convivência familiar e da proteção da criança e do adolescente (art. 227 caput e § 3º, VI e § 5º).
Portanto a Magna Carta trouxe uma nova forma de interpretar as disposições que tratam de Direito de Família, a fim de atender aos anseios da sociedade, cabendo a legislação infraconstitucional proteger todos os núcleos familiares existentes.
A cerca do Código Civil de 2002, este trouxe profundas alterações a esse respeito reproduzindo regramentos constitucionais quanto à família e inovou em outros, a fim de se ajustar às novas necessidades sociais. Não significando proteção isonômica e integral de todas as formas de família e seus integrantes.
Com o passar do tempo e com o advento de novas leis e com a Constituição Federal de 1988, e também com o Estatuto da família na PL/6583/2013 que estabelece em seu artigo 2° que “o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formado por qualquer dos pais e seus descendentes”.
Há transformação com a mudança de paradigma do pátrio poder para protetivo e com a elevação de filiação ao grau de proteção estatal. Mostrando que ao criarmos relação de afeto com crianças e adolescentes também são elevados a condição de familiares. Sendo conhecida como a extensão da família e foi trazida pela Lei 1210/2009, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente e outras leis.
Desde então, aqueles adultos casados ou unidos a seus pais, como os quais a criança ou adolescente convivem passaram a ser denominados padrasto e madrasta.
Aduz que a sociedade institui outra modalidade de família que, apesar de padecer a reprovação social, atos estes que refletem no Direito e merece destaque. Essa categoria chama-se Família Paralela, formada pelos impedidos de casar nos termos do artigo 1.521, VI, do Código Civil, salvo os casados, porém separados de fato. Não se admite que um dos integrantes coabite em outro relacionamento à margem do casamento, categorizando a lei como relação concubinária nos termos do artigo 1.727 do Código Civil.
No atual Código Civil há também os tipos de família como a família matrimonial elencado no artigo 1.511 onde diz que: “o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”. O mesmo diploma dispõe os deveres conjugais no artigo 1.566, in verbis: São deveres de ambos os cônjuges: I- fidelidade recíproca; II- vida em comum, no domicílio conjugal; III- mútua assistência; IV- sustento, guarda e educação dos filhos; V- respeito e considerações mútuos.
Nos termos da Constituição de 1988, a união estável entre homem e mulher foi reconhecida como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. A parte final do dispositivo constitucional (art. 226, § 3º) tem gerado polêmica quanto à prevalência do casamento como modelo de familiar. De acordo com o Código Civil, a união estável configura-se na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família no artigo. 1.723.
3. FILHOS DO AFETO
Filhos do afeto são aqueles filhos onde expresso que não nascem de nós, mulheres, mas vem para nós através do amor. Ser reconhecido como filho é sentir-se amado, individualizado e inserido em uma entidade familiar, pertencente a um todo maior, que envolve também as pessoas ligadas ao círculo de relações do pai ou da mãe, nessa família ela irá gerar um sentimento de reconhecimento social, formador da personalidade, a qual é estruturada na necessidade de preservação da autoestima e no senso de identidade.
O afeto está ligado à consciência, o que nos permite dizer ao outro o que sentimos através da linguagem e do movimento. Os sentimentos diferem das emoções por serem mais duradouros, menos “explosivas” por não virem acompanhados de reações orgânicas intensas. É fundamental o entendimento que o afeto compõe o ser humano e que a emoção e os sentimentos são alimentos de nosso psiquismo e se apresentam em todas as manifestações da vida.
A união estável, assim como a união homossexual, também denominada homoafetiva, tem sua origem e existência em função do afeto entre seus integrantes. O afeto é um sentimento que se traduz em fatos para o direito, fatos esses que se verificam na convivência social, originando a socioafetividade. Do mesmo modo que as mencionadas entidades familiares, o parentesco pode ser gerado apenas pela socioafetividade, que é um fato. Tal condição, aliás, decorre de típico caso de filiação socioafetiva, que encontra sua essência nos laços afetivos construídos durante a vida em família, pelo relacionamento de carinho, amor, companheirismo, dedicação, doação, e independente da condição biológica.
É certo que a filiação não decorre unicamente do parentesco consanguíneo. O artigo 1.593 do Código Civil é expresso no sentido de que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.
Sendo o parentesco natural ou consanguíneo, caso decorra do mesmo tronco ancestral, podendo ser a linha reta ou colateral. Isso não quer dizer que não pode ser por afinidade, como acontece onde o cônjuge e do companheiro que perdura parentesco com os parentes do outro.
O poder familiar, como já exposto anteriormente, passou por significativas mudanças com a transição do antigo para o moderno conceito de família. Antes denominado de pátrio poder e consistente numa série de prerrogativas pertencentes ao pai, o agora chamado poder familiar não comporta mais apenas direitos dos pais com relação aos filhos. Trata-se, sobretudo, de um dever dos pais de prestar todo cuidado e assistência, e um direito dos filhos de obter tais benefícios dos pais.
Além disso, subsistem, evidentemente, deveres de respeito e obediência dos filhos para com os pais, aos quais cabe a chefia da entidade familiar. No caso da parentalidade socioafetiva, ocorre um desligamento da subsunção do filho ao poder familiar de sua família biológica e a esta passa, então, a ser submetido ao poder familiar de seus pais socioafetivos.
Esse é o mesmo entendimento que o autor Rolf Madaleno (2000, p. 8.), possui acerca do assunto:
Os filhos são realmente conquistados pelo coração, obra de uma relação de afeto construída a cada dia, em ambiente de sólida e transparente demonstração de amor a pessoa gerada indiferente origem genética, pois importa ter vindo ao mundo para ser acolhida como filho de adoção por afeição. Afeto para conferir tráfego de duas vias a realização e a felicidade da pessoa. Representa dividir conversas, repartir carinho, conquistas, esperanças e preocupações; mostrar caminhos, receber e fornece informação. Significa iluminar com a chama do afeto que sempre aqueceu o coração de pais e filhos socioafetivos, o espaço reservado por Deus na alma e nos desígnios de cada mortal, de acolher como filho aquele que foi gerado dentro do seu coração. (MADALENO. 2000, p. 8.).
É cediço que “o nome de família deve identificar a família à qual pertence o portador dele”. Ocorre que nem sempre os laços genéticos coincidem com a família real. (BRANDELLI, 2012, p. 200 apud. TELES. Ana Terra, 2021, p.103).
Para Teles, a inclusão do patronímico de pai socioafetivo, permitida através das sentenças de primeiro e segundo grau em todo o país, além de ser normatizada pela Lei 11.924 de 2009, coaduna com os princípios constitucionais basilares do ordenamento jurídico pátrio. (TELES. Ana Terra, 2021, p.103).
Com base nas razões que foram deduzidas, forçosa a conclusão pela conveniência da coexistência entre as paternidades, impedindo-se que seja excluído o nome do pai não biológico (mas afetivo) do registro de nascimento da criança/do adolescente e incluindo-se neste o nome do genitor consanguíneo.
3.1 PATERNIDADE E MATERNIDADE SOCIOAFETIVA.
Paternidade socioafetiva é aquela baseada no afeto. Como ensina Paulo Lôbo “toda paternidade é, necessariamente, socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não; ou seja, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies, a paternidade biológica e não biológica”. (LÔBO. 2006, p.795 apud. VALADARES. Isabela Farah. 2015, p. 360).
Apesar de não trazer expressamente a paternidade socioafetiva em seu texto, a Constituição Federal aponta, de forma implícita, em vários dispositivos, a importância da afetividade na filiação. Exemplos claros estão no artigo 227, § 6º que equipara a filiação biológica adotiva (que é, por excelência, filiação afetiva); no artigo 226 § 4, quando estende também como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes; no artigo 226, § 7º; quando fala da paternidade responsável e liberdade do casal no planejamento familiar, e no artigo 227 caput, quando se refere a liberdade da criança e do adolescente e o seu direito a convivência familiar.
O conceito de paternidade socioafetiva, já existente no Código Civil desde janeiro de 1972, quando os artigos 311-e 311-2, foram alterados pela Lei 72-3, e passaram a associar a paternidade com a psicanálise e a sociologia, valorizando aquele que realmente exerce a função de pai.
O Código Civil também não tratou a paternidade socioafetiva, mas a deixou subentendida na redação do artigo 1.593 que diz: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.
Se a paternidade ou maternidade biológica não vingou e não produziu laços afetivos materiais, e, ao mesmo tempo, tais laços surgiram em uma paternidade/maternidade socioafetiva, esta é que deve ser reconhecida para fins de estabelecimento de nome de família, porquanto esta é a verdadeira maternidade/paternidade para a pessoa, com a qual ela quer ser identificada. (BRANDELLI, 2012, p. 200 apud. TELES. Ana Terra, 2021, p.103).
O reconhecimento da paternidade ou da maternidade socioafetiva produz todos os efeitos pessoais e patrimoniais que lhes são inerentes. Inclusive, obrigação alimentar. O vínculo de filiação socioafetiva, que se legitima no interesse do filho, gera o parentesco socioafetivo para todos os fins de direito, nos limites da lei civil. Se o filho é menor de idade, com fundamento no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente; se maior, por força do princípio da dignidade humana, que não admite um parentesco restrito ou de “segunda classe”. O princípio da solidariedade se aplica a ambos os casos. (DINIZ, Maria Helena, 2022, p.240).
3.2 O VÍNCULO SOCIAFETIVO PELA POSSE DO ESTADO DE FILHO
Segundo o autor José Bernardo Ramos Boeira (1999, p. 60) demonstra sua posição sobre o tema nas seguintes palavras:
A posse de estado de filho é uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai. (BOEIRA. José Bernardo Ramos, 1999, p. 60).
A socioafetividade é, portanto, a relação familiar que nasce do afeto entre as pessoas. Assim, a posse do estado de filho caracteriza a verdade real que prepondera sobre a verdade biológica.
Reconhecido o vínculo socioafetivo, pela posse do estado de filho, é de se identificar entre o filho do companheiro do genitor ou do adotante vínculo de parentesco por afinidade, conforme artigo 1.595 do Código Civil. Tratando-se de parentesco em linha reta, que não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável no artigo 1.593, § 2º (DINIZ, Maria Helena. 2022, p.56).
No momento em que há a presença dos requisitos de posse do estado de filho e afetividade, existe um duplo vínculo de parentesco. Seja ele por afinidade ou socioafetividade. Ter um pai ou mãe no registro civil nada impede que busque o reconhecimento da filiação socioafetiva, como quem desempenha as funções parentais.
Para Larissa Toledo Costa (2006, p.4), a paternidade socioafetiva caracteriza-se pela posse do estado de filho e sustenta-se em um tripé: nome, trato e fama. Nome significa o filho utilizar o nome do pai socioafetivo como se fosse o biológico. Trato é a postura que filho e pai mantêm um para com o outro, ou seja, se assim se tratam e se respeitam mutuamente. Fama seria exteriorização para a sociedade do trato, quer dizer, se diante desta, eles se comportam como pai e filho e se assim cumprem suas funções na sociedade.
O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue. Assim, a posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado. (DIAS, 2020. p. 53).
4. FUNDAMENTOS E PRINCÍPIOS DO PROVIMENTO 63 DO CNJ
O Conselho Nacional de Justiça – CNJ editou um regramento que altera diversas questões relacionadas ao registro de pessoas naturais, dentre as quais a possibilidade de reconhecimento extrajudicial das filiações socioafetivas sendo possível enteados e sobrinhos e o registro dos filhos havidos por métodos de reprodução assistida. Trata-se do Provimento nº 63 do CNJ, de novembro de 2017, mais um exemplo do chamado movimento de extrajudicialização do direito privado, pelo qual diversas questões que anteriormente restavam restritas à apreciação do Poder Judiciário passam a poder ser solucionadas por vias extrajudiciais.
O Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça trouxe a posse de estado de filho, tornar, e, é necessário compreende-la para melhor aplicar o Direito. Admite o reconhecimento extrajudicial, diretamente no cartório do registro civil, da paternidade ou maternidade socioafetiva, de criança acima dos 12 anos de idade. O expediente deve ser encaminhado ao Ministério Público. A formalização deste vínculo filial diretamente nas serventias permite que a afetividade chegue até os balcões dos cartórios, o que representa um estágio significativo do seu percurso. (Diniz, Maria Helena. 2022.p, 241).
Além da redução do número de demandas judiciais relativas ao registro civil, as novas permissões trazidas por este Provimento são dignas de favorecer um enorme contingente de pessoas em todo o território nacional, muitas das quais restavam sem formalização adequada da sua filiação justamente em face dos óbices que até então se apresentavam. As medidas implementadas visam facilitar o acesso a um direito que deve ser assegurado sem maiores obstáculos a todos: o registro do estado de filiação.
Que institui em seu artigo 10. “O reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoas acima de 12 anos será autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais”.
Esse provimento 63 do CNJ colabora com a construção de uma sociedade brasileira mais justa e fraterna, ratificando a função social do registrador público brasileiro como promotor da dignidade humana. A nova norma permite às famílias recompostas que a verdade real sobre a filiação conste nos documentos do registro civil, sem a necessidade da chancela judicial, possuindo o oficial do registro civil a competência para analisar cada caso e deferir ou não o pedido de reconhecimento.
4.1 MULTIPARENTALIDADE
A multiparentalidade da atualidade é um fenômeno que ganha força com a reorganização dos núcleos familiares nos quais os pais reconstituem suas vidas amorosas, por vezes trazendo filhos de outros relacionamentos e gerando vínculo afetivo entre todos os componentes daquela família. (CAMACHO, Michele Vieira. 2020, p. 127).
A multiparentalidade fora concebida, pela primeira vez no Tribunal Paulista, consubstanciado na posse de estado de filho, através de longa e estável convivência, aliado ao afeto e consideração mútuos, e sua manifestação pública.
Foi atentado a essa realidade que a Justiça reconheceu a multiparentalidade, atribuindo-lhe efeitos jurídicos. Ou seja, foi admitido o direito de alguém ter mais de um pai e mais de uma mãe. Todos exercendo os deveres decorrentes do poder familiar, garantido ao filho direitos perante todos. Não há proteção maior do que inserir no âmbito de tutela a multiafetividade. (CAMACHO, Michele Vieira. 2020, p. 58).
A multiparentalidade é o reconhecimento da existência da filiação socioafetiva com a filiação biológica, rompendo-se assim, o conceito binário de parentalidade, em que uma pessoa tinha apenas um pai e uma mãe. Importante ressaltar que a genética, por si só, há muito tempo deixou de ser suficiente para definir a parentalidade, nessa incessante busca por um direito mais humano, vários foram os paradigmas quebrados, e, ainda existem muitas barreiras a serem vencidas sendo uma delas a quebra da biparentalidade.
A vista disso é indispensável a análise de princípios constitucionais, que irão amparar a possibilidade do reconhecimento da paternidade socioafetiva após a morte do imaginado, pois "é somente em bases principiológicas que será possível pensar e decidir sobre o que é justo e injusto, acima de valores morais, muitas vezes estigmatizantes" (PEREIRA, 2005, p. 36). Com isso, a importância da jurisprudência, posto que busca preencher tais lacunas no nosso dispositivo jurídico, assegurando o cumprimento de princípios que são indispensáveis ao reconhecimento da paternidade socioafetiva.
A possibilidade de ser declarada a filiação socioafetiva post mortem não encontra previsão legal, muito embora já seja amplamente admitida. Resulta de construção doutrinária e jurisprudencial com fundamento em diversos princípios constitucionais garantidores de um punhado de direitos fundamentais. Também tem respaldo no artigo 1.593 do Código Civil, que deu ensejo ao reconhecimento do parentesco de origem diversa da consanguinidade. (DINIZ, Maria Helena. 2022, p.199).
5. CONCLUSÃO
Como se viu o Código Civil de 1916 a família era patriarcal onde prevalecia o interesse do pai e da mãe, jamais a vontade dos filhos. No Código de 2002 passou a prevalecer a vontade dos filhos, a família passou a ser mais flexível passando a amparar e garantir proteção de todos os seus integrantes.
A Constituição Federal de 1988 menciona o afeto como a base das relações familiares, possuindo assim verdadeiro valor jurídico. É no princípio jurídico da afetividade que a atual família firma suas raízes. O fato é que, muito embora de natureza subjetiva, o princípio do melhor interesse da criança deve ser aplicado às demandas judiciais
Se há vínculo de afetividade, porque privar do reconhecimento juridicamente se necessário a relação de parentalidade. Se há interesse de uma paternidade ou maternidade socioafetiva, porque não se falar em multiparentalidade.
E temos o Provimento 63 do CNJ que trouxe para as famílias socioafetivas a dignidade da pessoa humana, um direito a busca pela felicidade, a afetividade, o pluralismo das entidades familiares, a igualdade da filiação trazendo também a solidariedade familiar através da paternidade responsável e enfim sempre em busca do melhor interesse da criança e do adolescente.
Conclua-se que com esse trabalho, vislumbro que seja possível, cada vez mais Estados do nosso Brasil possa tornar a paternidade e maternidade socioafetiva de fácil acesso, a justiça seja ágil e eficiente. Que esse provimento atinja mais famílias que precisam desse direito. Porque são notórios os benefícios trazidos para a vida das pessoas que tiveram a multiparentalidade reconhecida.
As decisões tomadas pelo judiciário são de extrema importância para aproximar ainda mais o Direito da realidade social em que nos encontramos, dando visibilidade aos laços familiares já existentes e que no passado não poderiam ser reconhecidos pelo estado. Onde o Direito das Famílias somente é possível com ajuda do Estado.
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Graduanda em Direito pela Universidade Brasil. Campus Fernandópolis.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FIGUEIRA, TARCILENE DE FÁTIMA MORAES. Legitimação da paternidade e maternidade socioafetiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 ago 2023, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/62358/legitimao-da-paternidade-e-maternidade-socioafetiva. Acesso em: 23 dez 2024.
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