LUÍS ALBERTO THOMAZELLI[1]
(orientador)
RESUMO: O presente estudo tem por objetivo principal analisar a inconstitucionalidade ou não do artigo 1.641-II do Código Civil, em conflito com a Constituição Federal, sobretudo os princípios da liberdade e dignidade da pessoa humana. Além disso, a relevância das Súmulas 377 do Supremo Tribunal Federal e 655 do Superior Tribunal de Justiça em relação ao referido tema. Ainda, também é objeto de estudo o atrito da norma mencionada com o Estatuto da Pessoa Idosa, haja vista que o mero alcance de determinada idade não é suficiente, por si só, para a perda da capacidade de fato de um indivíduo.
Palavras chave: Inconstitucionalidade. Casamento. Regime de bens. Idoso.
ABSTRACT: The main objective of this study is to analyze the unconstitutionality of article 1.641 of the Civil Code, in conflict with the Federal Constitution, especially the principles of freedom and dignity of the human person, in addition to the confrontation with Precedent 377 of the STF and Precedent 655 of the STJ. Still, the conflict of the aforementioned norm with the Statute of the Elderly is also an object of study, given that the mere reaching of a certain age is not enough, in itself, for the loss of the actual capacity of an individual.
Keywords: Unconstitutionality. Marriage. Property regime. Old man.
INTRODUÇÃO
Sob a ótica do ordenamento jurídico vigente, o casamento estabelece uma união entre duas pessoas, que assumem a condição de cônjuges por meio deste ato solene. Estão dispostos no Código Civil cinco regimes matrimoniais, além do regime de livre criação entre os nubentes.
Ainda, a Constituição Federal, norma norteadora de todo ordenamento jurídico, dispõe de princípios fundamentais, tais quais a isonomia, dignidade da pessoa humana, et. al, para que a vida pública e privada dos indivíduos seja igualmente resguardada. Além disso, também estão em vigor estatutos que tratam de matérias específicas para proteção de certos grupos, tal qual o Estatuto da Pessoa Idosa.
Assim sendo, o presente trabalho se dará sob a avaliação dos dispositivos supramencionados em face de súmulas e doutrinas consolidadas, visando à constatação (ou não) da inconstitucionalidade presente no artigo 1.641-II do Código Civil de 2002, já que, apesar de que as normas atuais definam que o regime matrimonial é de livre escolha dos nubentes, também é encontrada uma exceção presente no inciso II do mesmo artigo referenciado, que apresenta o impedimento da livre escolha para aquele que possuir mais de setenta anos de idade.
1 ORDENAMENTO JURÍDICO ATUAL
1.1 CASAMENTO E REGIME DE BENS
O nosso atual ordenamento jurídico dispõe sobre cinco regimes matrimoniais, além da livre criação de regime entre os nubentes, para que estes se casem e firmem um ato jurídico negocial solene, público e complexo, com a intenção de constituir família (LÔBO, 2022). Paulo lobo, ainda nesse conceito, define que esse ato realiza-se pela livre manifestação da vontade e pelo reconhecimento do Estado.
Os regimes disponíveis atualmente são: I – Comunhão Parcial de bens; II – Comunhão Universal de bens; III – Separação Convencional de bens; IV – Separação Obrigatória de bens e; V – Participação Final nos Aquestos, e, ainda, fica livre aos nubentes a criação de um regime diferenciado, todos previstos no Código Civil de 2002, em seu artigo 1.639 e seguintes. Não obstante, mesmo que o regime de bens deva, obrigatoriamente, ser escolhido anteriormente ao ato solene em questão, este poderá ser alterado, após o casamento, diante de mútua concordância entre os cônjuges e mediante autorização judicial, conforme art. 1.639- § 2º do Código Civil.
Contudo, para ser objeto desta pesquisa, analisarei as entrelinhas do regime da Separação Obrigatória de bens.
1.2 REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS
Para Carlos Roberto Gonçalves, o regime de bens é entendido como:
O conjunto de regras que disciplina as relações econômicas dos cônjuges, quer entre si, quer no tocante a terceiros, durante o casamento. Regula especialmente o domínio e a administração de ambos ou cada um sobre os bens anteriores e os adquiridos na constância da união conjugal (GONÇALVES, 2017, p. 623).
Podemos destacar do rol de regimes matrimoniais anteriormente apresentados o regime de Separação Obrigatória de bens que está previsto artigo 1.641, CC:
Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;
III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.
Como exposto, o artigo menciona em seu inciso II que fica obrigatória a aplicação do regime supramencionado no casamento de pessoa maior de 70 (setenta) anos de idade.
Ainda, sobre a Separação Obrigatória de bens, são previstas duas regras específicas para tal regime nos artigos 1.687 e 1.688, CC, quais sejam: (a) quanto ao regime, não haverá a comunicação de qualquer bem, seja posterior ou anterior à celebração do casamento e; (b) ambos os cônjuges são obrigados a contribuir para as despesas do casal na proporção dos rendimentos do seu trabalho e de seus bens (TARTUCE, 2022).
Sobre a imposição do regime, Silvio Rodrigues entende que foi uma forma de aferir proteção àqueles que são vulneráveis e necessitam de tal ajuda. Nesse sentido:
É evidente o intuito protetivo do legislador, ao promulgar o dispositivo. Trata-se, em casa um dos casos compendiados no texto, de pessoas que, pela posição em que se encontram, poderiam ser conduzidos ao casamento pela atração que sua fortuna exerce. Assim, o legislador, para impedir que o interesse material venha a constituir o elemento principal a mover a vontade do outro consorte, procura, por meio do regime obrigatório da separação, eliminar essa espécie de incentivo (RODRIGUES, 2004, p. 152/153).
Por outro lado, Maria Berenice Dias entende que a vedação da livre escolha é uma forma de sanção patrimonial que decorre da não-observância do preceito legal:
A forma encontrada pelo legislador para evidenciar sua insatisfação frente à teimosia de quem desobedece ao conselho legal e insiste em realizar o sonho de casar é impor sanções patrimoniais. Os cônjuges casados sob o regime de separação obrigatória não podem contratar sociedade entre si ou com terceiros. Parece que a intenção do legislador é evitar qualquer possibilidade de entrelaçamento de patrimônios (2009, p. 229).
1.3. CAPACIDADE CIVIL
De acordo com o Código Civil de 2002, a capacidade civil é dividida em capacidade de direito e capacidade de fato.
A capacidade civil de fato (ou plena), também conhecida como maioridade, é a capacidade para realização de todos os atos da vida civil, sem que seja necessária a autorização, assistência ou consentimento dos responsáveis legais. Ela é alcançada no momento em que o indivíduo completa dezoito anos, porém, no que tange ao matrimônio, essa capacidade pode ser reduzida para dezesseis anos, pois a partir desta idade as pessoas alcançam a idade núbil, tornando possível o casamento, sendo esta uma das hipóteses de emancipação, conforme estabelece o art. 5º- parágrafo único-II do Código Civil.
A partir do nascimento com vida, todo ser humano pode ser titular de direitos, sendo os mesmos protegidos desde a sua concepção, conforme art. 2º do Código Civil. Esta capacidade de direito é exercida por meio dos representantes legais, enquanto o indivíduo for absolutamente incapaz, e através de seus assistentes legais com participação do próprio titular destes direitos, a partir do momento em que se torna relativamente incapaz.
Para Caio Mário da Silva Pereira existe uma ligação entre a personalidade e a capacidade jurídica e diz que “de nada valeria a personalidade sem a capacidade jurídica, que se ajusta ao conteúdo da personalidade, na mesma e certa medida em que a utilização do direito integra a ideia de ser alguém titular dele” (PEREIRA, 2002, p. 161-162).
Por fim, é significativo mencionar o artigo 4º do Código Civil:
Art. 4º. São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:
I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II – os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;
IV – os pródigos.
Fica evidente que a incapacidade civil é caracterizada a partir de situações adversas e, na maioria dos casos, em razão de patologias. Assim sendo, o mero alcance dos setenta anos de idade não é suficiente, por si só, para a perda da capacidade civil plena, já que não é mencionado em momento algum que a pessoa idosa passa a ter limitações civis em razão da idade.
1.4 PESSOA IDOSA E A SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS
Em continuidade aos tópicos anteriores, fica evidente que o mero alcance de determinada idade não é suficiente para que a capacidade plena do indivíduo seja extinta. A vedação trazida pelo artigo 1.671, II, do Código Civil demonstra o quão ultrapassado está o código, ao priorizar a proteção ao patrimônio em detrimento da liberdade de escolha dos indivíduos.
A legislação estabelece regras específicas para o início do exercício dos direitos, fixando normas sobre os absoluta ou parcialmente incapazes, mas em momento algum tal conjunto normativo estabelece uma idade máxima para o exercício dos direitos pelos cidadãos. A eventual limitação para a prática de negócios jurídicos está ligada à impossibilidade relevante de discernimento do cidadão, mas nunca ao atingimento de determinada idade.
Com os avanços medicinais, a expectativa de vida está cada vez mais em ascensão, juntamente com a qualidade de vida. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a expectativa de vida para uma pessoa que nasceu em 2019 era de 76,6 anos, número muito superior comparado aos dados de 2010, onde a expectativa era de 73,48 anos.
Diante desta premissa, impõe-se, com veemência, o Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/03), o qual dispõe em seu 2º artigo sobre os direitos garantidos à pessoa idosa, vejamos:
Art. 2º A pessoa idosa goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
A redação apresentada menciona expressamente, entre outros, o direito à liberdade, à dignidade e, ainda, no dispositivo seguinte, além de haver nova menção ao assunto, são incluídos, et al., à convivência familiar e comunitária, percebamos:
Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
Resta falar, de maneira não menos importante, sobre o assunto tratado no artigo 1º, do Estatuto da Pessoa Idosa, qual seja: É instituído o Estatuto da Pessoa Idosa, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.
Não há como deixar de observar a limitação de idade para aqueles que serão tratados como pessoas idosas. O artigo traz expressamente que aqueles com, no mínimo, sessenta anos de idade serão intitulados como tal.
Partindo deste ponto inicial, e observando o exposto anteriormente no tópico de regimes matrimoniais, o qual destaca que a partir dos setenta anos uma pessoa já não está mais apta a escolher o regime matrimonial desejado, qual seria a explicação para essa lacuna de dez anos presente na lei, senão a proteção unicamente do patrimônio material.
2. ENTENDIMENTOS CONSOLIDADOS DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
2.1 SÚMULA 377 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A respeito do tema, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da súmula 377, entendeu que “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.
Contudo, a súmula mencionada foi promulgada no ano de 1964 e, com a chegada no novo Código Civil no ano de 2002, o legislador não efetuou a alteração neste diploma, fazendo com que a limitação prevista no artigo 1.641-II continuasse em vigor.
Há de ser considerado que se a intenção do legislador fosse estabelecer o mesmo disposto na referida súmula, bastava que isso estivesse presente na redação do novo código, trazendo a revogação tácita da súmula 377 (ABREU e FERREIRA)
Porém, também há de ser sustentado que, pelos mesmos motivos que justificam a criação da súmula 377 em 1964, ela deve continuar sendo aplicada nos tempos atuais (ABREU e FERREIRA), já que o presente cenário legislativo é o mesmo encontrado à época da promulgação da súmula.
A edição da súmula 377 do Supremo Tribunal Federal flexibilizou, em relação ao regime da Separação Obrigatória de bens, o rigor estabelecido pelo Código Civil anterior, pois permitiu a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento, criando um regime misto que, após o matrimônio, apresentava características muito próximas do regime da Comunhão Parcial de bens.
Dito isso, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento nesse sentido:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. CASAMENTO CONTRAÍDO SOB CAUSA SUSPENSIVA. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS (CC/1916, ART. 258, II; CC/2002, ART. 1.641, II). PARTILHA. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE. NECESSIDADE DE PROVA DO ESFORÇO COMUM. PRESSUPOSTO DA PRETENSÃO. MODERNA COMPREENSÃO DA SÚMULA 377/STF. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS. 1. Nos moldes do art. 1.641, II, do Código Civil de 2002, ao casamento contraído sob causa suspensiva, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. 2. No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição. 3. Releitura da antiga Súmula 377/STF (No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento), editada com o intuito de interpretar o art. 259 do CC/1916, ainda na época em que cabia à Suprema Corte decidir em última instância acerca da interpretação da legislação federal, mister que hoje cabe ao Superior Tribunal de Justiça. 4. Embargos de divergência conhecidos e providos, para dar provimento ao recurso especial. (STJ - EREsp: 1623858 MG 2016/0231884- 4, Relator: Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), Data de Julgamento: 23/05/2018, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 30/05/2018 RSTJ vol. 251 p. 416).
Nesse recente entendimento, o Superior Tribunal de Justiça reafirmou de forma mitigada o disposto na súmula 377 do Supremo Tribunal Federal ao dizer que ocorrerá a comunicação dos bens, desde que comprovado o esforço comum na aquisição destes. A atenuação da abrangência da referida súmula está na exigência de comprovação do esforço comum, pois na sua concepção original tal contribuição era presumida em decorrência da vigência da sociedade conjugal.
A jurisprudência atual afasta a presunção de esforço comum existente na época da edição da referida súmula, preservando-se o propósito de aplicação da mesma mediante a comprovação do esforço comum na aquisição do patrimônio, revelando aspectos de relativização do regime da Separação Obrigatória de bens. A aplicação da aludida súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, enfrentando o rigorismo do legislador, criou um regime duplo em relação à Separação Legal de bens, pois prevalece a incomunicabilidade dos bens anteriores ao matrimônio, aplicando-se a integração dos patrimônios dos cônjuges em relação aos bens adquiridos após a efetivação do casamento, desde que comprovado, em relação a estes, a comunhão de esforços para aquisição do referido acervo patrimonial.
2.2. SÚMULA 655 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), inclusive, já proferiu entendimento a respeito da união estável de cônjuge com mais de setenta anos de idade:
Súmula n. 655: Aplica-se a união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum.
O fundamento para que esta exceção seja admitida é justamente o mútuo esforço para a aquisição do bem em discussão.
Mediante tal entendimento, fica claro que é lícito em situações excepcionais, que o companheiro, mediante demonstrada fundamentação, receba o direito à indenização ou, ainda, divisão proporcional de um bem que colaborou economicamente para sua aquisição, mesmo que não amparado pelo próprio regime, mas com fulcro no princípio proibitivo do enriquecimento sem causa (FILHO e GAGLIANO, 2019).
Diante da excepcionalidade apresentada, menciona Paulo Lôbo (2008):
“Malgrado sua natureza, tem-se como compatível com o regime de separação a eventualidade de condomínio dos cônjuges sobre determinados bens, que tenham sido adquiridos com a participação efetiva de ambos, nos limites e proporção correspondentes, ou em decorrência de doações ou legados conjuntos. Essa circunstância, dado o seu caráter de excepcionalidade, não desfigura o regime, pois os bens assim adquiridos submetem-se à incidência das regras do condomínio voluntário (arts. 1.314 a 1.326), sem interferência das regras aplicáveis aos demais regimes matrimoniais de bens”.
Nesta súmula, o Superior Tribunal de Justiça transportou para a união estável noções utilizadas para o matrimônio de septuagenários, sendo que dito órgão colegiado forneceu uma abordagem nova à aplicação da súmula nº 377 do Supremo Tribunal Federal, pois flexibilizou o rigor do Código Civil ao estabelecer o regime da Separação Obrigatória de bens para a mencionada situação. Entretanto, impõe-se destacar novamente que o Superior Tribunal de Justiça, para conceder a partilha dos bens amealhados após o início da união estável, exige a comprovação do esforço comum, destoando da diretriz inaugural fixada pelo Supremo Tribunal Federal na época de edição da súmula nº 377, pois naquela oportunidade havia a presunção da referida colaboração mútua para construção do acervo patrimonial posterior ao início da relação afetiva.
3. ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE E CONVENCIONALIDADE DO ARTIGO 1.641, II, CC
Para Paulo Lobo (2022), existem princípios jurídicos, sejam eles expressos ou implícitos, que versam sobre o Direito de Família. Ainda, sob o mesmo pensamento, ele inclui nesse rol os princípios fundamentais, sejam eles: da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar. Ainda, também são aplicáveis os princípios gerais, sendo eles: da igualdade familiar; da liberdade familiar; da responsabilidade familiar; da afetividade; da convivência familiar e; do melhor interesse para a criança.
Caio Mário da Silva Pereira menciona que a Constituição Federativa do Brasil de 1988 é um marco no processo de redemocratização diante das mudanças no ordenamento jurídico, principalmente no direito Privado, além de mencionar que “delinearam-se novos paradigmas e novos modelos de família centrados na dignidade da pessoa humana e na solidariedade familiar visando a realização integral de seus membros” (2009, p. 50).
Além disso, Maria Berenice Dias (2015) acredita que o atual Código Civil já nasceu ultrapassado, já que o anterior (1975) foi usado como parâmetro para a sua confecção, ainda que fosse anterior à Constituição Federal de 1988. Assim, diversas modificações teriam sido realizadas para que o novo dispositivo legal se encaixasse aos ditames constitucionais.
A constitucionalidade do artigo 1.641, II do Código Civil de 2002 é discutida há tempos, pois muitos defendem que dita regra afronta vários dispositivos constitucionais. A redação do antigo Código Civil (1916) dispunha que se um dos nubentes possuísse a partir de setenta anos de idade, o regime matrimonial a ser adotados por eles deveria ser, obrigatoriamente, o regime de Separação Obrigatória de bens.
Com a promulgação da nova Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, e a inclusão do princípio da igualdade, dentre tantos outros, surgiram diversas críticas ao antigo Código Civil, já que se mostrava um tanto quanto antiquado. Diante disso, um novo código fora elaborado para que se encaixasse nos parâmetros constitucionais, mas ali ficou determinado que a idade seria alterada e diminuída para sessenta anos de idade (GASPARINI, 2019).
Após a publicação do novo Código Civil, novas críticas surgiram e a partir disso diversos Projetos de Lei (PL) foram apresentados como solução para o problema. Frente à todas as opções apresentadas, o Projeto de Lei nº 108/2007 foi aprovado e posteriormente convertido na Lei nº12.344/2010, que estabeleceu a obrigatoriedade de adoção do regime de separação de bens para pessoas maiores de setenta anos de idade (CABRAL, 2016).
À época dos fatos, o Deputado Federal Antônio Carlos Biscaia, que propôs um dos projetos de lei para a alteração da norma, justificou seu projeto na lesão à dignidade da pessoa humana, inclusive das pessoas idosas, já que ficaram impedidas de escolher livremente o regime de bens que queriam. Além disso, apesar dos projetos de lei serem sempre elaborados apenas para alterar o limite de idade ao invés de excluí-lo, o Deputado supramencionado foi o responsável pelo Projeto de Lei nº 4.945/2005 que tratava da exclusão da limitação trazida pelo dispositivo legal. (CABRAL, 2016).
O Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 1309642, decidirá sobre a constitucionalidade do art. 1.641-II do Código Civil, cuja repercussão geral foi reconhecida pelo plenário, pois a definição do regime promove reflexos no contexto social e econômico da família brasileira. Além disso, como justificativa para a caracterização da referida repercussão geral surgem aspectos como a proteção aos idosos, o respeito aos princípios constitucionais e consequências no âmbito do Direito de Família e das Sucessões.
Também há de ser mencionada a existência do controle de convencionalidade que, de acordo com Valério de Oliveira Mazzuoli (2021), surgiu após a Emenda Constitucional 45/2004 que acrescentou o §3º ao artigo 5º da Constituição Federal. A referida emenda trazia a previsão de equivalência de emendas constitucionais os tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é parte, e desde que se aprovados por maioria qualificada.
O controle de convencionalidade, ainda na percepção de Mazzuoli (2021), “nada mais é do que o processo de compatibilização vertical (sobretudo material) das normas domesticas com os comandos encontrados nas convenções internacionais de direitos humanos em vigor no Estado”.
A competência para julgamento de qualquer matéria que se refira ao controle de convencionalidade é do STF, e em uma decisão sobre o Pacto de San José da Costa Rica, o Ministro Teori Zavascki mencionou que “considerada norma de hierarquia supralegal (e não constitucional), o controle de convencionalidade deve aferir a compatibilidade entre normal supralegal e norma legal. O exercício desse controle é exercido pelo Supremo Tribunal Federal”.
Diante dessa definição, se faz necessário apontar o artigo 17 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecido como Pacto de São José da Costa Rica, que trata sobre a proteção da família. Esse artigo menciona em seu tópico 4 que os Estados-Partes devem assegurar igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento, durante e em caso de dissolução do mesmo.
Considerando o disposto, tem-se a dúvida também a respeito da convencionalidade do artigo 1.641, II, CC, já que traz uma forma de distinção entre os indivíduos e fere a previsão de igualdade de direitos e equivalência de responsabilidades dos cônjuges no que se refere ao casamento, prevista em uma convenção supralegal.
4. CONCLUSÃO
Desta forma, verificou-se em face dos meios apresentados, sendo estes súmulas e doutrinas majoritárias, que existe a inconstitucionalidade na imposição de regime matrimonial aos maiores de setenta anos de idade, considerando o confronto direto com a Constituição Federal, principalmente em seus princípios, e o Estatuto da Pessoa Idosa, já que existe a discriminação da pessoa em razão de sua idade.
O artigo analisado afronta os princípios constitucionais, principalmente a igualdade, pois há uma discriminação que limita a partir de certo ponto a liberdade do ser humano, já que o regime matrimonial deixa de ser uma opção e passa a ser uma obrigatoriedade, fazendo com que os nubentes vivam durante toda a união com algo não desejado, por mera imposição estatal. Imposição essa, infundada, pois não há estudos que comprovem, tampouco lei que regule, a incapacidade civil obtida a partir do alcance de determinada idade.
Além disso, fica claro que a norma que estabelece o limite etário não é dotada de nenhum motivo dignamente fundamentado, pois é evidente que a sua vigência se dá, por não outra razão, além da proteção patrimonial. Não obstante, a Constituição Federal traz direitos fundamentais ao ser humano, e a proteção patrimonial não é, nem de longe, prioridade no que tange a esse assunto, pois jamais poderia se sobrepor à liberdade e dignidade da pessoa humana. Ainda, a inconstitucionalidade da norma se reafirma diante da análise dos dados que comprovam o aumento da expectativa de vida no Brasil, fazendo com que a união matrimonial entre pessoas idosas (e lúcidas) também venha a aumentar.
Ademais, a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal é incompatível ao dispositivo e dispõe que, mediante comprovação de mútuo esforço entre os cônjuges, os bens adquiridos na constância do casamento se comunicarão. Além disso, em entendimento recente e inédito, o Superior Tribunal de Justiça afirmou por meio da Súmula 655 que mesmo em união estável de pessoas septuagenárias que atenda à exigência legal no que se refere ao regime matrimonial, os bens adquiridos por mútuo esforço na constância do casamento se comunicarão, trazendo ainda mais dúvidas se a legislação é de fato eficaz, já que se o objetivo inicial é a proteção patrimonial, a incumbência já se mostra falha. Portanto, extrai-se das súmulas dos referidos tribunais superiores que o Direito, em seu aspecto dinâmico, rejeita a aplicação absoluta do regime da Separação Obrigatória de bens para pessoas com mais de setenta anos, enfatizando a prevalência de princípios constitucionais de elevadíssima importância e rechaçando a norma que busca proteção de ordem meramente patrimonial.
Por fim, vê-se necessário a reformulação do Código Civil de 2002 no que se refere aos regimes matrimoniais e suas exceções, para que se adapte às disposições constitucionais e evoluções sociais, haja vista que o direito não é estático e tampouco absoluto e, por consequência, deve se modificar na medida em que a sociedade muda.
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Graduanda do curso de Direito no Centro Universitário UniCerrado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Rafaella Gonzaga. A (in) constitucionalidade da vedação da livre escolha do regime matrimonial após os 70 anos de idade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 ago 2023, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/62732/a-in-constitucionalidade-da-vedao-da-livre-escolha-do-regime-matrimonial-aps-os-70-anos-de-idade. Acesso em: 23 dez 2024.
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