RESUMO: Adoção é a colocação em família substituta quando inviável a manutenção de criança ou adolescente em sua família natural ou extensa. Em regra, ocorre pelo Cadastro de Adoção. Excepcionalmente, os adotantes podem escolher o infante, nas situações definidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o que a doutrina denomina adoção personalíssima. Uma das hipóteses ocorre quando há parentesco entre adotante e adotado, com vínculos de afinidade e afetividade. Discute-se se parentes por afinidade enquadrar-se-iam aqui, visto que não fazem parte da família natural. Para enfrentar tal questão, o presente trabalho pesquisa posicionamento doutrinário e jurisprudencial acerca do tema, utilizando-se de revisão bibliográfica. Conclui-se que, para o Superior Tribunal de Justiça, sustentado na melhor doutrina, ante o conceito moderno de família, plural, democrático e eudemonista, é viável a adoção personalíssima realizada por parentes por afinidade.
Palavras-chave: Adoção. Personalíssima. Afinidade. REsp 1911099/SP.
Abstract: Adoption is placement in a foster family when it is not feasible to keep a child or adolescent in their natural or extended family. As a rule, it occurs through the Adoption Register. Exceptionally, adopters can choose the infant, in situations defined by the Child and Adolescent Statute, which the doctrine calls very personal adoption. One of the hypotheses occurs when there is kinship between adopter and adopted, with bonds of affinity and affection. It is discussed whether in-laws would fit here, since they are not part of the natural family. To face this question, the present work researches doctrinal and jurisprudential positioning on the subject, using a bibliographic review. It is concluded that, for the Superior Court of Justice, supported by the best doctrine, in view of the modern concept of family, plural, democratic and eudemonistic, the very personal adoption carried out by in-laws is feasible.
Keywords: Adoption. Very personal. Affinity. REsp 1911099/SP.
Sumário: 1. Introdução. 2. Adoção. 3. Classificações de adoção 3.1. Adoção cadastral ou personalíssima 3.2. Adoção intrafamiliar ou extrafamiliar 4. Adoção personalíssima por parente colateral por afinidade – caso concreto 5. Recurso Especial n. 1911099/SP
1. Introdução
O presente artigo discute o tema da adoção, especificamente abordando a possibilidade de adoção personalíssima realizada por parentes colaterais por afinidade do adotando.
Ora, tradicionalmente entende-se que a adoção personalíssima – que, como será explicado, excepciona a adoção mediante cadastro e observância de ordem cronológica – é possível quando realizado por parentes, todavia, em tese o texto legal não abarcaria o parentesco por afinidade.
Porém, sob a ótica do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, questiona-se certas situações em que uma criança seria removida de seu meio familiar, onde possui relações de afinidade e afeto, para ser colocada em família substituta com a qual não possui qualquer vínculo.
Trata-se de tema de grande relevância prática, visto que a depender da solução adotada no caso concreto, pode não só causar abalos psicológicos irreversíveis, como também afrontar princípios basilares do direito da criança e do adolescente.
As explicações, apontamentos e conclusões encontram suporte em pesquisa bibliográfica junto à doutrina que aborda o tema, bem como buscando a análise de situação fática na jurisprudência dos tribunais superiores.
Em um primeiro momento, será trazida uma noção geral do que é, e como a doutrina classifica os tipos de adoção, mais especificamente aqueles relevantes a esta pesquisa. Em seguida, buscar-se-á na jurisprudência caso concreto que demonstre tratar-se de tema com posicionamentos divergentes, bem como a solução apontada pelas Cortes Superiores, em especial o Superior Tribunal de Justiça.
2. Adoção
Adoção trata-se de forma de colocação em família substituta, sendo medida excepcional e irrevogável, aplicável somente quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, conforme artigo 30 do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).
Guilherme Freire de Melo Barros (2016, p. 67) classifica 3 formas de colocação em família substituta. A primeira delas seria a guarda, no qual o vínculo entre criança ou adolescente e guardião é mais tênue, sendo fase transitória do processo de tutela e adoção ou situações de eventual ausência de pais ou responsáveis. Já na tutela o vínculo seria maior, exigindo efetiva perda ou suspensão do poder familiar. Na adoção, por sua vez, o vínculo jurídico criado é definitivo e irrevogável.
3. Classificações de adoção
Existem diversas classificações de adoção. Dentre elas, guardam relevância para este trabalho a adoção personalíssima, adoção cadastral, adoção intrafamiliar e adoção extrafamiliar
3.1. Adoção cadastral ou personalíssima
A primeira classificação de ação a ser estudada é a que se faz segundo o critério de escolha dos adotandos, podendo ser cadastral ou personalíssima (ROSSATO; LÉPORE, 2021).
Segundo tal classificação, na adoção cadastral o adotante não tem a possibilidade de escolher o adotado. É a mais conhecida, sendo regra em nosso ordenamento. Nelas, os interessados submetem-se à ordem cronológica do cadastro de adoção, podendo adotar a criança ou adolescente que estiver disponível quando chegar seu momento de escolha na fila de adoção.
Contrapõe-se à adoção personalíssima, que excepciona o cadastro de adoção, sendo viável apenas nas hipóteses descritas no artigo 50, §13º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Aqui, o adotante escolhe a criança a ser adotada quando (a) tratar-se de adoção unilateral; (b) houver parentesco entre adotante e adotado, com vínculos de afinidade e afetividade; (c) for pedido por quem tenha tutela ou guarda de adotando maior de três anos de idade, igualmente com laços de afinidade e afetividade. Vale transcrever:
“§13 - Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando
I - se tratar de pedido de adoção unilateral;
II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade;
III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei.
§ 14. Nas hipóteses previstas no § 13 deste artigo, o candidato deverá comprovar, no curso do procedimento, que preenche os requisitos necessários à adoção, conforme previsto nesta Lei.” (BRASIL, 1990).
Esclareça-se que adoção unilateral (BARROS, 2016, p. 85) é trazida no artigo 41, §1º do ECA, sendo aquela na qual a pessoa adota criança ou adolescente que já é filha de seu cônjuge ou companheiro: “(...)§ 1º Se um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do outro, mantêm-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e os respectivos parentes.” (BRASIL, 1990).
3.2. Adoção intrafamiliar ou extrafamiliar
Tal classificação distingue a existência ou ausência de vínculo de parentesco entre adotante e adotado.
A adoção intrafamiliar acontece quando a criança ou adolescente é adotada por pessoa com a qual tenha relação de parentesco.
Já na extrafamiliar, não há tal relação de parentesco.
4. Adoção personalíssima por parente colateral por afinidade – caso concreto
Em situação julgada pelo Superior Tribunal de Justiça, Quarta Turma, no REsp n. 1.911.099-SP (BRASIL, 2021), foi questionado o seguinte caso concreto, que nesta oportunidade adaptamos:
Em 2018, A deu à luz B, com pai biológico desconhecido, entregando-o aos cuidados do casal C e D. Ademais, A é filha da irmã da cunhada de D.
Dias após, o casal C e D ajuizaram ação de adoção cumulada com pedido de destituição do poder familiar, com concordância de A, com vistas a regularizar a situação e tornarem-se formalmente pais de B.
Mencione-se que o casal C e D já se encontravam habilitados no cadastro da adoção, pois planejavam adotar uma criança antes mesmo do ocorrido.
Em 1º grau de jurisdição, o juiz indeferiu o pedido sob o fundamento de que haveria burla ao cadastro de adoção.
Ora, o fundamento seria que, como abordado acima, o ECA traz as hipóteses em que se excepciona a regra do cadastro de adoção, denominada adoção personalíssima.
Dentre as hipóteses trazidas, a que em teoria poderia se amoldar ao caso é a do art. 50, §13: “II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha /vínculos de afinidade e afetividade;”.
Todavia, no caso, considerou o magistrado que não havia parentesco entre os adotantes e a criança. Vale lembrar que a genitora é sobrinha do postulante.
Assim, foi determinado que a criança B deixasse a residência do casal C e D, que até então cuidavam do infante, sendo inserido no cadastro de adoção e, neste ínterim, submeteu-se a acolhimento institucional.
Assim, cinco meses após nascido, B foi encaminhado à instituição, onde permaneceu por cerca de um ano, quando foi entregue a outra família que possuía interesse em sua adoção formal, agora conforme o cadastro de adoção, ou seja, uma família substituta.
Em âmbito processual, após diversos recursos – que inclusive resultaram na concessão de guarda provisória da criança aos requerentes C e D - os autos subiram ao Superior Tribunal de Justiça como Recurso Especial.
5. Recurso Especial n. 1911099/SP
De início, sob a relatoria do Min. Marco Buzzi, a corte superior destacou que o caso deve ser analisado sob a luz do princípio do melhor interesse da criança, “elemento fulcral de todo o aparato legal e das políticas públicas e instituições voltadas à proteção de crianças e adolescentes”. (BRASIL, 2021).
Ademais, foram apontadas algumas circunstâncias que se mostraram favoráveis aos adotantes, tal como o fato de não se haver notícia de que faltassem aos cuidados necessários ou negligenciassem a criança, bem como que:
“a) não ocorreu a famigerada adoção à brasileira;
b) os insurgentes são habilitados junto ao Cadastro Nacional de Adoção;
c) a criança fora lançada para estágio de convivência com guarda precária deferida em favor de família substituta, sem que fossem os autores comunicados e, ainda, em momento anterior ao próprio julgamento do recurso de apelação contra a sentença de extinção da adoção personalíssima intrafamiliar”. (BRASIL, 2021).
Quanto à adoção à brasileira, importante mencionar que ocorre quando alguém falsamente declara em registro civil uma criança ou adolescente como sendo seu filho biológico. Assim, é uma burla ao cadastro de adoção, sem observar os procedimentos legais, inclusive tipificado como crime no artigo 242 do Código Penal:
“Art. 242. Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil:
Pena - reclusão, de dois a seis anos.
Parágrafo único. Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza:
Pena - detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena.” (BRASIL, 1940)
Além dos fundamentos fáticos, observou o STJ que houve violação a princípios basilares relativos à proteção da criança e adolescente.
Ora, em atenção ao princípio da proteção integral da criança, deve prevalecer o acolhimento familiar em detrimento do institucional.
“A jurisprudência desta Corte Superior, em observância ao princípio da proteção integral e prioritária da criança, previsto no Estatuto de Criança e do Adolescente e na Constituição Federal, consolidou-se no sentido da primazia do acolhimento familiar em detrimento da colocação de menor em abrigo institucional. Dentre inúmeros julgados, cita-se o HC 574.439/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/08/2020, DJe 26/08/2020.” (BRASIL, 2021).
Outro importante ponto é o reconhecimento do caráter relativo da ordem cronológica de preferência no cadastro de adoção, mais uma vez como decorrência do princípio do menor interesse da criança. Considerando que os adotantes C e D, desde antes do nascimento de B, já estavam habilitados no cadastro d adoção, não se pode dizer que houve burla a cadastro. Senão vejamos:
“(...) prudente mencionar que nos termos da jurisprudência do STJ, a ordem cronológica de preferência das pessoas previamente cadastradas para adoção não tem um caráter absoluto, devendo ceder ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, razão de ser de todo o sistema de defesa erigido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem na doutrina da proteção integral sua pedra basilar (HC nº 468.691/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, DJe de 11/3/2019)” (BRASIL, 2021).
Igualmente relevante é a questão da relação de parentesco entre os adotantes a criança. No caso, os adotantes eram tios da genitora da criança. Para o juízo de primeiro, isto não configuraria parentesco.
Ressalte-se que o Código Civil limita o parentesco colateral para até o quarto grau: “Art. 1.592. São parentes em linha colateral ou transversal, até o quarto grau, as pessoas provenientes de um só tronco, sem descenderem uma da outra.” (BRASIL, 2002)
Todavia, entende o Superior Tribunal de Justiça que é possível vislumbrar relação de parentesco colateral por afinidade.
Veja que o artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente aponta prioritariamente o direito da criança de ser criado junto a sua família e, apenas excepcionalmente, em família substituta:
“Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.” (BRASIL, 1990)
Ademais, considera-se família não só a família natural (pais e descendentes), como também a família extensa, qual seja os parentes próximos que guardem vínculo de afinidade com o infante.
“O conceito de “família” adotado pelo ECA é amplo, abarcando tanto família natural (comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes) como a extensa/ampliada (aquela constituída por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade).” (BRASIL, 2021)
A ampliação do conceito de família encontra inclusive guarida constitucional, visto que para o Tribunal da Cidadania, a Constituição Federal de 1988 ampliou os paradigmas de família, antes somente a consagrada pelo casamento, admitindo a regulação jurídica de outras formas de entidades familiares.
“Tal alargamento é reflexo dos anseios lançados à sociedade brasileira estampados no preâmbulo do texto constitucional, no qual o povo brasileiro, representado pelos constituintes, objetivando a criação de um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social, estabeleceu as diretrizes, as garantias da norma jurídica regente de todo o sistema voltado ao ordenamento e desenvolvimento nacional.” (BRASIL, 2021).
Desse modo, adequando-se à evolução das relações pessoais, o Estatuto da Criança e do Adolescente passou a incluir em suas normas a ideia de afinidade e afetividade como partes do conceito daquilo que se constitui família. Nesse sentido verifica-se o artigo 25, parágrafo único do citado diploma legal:
“Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.
Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)” (BRASIL, 1990).
Logo, não parece razoável limitar a possibilidade de adoção tão somente àqueles que fazem parte do conceito de família natural, visto que o próprio ECA reconhece outras formas de família. Neste sentido entendeu o Superior Tribunal de Justiça:
“Tendo isso em mente, afirma-se que o legislador ordinário, ao estabelecer no artigo 50, § 13, inciso II, do ECA que podem adotar os parentes que possuem afinidade/afetividade para com a criança, não promoveu qualquer limitação (se aos consanguíneos em linha reta, aos consanguíneos colaterais ou aos parentes por afinidade), a denotar, por esse aspecto, que a adoção por parente (consanguíneo, colateral ou por afinidade) é amplamente admitida quando demonstrado o laço afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, bem como quando atendidos os demais requisitos autorizadores para tanto.” (BRASIL, 2021).
Até porque o conceito atual de família é eudemonista, trazendo a noção de busca da felicidade de todos seus membros, com base na ideia de vínculo de afetividade e afinidade, independentemente de relação de consanguinidade.
Neste sentido leciona a magistrada e doutrinadora Maria Berenice Dias:
“A busca da felicidade, a supremacia do amor, a vitória da solidariedade ensejam o reconhecimento do afeto como único modo eficaz de definição da família e de preservação da vida. As relações afetivas são elementos constitutivos dos vínculos interpessoais. A possibilidade de buscar formas de realização pessoal e gratificação profissional é a maneira de as pessoas se converterem em seres socialmente úteis.
Para essa nova tendência de identificar a família pelo seu envolvimento afetivo surgiu um novo nome: família eudemonista, que busca a felicidade individual, por meio da emancipação de seus membros.
O eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido da busca pelo sujeito de sua felicidade. A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento legal altera o sentido da proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se infere da primeira parte do § 8.º do art. 226 da CR: o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram.” (DIAS, 2021, p. 461).
No mesmo tema da ampliação do conceito de família, Flávio Tartuce indica a inconstitucionalidade de eventuais leis que busquem restringir o conceito de família para enquadrar tão somente a ideia de homem e mulher casados e seus filhos:
“Justamente diante desses novos modelos de família é que se tem entendido que a família não pode se enquadrar numa moldura rígida, em um suposto rol taxativo (numerus clausus), como aquele constante do Texto Maior. Em outras palavras, o rol constante do art. 226 da CF/1988 é meramente exemplificativo (numerus apertus).
Essa constatação faz com que seja inconstitucional qualquer projeto de lei que procure restringir o conceito de família, caso do Estatuto da Família, no singular, em trâmite no Congresso Nacional. Por essa proposição, somente constituiriam famílias as entidades formadas por pessoas de sexos distintos que sejam casadas ou vivam em união estável, e seus filhos.” (TARTUCE, 2019, P. 75).
Não cabe, portanto, ao Estado, intervir exageradamente na regulação daquilo que se entende por família, o qual deve tão somente atuar para fazer valer os direitos fundamentais quando violados.
“Com isso, forçoso é reconhecer a suplantação definitiva da (indevida) participação do Estado no âmbito das relações familiares, deixando de ingerir sobre aspectos personalíssimos da vida privada, que, seguramente, dizem respeito somente a vontade do próprio titular, como expressão mais pura de sua dignidade[...].” (ALVES, 2010, p. 142)
Ainda no que se relaciona ao caso analisado, os adotantes fazem parte da família extensa do infante, considerando a existência de parentesco colateral por afinidade, a despeito da ausência de parentesco sanguíneo.
Vale ainda mencionar que no caso houve pedido de guarda – que é precária e reversível, o que foi reconhecido igualmente como possível pelo Superior Tribunal de Justiça, com fundamento legal no Código Civil, artigo 1584, §5º:
“§ 5 o Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda a pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade” (BRASIL, 2002)
Vale aqui colacionar a ementa do acórdão, por sua relevância para o tema e para este trabalho:
“RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE ADOÇÃO PERSONALÍSSIMA - INSTÂNCIA ORDINÁRIA QUE EXTINGUIU O PEDIDO, SEM JULGAMENTO DO MÉRITO, POR CONSIDERAR INEXISTIR PARENTESCO ENTRE PRETENSOS ADOTANTES E ADOTANDO E BURLA AO CADASTRO NACIONAL DE ADOÇÃO – O TRIBUNAL A QUO CONFIRMOU A DECISÃO RECORRIDA E MANTEVE OS ADOTANTES HABILITADOS JUNTO AO CADASTRO - MENOR COLOCADO EM ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA EM FAMÍLIA SUBSTITUTA NO CURSO DO PROCEDIMENTO - INSURGÊNCIA DOS PRETENDENTES À ADOÇÃO INTRAFAMILIAR E DO CASAL TERCEIRO PREJUDICADO (FAMÍLIA SUBSTITUTA).
Cinge-se a controvérsia em aferir a possibilidade de adoção personalíssima intrafamiliar por parentes colaterais por afinidade, sem desprezar a circunstância da convivência da criança com a família postulante à adoção.
1. A Constituição Federal de 1988 rompeu com os paradigmas clássicos de família consagrada pelo casamento e admitiu a existência e a consequente regulação jurídica de outras modalidades de núcleos familiares (monoparental, informal, afetivo), diante das garantias de liberdade, pluralidade e fraternidade que permeiam as conformações familiares, sempre com foco na dignidade da pessoa humana, fundamento basilar de todo o ordenamento jurídico.
2. O conceito de “família” adotado pelo ECA é amplo, abarcando tanto a família natural (comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes) como a extensa/ampliada (aquela constituída por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade), sendo a affectio familiae o alicerce jurídico imaterial que pontifica o relacionamento entre os seus membros, essa constituída pelo afeto e afinidade, que por serem elementos basilares do Direito das Famílias hodierno devem ser evocados na interpretação jurídica voltada à proteção e melhor interesse das crianças e adolescentes.
3. Conforme explicitamente estabelecido no artigo 19 do ECA, é direito da criança a sua criação e educação no seio familiar, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral e assegure convivência com os seus, sendo a colocação em família substituta excepcional.
4. O legislador ordinário, ao estabelecer no artigo 50, § 13, inciso II, do ECA que podem adotar os parentes que possuem afinidade/afetividade para com a criança, não promoveu qualquer limitação (se aos consanguíneos em linha reta, aos consanguíneos colaterais ou aos parentes por afinidade), a denotar, por esse aspecto, que a adoção por parente (consanguíneo, colateral ou por afinidade) é amplamente admitida quando demonstrado o laço afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, bem como quando atendidos os demais requisitos autorizadores para tanto.
5. Em razão do novo conceito de família - plural e eudemonista – não se pode, sob pena de desprestigiar todo o sistema de proteção e manutenção no seio familiar amplo preconizado pelo ECA, restringir o parentesco para aquele especificado na lei civil, a qual considera o parente até o quarto grau. Isso porque, se a própria Lei nº 8.069/90, lei especial e, portanto, prevalecente em casos dessa jaez, estabelece no § 1º do artigo 42 que "não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando", a única outra categoria de parente próximo supostamente considerado pelo ditame civilista capacitado legalmente à adoção a fim de que o adotando permanecesse vinculado à sua "família" seriam os tios consanguíneos (irmãos dos pais biológicos), o que afastaria por completo a possibilidade dos tios colaterais e por afinidade (cunhados), tios-avós (tios dos pais biológicos), primos em qualquer grau, e outros tantos "parentes" considerados membros da família ampliada, plural, extensa e, inclusive, afetiva, muitas vezes sem qualquer grau de parentalidade como são exemplos os padrinhos e madrinhas, adotarem, o que seria um contrassenso, isto é, conclusão que iria na contramão de todo o sistema jurídico protetivo de salvaguarda do menor interesse de crianças e adolescentes.
6. Em hipóteses como a tratada no caso, critérios absolutamente rígidos previstos na lei não podem preponderar, notadamente quando em foco o interesse pela prevalência do bem estar, da vida com dignidade do menor, recordando-se, a esse propósito, que no caso sub judice, além dos pretensos adotantes estarem devidamente habilitados junto ao Cadastro Nacional de Adoção, são parentes colaterais por afinidade do menor “(...) tios da mãe biológica do infante, que é filha da irmã de sua cunhada” e não há sequer notícias, nos autos, de que membros familiares mais próximos tenham demonstrado interesse no acolhimento familiar dessa criança.
7. Ademais, nos termos da jurisprudência do STJ, a ordem cronológica de preferência das pessoas previamente cadastradas para adoção não tem um caráter absoluto, devendo ceder ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, razão de ser de todo o sistema de defesa erigido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem na doutrina da proteção integral sua pedra basilar (HC nº 468.691/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, DJe de 11/3/2019).
8. Recurso especial provido para determinar o processamento da ação personalíssima intrafamiliar.
Agravo interno manejado pelo casal terceiro (família substituta) desprovido.” (BRASIL, 2021).
Note que, no caso concreto, o provimento do recurso especial foi tão somente para que os autos retornassem a origem e o pedido de adoção personalíssima fosse processado, e não já deferindo a adoção em si, visto que em primeiro grau os autos foram extintos sem resolução de mérito.
Conclusão
É evidente que nos últimos anos muitas mudanças ocorreram no que diz respeito ao paradigma de família, sejam mudanças de fato, alterações legais, ou alterações viabilizadas por decisões jurisprudenciais – desde a facilitação do procedimento de divórcio, ao surgimento do instituto da união estável, à possibilidade de casamento homoafetivo entre outras.
Assim, é certo que cabe à lei e às instituições jurídicas acompanharem as evoluções que ocorrem em todas as searas, o que também se aplica no caso da adoção.
Certamente o princípio do melhor interesse do a criança e do adolescente sempre deve orientar toda e qualquer decisão relativa ao tema.
E não deve ser diferente no caso de adoção personalíssima quando se revela a existência de vínculo de parentesco por afinidade dos adotantes.
É comum nas famílias brasileiras que os vínculos de afinidade e afetividade se estendam à família extensa e parentes por afinidade, como cunhados, tios-avós, primos, entre tantos outros, não se justificando que um infante seja submetido a adoção por pessoas mais distantes, com os quais não possui qualquer vínculo, de modo que parece ser razoável e correto o posicionamento dos tribunais superiores a respeito do tema.
Referências
ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Direito de família mínimo: a possibilidade de aplicação e o campo de incidência da autonomia privada no direito de família. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2010.
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Estatuto da Criança e do Adolescente – 10. Ed. Ver., atual. E ampl. – Salvador: Juspodivm, 2016.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de Dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro, RJ: Senado, 1940.
______. Lei 8.069, de 13 de Julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: Senado, 1990.
______. Superior Tribunal de Justiça. 4a Turma. Recurso Especial nº 1.911.099 – SP. Rel. Min Marco Buzzi. Julgado em 29/06/2021. Publicado no DJ em 03/08/2021 Disponível em: < https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202003236599&dt_publicacao=03/08/2021>.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Salvador: Juspodivm, 2021.
ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo. Manual do Direito da Criança e do Adolescente. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 107
TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito de família – v. 5 – 14. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.
Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul em 2017. Analista Judiciária no Tribunal Regional Eleitoral do Paraná .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASTANHARO, Daniele. Adoção Personalíssima de Parentes por Afinidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 set 2023, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63162/adoo-personalssima-de-parentes-por-afinidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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