Resumo: A evolução da responsabilidade civil ampliou o espectro do dever de indenizar. A culpa, antes imposição necessária, deu lugar ao risco. Para se eximir da obrigação de reparar prejuízos, aqueles que têm sua responsabilidade fundada na teoria objetiva, devem recorrer às excludentes de responsabilidade: caso fortuito, força maior, fato de terceiro e culpa exclusiva da vítima. Ante a alta incidência de roubos e furtos na sociedade brasileira, é de fundamental importância o tratamento jurídico dado pelos tribunais a essa situação, na medida em que pode elevar os custos da atividade econômica ou restar danos sem correspondente reparação. No entanto, a jurisprudência tem sido vacilante no tema, atribuindo efeitos jurídicos semelhantes a questões iguais, o que pode impactar a livre iniciativa e a segurança jurídica.
Palavras-chave: Responsabilidade civil. Teoria objetiva. Caso fortuito. Roubo. Furto. Segurança jurídica.
1.INTRODUÇÃO
O presente artigo se propõe a discutir os efeitos da prática de crimes praticados por terceiros na responsabilidade civil das pessoas jurídicas no ordenamento jurídico brasileiro, em especial aquelas que exploram atividade econômica com intuito lucrativo.
No atual estágio da responsabilidade civil, ainda que seja a exceção, a teoria objetiva está cada vez mais presente nas relações jurídicas. Diplomas como o Código de Defesa do Consumidor, Lei 6.938/81 e o parágrafo único do art. 927 do Código Civil são exemplos nos quais o surgimento do dever de indenizar independe da demonstração de culpa do autor do dano. Nesse sentido, há uma maior probabilidade de imputação do ônus de reparar o prejuízo, já que, provadas a existência de conduta, dano e nexo causal, haverá o dever de indenizar.
Não obstante, o ordenamento jurídico, salvo raríssimas exceções, admite, mesmo nas hipóteses de responsabilidade objetiva, que sejam arguidas hipóteses de exclusão de responsabilidade, tais como força maior, caso fortuito, fato de terceiro e culpa exclusiva da vítima.
É nesse contexto que ganha relevância o tratamento jurídico dado pelos tribunais superiores aos roubos e furtos, situações vivenciadas frequentemente pelos brasileiros. A depender do enquadramento da natureza jurídica definida, haverá grande impacto na sociedade: se entendidos como caso fortuito, subsistirá uma vasta quantidade de danos sem correspondente reparação. Por outro lado, caso se entenda que os fatos criminosos não afastam o dever de indenizar, onera-se o empreendedor que, obviamente, será compelido a integrar o risco no preço dos produtos ou serviços oferecidos.
2.DOS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL
Como regra, a responsabilidade civil depende da demonstração de quatro requisitos: conduta, dano, nexo de causalidade e dolo ou culpa. Denomina-se responsabilidade subjetiva pela presença necessária desse último requisito.
Maria Helena Diniz[1], ao discorrer sobre os elementos da responsabilidade:
a) Existência de uma ação, comissiva ou omissiva, qualificada juridicamente, isto é, que se apresenta como um ato ilícito ou lícito, pois ao lado da culpa, como fundamento da responsabilidade, temos o risco. A regra básica é que a obrigação de indenizar, pela prática de atos ilícitos, advém da culpa. Ter-se-á ato ilícito se a ação contrariar dever geral previsto no ordenamento jurídico, integrando-se na seara da responsabilidade extracontratual (CC, arts. 186 e 927), e se ela não cumprir obrigação assumida, caso em que se configura a responsabilidade contratual (CC, art. 389).
b) Ocorrência de um dano moral e/ou patrimonial causado à vítima por ato comissivo ou omissivo do agente ou de terceiro por quem o imputado responde, ou por um fato de animal ou coisa a ele vinculada. Não pode haver responsabilidade civil sem dano, que deve ser certo, a um bem ou interesse jurídico, sendo necessária a prova real e concreta dessa lesão (RT, 481:88, 425:188, 508:90, 478:92 e 161, 470:241, 469:236, 455:237, 477:79, 457:189)55. E, além disso, o dano moral é cumulável com o patrimonial (STJ, Súmula 37; BAASP, 1865:109).
c) Nexo de causalidade entre o dano e a ação (fato gerador da responsabilidade), pois a responsabilidade civil não poderá existir sem o vínculo entre a ação e o dano. Se o lesado experimentar um dano, mas este não resultou da conduta do réu, o pedido de indenização será improcedente.
O dolo pode ser conceituado como a vontade livre e consciente de atingir o resultado. Já a culpa pode se desdobrar em imprudência, que é quando o indivíduo toma ação descuidada, que não deveria realizar, a imperícia, caracterizada pela falta de aptidão para desempenhar as atividades técnicas da profissão e a negligência como a ausência de precauções que a pessoa deveria tomar.
O Código Civil em vigor consagra a teoria subjetiva nos artigos 186 e 927, que dispõem que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito, e que aquele que, por ato ilícito (artigos. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
No entanto, as dificuldades de demonstrar o elemento subjetivo em determinados casos concretos, aliado a determinadas características peculiares do exercício de algumas atividades, fez surgir a responsabilidade objetiva, que dispensa a demonstração de dolo ou culpa. Cavalieri Filho[2] aponta:
Aos poucos os juristas perceberam que a teoria subjetiva não mais era suficiente para atender a essa transformação social, que vinha ocorrendo a partir da segunda metade do século XIX; constataram que, se a vítima tivesse que provar a culpa do causador do dano, em numerosíssimos casos ficaria sem indenização, ao desamparo, dando causa a outros problemas sociais, porquanto, para quem vive de seu trabalho, o acidente corporal significa a miséria, impondo-se organizar a reparação.
De acordo com o citado jurista, o fundamento da responsabilidade objetiva é o risco, pois aquele que desenvolve atividades intrinsecamente perigosas deve reparar os prejuízos daí advindos, independentemente de ter agido com culpa ou dolo.
No entanto, é imprescindível fazer uma distinção: a responsabilidade objetiva comum comporta causas excludentes de responsabilidade, enquanto a que é fundada no risco integral não a admite. Ou seja, adotada esta última, mesmo que o dano seja causado por culpa exclusiva da vítima, por exemplo, haveria o dever de indenizar. Essa teoria somente é adotada em situações ainda mais excepcionais, como na reparação de danos ambientais.
O foco do presente artigo será o enquadramento de roubos e furtos como aptos a excluir o nexo de causalidade. Portanto, não iremos adentrar nas nuances da responsabilidade integral.
3.TRATAMENTO JURÍDICO DOS ROUBOS E FURTOS COMO EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE
As hipóteses que podem gerar o afastamento do dever de indenizar na responsabilidade objetiva, por interromper o nexo causal, são: caso fortuito, força maior, fato de terceiro e culpa exclusiva da vítima.
Há doutrinadores que distinguem caso fortuito e força maior. No entanto, prevalece que não há uma separação rígida. Ademais, é irrelevante adentrar nessa celeuma, já que o Código Civil atribui o mesmo efeito a ambos e os conceitua como o fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir (Art. 393, parágrafo único).
A culpa exclusiva da vítima revela situação em que, aparentemente, há vínculo entre a conduta de uma pessoa e o dano, mas, na verdade, aquele que sofreu o prejuízo é o único responsável pela sua ocorrência. Exemplo clássico dado pela doutrina é a pessoa que se joga em frente a um automóvel com o objetivo de ceifar a própria vida.
No fato de terceiro, a atitude de outrem, sem relação com o suposto causador do dano, é o responsável pelo prejuízo, afastando o requisito essencial da conduta para caracterização do dever de indenizar.
Há uma grande incoerência na jurisprudência sobre o modo como devem ser classificados os crimes contra o patrimônio, especialmente roubo e furto, no contexto da responsabilidade civil.
As empresas de transporte coletivo e seus usuários, que tem responsabilidade objetiva com fundamento no art. 37, §6°, da CF, em razão de prestarem serviços públicos, são vítimas frequentes de roubos e furtos. Nos contratos de transporte, a obrigação de garantir segurança ao contratado recebe tratamento específico, em decorrência da existência da cláusula de incolumidade, que assegura a responsabilidade do transportador pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade (art. 734, caput, do CC/02).
De acordo com Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald[3]:
A segurança a que o transportador está obrigado compreende uma segurança também psicológica. Ou seja, naquilo que diga respeito à atividade de transporte desenvolvida, é dever do transportador não expor os passageiros a experiências traumáticas e impactantes.
Em que pese a força da cláusula de segurança nos contratos de transporte e a alta recorrência dos assaltos aos passageiros, a doutrina e a jurisprudência majoritária entendem que eles caracterizam fortuito externo, não compreendidos no risco da atividade. Pode-se apontar, com certa precisão, que o tema está consolidado na jurisprudência do STJ, sem qualquer perspectiva de mudança a curto ou médio prazo. A seguir, colacionam-se julgados que ilustram a questão:
Nessas condições, a simples circunstância de serem comuns hoje, no Brasil, delitos de natureza semelhante à versada nesta causa não é o bastante para atribuir-se responsabilidade à transportadora, que não deu causa alguma ao fato lesivo, sabido que a segurança pública dos cidadãos se encontra afeta às providências do Estado. Em nosso país, com as tarifas cobradas dos usuários, em que não é incluso o prêmio relativo ao seguro, que seria a forma escorreita de proteger o passageiro contra atentados desse tipo, descabido é – a meu ver – transferir-se o ônus à empresa privada.[4]
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL - AÇÃO INDENIZATÓRIA - ASSALTO NO INTERIOR DE TRANSPORTE COLETIVO - CASO FORTUITO - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PROVIMENTO AO RECURSO.IRRESIGNAÇÃO DO AUTOR. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, não há responsabilidade da empresa de transporte coletivo em caso de assalto à mão armada dentro de ônibus, pois o evento é considerado caso fortuito ou força maior, excluindo-se, portanto, a responsabilidade da empresa transportadora. Precedentes. 2. Agravo regimental desprovido[5].
Em outra situação, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que concessionária de rodovia não responde por roubo e sequestro ocorrido em suas dependências. Mais uma vez, a discussão central foi sobre os limites da segurança que a empresa deve fornecer aos usuários e dos riscos que deve assumir. Segue a ementa do julgado:
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE RODOVIA. ROUBO E SEQUESTRO OCORRIDOS EM DEPENDÊNCIA DE SUPORTE AO USUÁRIO, MANTIDO PELA CONCESSIONÁRIA. FORTUITO EXTERNO. EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE. 1. Ação ajuizada em 20/09/2011. Recurso especial interposto em 16/09/2016 e distribuído ao Gabinete em 04/04/2018.
2. O propósito recursal consiste em definir se a concessionária de rodovia deve ser responsabilizada por roubo e sequestro ocorridos nas dependências de estabelecimento por ela mantido para a utilização de usuários (Serviço de Atendimento ao Usuário).
3. "A inequívoca presença do nexo de causalidade entre o ato administrativo e o dano causado ao terceiro não-usuário do serviço público, é condição suficiente para estabelecer a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito privado" (STF. RE 591874, Repercussão Geral).
4. O fato de terceiro pode romper o nexo de causalidade, exceto nas circunstâncias que guardar conexidade com as atividades desenvolvidas pela concessionária de serviço público.
5. Na hipótese dos autos, é impossível afirmar que a ocorrência do dano sofrido pelos recorridos guarda conexidade com as atividades desenvolvidas pela recorrente.
6. A ocorrência de roubo e sequestro, com emprego de arma de fogo, é evento capaz e suficiente para romper com a existência de nexo causal, afastando-se, assim, a responsabilidade da recorrente.
7. Recurso especial provido[6].
A jurisprudência, ao analisar os casos acima e outros análogos, faz a distinção entre fortuito interno, que seria uma situação imprevisível, porém dentro do risco inerente ao negócio e que, portanto, deve ser suportado pelo empreendedor, e o fortuito externo, que seria uma hipótese capaz de romper o nexo causal em razão de ser totalmente estranho à atividade desenvolvida. O professor Márcio Cavalcante[7], ao comentar o julgado anterior, ensina que:
O fato de terceiro pode ou não romper o nexo de causalidade. Se aquele fato de terceiro está relacionado com a atividade desenvolvida pelo fornecedor (está dentro dos limites do risco assumido pela empresa), então, neste caso, não há rompimento do nexo de causalidade e o fornecedor do serviço deverá responder pelo dano. Considera-se aqui que houve um fortuito interno. Ex: um objeto solto na pista por determinado carro e que causa acidente a outro condutor que vem logo atrás. A concessionária da rodovia terá responsabilidade. Por outro lado, se o fato de terceiro é completamente estranho à atividade desenvolvida pelo fornecedor (não tem qualquer relação com o serviço por ele prestado), aí, nesta situação, há rompimento do nexo de causalidade e o fornecedor não responderá pelo dano. É o que se chama de fortuito externo. Ex: uma bala perdida que atinge passageiro que está trafegando na rodovia.
As razões que levaram à tese fixada pela jurisprudência nos julgados anteriores podem ser resumidas, de forma simplificada, no seguinte raciocínio: O dever de reprimir crimes compete ao Estado. Não há como se exigir que pessoas jurídicas de direito privado mantenham uma estrutura robusta com o objetivo de evitar a ocorrência de tais fatos, pois não se trata de risco inerente ao negócio. De fato, de maneira genérica, nem mesmo o Estado responde por roubos. Somente de maneira excepcional, se comprovado, no caso concreto, uma omissão específica do ente federativo, é que poderá o particular exigir o ressarcimento por ter sido vítima de um crime contra o patrimônio, pois o Estado não é segurador universal.
Não há, a princípio, nenhuma deficiência grave na fundamentação jurídica desenvolvida pela Corte Cidadã nos casos acima. A adoção da responsabilidade objetiva com base na teoria do risco não implica assunção de todos os danos que possam advir da exploração da atividade, pois não se adota a teoria do risco integral, que alarga a responsabilidade de forma demasiada. Dada a crise de segurança pública vivida pelo Brasil nos dias atuais, caso se entendesse que as empresas são responsáveis por ressarcir os prejuízos advindos de roubos e furtos contra seus usuários, haveria um desestímulo à iniciativa privada e, provavelmente, os custos com essa indenização seriam repartidos entre os demais usuários.
Por outro lado, a atual orientação jurisprudencial acarreta em inúmeras situações de prejuízo sem correspondente reparação. Em que pese a previsibilidade, em determinadas searas econômicas, como nos transportes coletivos, de crimes contra o patrimônio, a irresponsabilidade das empresas alimenta uma situação de comodismo, na medida em que as principais vítimas são os usuários do serviço, já que o uso do dinheiro em espécie tem diminuído de maneira substancial no pagamento de serviços e produtos.
Vislumbra-se, portanto, que as duas orientações são guarnecidas de bons argumentos. No entanto, a jurisprudência tem dado tratamento desigual a casos semelhantes. Há alguns julgados imputando o dever de empresas de ressarcir o prejuízo ocorridos em razão de crimes contra o patrimônio praticado por terceiros.
No REsp 2031816-RJ[8], de relatoria da. Ministra Nancy Andrighi, a terceira turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que:
Quando o consumidor, com a finalidade de ingressar no estacionamento de shopping center, tem de reduzir a velocidade ou até mesmo parar seu veículo e se submeter à cancela - barreira física imposta pelo fornecedor e em seu benefício - incide a proteção consumerista, ainda que o consumidor não tenha ultrapassado referido obstáculo e mesmo que este esteja localizado na via pública. Nessa hipótese, o consumidor se encontra, de fato, na área de prestação do serviço oferecido pelo estabelecimento comercial. Por conseguinte, também nessa área incidem os deveres inerentes às relações consumeristas e ao fornecimento de segurança indispensável que se espera dos estacionamentos de shoppings centers.
No caso concreto analisado, tratava-se de indivíduos munidos de armas de fogo, em situação na qual a grave ameaça ou violência, com a intenção de subtrair bens móveis alheios, ocorreu em área limítrofe do estabelecimento comercial. Ora, o que diferencia o shopping center, as empresas de transporte coletivo e as concessionárias de rodovias no que tange à obrigação de prestar segurança aos seus usuários? Todas as três têm como atividade principal serviços não vinculados à segurança patrimonial. Não há fator de discriminação que justifique tratamento diferenciado. Se a pessoa jurídica que presta o serviço público de transporte coletivo ou de rodovia não responde por assaltos e furtos em razão de isso ser irrazoável, pois não se pode exigir delas que contratem profissionais armados - argumento invocado em diversos julgados - é forçoso concluir que igual raciocínio deveria ser aplicado aos shopping centers.
Em outro julgado recente, no REsp 1450434-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 18/09/2018, a quarta turma do STJ decidiu que empresa de fast-food que oferece o serviço de drive-thru, na qual os usuários podem adquirir seus lanches sem sair do automóvel, tem o dever de indenizar os clientes pelos danos ocorridos em razão de roubo. De acordo com a Corte Cidadã:
Inicialmente cumpre salientar que a rede de restaurantes, ao disponibilizar o serviço de drive-thru aos seus clientes, acabou atraindo para si a obrigação de indenizá-los por eventuais danos causados, não havendo falar em rompimento do nexo causal. Isso porque, assim como ocorre nos assaltos em estacionamentos, a rede de restaurantes, em troca dos benefícios financeiros indiretos decorrentes desse acréscimo de conforto aos consumidores, assumiu o dever implícito em qualquer relação contratual de lealdade e segurança, como incidência concreta do princípio da confiança. Nesse contexto, a responsabilidade em questão se assemelha muito àquelas situações dos empreendimentos comerciais, como shoppings e hipermercados, que colocam o estacionamento à disponibilização de sua freguesia, respondendo pelos danos sofridos nesse local (inteligência da Súmula n. 130 do STJ). O enunciado da súmula tem a seguinte redação: "a empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento". Equivale a dizer: é a incidência dos princípios gerais da boa-fé objetiva e da função social do contrato na compreensão da responsabilidade civil dos estabelecimentos comerciais, incumbindo ao fornecedor do serviço e responsável pelo local de atendimento o dever de proteger a pessoa e os bens do consumidor. Além disso, ao estender sua atividade para a modalidade drive-thru, a rede de restaurantes buscou, no espectro da atividade econômica, aumentar seus ganhos e proventos, já que, por meio do novo serviço, ampliou o acesso aos produtos e serviços de fast food, facilitando a compra e venda, aumentando o fluxo de clientes e de suas receitas, perfazendo diferencial competitivo a atrair e fidelizar ainda mais a sua clientela. De fato, dentro do seu poder de livremente contratar e oferecer diversos tipos de serviços, ao agregar a forma de venda pelo drive-thru ao empreendimento, acabou por incrementar, de alguma forma, o risco à sua atividade, notadamente por instigar os consumidores a efetuar o consumo de seus produtos de dentro do veículo, em área contígua ao estabelecimento, deixando-os, por outro lado, mais expostos e vulneráveis a intercorrências.
A seguinte tabela trazida pelo professor Márcio André explicita ainda mais a incoerência no tratamento jurídico dado pelos tribunais superiores aos furtos e roubos na responsabilidade civil[9]:
Situação |
Há responsabilidade? |
Julgado |
Passageiro roubado no interior do transporte coletivo (exs.: ônibus, trem etc.). |
Não |
Constitui causa excludente da responsabilidade da empresa transportadora o fato inteiramente estranho ao transporte em si, como é o assalto ocorrido no interior do coletivo (AgRg no Ag 1389181/SP, DJe 29/06/2012). |
Cliente roubado no posto de gasolina enquanto abastecia seu veículo. |
Não |
Tratando-se de postos de combustíveis, a ocorrência de roubo praticado contra clientes não pode ser enquadrado, em regra, como um evento que esteja no rol de responsabilidades do empresário para com os clientes, sendo essa situação um exemplo de caso fortuito externo, ensejando-se, por conseguinte, a exclusão da responsabilidade (REsp 1243970/SE, DJe 10/05/2012). |
Roubo ocorrido em veículo sob a guarda de vallet parking que fica localizado em via pública. |
Não |
No serviço de manobrista em via pública não existe exploração de estacionamento cercado com grades, mas simples comodidade posta à disposição do cliente. Logo, as exigências de garantia da segurança física e patrimonial do consumidor são menos contundentes do que aquelas atinentes aos estacionamentos de shopping centers e hipermercados (REsp 1.321.739-SP, DJe 10/09/2013). |
Furto ocorrido em veículo sob a guarda de vallet parking que fica localizado em via pública. |
Sim |
Nas hipóteses de furto, em que não há violência, permanece a responsabilidade, pois o serviço prestado mostra-se defeituoso, por não apresentar a segurança legitimamente esperada pelo consumido |
Furto ou roubo ocorrido em veículo sob a guarda de vallet parking localizado dentro do shopping center. |
Sim |
ocorrência de roubo não constitui causa excludente de responsabilidade civil nos casos em que a garantia de segurança física e patrimonial do consumidor é inerente ao serviço prestado pelo estabelecimento comercial. |
Tentativa de roubo ocorrida na cancela do estacionamento do shopping center. |
Sim |
A ocorrência de roubo não constitui causa excludente de responsabilidade civil nos casos em que a garantia de segurança física e patrimonial do consumidor é inerente ao serviço prestado pelo estabelecimento comercial (REsp 1269691/PB, DJe 05/03/2014). |
Roubo ocorrido na cancela para ingresso no estacionamento do shopping center, ainda em via pública. |
Sim |
O shopping center e a empresa administradora do estacionamento são responsáveis por indenizar o consumidor vítima de roubo à mão armada ocorrido na cancela para ingresso no estacionamento, ainda em via pública (REsp 2.031.816-RJ, DJe 16/03/2023). |
Roubo ocorrido em estacionamento externo e gratuito de lanchonete. |
Não |
Constitui verdadeira hipótese de caso fortuito (ou motivo de força maior), de forma que não se aplica a Súmula 130 do STJ. |
Roubo ocorrido no drive-thru da lanchonete |
Sim |
A lanchonete, ao disponibilizar o serviço de drive-thru em troca dos benefícios financeiros indiretos decorrentes desse acréscimo de conforto aos consumidores, assumiu o dever implícito de lealdade e segurança.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.450.434-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 18/09/2018 (Info 637).
|
Roubo ocorrido em estacionamento público localizado em frente à supermercado |
Não |
Constitui verdadeira hipótese de caso fortuito (ou motivo de força maior), de forma que não se aplica a Súmula 130 do STJ.
|
Elemento essencial de promoção à livre iniciativa privada é a previsibilidade das relações jurídicas. Embora o risco seja inerente à atividade econômica, é dever do Estado concretizar, tanto quanto seja possível, o princípio da segurança jurídica, de maneira que os agentes privados possam antever os seus custos e elaborar o seu planejamento. A falta de uniformidade da caracterização dos roubos e furtos enquanto fortuito interno ou externo, demonstrada anteriormente, prejudica a isonomia que deve prevalecer entre os diferentes atores privados.
Com exceção das empresas cujo objeto social é a proteção do patrimônio, não se identifica fator discriminatório relevante para conferir tratamento distintivo à responsabilidade de empresas que prestam serviços ou ofertam produtos quanto ao dever de indenizar prejuízos oriundos de roubos e furtos. É imprescindível a estabilização de jurisprudência nesse sentido, a fim de que empreendedores possam embutir, ou não, nos riscos do negócio, o dever de reparar danos em decorrência de crimes contra o patrimônio praticados por terceiros.
4.CONCLUSÃO
O nascimento da teoria da responsabilidade objetiva ocorreu à medida em que, com a evolução do capitalismo, avolumaram-se as situações de risco. Sob pena de ficarem desamparadas pessoas que sofreram danos consideráveis, foi necessário dispensar o elemento subjetivo, que, muitas vezes, era de difícil demonstração.
No entanto, a regra ainda é, no ordenamento jurídico brasileiro, que risco não é integral, ou seja, comporta hipóteses excludentes de responsabilidade. Nesse contexto, ante a grave crise de segurança pública que atravessa o Estado brasileiro, a classificação jurídica adotada pela jurisprudência para os crimes contra o patrimônio, no âmbito da responsabilidade civil, é de grande importância.
Como vimos, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem oscilado em diversos momentos sobre imputar ou não às sociedades empresárias o risco consubstanciado nos roubos e furtos. A tese mais adotada, no sentido de que o dever de prestar segurança dos fornecedores não compreende evitar crimes, ainda que alicerçada em sólidos fundamentos jurídicos, é simplesmente desconsiderada em outras hipóteses, a depender da atividade econômica explorada pelo empresário.
Se os alicerces da irresponsabilidade empresarial são a desproporcionalidade de exigir que detenham verdadeiro “exército” a impedir a prática de crimes contra seus clientes, pois este risco não é inerente ao negócio, não há coerência em imputar esse dever a uma pessoa jurídica que comercializa lanches e excluir quanto àquela que presta o serviço público de transporte coletivo.
Nos casos tratados no presente artigo, o objeto social das empresas eram: concessão de rodovia, transporte coletivo rodoviário, venda de lanches rápidos, shopping center, comercialização de combustíveis, estacionamento de supermercados. É perceptível que não há, nas atividades desempenhadas, nenhuma peculiaridade concreta que justifique tratamento diferenciado, pois o dever de segurança não constitui a prestação principal.
A fim de resguardar a consistência sistêmica do Direito, além de proporcionar segurança jurídica aos empreendedores, é imprescindível a uniformização da jurisprudência concernente à responsabilidade civil no trato dos crimes contra o patrimônio.
5.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DINIZ, Maria H. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. v.7, p.24. São Paulo]: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786555598650. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555598650/. Acesso em: 18 set. 2023.
FILHO, Sergio C. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo:: Grupo GEN, 2011, p.225. E-book. ISBN 9786559770823. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559770823/. Acesso em: 18 set. 2023.
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; DE FARIAS; Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 3. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 1236.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial 435.865/RJ. Relator: Min. Barros Monteiro. Data de julgamento: 9 out. de 2002, Segunda Seção. Data de publicação: 12 maio. 2003. Disponível em:. Acesso em 15. set. 2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial 1.185.074/SP. Relator: Min. Marco Buzzi. Data de julgamento: 24 fev. de 2015, Quarta Turma. Data de publicação: 03 mar. 2015. Disponível em: < https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/178122382/agravo-regimental-no-recursoespecial-agrg-no-resp-1185074-sp-2010-0044518-6/relatorio-e-voto-178122399 >. Acesso em 15 de set. 2023.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Concessionária de rodovia não responde civilmente por roubo e sequestro. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/3487596cf54cb393afddaa965714ab1f>. Acesso em: 19/09/2023
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O shopping center e a empresa administradora do estacionamento são responsáveis por indenizar o consumidor vítima de roubo à mão armada ocorrido na cancela para ingresso no estacionamento, ainda em via pública. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/b55796d2dc2cb0c9aff4cf90d42f5887>. Acesso em: 19/09/2023
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
[1] DINIZ, Maria H. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. v.7, p.24. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786555598650. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555598650/. Acesso em: 18 set. 2023.
[2] FILHO, Sergio C. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Grupo GEN, 2011, p.225. E-book. ISBN 9786559770823. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559770823/. Acesso em: 18 set. 2023.
[3] BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; DE FARIAS; Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 3. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 1236.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial 435.865/RJ. Relator: Min. Barros Monteiro. Data de julgamento: 9 out. de 2002, Segunda Seção. Data de publicação: 12 maio. 2003. Disponível em:. Acesso em 15. set. 2023.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial 1.185.074/SP. Relator: Min. Marco Buzzi. Data de julgamento: 24 fev. de 2015, Quarta Turma. Data de publicação: 03 mar. 2015. Disponível em: < https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/178122382/agravo-regimental-no-recursoespecial-agrg-no-resp-1185074-sp-2010-0044518-6/relatorio-e-voto-178122399 >. Acesso em 15 de set. 2023.
[6] REsp 1.749.941-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 04/12/2018, DJe 07/12/2018
[7] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Concessionária de rodovia não responde civilmente por roubo e sequestro. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/3487596cf54cb393afddaa965714ab1f>. Acesso em: 19/09/2023
[8] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O shopping center e a empresa administradora do estacionamento são responsáveis por indenizar o consumidor vítima de roubo à mão armada ocorrido na cancela para ingresso no estacionamento, ainda em via pública. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/b55796d2dc2cb0c9aff4cf90d42f5887>. Acesso em: 19/09/2023
[9] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O shopping center e a empresa administradora do estacionamento são responsáveis por indenizar o consumidor vítima de roubo à mão armada ocorrido na cancela para ingresso no estacionamento, ainda em via pública. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/b55796d2dc2cb0c9aff4cf90d42f5887>. Acesso em: 19/09/2023
Advogado. Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Douglas da Costa. Tratamento dado ao roubo e furto na responsabilidade civil: Análise da Jurisprudência dos Tribunais Superiores Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 set 2023, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63239/tratamento-dado-ao-roubo-e-furto-na-responsabilidade-civil-anlise-da-jurisprudncia-dos-tribunais-superiores. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: BRUNA RAPOSO JORGE
Por: IGOR DANIEL BORDINI MARTINENA
Por: PAULO BARBOSA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
Por: EMILY PANISSE MENEGASSO
Precisa estar logado para fazer comentários.