RESUMO: No presente artigo, procurou-se a abordar a questão relativa aos limites à atuação policial lastreada no art. 244, CPP, a partir da recente jurisprudência do STJ sobre o tema.
1.INTRODUÇÃO.
A aplicação do art. 244 do Código de Processo Penal encontra sérios desafios práticos: de um lado, as buscas pessoais são recorrentes no dia a dia das polícias, de outro, sua utilização indiscriminada pode acarretar violações ao direito à intimidade dos cidadãos.
A vagueza da redação do dispositivo legal, por seu turno, contribui para a dificuldade de definição de parâmetros seguros para equilibrar, de um lado, a necessidade de realização da busca pessoal e, de outro, o direito à intimidade e liberdade dos indivíduos.
A recente jurisprudência do STJ vem se esforçando para definir limites à atuação policial lastreada no art. 244, CPP. Esse é o tema que será enfrentado no presente artigo.
2.O ARTIGO 244, CPP E A RECENTE JURISPRUDÊNCIA DO STJ.
O art. 244 do Código de Processo Penal trata da possibilidade de busca pessoal, sem mandado. São três as hipóteses autorizadas pelo artigo: no caso de prisão, caso haja fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida, objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.
Das três hipóteses, sem dúvida, a que abre mais margem para discricionariedade da atuação policial, pela vagueza da sua redação, é a segunda: a fundada suspeita.
Diante da dificuldade em se definir o que seria “fundada suspeita”, o legislador acabou com conferir enorme poder aos agentes policiais na “escolha” daqueles sujeitos que serão abordados e, por via de consequência, sujeitos ao processo de criminalização. Trata-se de faceta do que Zaffaroni e Nilo Batista chamaram de criminalização secundária, que, segundo os professores, é sempre seletiva “em razão da vulnerabilidade do candidato”[1].
É verdade que, pelo menos no campo teórico, parte da doutrina sempre demonstrou esforço em delimitar o âmbito de discricionariedade policial tentando definir limites à interpretação do termo “fundadas suspeitas”. Doutrinadores tradicionais costumavam apontar que a “fundada suspeita” não está caraterizada apenas com pressentimento, intuição ou tirocínio policial[2]-[3].
A prática, porém, sempre revelou as dificuldades no controle desses limites, e a jurisprudência sempre se mostrou permissiva com as buscas e apreensões realizadas com base na alegada fundada suspeita.
A jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça, contudo, tem enfrentado a questão com o rigor que o tema merece.
Em precedente divulgado no informativo nº 735, de 9 de maio de 2022[4], o STJ estabeleceu alguns standards para busca pessoal baseada no art. 244, CPP. Na ocasião, assentou que “A mera alegação genérica de ‘atitude suspeita’ é insuficiente para a licitude da busca pessoal”.
No mesmo julgado, o STJ manifestou o entendimento de que o art. 244, CPP, não é “salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias”, também chamadas de fishing expeditions, baseadas apenas em suspeições genéricas. Afirmou, ainda, que o referido artigo “não autoriza buscas pessoais praticadas como rotina ou praxe do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação concreta”.
Estabeleceu, ainda, que denúncias anônimas não são fundamento idôneo para justificar a busca pessoal e que a descoberta de ilícito durante a busca não convalida a busca ilegal, na medida em que a fundada suspeita tem que ser aferida com base na situação anterior à diligência.
Desde então, a jurisprudência do Tribunal Superior parece se firmar nesse sentido e vem traçando, casuisticamente, hipóteses em que considera não haver fundada suspeita que justifiquem a busca pessoal.
Nesse sentido, o STJ já decidiu que aparentar nervosismo[5] não configura fundada suspeita. Da mesma forma, o simples fato de o réu já ser conhecido dos policiais[6] pela suposta prática de crimes na região não é suficiente para justificar a busca pessoal.
Na mesma toada, o fato de o réu se abaixar e mexer na vegetação[7], se levantar abruptamente ao avistar a polícia[8], guardar sacola plástica[9] embaixo do banco do carro, ou dispensar objeto não identificado ao avistar a polícia[10], não configuram fundada suspeita para os fins do art. 244, CPP.
Em outro importante julgado, levado ao STJ pela combativa Defensoria Pública mineira, o Tribunal considerou ilícita a abordagem e a revista pessoal de indivíduo que estava no shopping olhando as vitrines de lojas, segundo os policiais, de forma suspeita[11].
Nesse caso, o Ministro Relator Messoud Azulay – em sensível colocação – após registrar que o réu era pardo e trabalhava de servente de pedreiro, anotou a perniciociosidade da prática a que tinha sido submetido o cidadão:
“O agravante era pardo (fl. 35) e trabalhava ocasionalmente como servente de pedreiro (fl. 353), não sendo difícil supor que chamasse atenção em área frequentada pela classe média mineira. Ao que tudo indica, estamos diante do perverso fenômeno da criminalização da pobreza, em que a ação dos agentes de segurança pública é dirigida a cidadãos vulneráveis, não porque tenham efetivamente externalizado determinada conduta, mas porque apresentam características que despertam toda sorte de preconceitos.
Não é por outra razão que este Tribunal Superior, ao interpretar o art. 244 do Código de Processo Penal, firmou o entendimento de que a justa causa para a busca pessoal deve ser aferida objetivamente, cabendo às autoridades apontar, de forma concreta e fundamentada, os elementos considerados para se chegar ao juízo de probabilidade de que determinada pessoa esteja na posse de drogas, armas, objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.
De fato, já nas razões de decidir do paradigmático RHC 158.580/BA, o Ministro Rogério Schietti havia apontado para necessidade de se evitar revistas indiscriminadas e repetições de práticas que refletem o racismo estrutural arraigado na sociedade brasileira[12].
Pela importância das lições, algumas palavras do voto condutor merecem ser transcritas:
“Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos - diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas - pode fragilizar e tornar írritos os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade (…)
A pretexto de transmitir uma sensação de segurança à população, as agências policiais - em verdadeiros ‘tribunais de rua’ - cotidianamente constrangem os famigerados ‘elementos suspeitos’ com base em preconceitos estruturais, restringem indevidamente seus direitos fundamentais, deixam-lhes graves traumas e, com isso, ainda prejudicam a imagem da própria instituição e aumentam a desconfiança da coletividade sobre ela”.
É claro que o problema do racismo estrutural não se restringe às buscas pessoais motivadas pela cor da pele. Trata-se de um problema muito maior, que remonta à fundação do Brasil. Mas, parece claro que a definição de standards seguros de atuação para as polícias na revista pessoal contribui para mitigar a sua influência nos processos de criminalização secundária.
3.CONCLUSÃO.
Este artigo tratou da recente jurisprudência do STJ sobre a interpretação do conceito de “fundada suspeita” para fins do art. 244, do Código de Processo Penal.
Na pesquisa jurisprudencial realizada, pode-se notar uma tendência do STJ, a partir do julgamento do RHC 158.580/BA, em definir parâmetros objetivos para aferição da “fundada suspeita” autorizadora da busca pessoal.
Pelo que se pode constatar, o STJ, a partir do julgado paradigmático, vem estabelecendo padrões rígidos para limitação do subjetivismo no exercício da atividade policial que pode contribuir, inclusive, para mitigação dos efeitos do racismo estrutural na criminalização secundária.
Espera-se que, a partir dessas decisões do Tribunal Superior, os Tribunais de Justiça comecem a rever sua jurisprudência sobre o tema.
[1] Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; et. al., Alejandro. Direito Penal Brasileiro, v. 1, 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 51: “a seletividade é estrutural e, por conseguinte, não há sistema penal no mundo cuja regra geral não seja a criminalização secundária em razão da vulnerabilidade do candidato, sem prejuízo de que, em alguns, esta característica estrutural atinja graus e modalidades aberrantes”.
[2] Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci escreve: Outro ponto fundamental para legitimar a busca pessoal é haver fundada suspeita. Suspeita é uma desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, por natureza, razão pela qual a norma exige que seja fundada a suspeita, o que é mais concreto e seguro. Assim, quando um policial desconfiar de alguém, não poderá valer-se, unicamente, de sua experiência ou pressentimento, necessitando, ainda, de algo mais palpável, como a denúncia feita por terceiro de que a pessoa porta o instrumento usado para o cometimento do delito, bem como pode ele mesmo visualizar uma saliência sob a blusa do sujeito, dando nítida impressão de se tratar de um revólver. In Manual de processo penal / Guilherme de Souza Nucci. – 3. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 313
[3] No mesmo sentido, Renato Marcão: “Qualquer que seja a hipótese, a dispensa de mandado só restará autorizada diante de fundada suspeita, e não mera intuição ou capricho policial despido da necessária preocupação que se deve ter com a integridade das garantias fundamentais dispostas objetivamente na Carta Política” in Código de processo penal comentado, São Paulo: Saraiva, 2016., p. 280.
[4] Trata-se do RHC nº 158.580/BA, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, v.u., j. 19/04/2022.
[5] Nesse sentido, confira-se: STJ, AgRg no HC n. 760.401/GO, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 28/8/2023, DJe de 30/8/2023. E, ainda: HC n. 830.071/PR, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, julgado em 15/8/2023, DJe de 18/8/2023.
[6] HC n. 812.559/RJ, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, julgado em 15/8/2023, DJe de 18/8/2023.
[7] STJ, AgRg no HC n. 791.981/SP, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, julgado em 14/8/2023, DJe de 17/8/2023.
[8] STJ, AgRg no HC n. 815.461/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 14/8/2023, DJe de 16/8/2023.
[9] STJ, AgRg no RHC n. 180.546/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 22/8/2023, DJe de 28/8/2023.
[10] STJ, AgRg no RHC n. 173.021/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 14/8/2023, DJe de 18/8/2023.
[11] STJ, AgRg no REsp n. 2.011.289/MG, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 6/6/2023, DJe de 12/6/2023.
[12] Cf. inteiro teor do acórdão, uma das razões para se exigir rígidos standards para revista pessoal seria: “evitar a repetição – ainda que nem sempre consciente – de práticas que reproduzem preconceitos estruturais na sociedade, como é o caso do perfilamento racial (racial profiling), reflexo direto do racismo estrutural” RHC nº 158.580/BA, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, v.u., j. 19/04/2022.
Graduada em Direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Defensora Pública do Estado do Rio Grande do Sul .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SIQUEIRA, THAIS PASTOR DE AMORIM. Novos contornos da busca pessoal a partir da recente jurisprudência do STJ Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 out 2023, 04:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63313/novos-contornos-da-busca-pessoal-a-partir-da-recente-jurisprudncia-do-stj. Acesso em: 23 dez 2024.
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