RESUMO: O presente artigo tem como foco principal o estudo do exame de DNA no esclarecimento do crime de feminicídio, abordando, para tanto, cada item contido no Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio do Ministério da Justiça e Segurança Pública que guarde relação com tal temática. Dessa forma, partir-se-á do estudo dos aspectos históricos envolvendo o ácido desoxirribonucleico (DNA) e a teoria do Fingerprints para se chegar à utilização do exame de DNA no ordenamento jurídico pátrio. Feito isso, passar-se-á para a análise do protocolo acima, especificamente no que toca ao procedimento de coleta de amostras de materiais genéticos existentes na vítima, no suspeito, assim como os percebidos em objetos e locais de interesse investigativo, no fito de elucidar a autoria do delito de feminicídio. Ao final, dar-se-á atenção aos exames que antecedem os exames de DNA e à identificação da vítima por meio deste.
Palavras-chave: DNA. Exame. Investigação. Feminicídio. Protocolo.
ABSTRACT: The main focus of this article is the study of DNA testing in clarifying the crime of feminicide, addressing, to this end, each item contained in the National Protocol for Investigation and Expertise in Crimes of Femicide of the Ministry of Justice and Public Security that is related with such a theme. In this way, we will start from the study of the historical aspects involving deoxyribonucleic acid (DNA) and the Fingerprints theory to arrive at the use of the DNA test in the national legal system. Once this is done, we will proceed to the analysis of the above protocol, specifically with regard to the procedure for collecting samples of genetic materials existing in the victim, the suspect, as well as those perceived in objects and places of investigative interest, in order to elucidate the authorship of the crime of feminicide. In the end, attention will be paid to the tests that precede the DNA tests and the identification of the victim through this.
Keywords: DNA. Exam. Investigation. Femicide. Protocol.
1. INTRODUÇÃO
Conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mil quatrocentas e trinta e sete mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil no ano de dois mil e vinte e dois, o que representa um aumento de 6,5% em relação ao ano anterior e consiste na assustadora marca de uma mulher assassinada a cada seis horas.
Como causa do fenômeno acima, pode-se elencar a cultura machista e sexista que ainda vigora no país, onde, infelizmente, a mulher é tratada como objeto de propriedade de seus parceiros.
Criado através da edição da Lei 13.104/2015, onde o legislador pátrio modificou o artigo 121 do Código Penal para nele incluir o inciso VI, o crime de feminicídio consiste na supressão da vida da mulher simplesmente em razão da condição de seu gênero.
No intuito de padronizar os procedimentos investigativos quem têm o delito em apreço como objeto, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou, em 2019, o Protocolo Nacional de Investigação e Perícias atinentes àquele ilícito.
Em capítulo próprio, o documento acima previu e disciplinou a coleta de amostras para exames genéticos. É nesse contexto que surge o exame de DNA, instrumento útil e relevante para a elucidação da autoria criminosa, ante o elevado grau de certeza de seu resultado.
É sobre tal temática que dedicar-se-á atenção, sendo explorado cada detalhe envolvendo o exame de DNA na investigação do crime de feminicídio, conforme o disposto no protocolo aqui discutido.
2. ASPECTOS HISTÓRICOS DO ÁCIDO DESOXIRRIBONUCLEICO (DNA)
Os ácidos nucleicos, assim chamados por terem sido observados, primeiramente, no núcleo da célula, constituem-se no ácido desoxirribonucleico (DNA) e no ácido ribonucleico (RNA), os quais foram descobertos em 1869, a partir dos estudos realizados pelo médico e pesquisador Johann Friedrich Miescher, ao analisar o núcleo de glóbulos brancos do pus de feridas.
Nascia, assim, a genética, que ao longo dos tempos passou a ser objeto de estudos de cientistas, como, por exemplo, Frederick Griffith, que em 1928, através da tese denominada de Princípio da Transformação, defendeu a transmissão de informações genéticas entre organismos, sem, todavia, ter êxito na definição do agente transformador.
Anos mais tarde, em 1944, valendo-se dos conhecimentos produzidos por seus antecessores, Colin Mac Lead, Maclyn Mc Carty e Oswald Avery, pesquisadores do Instituto Rockfeller, concluíram que o DNA consistiria no material genético responsável pela transmissão das características entre os organismos.
Em 1953, Francis Crick, James Watson e Maurice Wilkins, cientistas da Universidade de Cambridge, Inglaterra, apresentaram a molécula de DNA na forma como atualmente se conhece, ou seja, constituída de duas longas cadeias paralelas – dupla hélice, formadas por nucleotídeos dispostos em sequência. Como consequência, o estudo restou publicado na revista científica Nature, rendendo-lhes, no ano de 1962, o prêmio Nobel de Medicina.
A descoberta de Crick, Watson e Wilkins causou profundo impacto nas ciências da vida, sendo difícil mensurar até onde irão os efeitos de seus estudos. A título de exemplo, cite-se o surgimento da biologia molecular, fonte de conhecimentos úteis na detecção de doenças genéticas e hereditárias, na investigação de paternidade, assim como na identificação de vítimas e autores de delitos.
3. O DNA E A TEORIA DO FINGERPRINTS
Ao observar que o DNA carrega consigo todas as informações genéticas de cada pessoa, Alec John Jeffreys, geneticista britânico da Universidade de Leicester, no Reino Unido, desenvolveu, em 1984, um método capaz de identificar marcadores genéticos tão específicos quanto as impressões digitais obtidas em exames datiloscópicos, motivo pelo qual referida técnica restou batizada de “Fingerprints”.
Defendendo a sua metodologia, Jeffreys asseverou que a probabilidade de pessoas que não possuam vínculo familiar apresentarem a mesma “impressão digital de DNA” é de apenas uma para cinco trilhões, admitindo, como única e remota hipótese de erro, o caso de gêmeos idênticos (univitelinos).
Já em 1986, o conteúdo do estudo de Jeffreys foi utilizado numa investigação criminal que inocentou o suspeito do cometimento de dois estupros e terminou por incriminar o verdadeiro autor dos ilícitos. Em razão disso, constatou-se uma rápida absorção do conhecimento produzido pelo cientista por parte da Medicina Legal, fazendo surgir mais um ramo no campo da Criminalística, o qual veio a se ocupar dos vestígios humanos para, dessa forma, elucidar as reais circunstâncias dos fatos criminosos, contribuindo, por consequência, na efetivação da justiça.
Nesse diapasão, ossos, cabelos, saliva, sangue e sêmen, nestes últimos casos, até ressecos, servem como parâmetro para definir a identidade de vítimas e autores de crimes no curso de uma investigação, fazendo-se abandonar antigas técnicas que traziam resultados inconclusivos.
4. O EXAME DE DNA NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO
Ante o elevado grau de certeza que empresta ao resultado, algo estimado em aproximadamente 99%, o exame de DNA cada vez mais vem sendo abraçado pelo ordenamento jurídico brasileiro, podendo-se citar, a título ilustrativo, a lei n.º 12.004/09, conhecida como Lei de Presunção de Paternidade, que trouxe uma presunção relativa (juris tantum) de paternidade em caso de negativa injustificável do suposto pai.
Com o advento da lei n.º 12.654/12, passou-se a admitir a coleta de material genético para fins de identificação criminal. Com efeito, dispositivos das leis n.º 12.037/09 (que dispunham sobre a identificação criminal do civilmente identificado) e 7.210/84 (Lei de Execução Penal) foram alterados. Quanto a esta, por exemplo, houve a autorização de coleta de material genético de condenados pela prática de delito doloso cometido com o emprego de violência de natureza grave contra a pessoa ou por qualquer daqueles definidos como hediondo pela lei n.º 8.072/90. No que concerne àquela, ficou estabelecida a criação de bancos de dados de perfis genéticos, os quais deverão ser gerenciados por unidades oficiais de perícia criminal.
Não se olvide que os perfis genéticos constantes em referidos bancos de dados somente poderão ser excluídos em caso de absolvição do acusado ou, em se observando a respectiva condenação, mediante requerimento feito nesse sentido após o decurso de 20 (vinte) anos do cumprimento da pena, conforme determina o artigo 7º da lei 12.037/09, com as alterações veiculadas pela lei 13.964/19.
Em 2019, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) criou o protocolo nacional de investigação e perícias nos crimes de feminicídio, inserindo, em seu bojo, um capítulo específico para a coleta de amostras genéticas, restando evidente, mais uma vez, o relevo dado ao exame de DNA em nosso arcabouço jurídico, sendo este o tema que a partir desse momento será analisado de uma forma mais detida.
5. COLETA DE AMOSTRAS PARA EXAMES GENÉTICOS (DNA – ÁCIDO DESOXIRRIBONUCLEICO) NO PROTOCOLO NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E PERÍCIAS NOS CRIMES DE FEMINICÍDIO DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA (MJSP)
O Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) trata, no capítulo III, da coleta de amostras para exames genéticos, distribuindo o assunto por 9 (nove) Seções, as quais serão analisadas separadamente por questões didáticas.
5.1 Coleta de Amostras de Referência da Vítima
A Seção em apreço é inaugurada pelo artigo 15, que determina que, a título de amostra de referência, será coleto material biológico da vítima em todos aqueles casos em que houver a simples suspeita de que a morte da mulher guarde relação com o crime de feminicídio.
Nestes casos, cumprindo o disposto no artigo 16, em sendo a morte recente, deve-se primar pela coleta de material sanguíneo, o qual deverá ser transferido para cartões de coleta. No que concerne aos casos em que o corpo da vítima esteja em estado de decomposição, o parágrafo primeiro de referido artigo preconiza que outros tipos de amostra deverão ser coletadas, como, por exemplo, cartilagem, ossos ou dentes.
No que tange aos casos de feminicídio na modalidade tentada, a coleta da amostra deverá ser de células da mucosa oral da vítima, especificamente da parte interna da bochecha, cumprindo, assim, o contido no parágrafo segundo do artigo 16. Para tanto, deverá ser empregado suabe compatível com papel quimicamente tratado. Neste ponto, acredita-se que se quis emprestar maior segurança e eficácia no manuseio do material coletado, posto que, ante a instabilidade apresentada, o DNA e RNA tendem a se degradar quando submetidos a temperaturas ambientes, precisando, por isso, de refrigeração ou congelamento adequados (4ºC a – 80ºC). Utilizando-se de suabe com papel quimicamente tratado, garante-se a devida estabilidade dos ácidos nucleicos, sumindo, por consequência, os riscos relativos ao transporte e estocagem da saliva.
Em não sendo possível se valer do modelo de suabe retrocitado, orienta o protocolo que suabes tradicionais (confeccionados em algodão) poderão ser usados, desde que em número total de quatro, onde dois serão empregados para cada lado da região interna da bochecha. (artigo 16, §3º)
Apesar da notória importância que o ato normativo empresta à coleta de material biológico através de suabes orais, não podemos deixar de tratar aqui da relevância da coleta de material genético através de exame subungueal. Frequentemente a vítima, ao ser alvo de ato de violência, termina por travar verdadeira luta corporal com o seu agressor, lesionando-o em seu transcurso. Como consequência, material genético do autor do delito é herdado, o qual, em alguns casos, fica depositado embaixo das unhas.
Nessa linha de raciocínio, atentar para a coleta de referido material biológico se apresenta como medida de bom alvitre para o espancamento de dúvidas e fixação da autoria delitiva. De grande valia observar, nesse campo, o contido no Protocolo Operacional Padrão de Perícia Criminal, documento oriundo da, à época, Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, que prevê em seu corpo o seguinte:
“Nos casos de suspeita de ter havido luta corporal entre agressor e vítima, deverá ser coletado material subungueal dos dedos da vítima a fim de se buscar detectar material biológico do possível agressor. Esta coleta deverá ser realizada com swab esterilizado, conforme exemplificado anteriormente, e, se possível, recorte da extremidade das unhas dos dedos das mãos, utilizando-se tesoura descontaminada ou bisturi, com o cuidado de não ferir a pele dos dedos e de não perder material abaixo das unhas. Deve-se utilizar 1 (um) swab para cada mão, com a respectiva identificação de mão direita e esquerda. [...]” (Protocolo Operacional Padrão de Perícia Criminal, pág.151)
Frise-se que o item retrocitado registra a possibilidade de se proceder da mesma forma em relação ao possível agressor, desde que, como veremos mais à frente, o mesmo assine a Declaração de Doação Voluntária (DDV). Com isso, protege-se o procedimento de posteriores arguições de nulidades por violação a preceito constitucional, como a seguir será mais bem explicado.
Por fim, o artigo 17 orienta, naquelas hipóteses em que a vítima estiver grávida, a coletar amostras do concepto, e anexos embrionários, para eventual futuro exame de DNA, caso haja necessidade.
5.2 Coleta de Amostras de Referência do Suposto Autor
A segunda seção do capítulo sob análise estipula, em seu artigo 18, a necessidade de coleta de material genético do suspeito de cometimento do crime de feminicídio. Referido procedimento deverá adotar, igualmente, suabe compatível com papel quimicamente tratado e, em não sendo viável a sua utilização, deverão ser usados dois suabes tradicionais para cada lado da região interna da bochecha. (artigo 18, parágrafo único)
Repise-se aqui tudo o que fora escrito acima no que concerne a coleta de material genético por intermédio do exame subungueal.
5.3 Declaração de Doação Voluntária (DDV)
Abrindo a terceira seção do protocolo em tela, o artigo 19 determina que a coleta de amostras de referência da vítima sobrevivente (feminicídio tentado), assim como do suposto autor, necessitará de autorização prévia materializada na Declaração de Doação Voluntária (DDV) devidamente assinada, ou, dependendo do caso, dos respectivos representantes legais.
Tratando um pouco sobre o sistema de garantias vigentes no sistema jurídico pátrio, é sabido que se incluem em seu rol os princípios constitucionais da presunção de inocência e da não autoincriminação.
O princípio da presunção de inocência, ou princípio da não-culpabilidade, consiste num dos pilares do Estado Democrático de Direito e está insculpido no artigo 5º, inc. LVII, da Carta Magna de 1988, onde está escrito que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Segundo Fernando da Costa Tourinho Filho, 20XX, o princípio da presunção de inocência:
“É um ato de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda sociedade livre [...]. Assenta no reconhecimento dos princípios do direito natural como fundamento da sociedade, princípios que, aliados à soberania do povo e ao culto da liberdade, constituem os elementos essenciais da democracia. [...] Aí está o princípio: enquanto não definitivamente condenado, presume-se o réu inocente.”
Percebe-se que o princípio constitucional da presunção de inocência inspira todo o processo penal pátrio, repercutindo demasiadamente na seara probatória, representando, em suma, no ônus do Estado apurar a culpabilidade do acusado.
Tratando do tema, Pedro Lenza, 2019, página 1921, faz referência a Bechara e Campos, que ensinam: “melhor denominação seria princípio da não culpabilidade. Isso porque a Constituição Federal não presume a inocência, mas declara que ninguém será considerado culpado antes de sentença condenatória transitada em julgado”.
Além de se fazer presente no texto constitucional, referido princípio também encontra-se albergado pelo Pacto de São José da Costa Rica, que em seu artigo 8, 2, alínea “g”, preceitua que “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. [...]”.
Importante ressaltar que referido princípio possui grande interação com os princípios da não autoincriminação, bem como com o instituto constitucional dele derivado, qual seja, o direito ao silêncio.
No que versa sobre o princípio da não autoincriminação, do latim nemo tenetur se detegere (nada a temer por se deter), o mesmo encontra respaldo no artigo 5º, inc. LXII do Pergaminho Constitucional, o qual veda a possibilidade de qualquer pessoa produzir provas contra si mesmo, ao dispor que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.
Mas em termos pragmáticos, qual a principal mudança veiculada pelo princípio da não autoincriminação?
Ora, analisando o seu conteúdo, resta evidente a mudança de status do imputado, o qual abandona a sua condição de objeto de prova, inato ao processo inquisitivo, passando a desfrutar da posição de sujeito de direito. Nessa toada, não está obrigado o suspeito a produzir prova contra si próprio, podendo, inclusive, ficar em silêncio, inerte, sem que disso possa advir qualquer presunção de culpabilidade em seu desfavor.
Assim, fácil concluir que o princípio da não autoincriminação materializa verdadeiro direito fundamental, oponível a qualquer espécie de abuso proveniente do Estado.
Sobre o assunto, relevante transcrever os ensinamentos de Elizabeth Queijo, 2012, página 73, que diz:
[...] o princípio do nemo tenetur se detegere, como direito fundamental, objetiva proteger o indivíduo contra excessos cometidos pelo Estado, na persecução penal, incluindo-se nele o resguardo contra violências físicas e morais, empregadas para compelir o indivíduo a cooperar na investigação e apuração de delitos, bem como contra métodos proibidos de interrogatório, sugestões e dissimulações.
Feitas essas considerações, entende-se que, caso a coleta do material genético seja feita em confronto com o contido no artigo ora estudado, ou seja, sem a devida colheita da assinatura do suspeito na Declaração de Doação Voluntária (DDV), haverá grande probabilidade de sua validade probatória ser questionada durante o trâmite processual, com possíveis arguições de nulidades e buscas pelo respectivo desentranhamento dos autos do processo.
Questão totalmente diversa diz respeito aos elementos de prova descartados pelo suspeito, como, por exemplo, copos e pontas de cigarros utilizados e que, por isso, possuem o respectivo material biológico.
Como anteriormente analisado, ao Estado é vedado constranger o investigado a produzir prova contra si mesmo (princípio do nemo tenetur se detegere). Em contrapartida, nenhum óbice há para que o ente estatal, valendo-se de métodos não invasivos, venha a colher material desprendido do corpo do agente de um crime para, assim, realizar a tão almejada investigação genética. Nessa situação, autorizado estará o Estado a proceder à apreensão e à análise dos vestígios desprezados pelo autor, sem necessitar de seu consentimento, e, por via reflexa, da assinatura do documento em questão.
Referido entendimento, inclusive, foi adotado pela 5ª Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça (STJ) quando do julgamento do habeas corpus n.º 354068, impetrado pela Defensoria Pública do estado de Minas Gerais, que visava o desentranhamento da prova pericial realizada sobre objetos utilizados por um homem denunciado por homicídio triplamente qualificado, estupro e extorsão.
Em sua decisão, o Relator firmou o entendimento de que:
“No caso, entretanto, não há que se falar em violação à intimidade já que o investigado, no momento em que dispensou o copo e a colher de plástico por ele utilizados em uma refeição, deixou de ter o controle sobre o que outrora lhe pertencia (saliva que estava em seu corpo). [...]”.
Prosseguindo em sua linha de raciocínio, o Julgador ainda afirmou que:
“[...] inexiste violação do direito à não autoincriminação, pois, embora o investigado, no primeiro momento, tenha se recusado a ceder material genético para análise, o exame do DNA foi realizado sem violência moral ou física, utilizando-se de material descartado pelo paciente, o que afasta o apontado constrangimento ilegal. [...]”. (STJ. HC n.º 354068, julgado em 13/03/2018. Relator: Min. Reynaldo Soares da Fonseca).
5.4 Coleta de Amostras (vestígios) em Objetos, Suportes, Vestuário ou no Local do Crime ou em Outros Locais de Interesse Investigativo
O exame de todos os objetos que circundam a vítima e que guardam relação com o fato criminoso, assim como a análise do cadáver e de suas vestes no local onde se encontrem estão insertos no rol de atribuições do perito criminal. Dessa forma, a atuação do médico legista, em regra, fica restrita ao âmbito do necrotério.
Incorporando referido entendimento, dispõe o artigo 20 do protocolo ora estudado que “as amostras deverão ser coletadas pelos peritos criminais, que avaliarão se existem amostras de interesse investigativo para o caso, que poderão ser coletadas para fins de exames genéticos”.
Orientando os trabalhos dos experts, dispõe o artigo 21 que estes poderão coletar amostras de material biológico (vestígios):
I – que possam estar presentes no local do fato e em outros locais que o perito criminal julgar pertinentes e que possam ter vínculo com o suposto autor e/ou vítima;
II – em objetos, suportes, vestuário, dentre outros, que o suposto autor possa ter entrado em contato e possam ter nexo com o crime; e
III – em objetos, suportes, vestuário, dentre outros, que a vítima possa ter entrado em contato e que foram apreendidos com o suposto autor e possam ter nexo com o crime.
Local de crime nada mais é do que o espaço físico, de interesse público, onde acontecera uma infração penal, dividindo-se em mediato e imediato. Este consiste na área onde o ilícito efetivamente ocorreu e que, por isso, contém a maioria dos vestígios relacionados com o mesmo. Aquele incide sobre a área adjacente ao local imediato, como corredores, jardins, trilhas, entre outros.
O artigo 6º do Código de Processo Penal determina, em seu inciso I, que a autoridade policial, ao tomar ciência de uma infração penal, deverá se dirigir ao local de sua ocorrência e providenciar o respectivo isolamento até a chegada dos peritos. Como é sabido, referida medida tem por fim evitar que se alterem o estado e conservação das coisas relacionadas ao ilícito, o que pode prejudicar, sobremaneira, na respectiva elucidação. Conforme o inciso II do mesmo artigo, o delegado de polícia deverá apreender os objetos que tiverem relação com o fato delituoso, desde que liberados pelos peritos criminais.
Ainda sobre o tema, de grande valia analisar aqui as alterações introduzidas pela lei n.º 13.964/19, batizada de Pacote Anticrime, no ordenamento jurídico vigente, uma vez que incidem diretamente sobre o disposto nos artigos 20 e 21 ora examinados. Referida norma inseriu o artigo 158-A no bojo do Código Adjeto Penal, fazendo surgir, a nível legal, o conceito de “cadeia de custódia”, senão vejamos:
Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.
Segundo doutrina de Eugênio Pacelli, página 547, cadeia de custódia das provas “[...] nada mais é do que a preservação e o registro do caminho da prova, desde sua coleta até a apreciação pelo Poder Judiciário. [...]”.
Discorrendo sobre o intento de referido procedimento, o processualista acima ensina que:
“[...] A finalidade precípua é garantir a lisura e validade das provas que serão valoradas pelo julgador, maximizando-se o devido processo legal, sob duplo vetor: a) tanto sob a ótica da necessária apuração dos fatos na sua maior inteireza; b) como também para permitir o exercício da ampla defesa e do contraditório a partir de provas e indícios que sejam considerados como válidos à luz do ordenamento jurídico.” PÁGINA 547
Complementando o mandamento contido no caput, o parágrafo primeiro estabelece que o início da cadeia de custódia ocorre com a preservação do local de crime ou com procedimentos policiais ou periciais nos quais sejam detectados vestígios (artigo 158-A, § 1º, do CPP). Além disso, o § 2º do mesmo dispositivo incumbe o agente público que reconhecer qualquer elemento de potencial interesse para a produção da prova pericial da obrigação de preservá-lo. O conceito de vestígio ficou estabelecido no § 3º e consiste em todo o objeto ou material bruto, visível ou latente, constatado ou recolhido, que se relaciona com a infração penal.
O novel artigo 158-B do CPP estipulou que são fases da cadeia de custódia o reconhecimento, o isolamento, a fixação, a coleta, o acondicionamento, o transporte, o recebimento, o processamento, o armazenamento e o descarte, trazendo ao lado de cada elemento a respectiva definição.
Especificamente no que versa sobre as etapas de fixação e acondicionamento, alguns apontamentos se fazem necessários tendo em vista o objeto de estudo da presente obra.
Com relação à fixação, o código não previu a forma pela qual a mesma deverá ser realizada, somente sugerindo, a título ilustrativo, que seja materializada mediante fotografias e filmagens, sendo imprescindível a sua descrição no laudo pericial.
Quanto ao acondicionamento, que se trata do procedimento por meio do qual o vestígio coletado é embalado de forma individualizada, de acordo com suas características químicas e biológicas, para posterior análise, com anotação de hora e nome de quem realizou a coleta e acondicionamento, importante registrar que o artigo 158-D do CPP complementa o seu sentido, detalhando como o mesmo deverá acontecer na prática.
O artigo 158-C determina que a coleta de vestígios deverá ser procedida, de forma preferencial, por perito oficial, que cuidará de seu envio à central de custódia, mesmo nos casos em que exames complementares se apresentem como necessários.
Questão curiosa diz respeito à inexistência de perito oficial na localidade de coleta do vestígio. Nesses casos, através de uma análise conjunta do artigo em apreço com o disposto no § 1º do artigo 159 do CPP, defende-se que duas pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior, preferencialmente na área específica, poderão realizar a coleta.
E se referidos elementos de convicção puderem ser encontrados na residência do suspeito ou de pessoa relacionada ao mesmo? Nessas situações, acredita-se que o delegado de polícia e o perito deverão agir conjuntamente. Ao delegado de polícia caberá representar pela busca e apreensão domiciliar, demonstrando ao magistrado, de forma fundamentada, a necessidade da medida excepcional. Uma vez concedida a autorização para ingresso no imóvel, o delegado de polícia deverá comparecer ao local na companhia do corpo técnico-científico, os quais terão todo o conhecimento para manejar o objeto visado sem macular as suas propriedades.
5.5 Coleta de Amostras (vestígios) no Corpo da Vítima e no Corpo do Suposto Autor
A Seção V trata da coleta de vestígios no corpo da vítima e no corpo do suposto autor, dispondo, no artigo 22, que “as amostras serão coletadas pelos peritos médicos-legistas, durante o exame da vítima no IML (Instituto Médico Legal), ou em hospitais quando a vítima tiver sobrevivido e estiver internada, e do suposto autor durante os exames realizados no IML”.
Inicialmente, importante realizar a leitura do artigo supra em conjunto com o disposto no artigo 158 do Código de Processo Penal pátrio, com as alterações veiculadas pela lei n.º 13.721/18.
Determina o caput de referido artigo que nos casos em que a infração deixar vestígios, o exame de corpo de delito se apresenta como indispensável, não podendo ser suprido, sequer, pela confissão do acusado.
Sobre tal assunto, vale a pena destacar que “exame de corpo de delito”, “corpo de delito” e “corpo da vítima” são expressões absolutamente distintas, não devendo ser confundidas.
Exame de corpo de delito consiste no conjunto de atos praticados no seio da perícia que tem por objeto a análise dos vestígios deixados pela ação criminosa com o fim de elucidar alguns questionamentos intrínsecos à investigação, como, por exemplo, o instrumento utilizado no delito, a relação causal entre ambos e o local onde o fato criminoso se efetivou.
Corpo de delito, segundo ensinamento de Wilson Luiz Palermo Ferreira, vem a ser “o conjunto de elementos sensíveis, denunciadores do fato criminoso. É composto pelos elementos percebidos pelos sentidos ou pela intuição humana” PÁGINA 49. Referido termo se diferencia da expressão “exame de corpo de delito”, posto que esta representa a perícia feita a partir dos vestígios deixados pelo crime.
O corpo de delito pode ser classificado em indireto e direto. Este se trata dos resíduos deixados pela ação criminosa e que podem ser captados pelos sentidos ou intuição humana. Aquele consiste no preenchimento de uma lacuna através da prova testemunhal ante a inexistência de vestígios, conforme prevê o artigo 167 do Código de Processo Penal.
Por sua vez, o corpo de delito direto pode se subdividir em delicta factis permanentis, quando tiver caráter permanente, ou delicta factis transeuntis, quando os vestígios forem passageiros.
Já o termo “corpo da vítima” designa apenas um dos elementos sobre o qual a perícia irá se ocupar na busca por vestígios materiais que guardem nexo com o fato delituoso.
Caso a perícia não seja realizada, em flagrante desrespeito ao artigo 158, caput, do CPP, o processo será passível de ser declarado nulo, conforme preconiza o artigo 564, III, b, da mesma lei.
A lei n.º 13.721/18, inovando em nosso ordenamento jurídico, alterou o conteúdo do artigo 158 supramencionado. Conforme mandamento do parágrafo único de referido dispositivo, terá prioridade na realização do exame de corpo de delito os casos que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher (inc. I), bem como aqueles atinentes à violência contra a criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência (inc. II).
Finalizando a seção, prevê o artigo 23 que “os vestígios detectados durante o exame perinecroscópico deverão ser, preferencialmente, coletados pelo perito criminal no local de crime”.
Perinecroscopia nada mais é do que é o exame realizado por peritos criminais no local do crime.
5.6 Coleta de Amostras (vestígios) no Corpo da Vítima
A coleta de vestígios no corpo da vítima tem por escopo a identificação de possível material genético do suposto autor. Para tanto, rotineiramente será realizada a coleta de material biológico nas cavidades oral, vaginal e anal daquela. (artigos 24 e 25 do protocolo)
O artigo 26 orienta que nos casos de presença ou suspeita de deposição de secreções ou fluídos (saliva, sêmen, sangue) do agressor em outras regiões do corpo da vítima, como, por exemplo, facial, mamária, abdominal, perivaginal e inguinal, deverá ser realizada a coleta de amostras nessas regiões por meio da técnica do duplo suabe (um úmido e um seco), indicando-se a ordem da coleta.
Deverá ser realizada, de rotina, coleta de material na região subungueal (sob as unhas) das duas mãos por meio da técnica do duplo suabe (um úmido e um seco), indicando-se a ordem da coleta, acondicionando separadamente as amostras procedentes da mão direita e da mão esquerda. (artigo 27)
A depender da avaliação pericial sobre a possibilidade de existir material biológico do agressor em regiões do corpo da vítima que apresentem marcas de mordida, equimoses ou outras lesões recentes, poderá ser realizada coleta de amostras dessas regiões por meio da técnica do duplo suabe (um úmido e um seco), indicando-se a ordem da coleta. (artigo 28)
5.7 Coleta de Amostras (vestígios) no Corpo do Suposto Autor
Os artigos 29 e 30 da Seção VII regulam a coleta de vestígios no corpo do suposto autor do crime.
O artigo 29 preconiza que a coleta do vestígio terá por escopo a identificação de possível material genético da vítima no corpo do suposto autor, mediante sua anuência por escrito, conforme foi observado ao abordarmos a Declaração de Doação Voluntária (DDV), documento previsto no artigo 19 do protocolo examinado.
O artigo 30 dispõe que a depender do tempo decorrido entre o exame realizado no suposto autor e o crime, poderão ser realizadas coletas de amostras nas seguintes regiões: a) subungueal, conforme já observado neste trabalho, procedimento que também deverá ser realizado na vítima; b) bucal do suposto autor, devendo-se priorizar a mucosa dos lábios e dos dentes; c) peniana, através de suabe peniano; d) áreas que apresentem marcas de mordida, equimoses e escoriações recentes, onde a técnica do duplo suabe (um úmido e um seco) também deverá ser empregada, indicando-se a ordem da coleta; d) fios de cabelo e/ou pelo diferentes do suposto autor, materiais que deverão ser coletados por meio de pinça e acondicionados em envelope de papel identificado; e) outras regiões de interesse investigativo.
5.8 Exames Prévios aos Exames de DNA
O artigo 31 contido na Seção VIII orienta que na maioria dos casos, as amostras coletadas deverão ser submetidas a exames prévios para detecção de sêmen, antígeno prostático específico (PSA), espermatozoides, sangue humano, dentre outros, para que, a depender dos resultados, sejam submetidos a exames de DNA.
5.9 Identificação da Vítima por Exames de DNA
O artigo 32 da Seção IX estabelece que para a definição da identidade da vítima, poderá ser realizado exame de comparação genética do DNA entre a amostra biológica da vítima, sendo esta a amostra de referência, e amostras biológicas coletadas de possíveis familiares da vítima ou amostras coletadas de objetos de uso pessoal seu, como, por exemplo, escova de dentes, escova de cabelos e/ou roupas íntimas.
6. CONCLUSÃO
O presente trabalho teve, por fim, demonstrar a utilização do exame de DNA sob o enfoque do Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio, documento oriundo do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Primeiramente foram abordados aspectos históricos relacionados ao Ácido Desoxirribonucleico (DNA) até a apresentação de sua molécula pelos cientistas da Universidade de Cambridge Francis Crick, James Watson e Maurice Wilkins, no ano de 1953.
Em seguida, com o fim de expor a utilidade do DNA, discorreu-se sobre a teoria do Fingerprints, de autoria do geneticista britânico Alec John Jeffreys, que em 1984 apresentou um método capaz de identificar marcadores genéticos tão específicos quanto impressões digitais, conhecimento que foi aplicado, posteriormente, em investigação criminal que foi capaz de asseverar a inocência de um acusado de dois estupros e de indicar a verdadeira autoria.
No terceiro capítulo, analisou-se o papel do exame de DNA no ordenamento jurídico pátrio, observando-se que aquele vem sendo empregado para dirimir questões relativas à investigação de paternidade, à identificação criminal, chegando-se, ao final, à sua aplicação na elucidação dos crimes de feminicídio.
No quarto capítulo, explorou-se o papel do exame de DNA no bojo do protocolo retrocitado, abordando o processo de sua coleta na vítima, autor, a declaração de doação voluntária (DDV), a coleta de amostras em objetos, suportes, vestuário ou no local do crime ou outros lugares de interesse investigativo, os exames prévios aos exames de DNA e a identificação da vítima através deste.
Dessa forma, conclui-se que, apesar da regulamentação tardia do tema, a previsão do exame de DNA no protocolo se apresenta como medida de bom alvitre e que consiste numa ferramenta importante não só para o sucesso do inquérito policial, mas também do processo penal, acarretando, assim, uma diminuição dos casos de impunidade e um aumento no nível da certeza jurídica.
REFERÊNCIAS
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Elder Bezerra Tavares da. Coleta de amostras para exames genéticos (DNA – ácido desoxirribonucleico) no protocolo nacional de investigação e perícias nos crimes de feminicídio do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 out 2023, 04:51. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63377/coleta-de-amostras-para-exames-genticos-dna-cido-desoxirribonucleico-no-protocolo-nacional-de-investigao-e-percias-nos-crimes-de-feminicdio-do-ministrio-da-justia-e-segurana-pblica-mjsp. Acesso em: 22 nov 2024.
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