RESUMO: É sabido que a desigualdade social configura uma realidade que penaliza grande parte das populações do globo terrestre independentemente de o modelo de Estado adotado ser de natureza democrática ou autoritária. Nos países que integram o sul global, sobretudo os que compõem a américa-latina, pode-se evidenciar a carência de condições básicas de sobrevivência que relativizam a efetividade dos direitos fundamentais reconhecidos por seus Estados constitucionais e democráticos de direitos. É nesse cenário de violação de direitos fundamentais que se pretende discorrer sobre a emancipação do ser humano na perspectiva de Nancy Fraser que teoriza sobre os pilares epistemológicos em que se sustentaria o enfrentamento das desigualdades humanas com vistas a concretização de direitos essenciais. Nesse sentido problematizar e contextualizar as causas da mitigação das potencialidades da pessoa humana que implica na restrição de direitos humanos fundamentais, que em geral se relacionam a distorções de naturezas socioeconômicas e culturais, para, a partir dessas vulnerabilidades sociais, mensurar os desafios que se contrapõem à mulher no que se refere à ampliação de seus direitos reprodutivos para neles se incluírem a interrupção de gestação fundado em sua autonomia da vontade, para além dos casos previstos em lei, como mais um instrumento de emancipação social e econômica da mulher que romperia paradigmas de dominação impostos pela lógica capitalista e pelo modelo de sociedade patriarcal ainda vigente. Ao final conclui-se que discutir emancipação feminina se torna uma luta constante e de conquista gradual na medida em que para se agregar novos direitos a sua esfera de liberdade individual à luz de uma nova perspectiva de gênero, em conformidade com os normativos de direitos regionais e internacionais, há que se enfrentar paradigmas sociais, culturais, histórico e econômicos que se encontram na origem das sociedades modernas, e que no caso das demandas feministas brasileiras esse embate passa por uma maior representatividade da mulher nos centros de poder haja vista seu déficit em comparação com outros países latino-americanos.
Palavras-chave: vulnerabilidade humana, paradigmas socioeconômico, emancipação feminina, direitos fundamentais e aborto.
ABSTRACT: It is known that social inequality constitutes a reality that penalizes a large part of the world's populations, regardless of whether the State model adopted is democratic or authoritarian in nature. In countries that make up the global south, especially those that make up Latin America, there is a lack of basic survival conditions that relativize the effectiveness of fundamental rights recognized by their constitutional and democratic states of rights. It is in this scenario of violation of fundamental rights that we intend to discuss the emancipation of human beings from the perspective of Nancy Fraser, who theorizes about the epistemological pillars on which the confrontation of human inequalities would be supported with a view to realizing essential rights. In this sense, problematize and contextualize the causes of the mitigation of human potential, which implies the restriction of fundamental human rights, which are generally related to distortions of socioeconomic and cultural natures, in order to, based on these social vulnerabilities, measure the challenges that oppose each other. to women with regard to the expansion of their reproductive rights to include the interruption of pregnancy based on their autonomy of will, in addition to the cases provided for by law, as yet another instrument of social and economic emancipation of women that would break paradigms of domination imposed by capitalist logic and the model of patriarchal society still in force. In the end, it is concluded that discussing female emancipation becomes a constant struggle and gradual achievement as new rights are added to their sphere of individual freedom in the light of a new gender perspective, in accordance with regional rights regulations. and international, it is necessary to face social, cultural, historical and economic paradigms that are at the origin of modern societies, and in the case of Brazilian feminist demands, this clash involves greater representation of women in the centers of power, given their deficit compared to other Latin American countries.
Keywords: human vulnerability, socioeconomic paradigms, female emancipation, fundamental rights and abortion
INTRODUÇÃO
As reflexões que serão abordadas ao longo dessas linhas fazem parte de uma pesquisa de mestrado intitulada “interferência na autonomia feminina: sanções penais decorrentes de práticas abortivas?”. Na busca em se estabelecer uma crítica sobre a forte influência do Estado na autonomia individual das mulheres que simplesmente não desejam levar uma gestação a termo, e que se veem compelidas sob ameaça de serem estigmatizadas pela submissão a uma ação penal e sua consequente penalização, é que se vem promovendo investigações e trazendo à discussão acadêmica argumentos de natureza jurídica e filosófica que possam servir de fundamentos para se questionar a atual regulação do aborto no Brasil.
Na presente investigação objetiva-se com enforque na teoria das injustiças desenvolvida por Nancy Fraser levantar as causas que explicariam as desigualdades sociais e regionais com vistas as possíveis soluções para seu enfrentamento em nível de Brasil e américa-latina. Para tanto faz-se necessário discorrer sobre os conceitos de distribuição, reconhecimento e representatividade com o propósito de se estabelecer as razões desse contexto de vulnerabilidades sociais por que passa contingentes consideráveis de populações em âmbito global - não só na américa-latina -, a fim de que com base nos possíveis “remédios” teorizados por Fraser se possa entender as raízes da desigualdade sociocultural e econômica que assola grupos minoritários – mulheres, negros, quilombolas, integrantes da sigla LGBTQIA+, dentre outros, e que, no casso de mulheres e negros, são, em verdade, maiorias minorizadas que vêm sendo mitigadas no exercício de direitos fundamentais universais e inalienáveis.
Nesse sentido pretende-se a partir desse viés epistemológico levantado por Fraser situar as demandas feministas nesse cenário maior que é a emancipação da pessoal humana por se entender que muitas das reivindicações daquele movimento para serem atendidas precisam ser analisadas à luz de estruturas sociais – capitalismo disfuncional, patriarcalismo, discriminação racial, dentre outros -, que precarizam seguimentos expressivos das sociedades aumentado o fosso de desigualdade social sobretudo nos países subdesenvolvidos.
É nesse cenário de caos social limitante dos direitos fundamentais que se quer aprofundar sobre os desafios que relativizam a autonomia feminina enquanto pessoa humana – elemento integrante do princípio da dignidade e que serve de referencial interpretativo de direitos fundamentais -, que tem desdobramentos na discussão e efetividade sobre direitos de natureza política, social e econômica da mulher na ótica da perspectiva de gênero, que a despeito de formalmente integrarem sua esfera de liberdade individual, o que se constata é que não são usufruídos em níveis satisfatórios. A pesquisa que se vem desenvolvendo entende que a ampliação de direitos sociais e econômicos da mulher guarda estrita relação com os chamados direitos sexuais e reprodutivos no sentido de se inserir no conteúdo desses últimos a prerrogativa feminina de interromper uma gestação indesejada como expressão de sua vontade, para além dos casos previstos em lei, podendo constituir mais um instrumento emancipador da mulher num cenário que ainda predomina a dominação masculina imposto por uma lógica capitalista e por um modelo de sociedade patriarcal que instrumentaliza o gênero feminino em muitos aspectos das relações sociais.
Nesse sentido fazer uma reflexão dessas demandas feministas à luz desses entraves que causam a vulneração de parcela significativa das coletividades humanas a fim de lastreado nessas carências limitantes encontrar respostas de ordem sociológicas e filosóficas, para além das teses jurídicas, as quais possam compreender e apontar novas perspectivas a serem desenvolvidas socialmente a fim de legitimar o direito de a mulher possuir uma maior autonomia sobre seu corpo e sobre suas escolhas existenciais em matéria abortiva.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Nas linhas da pesquisa que se vem produzindo já se levantou a matéria de ordem jurisprudencial e de direitos e princípios positivados constitucionalmente que, ao menos, apontam para a possibilidade jurídica de atendimento da demanda feminina de ampliação das possibilidades do abortamento legal como expressão de sua dignidade humana. Todavia a partir da concepção da justiça de Nancy Fraser se agregará a essa investigação científica novos referenciais teóricos que apontam no sentido de que para ampliar a autonomia feminina sobre seus poderes reprodutivos não basta simplesmente reconhecer a eventual viabilidade jurídica de suas demandas. Seria insuficiente para a ampliação de seus direitos reprodutivos desenvolver uma doutrina jurídica que defenda a constitucionalidade de uma ampliação das possibilidades legais de aborto fundado em sua autonomia da vontade. A alteração do Código Penal, ou mesmo a regulamentação da matéria numa lei civil, ou ainda, a ampliação de seus direitos reprodutivos através de uma demanda judicial estão imbricados com outros referenciais teóricos que funcionariam como pressupostos de natureza prestacional, política e cultural e que, a despeito de clarear os rumos da pesquisa, apontam para uma maior dificuldade em ampliar as hipóteses legais do aborto voluntário e a consequente limitação da interferência do Estado nas escolhas reprodutivas femininas. Nesse sentido segue os referenciais teóricos que ajudam a “pavimentar” os rumos da pesquisa que tem como referencial maior a autonomia feminina e sua relação com a hipertrofia punitiva do Estado em matéria abortiva no Brasil.
1.1 DIREITOS HUMANOS E LIMITAÇÕES A EMANCIPAÇÃO DA MULHER NAS SOCIEDADES PÓS-MODERNAS
O presente texto científico fora intitulado ‘desafios à emancipação feminina num contexto de vulnerabilidades sociais’ por se entender que se torna muito difícil discutir e defender bandeiras de segmentos específicos quando não existe uma estabilidade social em níveis que se permita o exercício das potencialidades humanas que se entendem como necessários ao desenvolvimento do humano tanto no aspecto individual como no coletivo. Como defender as terras indígenas se no Brasil existem milhares de pessoas que demandam por uma reforma agrária que se bem conduzida traria estabilidade e mais justiça sociais? Como diminuir a criminalidade organizada se no Brasil o combate ao tráfico de drogas através das legislações em vigor arregimenta mão de obra jovem e pobre num número exponencialmente maior que o encarceramento dos grandes traficantes? Como criar uma política de preservação ambiental que promova inclusão social se o próprio Estado brasileiro não consegue romper com uma lógica capitalista que além de manter a condição do Brasil como um país extrativista e agroexportador a serviço das nações desenvolvidas, degrada o ambiente natural através de uma exploração desenfreada e não razoável dos recursos naturais? Essas são indagações, dentre outras que poderiam facilmente ser formuladas, que demonstram como é difícil satisfazer demandas históricas num país extremamente desigual como o Brasil. Acesso igualitário a educação independente de classe social – que também contribuiria com a estabilidade das finanças do Estado a longo prazo -, igualdade material tributária que não encontra efetividade na legislação de regência da matéria, onde o pobre possui uma carga tributária proporcionalmente muito maior do que os seguimentos de maior poder econômico; uma distribuição de renda mais eficiente que reduza as desigualdades e que estimule a emancipação econômica do indivíduo; acesso à saúde de forma homogênea e efetiva que garanta a manutenção da vida humana por ser o bem de maior valor em nossa espécie. Temáticas essas que se efetivamente implementadas contribuiriam para a construção de uma sociedade estável e que criaria “terra fértil” para a emancipação humana.
Na presente pesquisa vem se pontuando a emancipação econômica da mulher como condição necessária para o enfrentamento generalizado da violência física e psicológica por ela sofrida. Relaciona-se ainda o aborto voluntário e a emancipação econômica e social do gênero feminino por se entender que sua autonomia para ser alcançada necessita do reconhecimento de um conjunto de direitos de caráter emancipatório que para sua fruição depende da quebra de paradigmas como patriarcalismo e classificação de raças.
Não obstante se considerar a emancipação socioeconômica feminina e relacioná-la a uma maior autonomia em matéria abortiva, foi a partir da teoria de justiça social de Nancy Fraser que se passou a compreender que uma maior liberdade da mulher sobre suas escolhas existenciais deve ser entendida à luz de alguns pressupostos sistematizados que apontam as possíveis causas dos entraves e/ou dificuldades a serem superados para que se chegue a tão pretendida igualdade de gênero.
É a partir da sistematização de conceitos como distribuição, reconhecimento e representatividade que se pretende situar as demandas femininas dentro desse cenário maior que é a emancipação do gênero humano.
1.2 AS DIMENSÕES DA CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA DE NANCY FRASER
Para que se possa aprofundar ainda mais nas raízes da problemática proposta na presente pesquisa buscou-se se socorrer da teoria tridimensional de Nancy Fraser para se compreender o que poderia ser classificado como (in) justiça e a partir desses postulados extraídos traçar um panorama sobre demandas específicas de grupos minoritários.
Interessante que Fraser parece estabelecer o desenvolvimento de seu conceito de justiça pautado na premissa de que a despeito de críticas aos movimentos identitários esses seriam importantes no processo de construção da justiça social na medida em que implicaria na construção de um quadro social em que se chegaria a uma igualdade material independentemente de interesses específicos. Seria aquelas pautas identitárias admitidas nesse processo quando sua integração não destoasse da construção da igualdade social como objetivo maior FRASER (2006).
Esclarece Fraser (2006, pág. 1) que: “Meu objetivo maior é ligar duas problemáticas políticas atualmente dissociadas; pois é somente integrando reconhecimento e redistribuição que chegaremos a um quadro conceitual adequado às demandas de nossa era”.
Na teoria da injustiça de Fraser a redistribuição e o reconhecimento seriam partes dos “remédios” para se chegar a um estado de emancipação do gênero humano. Explicitando sobre tais conceitos a filósofa esclarece sobre o elemento redistribuição ao relacioná-lo a estrutura social e econômica das sociedades FRASER (2006), e traz através de exemplos as injustiças econômicas que decorrem desse modelo de desenvolvimento Fraser (2006, pág. 2):
“[...] Seus exemplos incluem a exploração (ser expropriado do fruto do próprio trabalho em benefício de outros); a marginalização econômica (ser obrigado a um trabalho indesejável e mal pago, como também não ter acesso a trabalho remunerado); e a privação (não ter acesso a um padrão de vida material adequado)”.
A autora apresenta algumas soluções para se combater a injustiça econômica que funcionaria como “remédios” para Fraser (2006, pág. 02):
“[...] O remédio para a injustiça econômica é alguma espécie de reestruturação político-econômica. Pode envolver redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho, controles democráticos do investimento ou a transformação de outras estruturas econômicas básicas”.
Explicitando sobre o elemento reconhecimento, que integra sua teoria de justiça, a autora relaciona-o a aspectos cultural ou simbólicos e se materializam através de modelos sociais de representação, interpretação e comunicação FRASER (2006), e traz exemplos desse aspecto de injustiça simbólica que decorre desse padrão social que estigmatiza e marginaliza:
“[...] Seus exemplos incluem a dominação cultural (ser submetido a padrões de interpretação e comunicação associados a outra cultura, alheios e/ou hostis à sua própria); o ocultamento (tornar-se invisível por efeito das práticas comunicativas, interpretativas e representacionais autorizadas da própria cultura); e o desrespeito (ser difamado ou desqualificado rotineiramente nas representações culturais públicas estereotipadas e/ou nas interações da vida cotidiana)”.
A autora apresenta algumas soluções para se combater a injustiça cultural ou simbólica que funcionaria como “remédios” para Fraser (2006, pág. 02):
“[...] O remédio para a injustiça cultural, em contraste, é alguma espécie de mudança cultural ou simbólica. Pode envolver a revalorização das identidades desrespeitadas e dos produtos culturais dos grupos difamados. Pode envolver, também, o reconhecimento e a valorização positiva da diversidade cultural. Mais radicalmente ainda, pode envolver uma transformação abrangente dos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação, de modo a transformar o sentido do eu de todas as pessoas”.
Nas transcrições acima depreende-se que Fraser fundamenta a solução para a emancipação humana a partir de políticas públicas redistributivas e de reconhecimento que beneficiaria grupos vulneráveis a fim de se conseguir reduzir os níveis de desigualdade social. Na presente pesquisa já se desenvolveu argumentos a partir de referenciais teóricos conhecidos nacionalmente no sentido de que na ótica de uma interseccionalidade de raça e gênero existe uma carência de políticas públicas que implica na marginalização social e econômica de elevados contingentes populacionais específicos, como mulheres, sobretudo as pobres e negras, indígenas, quilombolas, dentre outros RIBEIRO (2019); realidade não só no Brasil, mas na américa-latina em geral. Tal constatação corrobora com os ‘desafios a emancipação feminina num contexto de vulnerabilidades sociais’ que intitula o presente trabalho acadêmico.
Não bastasse essa omissão estatal que discrimina ao não resolver o problema da emancipação humana através da promoção de uma efetiva igualdade material, ou, ao menos, já que se vive num modelo econômico-capitalista excludente por natureza, continua o Estado a se omitir na promoção de mínimas condições de vida para que todos tenham garantidas suas necessidades existenciais básicas indispensáveis ao processo emancipatório humano que ainda contribuiria com a mitigação daquelas políticas públicas assistencialistas tão criticadas pelas doutrinas liberais e capitalistas. Não bastasse essa realidade cruel, ainda se institucionaliza políticas públicas que tem como resultado o estímulo de valores e a criação de leis que destituídas de uma perspectiva de gênero e raça contribuem para a manutenção e aprofundamento da marginalização de determinados grupos historicamente vulnerabilizados.
Nesse sentido argumentou-se e argumenta-se que a atual regulamentação do aborto no Brasil configura uma política que discrimina socialmente haja vista impor um agir que vem onerando um seguimento populacional historicamente vulnerado. Essa discriminação do gênero feminino tem a pretensão de impor um modo de ser e pensar que não necessariamente corresponde às suas necessidades existenciais. Essa restrição de pensamento e de autonomia reprodutiva institucionalizada por lei – flagrantemente não recepcionada pelo Constituição Cidadã de 88 – contribui com um problema de saúde pública que vitimiza sobretudo as mulheres pobres - em geral negras - que se submetem a procedimentos interruptivos de gestação extremamente inseguros que acarretam danos à saúde quando não implicam em sua morte.
A discriminação de gênero teve seu sentido ampliado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH - ao inserir em seu conceito não só a violência física e psíquica sofrida pelas mulheres, mas também aquela que decorre da discriminação social e econômica. É perfeitamente defensável do ponto de vista constitucional e do sistema de direitos humanos internacional, que a regulamentação do aborto pelo Código Penal Brasileiro - CPB - configuraria uma discriminação de gênero por violar direitos humanos essenciais, sejam positivados no texto constitucional local, sejam previstos em normas internacionais FACHIN e OLSEN (2022).
E a partir dos argumentos de Fraser, os quais agregam à presente pesquisa - que extrapola o campo das teses jurídicas - na medida em que sistematizam conceitos como redistribuição e reconhecimento na busca de se compreender de maneira macro o estado de injustiças sociais que limita a emancipação humana, que se pretende buscar argumentos sociológicos e filosóficos que contribuam para um aprofundamento das causas e efeitos da problemática sujeita à investigação com vistas a se apontar possíveis caminhos para corrigir essa distorção legal que restringe a autonomia feminina e impõe sanções penais em níveis que se entende incompatível com a sistemática normativa de direitos humanos internacionais, e que, defende-se não recepcionados pelos princípios e direitos fundamentais que dão sustentação ao Estado Democrático de Direito materializado pela Constituição Federal de 88.
Sobre a anacronia da legislação que rege o aborto no Brasil e, sobretudo, pelos efeitos danosos sobre os mais vulneráveis, interessante à pesquisa o entendimento das características das coletividades bivalentes proposta por Fraser (2006, pág. 3):
“[...] São diferenciadas como coletividades tanto em virtude da estrutura econômico-política quanto da estrutura cultural-valorativa da sociedade. Oprimidas ou subordinadas, portanto, sofrem injustiças que remontam simultaneamente à economia política e à cultura. Coletividades bivalentes, em suma, podem sofrer da má distribuição socioeconômica e da desconsideração cultural de forma que nenhuma dessas injustiças seja um efeito indireto da outra, mas ambas primárias e co-originais. Nesse caso, nem os remédios de redistribuição nem os de reconhecimento, por si sós, são suficientes. Coletividades bivalentes necessitam dos dois”.
Dentro desse espectro de coletividades bivalente estariam as chamadas classificação de gênero e raça como herança colonial brasileira que se encontram na raiz das injustiças sociais e econômicas MIGNOLO (2017). A teoria tridimensional de Fraser ilumina a pesquisa ao ir além da identificação das origens dos problemas de gênero e raça quando aponta que a promoção da igualdade social, incluídas as de gênero e raça, passaria por políticas distributiva e de reconhecimento que impactariam, em último grau, as bases dos sistemas patriarcal e capitalista que se entendem como razão de ser das desigualdades culturais, sociais, econômicas e institucionais. Como enfrentar as desigualdades de gênero de forma profunda, e que no sentir da pesquisa, invariavelmente levariam num momento posterior a discutir temáticas desconfortantes como o aborto? Fraser (2006, pág. 3):
“[...] De modo muito semelhante à classe, a injustiça de gênero exige a transformação da economia política para que se elimine a estruturação de gênero desta. Para eliminar a exploração, marginalização e privação especificamente marcadas pelo gênero é preciso abolir a divisão do trabalho segundo ele – a divisão de gênero entre trabalho remunerado e não-remunerado e dentro do trabalho remunerado. A lógica do remédio é semelhante à lógica relativa à classe: trata-se de acabar com esse negócio de gênero. Se o gênero não é nada mais do que uma diferenciação econômico política, a justiça exige, em suma, que ele seja abolido”.
Respondendo a indagação acima formulada, e se valendo da teoria das injustiças de Fraser, seria através do enfrentamento das desigualdades de classe, e aplicando essa mesma lógica às desigualdade de gênero, através das técnicas da redistribuição e de reconhecimento, as quais atuariam sobre os sistemas patriarcal e capitalista que estruturam o modelo econômico-produtivo e social de maneira a romper com a subalternização e instrumentalização do gênero feminino num processo que quebraria a lógico de manutenção das estruturas sociais e econômicas vigentes FRASER (2006). É o paradigma da famigerada divisão sexual do trabalho que ainda destina o homem ao labor formal e remunerado e a mulher ao trabalho doméstico e não remunerado. É nesse contexto que se encontram as raízes da “vocação reprodutiva feminina” de forma incondicional em pleno século XXI. Esse é o paradigma que ainda desestimula a inserção da mulher no mercado formal de trabalho ao impô-la remuneração muito a quem dá dos homens, e ainda, as oneram com políticas de Estado que lhes impõem uma gestação obrigatória quando não amparadas pelas hipóteses permitidas em lei. Seria a partir do enfrentamento desses paradigmas socioeconômicos, fundados nos sistemas patriarcal e capitalista, que integram as estruturas de Estado e que se encontram fortemente disseminados nas sociedades, que se poderia corrigir as injustiças de gênero e contribuir com um maior nível de igualdade social ao distribuir e reconhecer justiça a partir da emancipação social e econômica da mulher.
Por ser a coletividade de gênero de característica bivalente - demandando técnicas de redistribuição e de reconhecimento concomitantemente - como dito alhures, sobre o elemento reconhecimento FRASER (2006):
“[...] Seguramente, uma característica central da injustiça de gênero é o androcentrismo: a construção autorizada de normas que privilegiam os traços associados à masculinidade. Em sua companhia está o sexismo cultural: a desqualificação generalizada das coisas codificadas como “femininas”, paradigmaticamente – mas não só –, as mulheres. Essa desvalorização se expressa numa variedade de danos sofridos pelas mulheres, incluindo a violência e a exploração sexual, a violência doméstica generalizada; as representações banalizastes, objetificadoras e humilhantes na mídia; o assédio e a desqualificação em todas as esferas da vida cotidiana; a sujeição às normas androcêntricas, que fazem com que as mulheres pareçam inferiores ou desviantes e que contribuem para mantê-las em desvantagem, mesmo na ausência de qualquer intenção de discriminar; a discriminação atitudinal; a exclusão ou marginalização das esferas públicas e centros de decisão; e a negação de direitos legais plenos e proteções igualitárias. Esses danos são injustiças de reconhecimento”.
Seriam o androcentrismo e o sexismo valores impregnados nas sociedades contemporâneas que refletiriam muito do processo de colonização introjetado pela cultura eurocentrista no Brasil e na américa-latina como um todo. Naturalmente são simbologias fortemente arraigadas nessas sociedades e que invariavelmente são institucionalizadas a nível de Estado pelos poderes constituídos. Nos textos que se vem desenvolvendo estabelece-se que a autonomia feminina perpassa por um complexo de direitos que precisam ser compreendidos de forma holística para que se supere diversas violações dos direitos das mulheres, os quais vem sendo destacados ao longo destas reflexões, e que podem ser mais bem sistematizados a partir da teoria das injustiças que se vem dando destaque.
Com o propósito de superar as injustiças de reconhecimento transcritas acima, as quais, juntamente com os problemas distributivos contribuem para manter a mulher como instrumento de um desenvolvimento social e econômico que as colocam numa posição subalternizada frente suas necessidades existenciais, importante contribuição da Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH – que vem tentado através de seus julgados promover e disseminar para as ordens jurídicas nacionais uma nova perspectiva pautada no gênero com o fito de superar esses entraves de natureza androcêntrica e sexista que impedem o pleno desenvolvimento do gênero feminino no que tange à fruição de direitos humanos essenciais. Nesse passo a jurisprudência da Corte ao adotar a perspectiva de gênero em suas decisões passa a tutelar a mulher na sua dimensão econômica e social e não apenas em aspectos físicos e sexuais como já argumentado alhures FACHIN E OLSEN (2022).
Ainda sobre essa cultura sexista e androcêntrica que vem paulatinamente sendo combatida argumentam Fachin e Olsen (2022, pág. 105):
“[...] A desigualdade histórica e estrutural que afeta as mulheres no continente latino-americano demanda uma resposta das constituições, leis internas, documentos regionais e internacionais, e sobretudo de seus intérpretes. Mais além, seu enfrentamento exige medidas transformadoras eficazes para promover igualdade em sua dimensão de reconhecimento, afastando os estereótipos de oportunidades econômicas e sociais e de rechaço a toda forma de violência e discriminação”.
Definitivamente a discriminação social e econômica passaram a ser entendidas como uma forma de violência que viola os direitos humanos das mulheres. A chamada injustiça cultural ou simbólica, ou simplesmente, a ausência de reconhecimento ao gênero feminino teorizada por Fraser passa a integrar a jurisprudência dos tribunais regionais como o é a Corte IDH. Tecendo considerações sobre a importância da decisão daquela Corte como órgão indutor e padronizador de um diálogo entre as diversas instituições responsáveis por criar, aplicar e interpretar o direito continuam Fachin e Olsen (2022, pág. 105):
“[...] Enfrentar estes desafios é um convite ao diálogo cooperativo entre os Estados e os órgãos regionais e internacionais, notadamente nos processos de interpretação e aplicação das normas de direitos humanos das mulheres. Como resultado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos exerce um papel fundamental na determinação de standards de proteção dos direitos das mulheres sob uma perspectiva de gênero, seja para apontar o caminho para os Estados em suas ações internas, seja para responsabilizá-los quando falham na promoção da igualdade de gênero”.
Por todos os argumentos colacionados pode-se dizer que ao menos nas instâncias de aplicação e interpretação do direito, e por que não dizer na instituição legislativa - veja-se a aprovação do Projeto de Lei 1.085/2023, que trata da igualdade salarial e remuneratória entre homens e mulheres, e altera a Consolidação das Leis do Trabalho -, se inicia um lento e gradual processo de adoção de uma nova perspectiva ao direito que passa a ser produzido e interpretado à luz de uma efetiva igualdade de gênero.
Não por acaso o Conselho Nacional de Justiça – CNJ – editou em 2021 o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero que demonstra que o Poder Judiciário brasileiro vem atento e se adequando a uma nova simbologia ou cultura em que se busca superar as discriminações historicamente sofridas pelo sexo feminino e que vêm sendo discutidas no presente texto acadêmico. A lógica da divisão laboral baseada no gênero e o modelo incondicional do feminino que tem uma “vocação natural” para a reprodução humana – como colocado alhures – se encontram nas origens de valores patriarcais e capitalistas que implicam num tratamento discriminatória que limita a existência feminina e abre possibilidades para a manutenção e aprofundamento de diversas desigualdades que afligem as mulheres em pleno século XXI. Constata-se ainda uma sociedade extremamente androcêntrica e sexista em que a mulher é tolhida em sua autonomia em diversos aspecto de sua vida, e que aqui optou-se em dar um destaque em função dos objetivos perseguidos pela pesquisa, à temática da autonomia reprodutiva com sua ampliação a partir de uma nova regulamentação do aborto.
Nesse contexto são os objetivos buscados com a edição pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Conselho Nacional de Justiça desse Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero que reconhece implicitamente que as instituições de Estado ainda são carentes de uma doutrina jurídica em que ao gênero feminino seja oportunizado o exercício de direitos humanos igualmente disponibilizados ao homem nos mais diversos campos das interações sociais.
As considerações do Grupo de Trabalho, instituído pela Portaria n. 27, de 27 de fevereiro de 2021, e complementado pela Portaria n. 116, de 12 de abril de 2021, ambas do Conselho Nacional de Justiça, são extremamente claras ao tecer considerações sobre as razões das portarias e os objetivos pretendidos, senão vejamos:
“[...] Este protocolo é fruto do amadurecimento institucional do Poder Judiciário, que passa a reconhecer a influência que as desigualdades históricas, sociais, culturais e políticas a que estão submetidas as mulheres ao longo da história exercem na produção e aplicação do direito e, a partir disso, identifica a necessidade de criar uma cultura jurídica emancipatória e de reconhecimento de direitos de todas as mulheres e meninas. (grifo nosso)”.
Aprofundando ainda mais sobre as causas dessa cultura androcêntrica e sexista que discrimina fisicamente, sexualmente, psicologicamente e economicamente segue o Grupo de Trabalho em suas considerações:
“[...] Nesse caminho, o Conselho Nacional de Justiça, ao editar este documento, avança na direção de reconhecer que a influência do patriarcado, do machismo, do sexismo, do racismo e da homofobia são transversais a todas as áreas do direito, não se restringindo à violência doméstica, e produzem efeitos na sua interpretação e aplicação, inclusive, nas áreas de direito penal, direito do trabalho, tributário, cível, previdenciário etc. (grifo nosso)”
Reconhecendo ainda a influência das Cortes Regionais e Internacionais de Direitos Humanos sobre a ordem jurídica brasileira, continua o Grupo de Trabalho:
“[...] O Poder Judiciário brasileiro, voltando seu olhar para os países vizinhos na América Latina, como México, Chile, Bolívia, Colômbia e Uruguai, que já editaram protocolos, dirige sua atenção também às decisões de Cortes Regionais e Internacionais de Direitos Humanos que chamam à atenção da importância e da necessidade de se adotar protocolos oficiais de julgamentos com perspectiva de gênero, para que casos envolvendo direito das mulheres sejam tratados de forma adequada. Em ordem nacional, os trabalhos do CNJ robustecem cotidianamente o diálogo quanto às interseccionalidades múltiplas que guarnecem a perspectiva de gênero. Decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal, sustentadas por um compromisso forte na defesa dos direitos humanos, igualmente avançam na pauta de reconhecimento às minorias do direito à igualdade substancial, tais como as decisões sobre união homoafetiva, reconhecimento da autodeterminação de identidade de gênero, concessão de prisão domiciliar para gestantes e mães, exclusão da contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade, dentre outras decisões. (grifo nosso)”.
A quebra dos paradigmas sociais e econômicos com o propósito extirpar o gênero como elemento estruturante da divisão do trabalho, que em geral estigmatiza e limita as potencialidades femininas FRASER (2006), têm mais aceitação na órbita do Judiciário quando em comparação com as instâncias legislativas, as quais em razão de diversos interesses e concepções individuais dos legisladores, acabam por ter uma postura mais conservadora quando o tema é reconhecimento das demandas femininas.
Pode-se dizer que a perspectiva de gênero na aplicação e interpretação do direito que vem sendo paulatinamente implementada pelo Judiciário brasileiro com vistas a superação dos entraves históricos que subalternizaram e instrumentalizaram - e ainda o fazem - o gênero feminino por séculos, a qual se encontra em sintonia com a teoria tridimensional das injustiças FRASER (2006), e com uma postura bastante progressista dos julgamentos submetidos à Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH -, que tem um importante papel de influenciar nas jurisprudências nacionais, se vislumbra um avanço consistente nas demandas por igualdade de gênero e que invariavelmente toca a discussão sobre uma nova regulamentação do aborto a fim de se reconhecer uma autonomia feminina condizente com os direitos humanos irrenunciáveis e com uma maior restrição dos casos submetidos ao estigma do Direito Penal.
Nos escritos anteriores e que se somam ao presente artigo na busca por compreender o fato social aborto no Brasil defende-se que uma nova regulamentação do direito ao aborto está inserida no espectro dos direitos sociais e econômicos femininos na busca por sua emancipação plena, com reflexos, inclusive, nos elevados índices de feminicídio no país. Não há como se discutir desenvolvimento econômico-social da mulher e a consequente quebra do modelo produtivo e remuneratório baseado no gênero sem lhe franquear um maior nível de autonomia sobre sua capacidade reprodutiva com a prerrogativa de interromper uma gestação fundada simplesmente na sua vontade. Defende-se inclusive que essa prerrogativa pode ser extraída do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito fundamental ao planejamento familiar como livre decisão do casal ou, em último grau, da mulher - ambos positivados no texto constitucional -, com jurisprudência, inclusive, que trata da autonomia individual e do direito ao planejamento familiar que se sobrepõe e relativiza o embrião humano ao admitir seu descarte como efeito colateral de procedimentos de reprodução assistida (BRASIL, 2008).
1.3 A CARÊNCIA DE REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA COMO ENTRAVE PARA UMA NOVA REGULAMENTAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL
Nesse ponto, e já diluindo ao longo do presente texto as considerações, cabe destacar que a matéria se encontra “madura” para ser discutida e se estabelecer consensos tanto a nível de Poder Legislativo como de Judiciário. Não obstante haver fundamentação jurídica para se conceber uma legislação que amplie a autonomia reprodutiva da mulher sem perder de vista em que momento se vedaria a prática abortiva no sentido de tutelar a vida do nascituro, não há um debate político que tenha como referência maior o direito posto, que tem lastro suficiente para a discussão da matéria, e nem mesmo os integrantes da Suprema Corte na formatação atual aparentam ter uma jurisprudência consolidada sobre uma eventual ampliação das possibilidades de abortamento legal. Não há um enfrentamento da matéria por parte do Congresso Nacional à luz das normas de direitos humanos internacionais e dos direitos e princípios fundamentais previsto na Constituição Federal de 88, as quais estabelecem o princípio da laicidade estatal, e o postulado da dignidade da pessoa humana como maior referencial interpretativa para diversos de direitos fundamentais, tais como o direito à saúde física e psicológica, à autonomia individual, à intimidade, à vida privada e ao planejamento familiar fundado na livre decisão do casal e na responsabilidade.
E nesse contexto de inatividade política ganha importância os conceitos de representatividade que integra a teoria das injustiças de Fraser na medida em que se faz necessário para o avanço da agenda feminista não somente no Legislativo como também no Judiciário brasileiros.
Considerando os aspectos políticos de sua teoria da justiça social Fraser (2009, p.21 apud DAMIÃO; CARLOTO, 2017, p. 9):
“[...] as fronteiras políticas e/ou as regras decisórias funcionam de modo a negar a algumas pessoas, erroneamente, a possibilidade de participar como um par, com os demais, na interação social – inclusive, mas não apenas, nas arenas políticas”.
No caso brasileiro há carência de representatividade nas instâncias de poder para se discutir em que bases legais seriam sustentadas uma nova regulamentação do aborto na medida em que esse direito aparenta encontrar lastro jurídico no texto constitucional francamente democrático promulgado em 88. Seria um problema a pouca representatividade da mulher nas instâncias do Legislativo e do Judiciário na medida em que esse debate em torno do aborto vem sendo postergado no maior país da américa-latina. Essa constatação se coaduna com a dimensão representativa ou política da teoria da (in) justiça social como colocado por Fraser (2009, p. 19 apud DAMIÃO; CARLOTO, 2017, p. 19) com: “[...] a natureza da jurisdição do Estado e das regras de decisão pelas quais ele estrutura as disputas sociais.”
As lutas por justiça social a partir de sua dimensão política ou representativa se relacionariam e seriam tão importantes quanto os aspectos distributivos e de reconhecimento e guardariam uma interdependência para se chegar a um estado de emancipação do humano a superar as diversas injustiças perpetradas ao longo da história das civilizações FRASER (2009).
No caso de demandas feministas que buscam a ampliação de seus direitos reprodutivos nos moldes colocados pela pesquisa, e levando em consideração o contexto político e social do Brasil atual, bem como a politização das instâncias jurídicas, nunca se fez tão importante a dimensão representativa dessa teoria das injustiças a ponto de se defender que seria tal dimensão pressuposto para a fruição de diversos direitos ditos por essenciais, os quais demandariam políticas redistributivos e de reconhecimento para se chegar à redução, ao menos, de diversas desigualdades que limitam e condicionam os direitos sexuais e reprodutivos da mulher brasileira em pleno século XXI. Seria a teoria das injustiças de Fraser uma espécie de tratado supraindividual em que se buscaria remédios para superar um estado de vulnerabilidade social pela superação de sistemas capitalista e patriarcal que classificam as pessoas em níveis de importância fundados no gênero e na raça, dentre outros aspectos.
Essa luta por emancipação do gênero humano já foi teorizada por diversos pensadores como Karl Max que tratou sobre a desigualdade social decorrente do sistema capitalista. Esses paradigmas sociais e legais que têm origem no modelo de sociedade patriarcal e capitalista ainda hoje estimulados a partir de uma epistemologia androcêntrica e sexista só podem ser questionados por meio de uma representatividade feminina nos centros de poder vocacionados ao estabelecimento das regras sociais que devem ser seguidas indistintamente. Passa a representatividade por uma maior participação do gênero feminino como membros do Poder Legislativo e do Judiciário. As demandas feministas teriam mais legitimidade no Parlamento. Seria mais eficaz a efetivação do protocolo com perspectiva de gênero se nos Tribunais Superiores existissem uma paridade de gênero entre seus integrantes.
O problema da representatividade feminina nos órgãos de poder, vale dizer no Congresso Nacional e nos Tribunais Superiores, que em última análise controlam a produção e a aplicação das normas jurídicas em âmbito nacional, está longe de ser conformado à proporcionalidade da população pelo critério de gênero.
Quando se fala em representatividade feminina no Congresso Nacional, constata-se que apenas 17,7% de suas cadeiras são ocupadas por mulheres, não obstante a Lei de Cotas estabelecer uma obrigatoriedade de 30% das vagas serem previstas para as mulheres. O Brasil se encontra na condição incômoda de último colocado quando o assunto é representatividade política do segmento feminino na américa-latina (THOMÉ; GATTO (2023).
Diante desse cenário entende-se por que diversos países latino-americanos possuem consideráveis avanços em matéria de direitos das mulheres. Na temática de interrupção voluntária da gestação países fronteiriços têm promovido uma maior autonomia feminina no que tange a seus direitos reprodutivos e reduzido os níveis de mortandades decorrentes de abortos clandestinos e inseguros.
Fazendo um recorte apenas da América do Sul, países em geral que ainda sofre forte influência das religiões, tem-se que o Uruguai, Guiana e Argentina, este com regulamentação em dezembro de 2020, possuem legislações que permitem o aborto independentemente de qualquer motivo até da 14ª semana de gestação (OTOBONI, 2020). A Bolívia, o Peru, o Equador e a Colômbia, permitem a interrupção voluntário da gravidez quando houver riscos à saúde da gestante. Já o Brasil, o Chile, a Venezuela, e o Paraguai, apenas permitem a interrupção da gravidez quando houver risco de morte a gestante. E, por fim, o Suriname não permite o aborto em qualquer circunstância, nem mesmo quando há risco de morte para a gestante (OTOBONI, 2020). No cenário sul-americano, portanto, tem-se que o Brasil se situa no grupo de países em que a legislação sobre o aborto ainda interfere de forma significativa na autonomia feminina de maneira que sua flexibilização, a exemplo do que já acontece nos países vizinhos, como Argentina e o Uruguai, permitiria não só uma maior autonomia sobre a capacidade reprodutiva da mulher como também resolveria um problema de saúde pública que tem como principais vítimas as mulheres de classes sociais mais vulneráveis social e economicamente. Registre-se ainda que o problema de saúde pública que decorre da clandestinidade e da insegurança na prática abortiva, as pesquisas apontam que no Brasil a cada 02 dias uma mulher morre por aborto inseguro e que se estima 1 milhão de abortos induzidos realizados por ano, tendo como vítimas em sua maioria mulheres negras, menores de 14 anos e moradoras de periferias (OTOBONI, 2020).
Ainda sobre o problema da representatividade que coloca a mulher brasileira numa posição de inferioridade quando comparada às de outros países latino-americanos pesquisas demonstram que a Lei de Cotas do Brasil é pouco eficiente na medida em que não possui a exemplo de outros países vizinhos uma lista fechada, mesmo o sistema proporcional favorecendo um número maior de mulheres eleitas. Faltam ainda instrumentos que garantam a competitividade das candidaturas femininas, como no Chile; ou leis que exijam o cumprimento estrito das regras, a exemplo do México. Na Lei de Cotas brasileira não há regra que preveja a paridade de vagas para as mulheres, como na Argentina, Costa Rica e Bolívia, que definem em suas leis que 50% das candidaturas devem ser de mulheres (THOMÉ; GATTO (2023).
Outro aspecto relacionado à representatividade a considerar é que não bastasse o baixo número de mulheres nas instâncias de poder as que lá se encontram na maioria das vezes apesar de “representarem as mulheres na política” não realizam efetivamente a defesa das bandeiras feministas, o que agrava o problema de representatividade do gênero feminino na política brasileira.
Não bastasse uma legislação ineficiente que não traz instrumentos que viabilize a participação das mulheres de forma efetiva na política brasileira, a cultura patriarcal e machista inibe a participação da mulher no processo eleitoral e a submete a esses padrões que limitam sua autonomia em matérias emancipatórias como o é uma nova regulamentação do aborto. Nesses sentidos são os argumentos de mulheres que defendem a temática no campo do direito como PAULA (2023):
“[...] Isso porque o patriarcado é ainda muito presente na cultura brasileira. O corpo e a sexualidade da mulher são controlados, as próprias mulheres legitimam essa situação a maioria das vezes, em virtude da construção patriarcal, do machismo. Aliado a isso, as religiões cristãs, sejam pela vertente católica ou evangélica, que são as que mais possuem força política e mais seguidores, são machistas, colocam a vida de um feto sempre acima da autonomia da mulher, do seu direito ao próprio corpo. A sociedade é pró-nascimento, mas não é provida”.
2. METODOLOGIA
O presente artigo se relaciona às investigações formuladas no bojo de uma pesquisa em mestrado na área de ciências jurídicas, que se encontra em curso. O tema da pesquisa é ‘intervenção na autonomia feminina: sanções penais decorrentes de práticas abortivas?’. A pesquisa tem como objetivo geral analisar se há fundamento jurídico e filosófico para se extrair a ampliação da autonomia reprodutiva em matéria abortiva do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito fundamental a intimidade e da vida privada. No presente artigo científico as investigações partiram de bases bibliográficas e documentais na medida em que teve como referências livros, artigos científicos, dissertações e teses, além de legislações pertinentes à temática e à própria jurisprudência. Por fim, pode-se dizer que a investigação proposta no presente trabalho acadêmico adotou o método indutivo na medida em que a partir de vulnerabilidades sociais mais acentuadas e constatadas em países em desenvolvimento se buscou fixar os pressupostos para sua superação e estabelecer conexões com demandas feministas de forma a se extrair possíveis soluções para ampliar a autonomia reprodutiva em matéria abortiva.
3. CONCLUSÃO
Acreditamos e optamos por diluir nossas conclusões ao longo do desenvolvimento do texto a fim de que o leitor não perdesse de vista os objetivos da investigação desenvolvida e seus resultados pretendidos.
Há que se colocar de início que a teoria da justiça social de Nancy Fraser contribuiu para aprofundar a problemática da emancipação humana, suas causas e efeitos com desdobramentos sobre problemas específicos sobre grupos identitários, como negros, integrantes da coletividade LGBTQIA+, quilombolas, dentre outros. No que tange às demandas relacionadas ao gênero feminino nos foi evidenciado a partir daquela teoria que demandas emancipatórias voltadas a satisfação de direitos humanos da mulher se relacionam a problemas históricos que só a partir de sociedades com uma base democrático-participativa muito sólida se vislumbra o enfrentamento daqueles paradigmas de discriminação de gênero conforme textos levantados.
O Brasil se situa nos grupos dos países sul-americanos em que se têm uma legislação que ainda interfere de forma muito intensa na autonomia da mulher em matéria de direitos reprodutivos. A regulação do aborto estigmatiza e leva a mulher a clandestinidade vez que se trata de caso de polícia. Considerando a américa-latina como um todo as mulheres brasileiras são as que têm a menor representatividade política quando são a maioria da população do país. Não por acaso temos uma legislação violadora da dignidade da mulher que se encontra atrasada em relação a nossos vizinhos Argentina e Uruguai. Alei de Cotas eleitoral não garante o acesso da mulher aos mandados eletivos quando em comparação com outros países. A quem interessa uma legislação que não promove o acesso das mulheres ao mandato eletivo? Apesar dos esforços que o Judiciário vem empreendendo para criar uma cultura jurídica de igualdade de gênero ainda existe um número muito a quem de magistradas nas instâncias superiores o que dificulta o julgamento das demandas femininas nas Cortes Superiores.
A despeito de Nancy Fraser não hierarquizar seus “remédios” para o combate as injustiças entendemos que no caso brasileiro urge uma maior representatividade do gênero feminino para que se venha à público através das instâncias de Estado discussões como interrupção voluntária da gestação e sua nova regulamentação com vistas a construção de novos valores ao gênero feminino.
REFERÊNCIAS
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BRITTO, Carlos Ayres. Ação direta de inconstitucionalidade 3.510 Distrito Federal – Inteiro teor. STF - Supremo Tribunal Federal, 2008. Disponivel em: <https://redir.stf.jus.br/
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DE PAULA, Lisa Alencar. Direito ao aborto: barreiras da legalização e legitimação do procedimento no Brasil. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/bitstream/ri/22476/3/TCCG%20-%20Direito%20-%20Lisa%20Alencar%20de%20Paula%20-%202023.pdf. Acessado em: 01/07/2023.
DAMIÃO, Nayara André; CARLOTO, Cássia Maria. A contribuição de Nancy Fraser para a construção da emancipação das mulheres: Reflexões sobre o aborto no Brasil. Disponível em: easyplanners.net. Acessado em: 17/06/2023
FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era “pós-socialista”. Tradução: Julio Assis Simão. Cadernos de Campo (São Paulo – 1991), 2006, revista.usp.br. Acessado em 09/06/2023
FACHIN, Melina Girard; OLSEN, Ana Carolina Lopes Olsen. Perspectiva de gênero na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mulheres e Justiça, Revista CNJ edição Agosto2022. Acessado em: 01 nov. 2022
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RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. (Livro eletrônico).
THOMÉ, Débora; GATTO, Malu. Reforma política por mais presença das mulheres. Disponível em: instituto update.org.br acessado em: 02/07/2023
Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Judicial do Tribunal de Justiça de Pernambuco e aluno do curso de Mestrado em Ciências Jurídicas pela Veni Creator University
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, MARCELO DIAS SILVA DE. Desafios à emancipação feminina num contexto de vulnerabilidades sociais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 out 2023, 04:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63389/desafios-emancipao-feminina-num-contexto-de-vulnerabilidades-sociais. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: MARIANA BRITO CASTELO BRANCO
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Por: isabella maria rabelo gontijo
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