RESUMO: O presente estudo tem por objeto a análise do instituto jurídico denominado “Juiz das Garantias”, instituído no ordenamento jurídico pátrio a partir da Lei nº 13.964 de 24 de dezembro de 2019 e em vigor desde 23 de abril de 2020, tanto no que diz respeito à sua concepção, consolidação e efeitos na fase persecutória, quanto no que concerne à sua constitucionalidade e compatibilidade com os tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil faz parte. Nesta abordagem serão não só expostas as normas jurídicas que disciplinam o instituto, como também serão colacionados os principais julgados no assunto, sem prejuízo da citação dos comentários doutrinários que se coadunam na perspectiva constitucional em que caminha o Direito Processual Penal, tudo com a devida abordagem crítica.
PALAVRAS-CHAVE: Juiz de Garantias. Lei nº 13.964/19. Pacote Anticrime. Imparcialidade do juiz. Sistema acusatório. ADI nº 6289. ADI nº 6300. ADI nº 6299. ADI nº 6305.
SUMMARY: The purpose of this study is to analyze the legal institute called “Juiz das Garantias”, instituted in the national legal system as from Law No. 13,964 of December 24, 2019 and in force since April 23, 2020, both with regard to its conception, consolidation and effects in the persecutory phase, as regards its constitutionality and compatibility with the international treaties of which the Federative Republic of Brazil is a party. In this approach, not only the legal norms that discipline the institute will be exposed, but also precedents on the subject will be collected, likewise to the citation of the doctrinal comments that are consistent with the constitutional perspective in which the Criminal Procedural Law goes, all with the appropriate approach criticism.
1. Introdução
O Direito regula as relações sociais. Com efeito, pode-se compreender o Direito como complexo de normas (regras ou princípios) que disciplinam a vida em sociedade. No âmbito processual penal, o Direito tem por objetivo regular o exercício do direito subjetivo atribuído ao Estado-Juiz de punir aquele que comete fato típico, ilícito e culpável, ofendendo bens jurídicos protegidos pelo ordenamento.
Esse exercício de punir é efetivado com limites. Os limites derivam não só dos direitos fundamentais consagrados na CFRB/88 e nos tratados internacionais que o Brasil integra, mas igualmente por regulamentações específicas contidas nos diplomas que regulam os procedimentos e a fase investigativa.
A Lei nº 13.964/19 introduziu a figura do Juiz das Garantias no Direito Processual Penal brasileiro, alterando substancialmente a disciplina jurídica na fase de investigação, instituindo um modelo de juiz responsável pelo controle da legalidade da investigação e pela prática de atos restritivos à liberdade do investigado.
Dessa forma, é inafastável avaliar quais alterações foram consolidadas e qual é o tratamento jurídico que tem sido dispensado a elas pela doutrina e pelos tribunais superiores, a fim de avaliar a conveniência, a constitucionalidade e a convencionalidade do instituto, sem prejuízo de uma abordagem histórica inaugural.
2. Origem do Juiz das garantias
2.1 História, influência principiológica e internacional
Diversos comentários têm sido lançados a respeito da introdução do Juiz das Garantias na disciplina processual penal brasileira. Se por um lado já se sabe que a regulamentação decorreu da Lei nº 13.964/19, denominada pelo Ex-Ministro da Justiça Sérgio Fernando Moro de “Pacote Anticrime” por ocasião de sua concepção, merece aprofundamento a análise a respeito das raízes históricas e notadamente internacionais que culminaram na introdução de um juiz controlador das investigações no Brasil.
Em um período histórico pouco anterior à Revolução Francesa e antes da consolidação de um sistema normativo protetor dos direitos fundamentais de primeira geração na Europa (notadamente a partir do século XIX), era comum haver concentração entre as funções de acusar, defender e julgar. Essa concentração integrava o chamado “sistema inquisitorial” processual.
No Direito Canônico a partir do século XIII, vigorou o sistema inquisitorial. Não havia direito a contraditar a atitude do julgador, tampouco de nomear defensor. Segundo Renato Brasileiro de Lima (2016, p. 46),
“No processo inquisitório, o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa probatória, tendo liberdade para determinar de ofício a colheita de provas, seja no curso das investigações, seja no curso do processo penal, independentemente de sua proposição pela acusação ou pelo acusado. A gestão das provas estava concentrada, assim, nas mãos do juiz, que, a partir da prova do fato e tomando como parâmetro a lei, podia chegar à conclusão que desejasse”.
Diferentemente, o “sistema acusatório”, prevalecente na Antiguidade Grega e Romana, em queda na Idade Média e Moderna e resgatada com o declínio do antigo regime monárquico europeu, é fundado na separação entre as funções de acusar, julgar e defender, sendo também marcas do sistema na realidade atual a oralidade, a concentração das provas e a garantia do contraditório e da ampla defesa.
Pela simples leitura da Constituição Federal de 1988, já se pode concluir que um sistema inquisitivo é incompatível com os direitos e garantidas fundamentais processuais do Direito Objetivo Brasileiro.
Sabidamente, a Constituição Federal de 1988 instituiu uma nova sistemática de abordagem jurídica das relações sociais. Nesse sentido, se num passo não tão remoto o Direito Objetivo era visto como um conjunto de regras destinado essencialmente a garantir a paz social, a moralidade pública e impedir lesões a interesses alheios, a partir da Carta Cidadã a perspectiva predominante é visualizar as normas como instrumentos de garantia, aperfeiçoamento e desenvolvimento de direitos fundamentais. Nesse sentido, a própria ideia de ordem pública é considerada como consequência lógica do direito à segurança.
Essa ideia é dotada de cogência e se extrai de todo o texto constitucional e da legislação posterior ao texto. Ou seja, a Constituição impõe ao legislador infraconstitucional a obrigação de consolidar atos normativos (comando que muitas vezes é feito sob a reserva legal absoluta, excluindo de qualquer outra autoridade, pública ou privada, a competência para proteger por intermédio de ato normativo algum direito consagrado) com o objetivo de garantir direitos fundamentais. Pode-se dizer que esse é o “espírito das leis” na realidade atual.
E é com essa mentalidade que foram sendo inauguradas diversas reformas no Código de Processo Penal. Cite-se, por exemplo, a Lei nº 11.719 de 20 de junho de 2008 que, conferido maior segurança jurídica na instauração da ação penal, incluiu os incisos I a IV no art. 397 do referido diploma adjetivo, possibilitando a absolvição sumária, ou seja, independentemente de instrução, dos réus, desde que presentes causas que fulminam a existência do crime ou a possibilidade de sua punição.
No âmbito da legislação extravagante, a Lei nº 9.096/95 foi promulgada para promover maior celeridade nos procedimentos judiciais de menor potencial ofensivo e garantir o acesso da vítima a institutos reparadores (vide a autocomposição civil dos danos e a transação penal), efetivando seu direito à restauração do dano sofrido (art 5º, V, parte final da CFRB/88).
O Juiz das Garantias, visando garantir a imparcialidade do juiz, afinal separa as figuras do juiz que atua controlando a fase investigativa (com íntima relação com os elementos investigativos) daquele que profere sentença, introduziu no sistema processual um magistrado com funções de zelar pela legalidade das investigações, deferir medidas cautelares e aflitivas e preparar o processo para o exercício da Ação Penal.
Fabiano Augusto Martins Silveira discorre sobre a imparcialidade nos seguintes termos
“É fácil acompanhar o raciocínio. Não tendo emitido juízo sobre a oportunidade e conveniência de diligências que invadem direitos fundamentais do investigado, tampouco sobre pedidos cautelares, o magistrado entre no processo sem o peso de ter decidido a favor ou contra uma das partes. Não leva consigo o passivo da fase pré-processual. Não tem compromisso pessoal com o que se passou. Não colaborou na identificação das fontes de prova. Não manteve o flagrante nem decretou a preventiva.”
A Constituição Federal preleciona que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (art. 5º, LIII). Esse comando é denominado “princípio do juiz natural”, que ordena que a todo aquele a quem for imputado um ilícito cível ou penal seja assegurado um julgamento por um juiz competente, segundo o ordenamento jurídico já vigente. Destaca-se que parte da doutrina considera o princípio do juiz natural como implícito.
Decorre também do princípio do juiz natural a necessidade de haver um juiz imparcial. Ora, não basta haver um juiz competente. É imperioso que ele não tenha qualquer vínculo subjetivo com o crime em apuração.
Como influências internacionais do projeto, destaca-se o “juge des libertés et de la détention”, criado pela lei de 15 de junho de 2000 da República Francesa. Nesse Estado europeu, o juiz possui competências relacionadas à prisão preventiva e controle de sua legalidade (détention provisoire) e autoriza procedimentos invasivos cuja autorização está submetida à reserva jurisdicional, como escutas telefônicas (écoutes téléphoniques) e perseguições (perquisitions nocturnes).
Na Alemanha, o juiz de garantias surgiu na década de 1970. O “Ermittlungsrichter” tem competência para determinar busca e apreensão e interceptação telefônica, além de prisões.
No Brasil, é nítida a influência de tais diplomas. Com efeito, a redação nova do Art. 3º-A e do caput do art. 3º-B do Código de Processo Penal tem a seguinte estrutura:
“Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: (...)”.
Portanto, nota-se que o Juiz de Garantias não é um instituto absolutamente novo, sendo necessário traçar comentários acerca das especificidades desse projeto no Brasil.
2.2 Trâmite legislativo
Em relação ao trâmite legislativo alguns pontos marcantes se destacam.
Primeiramente, ressalta-se que a iniciativa do projeto de Lei nº 882/2019, mais tarde com ingresso no mundo jurídico sob o nº 13.964/19, foi de iniciativa do Poder Executivo, o então presidente Jair Messias Bolsonaro.
Embora seu conteúdo não trate de matéria a que a lei reserva a iniciativa como privativa do Poder Executivo (art. 61, §1º da CRFB/88), em se tratando de um projeto que envolve Direito Penal e Direito Processual Penal, não poderia o Presidente editar medida provisória (art. 62, §1º, I, “b” da CRFB/88), restando a iniciativa de lei (no caso, ordinária) o único instrumento constitucionalmente adequado.
Ocorre que o projeto inicial não integrava em seu bojo a instituição do juiz das garantias. Isso porque derivou de um plano legislativo idealizado pelo Ex-Ministro da Justiça Sérgio Moro com a finalidade de reduzir índices de corrupção e crimes praticados por organizações criminosas; assim, o projeto inicial era essencialmente vocacionado a tratar de organizações criminosas (Lei nº 13.850/13), captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos e acústicos (Lei nº 9296/96) e critérios e requisitos diferenciados para a progressão de regime (Lei nº 7.210/84), dentre outras alterações. Diante dessas concepções, não é distante imaginar que o rascunho da lei não circundava em torno de garantias relacionadas aos investigados.
Importante ressaltar que, além das propostas de Moro, o projeto também apresentava em seu texto diversas sugestões derivadas da Comissão de Juristas instalada pelo presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (Democratas, Rio de Janeiro) em 17 de outubro de 2017. Participaram da comissão, dentre outros, o residente do Conselho de Política Criminal e Penitenciária, desembargador Cesar Mecchi Morales; o procurador-geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Gianpaolo Poggio Smanio; o subprocurador-geral da República, José Bonifacio Borges de Andrada. O texto final foi entregue pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Morais aos presidentes da Câmara dos Deputados e Senado Federal em 08 de maio de 2018, sendo transformado no Projeto de Lei nº 10.372/18.
Ocorre que em nenhuma das sugestões havia a inclusão do Juiz das Garantias.
De fato, o ministro Sérgio Moro, em pronunciamento à mídia em geral, questionou o Juiz de Garantias. Em rede social, duvidou do projeto em 28 de dezembro de 2019 nos seguintes termos:
“Leio na lei de criação do juiz de garantias que nas comarcas com um juiz apenas (40% do total) será feito um ‘rodízio de magistrados’ para resolver a necessidade de outro juiz. Para mim, é um mistério o que esse ‘rodízio’ significa. Tenho dúvidas se alguém sabe a resposta”.
Para parcela da sociedade política e jurídica, o suposto desgosto de Sérgio Moro com o projeto advinha justamente do medo de se implantar um sistema de imparcialidade. Essa mesma parcela criticava o idealizador do projeto Moro por quebra de imparcialidade em alguns procedimentos na Operação Lava Jato, quando notoriamente o então ministro participou como Juiz Federal.
Nos Autos do Habeas Corpus nº 163.943/PR, por exemplo, o Ministro Ricardo Levandowski criticou o Juiz Federal por determinar o levantamento do sigilo dos depoimentos prestados por Antônio Palocci às vésperas das eleições presidenciais de 2018, cuja concorrência envolvia Jair Bolsonaro (que veio a nomeá-lo Ministro de Justiça) e Luiz Inácio Lula da Silva (condenado por Sérgio Moro na Ação Penal nº 5046512-94.2016.4.04.7000/PR). Foram suas palavras:
“Às vésperas do 1º turno da eleição presidencial, ocorrido em 7 de outubro de 2018, e após o encerramento da instrução processual nos autos da Ação Penal 5063130-17.2016.4.04.7000/PR, o então juiz federal Sérgio Moro proferiu decisão, determinando, de ofício, o levantamento do sigilo e o translado de parte dos depoimentos prestados por Antônio Palocci Filho, em acordo de colaboração premiada, para os autos da referida ação penal”.
Conrado Gontijo, doutor em direito penal pela Universidade de São Paulo, em entrevista à revista Veja, em 2018, salientou que “As conversas vazadas consolidam a suspeita de que o Ministério Público e o juiz atuavam em comunhão, como se fossem uma única pessoa”.
Assim, o instituto, de fato sem a participação de Sérgio Moro, foi incluído no processo legislativo por uma emenda de iniciativa do Deputado Federal do Partido Socialismo e Liberdade (Rio de Janeiro) Marcelo Freixo. Com a emenda, o projeto foi aprovado por 408 deputados em 04 de dezembro de 2019, sendo encaminhado ao Senado Federal em obediência ao comando constitucional estampado no artigo 65 da Carta Magna.
Em rede social (twitter), Marcelo Freixo, em 25 de dezembro de 2019, comentou inclusive que
“O juiz de garantias será responsável por acompanhar todo o andamento do processo, mas não pelo julgamento. Trata-se de um aprimoramento da Justiça, por fortalecer a imparcialidade e proteger os direitos dos cidadãos contra abusos, como os praticados pelo ex-juiz Moro”.
Em seguida à aprovação no Senado Federal em 11 de dezembro de 2019, foi à sanção do Presidente Jair Bolsonaro.
Não obstante tenha havido alguns dispositivos vetados (e alguns dispositivos cujo veto foi superado pelo Congresso Nacional), no tocante ao Juiz de Garantias, sofreu veto de Jair Bolsonaro apenas o incluso art. 3º-B, §1º do CPP, que prelecionava a obrigatoriedade da realização de audiência de custódia após prisão em flagrante ou por prisão provisória, vedando-se o emprego de videoconferência. O veto, superado pelo Congresso Nacional, fundamentou-se no fato da parte final do parágrafo em questão dificultar a celeridade processual.
3. Atribuições e estrutura
3.1 Introdução
O Juiz de garantias está previsto do Código de Processo Penal entre os artigos 3º-A e 3º-F. Ou seja, situado no Título I (disposições preliminares) do Livro I (do processo em geral). Para uma exposição sem deficiências analíticas, cumpre separar as referidas atribuições de maneira organizada.
É certo que o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário (Art. 3º-B do CPP), dentre outras atribuições (inciso XVIII).
Como limitação à sua atribuição, o código prevê duas espécies. A primeira é de natureza temporal: cessa com o oferecimento (e não recebimento, conforme será visto adiante) da denúncia ou queixa, a partir do qual terá início a fase instrutória A segunda é de natureza material: não abrange as infrações penais de menor potencial ofensivo e, segundo entendimento do STF, os procedimentos da Lei nº 11.340/06 (violência doméstica e familiar contra a mulher) e da Lei nº 8.038/90 (ações penais originárias dos tribunais), bem como os procedimentos de crimes dolosos contra a vida, submetidos ao Tribunal do Júri.
3.2 Atribuições decisórias
Dentre suas atribuições distribuídas pelos diversos incisos do art. 3º-B, cinco deles (V, VII, XI, XIV e XVII) preveem a competência decisória do Juiz em relação a algumas matérias da persecução penal. Isso não significa que as demais atribuições sejam efetivadas por mero despacho (despido da necessidade de fundamentação). Essa separação é efetuada para fins organizacionais e está relacionada meramente com o fato de o legislador ter utilizado o verbo “decidir” no momento de prever a competência.
O inciso V estabelece o poder de decidir sobre o requerimento de prisão provisória, ou outras cautelares.
No Título IX (da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória) do Livro I do CPP, título esse que recebeu nova configuração após a Lei nº 12.403/11, há a previsão das diversas medidas cautelares que podem ser aplicadas ao réu (ou investigado) no curso da persecução penal (dentre elas, a prisão), desde que estejam presentes o periculum in mora (ou periculum in libertatis, no caso da prisão) e o fumus comissi delicti, ou seja, o perigo de risco a outros bens jurídicos da sociedade em razão do estado de liberdade do acusado e a aparência do cometimento do delito (conforme ensinamento de parcela da doutrina, a certeza da materialidade e o indício de autoria).
Nesse sentido, além das diversas cautelares elencadas no art. 319, o juiz de garantias pode determinar a prisão provisória (preventiva, se presentes os requisitos do art. 313 e 312, e temporária, se presentes os requisitos dos incisos I e III ou II e III do art. 1º da Lei nº 7.960/89). Como consectário lógico, o juiz também poderá prorrogar essas medidas (inciso VI), desde que, no caso de prisão preventiva assegure o contraditório em audiência pública e oral.
Imperioso ressaltar que esse inciso está em consonância com o art. 5º, LVII da CFRB/88, que estabelece a presunção de inocência, afinal aqui está sendo tratada a cautelar fundamentada no perigo de demora, e não na culpa do acusado, não havendo falar em antecipação de pena. Está também em consonância com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nas Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade de nº 43, 44 e 54, que decidiu pela inconstitucionalidade da prisão como pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, pois, repita-se, não se trata de antecipação de pena, mas de proteção de bens jurídicos extra-individuais contra perigo gerado pelo estado de liberdade do acusado.
Observa-se que não pode haver decretação de prisão preventiva de ofício (ne procedat iudex ex officio), pois a própria Lei nº 13.964/19 alterou o CPP para dar nova redação ao art. 311 e conferir ao Ministério Público, querelante ou assistente, ou ainda a autoridade policial, a legitimidade para requerer a prisão. Em suma, o juiz não pode prender sem provocação.
Decide também o juiz das liberdades sobre o requerimento de produção antecipada de provas.
A produção antecipada de provas é cabível quando, no decorrer da investigação ou antes do momento da instrução processual, há sério risco de perecimento da prova que se busca.
O art. 225, parte final, prevê a tomada antecipada de depoimento testemunhal.
“Art. 225. Se qualquer testemunha houver de ausentar-se, ou, por enfermidade ou por velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, tomar-lhe antecipadamente o depoimento.”
Esse artigo merece ser compatibilizado com a nova sistemática trazida pelo Juiz das Garantias. Na hipótese de depoimento testemunhal, o Juiz das Garantias deve aguardar a iniciativa do órgão acusatório, afinal é vedada “a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.”
A produção antecipada de provas aqui tratada não tem relação com aquela do art. 366 do CPP, que ocorre quando o réu não é encontrado para ser citado e o juiz, para evitar o perecimento do direito, determina a produção antecipada de provas (Vide Súmula nº 455 do STJ). Isso porque a competência do juiz das garantias cessa com o oferecimento da denúncia ou queixa (art. 3º-C do CPP, conforme interpretação dada pelo STF), não sendo atribuído a ele poderes para determinar a citação por quaisquer das modalidades previstas no CPP.
No inciso XI o legislador conferiu ao juiz da investigação o poder de decidir sobre medidas investigatórias invasivas, delicadas, aflitivas, conforme se extrai:
“XI - decidir sobre os requerimentos de:
a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação;
b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico;
c) busca e apreensão domiciliar;
d) acesso a informações sigilosas;
e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado”.
Nesse sentido, qualquer meio de prova que restrinja em demasia direitos fundamentais do investigado (privacidade, intimidade, segurança, direito de reunião, etc) deve ser chancelado pelo Juiz das Garantias.
Já o inciso XIV do artigo em tela estabelece que o juiz de garantias receberá ou não a denúncia ou queixa, enviando o processo ao juiz de instrução com a decisão do art. 395 já preclusa. Evidentemente que a denúncia deve estar instruída com justa causa suficiente para o exercício da ação penal. Porém, o STF na ADI 6305 estabeleceu que a competência do juiz de garantias cessa com o oferecimento da denúncia ou queixa, consoante será comentado, de forma que este artigo foi declarado inconstitucional.
O último inciso sobre atribuições decisórias é o XVII. Nele, o juiz das garantias homologa ou não o acordo de não persecução penal ou colaboração premiada, o primeiro como um instituto que encerra a persecução penal com base em um acordo entre a acusação e a defesa (art. 28-A do CPP, e o segundo como técnica especial de obtenção de prova regulada pelos arts. 3ª-A a 7ª da Lei nº 12.850/13).
3.3 Informação sobre instauração de inquérito, prorrogação e trancamento
É clássica a lição segundo o qual o inquérito policial tem como uma de suas características a temporalidade. Como instrumento destinado a apurar a infração penal, nasce com a instauração e morre, via de regra, com o relatório final ou o arquivamento.
O juiz das garantias deve ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal (não só o Inquérito Policial, mas também as investigações promovidas por comissões parlamentares de inquérito e, com a Lei nº 13.432/17, as investigações instauradas por detetive particular).
Quanto ao término, o art. 10 do Código de Processo Penal prevê que o inquérito deve terminar em 10 dias, se o indiciado estiver preso, e 30 dias, se solto. Não havendo dispositivo no referido artigo sobre a prorrogação do prazo, a lição doutrinária anterior à Lei nº 13964/19 era de que o inquérito era improrrogável (na Lei nº 10.343/06, a Lei de Tóxicos, poderia haver prorrogação por mais 30 dias, dispositivo aplicável somente aos crimes previstos na referida lei extravagante).
A sistemática mudou. A lei prevê que o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada (inciso VIII e §2º).
Porém, o STF, no julgamento da ADI 6305, decidiu que:
“a) o juiz pode decidir de forma fundamentada, reconhecendo a necessidade de novas prorrogações do inquérito, diante de elementos concretos e da complexidade da investigação; e b) a inobservância do prazo previsto em lei não implica a revogação automática da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a avaliar os motivos que a ensejaram, nos termos da ADI nº 6.581”.
O enunciado não contraria a Resolução nº 063/2009 do Conselho da Justiça Federal que determina a tramitação direta do inquérito policial entre o Ministério Público Federal e os órgãos investigativos, pois o parágrafo em análise trata somente das situações em que o investigado se encontra preso.
Mas há também a possibilidade do inquérito ser “trancado” antes do prazo. Isso ocorrerá, segundo lição doutrinária, quanto faltar algum pressuposto para o exercício da ação penal. Na prática, a hipótese mais comum de trancamento do inquérito policial é aquela que ocorre por intermédio de um habeas corpus em que se busca o encerramento da investigação por ausência de justa causa (art. 648, I do CPP). Nesse sentido, o competente para determinar o trancamento é justamente o juiz de garantias (inciso IX).
Não por outra razão, todo habeas corpus impetrado antes do recebimento da denúncia deve ser julgado pelo juiz de garantias (inciso XII).
3.4 Recebimento da comunicação da prisão em flagrante e observância dos direitos do preso
O juiz das garantias é competente para receber imediatamente a comunicação da prisão em flagrante e o auto de prisão em flagrante (inciso I). O objetivo é assegurar a legalidade da prisão (ainda inciso I) e a observância dos direitos do preso (I).
O art. 306 do CPP já estabelecia desde 2011 que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão imediatamente comunicados ao juiz competente. Pela Lei nº 13.964/19, esse juiz deve ser justamente o das garantias.
O controle de legalidade é feito em diversos sentidos. Primeiro, deve ser observado se o indivíduo se encontrava em algumas das situações previstas no art. 302 do CPP. Segundo, deve ser verificado se foi assegurado ao réu de não produzir provas contra si mesmo (nemo tenetur se detegere). Por último, deve ser observado se foram respeitados demais direitos do preso, como o respeito à integridade física e moral (art. 5º, XLIX da CFRB/88), o conhecimento dos responsáveis pela prisão (art. 5º, LXIV da CFRB) e o direito ao silêncio (art. 5º, LXIII).
Um outro direito imprescindível à dignidade e ao contraditório é a prerrogativa conferida ao advogado de examinar em qualquer repartição responsável por investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e investigações (art. 7º, XIV da Lei nº 8.906/94). Idêntica prerrogativa é conferida aos defensores públicos (art. 44, VIII da Lei Complementar nº 80/1994).
Para enrijecer a força normativa do dispositivo, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula nº 14 nos seguintes moldes:
“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”
Assim, caso seja necessário que se assegure prontamente esse direito, o Juiz das Garantias tem atribuição para determinar o seu cumprimento (inciso XV), não somente em relação aos presos, mas quanto a todos os investigados.
Por fim, mencione-se que este artigo foi declarado constitucional pelo STF, conforme será visto.
3.5 Fiscalização da investigação
O inciso X cria um poder fiscalizatório ao Juiz das Garantias, afinal poderá ele requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação. Evidentemente que essa requisição tem a finalidade de verificar a observância da legalidade da investigação.
3.6 Admissão de assistente técnico
Por último, salienta-se que é o juiz das garantias quem defere pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia (inciso XVI). Nota-se que a lei fala em acompanhar a produção da prova pericial, ou seja, não se trata apenas de atuar após a conclusão dos exames (art. 159, §4º do CPP), mas de acompanhar toda a parte da produção da prova, desde o reconhecimento e o isolamento até o descarte (art. 158-B do CPP)
4. Inconstitucionalidade do Juiz das Garantias
A respeito da inconstitucionalidade do Juiz de Garantias, há divergências doutrinárias. No plano jurisprudencial, já há julgamento definitivo do STF.
No aspecto doutrinário, segundo parcela da doutrina (inclusive a Associação dos Magistrados do Brasil e a Associação dos Juízes Federais), a iniciativa de lei sobre tais institutos é privativa dos tribunais (art. 96, II, “d”). Também argumenta parte da doutrina no sentido de violação ao princípio do juiz natural, pois cria a figura de dois magistrados no julgamento em primeira instância. Há vozes no sentido de que não devia ser aplicada nos procedimentos de violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei nº 10.340/06), conforme já citado, tampouco nas ações penais originárias dos tribunais (regulamentado pela Lei nº 8.038/90).
No controle concentrado, foram ajuizadas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade de nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6305.
A ADI nº 6.298, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), atacou os artigos 3°-A a 3°-F do CPP, ou seja, a totalidade da previsão do juiz das garantias.
A ADI nº 6.300 foi ajuizada pelo Diretório Nacional do Partido Social Liberal (PSL). Impugnou os mesmos dispositivos.
A ADI nº 6.299, desta vez formulada pelos partidos políticos PODEMOS e CIDADANIA, investiu contra os mesmos dispositivos supracitados e acrescentou na impugnação o artigo 157, §5°, do Código de Processo Penal.
A ADI nº 6.305 foi formulada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público - CONAMP, impugnou os artigos 3º-A; 3ºB, incisos IV, VIII, IX, X e XI; 3º-D, parágrafo único; 28, caput; 28-A, incisos III e IV, e §§ 5º, 7º e 8º; e 310, §4º, do Código de Processo Penal.
Em 22 de janeiro de 2020 e no bojo da Ação de nº 6.299, ajuizada pelo Partido Trabalhista Nacional, entre outros, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux suspendeu a eficácia dos arts. 3ª-A a 3ª-F do CPP sob o fundamento de causar impacto orçamentário profundo e tratar de organização e divisão judiciária. São as palavras do ministro:
“O juiz das garantias, embora formalmente concebido pela lei como norma processual geral, altera materialmente a divisão e a organização de serviços judiciários em nível tal que enseja completa reorganização da justiça criminal do país, de sorte que inafastável considerar que os artigos 3º-A a 3º-F consistem preponderantemente em normas de organização judiciária, sobre as quais o Poder Judiciário tem iniciativa legislativa própria (Art. 96 da Constituição)
O juízo das garantias e sua implementação causam impacto financeiro relevante ao Poder Judiciário, especialmente com as necessárias reestruturações e redistribuições de recursos humanos e materiais, bem como com o incremento dos sistemas processuais e das soluções de tecnologia da informação correlatas.”
Além de tais argumentos, questiona-se também nas referidas Ações Diretas a inconstitucionalidade formal orgânica por tratar de procedimentos processuais, invadindo a competência legislativa concorrente dos Estados e Distrito Federal (art. 24, XI e §1º da CFRB/88); a inconstitucionalidade material por ofensiva ao princípio da duração razoável do processo (art. 5°, LXXVIII); e a inconstitucionalidade material por Inconstitucionalidade material em razão da ausência de prévia dotação orçamentária para a implementação das alterações organizacionais acarretadas pela lei, nos termos do artigo 169, §1°.
Para Lênio Luiz Streck, o Juiz das Garantias é imposição lógica de um sistema acusatório. Citando o §2º do art. 5º da CFRB/88, argumenta que:
“É sabido que a Constituição institucionalizou o sistema acusatório. Mais: no plano da convencionalidade e dos tratados, o juiz das garantias é uma realidade. Uma imposição de democracia. Logo, basta um raciocínio lógico: a um, em que o juiz das garantias contraria algum dispositivo constitucional? A dois, não seria o parágrafo em questão o receptáculo perfeito para uma garantia como essa? Aliás, interessante o fato de o Ministério Público ser contra o juiz das garantias, se este implementa o sistema acusatório e se é exatamente o sistema acusatório que sustenta as garantias que foram dadas a ele — MP —, semelhantes ao da magistratura? Estaria o MP indo contra si mesmo, sem saber? Até por sobrevivência institucional, o MP deveria ser o primeiro a defender o juiz das garantias.”
Na visão de Vládia Maria de Moura Soares e Marcos Faleiros da Silva,
“O teor da Lei nº 13.964/19, na sua essência, apenas reafirma de direitos fundamentais, não havendo qualquer inconstitucionalidade por vício de iniciativa, ao contrário do que defende a Associação dos Magistrados Brasileiros. Juiz de Garantias refere se ao direito das pessoas de serem julgadas por um órgão imparcial dentro do devido processo legal, direito previsto na Constituição e Tratados Internacionais, não sendo mera norma de organização judiciária, como tem se argumentado. Normas de direitos fundamentais podem ter iniciativa no Poder Legislativo”.
Segundo Vamário Soares Wanderley de Souza,
“Aliás, sobre o viés da imparcialidade do julgador na resposta da tutela jurisdicional, fato é que a implementação do juiz das garantias visa justamente resolver o problema da contaminação do magistrado na fase investigativa, trazendo assim um processo penal mais imparcial, com observância a diversos princípios constitucionais, tais como o juiz natural e a paridade das armas”.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIs mencionadas, em julgamento realizado no dia 24 de agosto de 2023, proferiu decisão definitiva sobre a constitucionalidade em parte do juiz de garantias, atribuindo interpretação conforme a constituição em diversos dispositivos. Neste sentido, os comentários sobre o dispositivo serão divididos em partes.
Primeiramente, restringiu a sua aplicação e sedimentou que o instituto não se aplica aos processos de competência originária dos tribunais, aos processos de competência do tribunal do júri; aos casos de violência doméstica e familiar e às infrações penais de menor potencial ofensivo.
Em seguida, foi atribuída interpretação conforme ao art. 3º-A do CPP, incluído pela Lei nº 13.964/2019, para concluir que “o juiz, pontualmente, nos limites legalmente autorizados, pode determinar a realização de diligências suplementares, para o fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento do mérito”. Ou seja, entendeu o tribunal que a realização de diligências suplementares para suprir dúvida não ofende o sistema acusatório, pois não implica em tendência do juiz em julgar contra ou a favor do acusado.
Em complemento, o STF fixou o prazo de 12 meses, a contar da publicação da ata do julgamento, para que sejam adotadas todas as medidas, sejam administrativas ou legislativas, para a implantação e efetivo funcionamento do juiz de garantias em todo o território nacional, não se excluindo nenhuma área. Concedeu que o prazo poderia ser prorrogado por mais 12 meses, em caso de fundada justificativa apresentada em procedimento realizado junto ao Conselho Nacional de Justiça. Por consequência ou arrastamento, o prazo de 30 dias para a implementação do art. 20 da Lei nº 13.964/19 foi declarado inconstitucional.
Esta última discussão era um dos pontos mais abordados pelos magistrados e desembargadores, que viam com temor caso a implementação fosse determinada de imediato. De fato, embora a imparcialidade seja um direito fundamental de aplicabilidade imediata, a existência de uma lei orçamentária anual impede a realização de investimentos de grande monta em determinado ano; daí a fixação do prazo anual.
No tocante ao arquivamento do inquérito policial ou de procedimentos investigativos sem a anuência ou controle judicial, o STF adotou uma postura mais conservadora e cautelosa. Neste sentido, decidiu por:
“atribuir interpretação conforme aos incisos IV, VIII e IX do art. 3º-B do CPP, incluídos pela Lei nº 13.964/2019, para que todos os atos praticados pelo Ministério Público como condutor de investigação penal se submetam ao controle judicial (HC 89.837/DF, Rel. Min. Celso de Mello) e fixar o prazo de até 90 (noventa) dias, contados da publicação da ata do julgamento, para os representantes do Ministério Público encaminharem, sob pena de nulidade, todos os PIC e outros procedimentos de investigação criminal, mesmo que tenham outra denominação, ao respectivo juiz natural, independentemente de o juiz das garantias já ter sido implementado na respectiva jurisdição”. (Grifo no texto original).
Com relação à obrigatoriedade de que o acusado seja submetido à presença de um juiz no caso de prorrogação de medida cautelares penais, bem como a impossibilidade de realização por videoconferência, o STF atribui interpretação conforme e estabeleceu que, neste caso, o exercício será feito preferencialmente em audiência pública oral. O argumento principal é justamente a dificuldade de alguns estados federativos em se estruturar em áreas remotas, de modo que a previsão poderia engessar a atividade judiciária.
Pelo mesmo motivo, no caso de produção antecipada de provas, não prevaleceu o dispositivo legal que estabeleceu obrigatoriamente de que, previamente à decisão, haveria contraditório em audiência pública e oral (art. 3º-B, VI). Neste caso, “o juiz pode deixar de realizar a audiência quando houver risco para o processo, ou diferi-la em caso de necessidade”. Esse risco pode ser evidenciado, por exemplo, nos casos em que o grave estado de uma testemunha impede a postergação do ato.
Ainda em idêntico sentido, no ponto “8”, o STF permitiu o emprego de videoconferência nas audiências de custódia “mediante decisão da autoridade judiciária competente, desde que este meio seja apto à verificação da integridade do preso e à garantia de todos os seus direitos”
As críticas mais contundentes a este entendimento afirmam que, com este entendimento, houve uma desidratação quase que completa do instituto; a lógica de haver um juiz da instrução era que a denúncia não viesse acompanhada dos autos de inquérito e que todo o contato com a fase investigativa estivesse longe do juiz da instrução e julgamento.
Essa posição é acertada. Mais correto seria que o inquérito ficasse acautelado no cartório onde atua o juiz de garantias, conforme expressamente consta na redação legal, e que o recebimento da denúncia fosse realizado por este juiz.
Ao admitir o contato com a investigação, ficará o juiz da instrução “contaminado” pelos elementos de informação colhidos, com suas linhas investigatórias, que era justamente o que a nova lei pretendia repelir.
Uma outra crítica merece ser realizada à própria legitimidade do STF, sob o aspecto da teoria da separação dos poderes, em realizar essa devida alteração semântica. Evidentemente que é conhecido o entendimento de que o STF pode declarar inconstitucional apenas uma palavra de uma norma. Porém, neste caso a utilização de interpretação conforme e de outras técnicas de sentenças manipulativas acabaram por desnaturar a lei e a transformar em outra inteiramente distinta; ou seja, há um “contrabando judiciário” do próprio sentido da lei, em que a norma é transformada em outra distinta pela utilização de sentenças manipulativas.
A respeito do prazo de duração do inquérito policial, previsto no art. 3º, §2º do CPP, decidiu que o juiz pode deferir novas prorrogações do inquérito diante da complexidade da investigação; complementou que “a inobservância do prazo previsto em lei não implica a revogação automática da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a avaliar os motivos que a ensejaram”.
Decidiu o STF restringir a hipótese de impedimento prevista no art. 3º-D, declarando este artigo integralmente inconstitucional. Quando ao caput, sob o fundamento de que a prática de um ato na fase de investigação não afeta a imparcialidade do juiz; quanto ao parágrafo único, há inconstitucionalidade formal por violação à iniciativa privativa do STF para propor normas sobre organização judiciária.
Pelo mesmo motivo, o juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível poderá proferir a sentença ou acórdão, pois este conhecimento não ofenda automaticamente sua imparcialidade. Por isso, foi declarado inconstitucional o § 5º do art. 157 do CPP.
Foi declarada a constitucionalidade do caput do art. 3º-F do CPP, prevalecendo o argumento de que assegurar a intimidade e a honra do preso se inclui entre as atribuições do juiz. Neste sentido, decidiu por
“atribuir interpretação conforme ao parágrafo único do art. 3º-F do CPP, incluído pela Lei nº 13.964/2019, para assentar que a divulgação de informações sobre a realização da prisão e a identidade do preso pelas autoridades policiais, ministério público e magistratura deve assegurar a efetividade da persecução penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa submetida à prisão”.
A discussão sobre se o juiz teria ou não competência para discordar do arquivamento do inquérito policial ganhou os seguintes contornos, pois o STF decidiu:
“atribuir interpretação conforme ao caput do art. 28 do CPP, alterado pela Lei nº 13.964/2019, para assentar que, ao se manifestar pelo arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público submeterá sua manifestação ao juiz competente e comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial, podendo encaminhar os autos para o Procurador-Geral ou para a instância de revisão ministerial, quando houver, para fins de homologação, na forma da lei, vencido, em parte, o Ministro Alexandre de Moraes, que incluía a revisão automática em outras hipóteses”.
Ou seja, prevaleceu o argumento de que o sistema acusatório não confere ao Ministério Público a prerrogativa de arquivar o inquérito policial sem o controle judicial. Neste caso, também a autoridade judicial poderá remeter os autos à instância de revisão ministerial, mas apenas caso “verifique patente ilegalidade ou teratologia no ato do arquivamento”.
Em seguida, não prevaleceram os argumentos de que a previsão, como condição do ANPP, de prestação de serviços à comunidade ou pagamento de prestação pecuniário violava o devido processo legal e configurava imposição de pena antecipada, pois neste caso trata-se de acordo para cumprimento de medidas alternativas, que o acusado poderá recusar. Também não prevaleceu o argumento de que o juiz não poderia devolver os autos ao Ministério Público para reformulação do acordo (pretensa ofensa ao sistema acusatório). Assim, declarou a constitucionalidade dos arts. 28-A, caput, incisos III, IV e §§ 5º, 7º e 8º do CPP.
Por fim, assentou a seguinte regra de transição: quanto às ações penais já instauradas no momento da efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais, a eficácia da lei não acarretará qualquer modificação do juízo competente. A contrário senso, haverá alteração em relação aos inquéritos em curso no momento da implementação.
Pelo visto, o julgado teve por objetivo conceder aos tribunais tempo para a implementação das infraestruturas necessárias para a consolidação do juiz de garantias, bem como frear determinada interpretação de garantias judiciais do investigado que pudessem causar embaraço à atividade judiciária (tal como a obrigatoriedade de audiência no caso de prorrogação de prisão provisória).
Repita-se, por fim, que a crítica mais contundente ao julgado é justamente a permissão para que o juiz de instrução acesse os autos de competência do juiz de garantias, que, na visão da doutrina, era a maior consolidação do princípio da imparcialidade já prevista no ordenamento brasileiro.
4. Conclusão
O Juiz das Garantias trouxe fundamentais alterações na disciplina infraconstitucional da imparcialidade e do controle da investigação, inserindo dispositivos do Código de Processo Penal que engrandeceram a complexidade do direito adjetivo codificado e possibilitou discussões acerca da sua eficácia, constitucionalidade e forma de aplicação.
Dessa forma, resta inferir que o fenômeno jurídico em comento tem influências internacionais e históricas, foi incluído no Brasil por intermédio de uma emenda a um projeto que tinha por objetivo essencialmente alterar dispositivos sobre a investigação de organizações criminosas, teve sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal, situação na qual se declarou parcialmente constitucional o instituto, e ainda gera intensos debates sobre os novos rumos da interpretação constitucional do processo penal.
Para o futuro, o que se vê é um fortalecimento do sistema acusatório, mas um fortalecimento longe do ideal, considerando que o principal dispositivo (exclusão física do inquérito e impossibilidade de acesso pelo juiz da instrução) foi declarado inconstitucional. Porém, a análise desse fortalecimento ainda exigirá o estudo de como o instituto será regulamentado pelos tribunais, que poderão tanto envidar esforços para a consolidação da garantia, quanto criar entraves estruturais para a flexibilização do direito, a depender de qual será a vontade política.
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Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Assessor de juiz. Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTANA, David Ferreira. Juiz de garantias no ordenamento jurídico brasileiro: previsão legal, especificidades e constitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 out 2023, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63431/juiz-de-garantias-no-ordenamento-jurdico-brasileiro-previso-legal-especificidades-e-constitucionalidade. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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