RESUMO: A pessoa com deficiência é presumidamente capaz, somente podendo ter sua incapacidade reconhecida de forma parcial. Ainda assim, é vedado pelo Estatuto da Deficiência, em qualquer hipótese, que o decreto de incapacidade alcance aqueles direitos ditos como existenciais, como de casar-se. Essa vedação, contudo, cria um problema, que será objeto de exame ao longo do presente trabalho, que decorre do fato de que, em certas situações, a pessoa com deficiência não possui discernimento suficiente para praticar atos relacionados a tais direitos, de modo que a proteção criada pelo legislador pode se reverter em desfavor daquele que se pretendia proteger, criando uma janela de desproteção em seu prejuízo.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Civil – Estatuto da Pessoa dom Deficiência – Capacidade – Incapacidade – Discernimento – Salvaguarda – Desproteção.
1.INTRODUÇÃO
O propósito desse trabalho é analisar o regime jurídico aplicável à absoluta incapacidade após o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Mas, antes de iniciar qualquer exposição sobre a incapacidade civil, é necessário, a título de introdução, dedicar breves notas para definição da capacidade civil no ordenamento jurídico brasileiro, pois, embora não se trate do objeto desse trabalho, compreender a capacidade civil é indispensável para compreender no que consiste a incapacidade civil (essa sim objeto de estudo), que nada mais é do que a ausência de capacidade.
Parte de nossa doutrina, defende que a personalidade consiste no atributo que faz com que algo seja uma pessoa (seja ela física ou jurídica) para o direito, de modo que é a partir da personalidade que essas pessoas podem atuar na esfera jurídica, assumindo posições jurídicas e, por isso, assenhorarem-se de seus atos[1]. É a personalidade, como explica Caio Mario Pereira da Silva, que atribui ao ser humano (e à pessoa jurídica) a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações[2].
Embora exista posicionamentos em sentido contrário, a posição que prevalece a respeito do assunto é no sentido de que a personalidade e a capacidade civil, em que pese possuam inequívoca afinidade e proximidade, são conceitos que não se confundem, pois, “o primeiro é um conceito fundamental, anterior, necessário para a compreensão do fenômeno de revestir-se alguém com a qualidade de ser pessoa. Capacidade de direito é um conceito decorrente daquele que se aprende como consequência de se ter personalidade”[3]. É dizer, conforme esclarece Bevilaqua, que a capacidade “é extensão dada aos poderes de ação contidos na personalidade, ou, como diz Teixeira de Freitas, ao modo de ser geral das pessoas”[4].
A capacidade civil, portanto, é um atributo da personalidade, que pode ser definida como “o fenômeno de “investidura” experimentado pelos sujeitos (pessoas naturais, pessoas jurídicas, patrimônios personificados, como ocorre com a fundação); a capacidade é uma eficácia atributiva da própria dessa investidura”[5].
Maria Helena Diniz[6], interpretando o artigo 1º do Código Civil[7] vigente, afirma que a capacidade possui duas feições, consistentes na capacidade de fato e na capacidade de direito.
A capacidade de fato ou de exercício, nas palavras da referida Professora, consiste na “aptidão para exercer por si os atos da vida civil, dependendo, portanto, do discernimento, que é critério, prudência, juízo, tino, inteligência e, sob o prisma juridico, da aptidão que tem a pessoa de distinguir o lícito do ilícito, o conveniente do prejudicial.”[8].
A capacidade de direito, também chamada de capacidade de gozo, por sua vez, consiste na aptidão que a pessoa possui para adquirir direitos e deveres ao longo de sua vida. Trata-se uma qualidade (ou aptidão) que não pode ser negada ao indivíduo, sob pena de negar-lhe sua própria qualidade como pessoa, vulnerando seus direitos de personalidade.
Apesar de não se poder negar ao indivíduo a capacidade de direito, essa capacidade pode ser limitada ou restringida. Essa limitação decorre do reconhecimento, pelo ordenamento jurídico, de que a pessoa é incapaz para exercer seus direitos, principalmente por faltar-lhe o discernimento necessário, hipótese em que seu representante os exercerá em seu nome.
O propósito do presente trabalho é justamente analisar o regime jurídico aplicável à pessoa com deficiência à luz do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em especial nas hipóteses em que referida norma atribui a essas pessoas capacidade plena, sem considerar, contudo, a possível inexistência para prática de determinados atos.
2. DA INCAPACIDADE: LINHAS GERAIS
A incapacidade constitui instituto por meio da qual se reconhece que, por determinada razão, a pessoa não detém condições de gozar de seus direitos em sua plenitude, de modo que o ordenamento jurídico lhe impõe restrições para tal gozo.
É isso, aliás, que se depreende do conceito de incapacidade estabelecido por Silvio Rodrigues, que a define como “o reconhecimento da inexistência, numa pessoa, daqueles requisitos que a lei acha indispensáveis para que ela exerça os seus direitos.”[9].
Embora alguns doutrinadores entendam a incapacidade como uma verdadeira restrição, por vezes até uma sanção jurídica imposta pelo direito a quem, de acordo com suas regras, não pode exercer a plenitude de seus direitos, não se pode negar que tal instituto (da incapacidade) inequivocamente possui um viés protetivo, pois, se para exercer seus direitos, como visto, o indivíduo precisa de discernimento (ao menos para entender o que é lícito e o que é ilícito e o que lhe vantajoso e o que lhe é prejudicial), é óbvio que em certas situações, nas quais esse discernimento lhe faltar, a restrição ao exercício de seus direitos (em virtude do reconhecimento de sua incapacidade) opera como uma verdadeira salvaguarda, impedindo que o indivíduo exerça seus direitos de forma que possa ser prejudicial a si memo ou seja vítima de abusos.
É isso, aliás, que leciona Silvio Rodrigues, que deixa claro o caráter também protetivo do instituto da incapacidade civil:
O legislador, ao arrolar entre os incapazes referidas pessoas, procura protegê-las. Partindo de que ao menor falta a maturidade necessária para julgar de seu próprio interesse, ao amental falta o tirocínio para decidir o que lhe convém ou não, ao pródigo ou ao silvícola falta o senso preciso para defender seu patrimônio, o legislador inclui todos esses indivíduos na classe dos incapazes, a fim de submetê-los a um regime legal privilegiado, capaz de preservar seus interesses.
Com efeito, através de medidas várias, o legislador estabelece um sistema de proteção para os incapazes. E a jurisprudência, inspirada no sentido moral da regra e no anseio de proteger, dentro das normas de justiça, os incapazes, tem estendido ou restringido tal proteção, de acordo com as imposições do caso concreto.
Em todo o caso, é mister ter-se em vista que têm direito à proteção somente as pessoas que a lei define como incapazes, pois a incapacidade é a exceção e a capacidade, a regra.[10]
Apesar de seu viés protetivo, não se pode negar que a retirada da capacidade de um indivíduo, reputando-o incapaz para, sozinho, exercer seus direitos, tem grande viés restritivo, motivo pelo qual, conforme se nota das lições acima, a capacidade civil é a regra geral de nosso direito, sendo a incapacidade a exceção, que somente pode ser reconhecida nas hipóteses previstas em lei.
E nossa legislação, atenta ao fato de que as circunstâncias do indivíduo (sua idade, desenvolvimento mental, patologias que carrega, etc.) podem influir de forma diferente em seu discernimento, estabeleceu nos artigos 3º e 4º do Código Civil duas espécies diferentes de incapacidades, a absoluta e a relativa.
Será absoluta a incapacidade quando “houver proibição total do exercício do direito pelo incapaz, acarretando, em caso de violação do preceito, a nulidade do ato.”[11]. De acordo com a redação atual do art. 3º do Código Civil, “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos”.
A incapacidade relativa, por sua vez, por decorrer de uma inaptidão menos intensa do que aquela que dá causa à incapacidade absoluta, consistente na restrição da “liberdade de ação [do relativamente incapaz] dentro da órbita das atividades jurídicas, permite-lhes a prática de atos jurídicos. Condiciona, entretanto, a validade do ato jurídico praticado pelo relativamente incapaz ao fato de ele se aconselhar com pessoa plenamente capaz — seu pai, tutor ou curador —, que o deve assistir nos atos jurídicos”[12]. As causas da incapacidade relativa são enumeradas pelo art. 4º, do Código Civil[13].
Ambos os dispositivos foram substancialmente alterados pela Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que estabeleceu o “Estatuto da Pessoa com Deficiência” (o real objeto deste trabalho), motivo pelo qual a compreensão da incapacidade civil no ordenamento jurídico brasileiro, em especial no que diz respeito às pessoas com deficiência, passa necessariamente pelo entendimento do referido Estatuto e do regime jurídico que se estabeleceu após sua vigência.
3. DA INCAPACIDADE CIVIL APÓS O ADVENTO DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Conforme antecipado no capítulo antecedente, o Estatuto da Pessoa com deficiência alterou substancialmente o tratamento conferido em nosso ordenamento jurídico às causas de incapacidade, principalmente por romper com nossa tradição histórica – existente desde as Ordenações – de considerar deficiências como causas determinantes (e até mesmo automáticas) para caracterização da incapacidade civil, visão que sequer é compatível com nossa realidade vigente e com a atual concepção de deficiência.
E é justamente por conta desse rompante com a tradição secular brasileira que, antes de iniciar qualquer exposição a respeito da incapacidade civil após o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, é necessário fazer alguns comentários sobre referida norma e o espírito que a anima, pois compreender sua men legis é indispensável para assimilar o tratamento que o legislador conferiu à capacidade das pessoas a ela submetida.
Não é preciso grande conhecimento histórico ou esforço de pesquisa para saber que, historicamente, a pessoa com deficiência é sujeita a tratamento degradante e segregacionista, sendo colocada à margem da sociedade.
De fato, vários são os relatos e mídias produzidas que revelam, por exemplo, que no mundo antigo, era comum que algumas sociedades abandonassem seus filhos ou os matassem – com autorização (e às vezes até incentivo) do Estado (e do Direito) - caso nascessem com alguma deficiência. Também é fato notório que, na Idade Média a deficiência, física ou mental, muitas vezes foi associada a fatores demoníacos, a partir do racional simplista de que, se o homem nasce à imagem e semelhança de Deus, aquele que não possui essa semelhança (por ser deficiente) está afastado do divino. Não por acaso, doenças mentais já foram associadas à bruxaria e constituíram causa determinante para que pessoas fossem levadas à fogueira[14].
A valorização da pessoa com deficiência tem seu início apenas na Idade Moderna, quando, com a Igreja perdendo seu espaço, a filosofia e a ciência assumem o papel de protagonistas, o que resulta na criação de protocolos médicos voltados ao exame das características próprias da pessoa com deficiência e de suas causas (o que retira o caráter místico dessa sua condição), assim como na valorização (geral) do ser humano, de sua dignidade e bem-estar social.
Embora não se possa dizer que o movimento foi rápido, a valorização da pessoa com deficiência resultou na edição de um documento importantíssimo no âmbito do Direito Internacional, consubstanciado na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007.
Referida Convenção, já em seu preambulo, reconhece a importância da pessoa com deficiência e a necessidade de adoção de medidas para preservar sua dignidade e seus direitos enquanto pessoa humana, e assim superar as barreiras que impedem sua participação plena na sociedade.
O propósito da convenção é justamente assegurar o exercício pleno pela pessoa com deficiência de todos os direitos e liberdades fundamentais, conforme se extrai de seu art. 1º, a seguir transcrito:
O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.
Uma das medidas determinadas pela Convenção para atender a referido propósito, foi exigir que os Estados Partes reconheçam a capacidade legal da pessoa com deficiência em igualdade de condições com as demais pessoas, respeitando-se, assim, sua vontade, sem escusar-se, contudo, de executar medidas apropriadas para evitar abusos. É isso que consta dos artigos 12, 2 a 4, da Convenção:
Artigo 12
Reconhecimento igual perante a lei
(...)
2.Os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.
3.Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal.
4.Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa. [...]
O Brasil internalizou a Convenção em exame por meio do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, seguindo o rito previsto no art. 5º, §3º, da Constituição Federal, formalidade que atribui status de emenda constitucional à Convenção, em especial por tratar de direitos humanos.
A internalização da Convenção de Nova York, contudo, fez surgir certo conflito entre a disciplina jurídica da incapacidade civil das pessoas com deficiência até então estabelecida pelo Código Civil, que seguindo a tradição histórica de nosso ordenamento jurídico, adotava a condição clínica (e, portanto, a deficiência) do indivíduo como causa determinante para a caracterização de sua incapacidade.
Para melhor compreensão desse conflito, é necessário ter em vista que, para alguns doutrinadores de destaque a incapacidade civil constitui-se como uma verdadeira sanção, aplicável àqueles que não reúnem, pelas razões previstas em lei, condições mínimas para a prática dos atos da vida civil.
Essa sanção era, na tradição histórica do Direito Civil brasileiro, aplicável a alguns grupos de pessoas com deficiência, pois, a exemplo, as Ordenações Filipinas empregavam uma série de conceitos, hoje qualificados como pejorativos ou capacitistas, para qualificar pessoas com alguma doença mental como incapazes, como explica Nestor Duarte:
“Em decorrência de enfermidade, as Ordenações empregavam diferentes palavras para indicar os que consideravam privados de entendimento, a saber: sandeu, furioso, desajuizado, desmemoriado, mentecapto, demente.”[15]
O Código Civil de 1916 não evoluiu significativamente no que diz respeito à disciplina do tema, pois, em seu art. 5º, I, ainda considerava como absolutamente incapazes os “Os loucos de todo o gênero” e “Os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade.”, de modo que considerava a deficiência como causa suficiente para caracterizar a incapacidade absoluta, sem sequer referir-se à repercussão da deficiência no discernimento do indivíduo.
E embora o Código Civil de 2002, na redação vigente à data da internalização da Convenção de Nova Iorque, já apresentasse alguma evolução, essa evolução foi demasiadamente pequena em relação àquilo que era necessário para harmonizar-se com a atual compreensão dos direitos da pessoa com deficiência, especialmente no que diz respeito à incapacidade, pois seu artigo 3º ainda considerava essa deficiência como relevante para aferir a incapacidade, por qualificar como absolutamente incapazes as pessoas que “por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos” e “os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”.
Portanto, o simples cotejo da previsão constante do Código Civil com as regras extraídas da Convenção de Nova Iorque sobre os direitos da pessoa com deficiência revela um evidente conflito, pois, enquanto o primeiro Diploma ainda considerava a enfermidade ou deficiência mental para limitação do exercício da capacidade civil, a Convenção em questão expressamente determina que as limitações próprias da pessoa com deficiência não sejam consideradas como fator de restrição de seus direitos.
Obviamente esse conflito não poderia subsistir, sob pena inclusive de retirar a constitucionalidade do art. 3º do Código Civil, diante do status (de verdadeira emenda à Constituição) com o qual a Convenção de Nova Iorque foi internalizada.
E, de fato, esse conceito foi resolvido, o que ocorreu por meio da edição da Lei nº 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa Com Deficiência, norma editada os mesmíssimos propósitos e preocupação possuídos pela Convenção de Nova Iorque[16], e que, dentro desses propósitos (inclusive de assegurar igualdade no que diz respeito à capacidade civil), atribuiu nova redação ao artigo 3º do Código Civil, para excluir qualquer referência à deficiência ou enfermidade como condição capaz de tolher a capacidade civil da pessoa.
Assim a partir do advento da referida Norma, nenhuma pessoa em razão de sua deficiência pode ser considerada absolutamente incapaz, notadamente porque, à luz da redação atual do dispositivo legal mencionado, apenas “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil [apenas] os menores de 16 (dezesseis) anos”.
A modificação do artigo 3º do Código Civil, deve-se ao fato de que, conforme já fora previsto no artigo 12 da Convenção de Nova Iorque, a capacidade civil da pessoa com deficiência, para o Estatuto, consiste em medida necessária para preservar a igualdade e como instrumento de discriminação dessas pessoas. Não por acaso, o tema (capacidade civil) foi incluído em capítulo dedicado a tratar justamente das medidas que devem ser estabelecidas para preservar a igualdade e isonomia das pessoas com deficiência, nos moldes inclusive previstos no art. 5º da Constituição Federal.
Dentro desse propósito, o artigo 6º do Estatuto da Pessoa com Deficiência é claro em estabelecer que a deficiência, por si só, não afeta a capacidade civil da pessoa com deficiência, inclusive enumerando alguns direitos que não devem ser limitados em virtude das barreiras possuídas por essas pessoas, a seguir descritos:
Art. 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I - casar-se e constituir união estável;
II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
A ideia central do Estatuto foi garantir à pessoa com deficiência o pleno exercício de seus direitos, inclusive aqueles mais básicos enquanto pessoa humana (desenvolver uma relação amorosa, manter relação sexual, constituir família e procriar), pois o simples fato de possuir uma deficiência, ao menos na visão da Norma (e também da Convenção), não significa – e nem pode significar – que a pessoa com deficiência não dispõe de condições para a prática dos atos da vida civil.
E realmente assim deve ser, porque o Estatuto da Pessoa com Deficiência, assim como a Convenção que constitui sua base (art. 1º, § único), tem como premissa básica que a deficiência não deve se constituir como razão para que a pessoa com deficiência sofra com limitações em relação ao exercício de direitos (qualquer que seja ele).
Ao contrário, o Estado deve considerar essa deficiência apenas para tomar medidas proativas para garantir que ela não obstrua a participação plena da pessoa com deficiência na sociedade, de modo que possam, sem sofrer qualquer abuso ou limitação, exercer sua dignidade enquanto pessoas humanas. Conclusão diversa, negaria à pessoa com deficiência sua personalidade jurídica (já que a capacidade é um atributo inerente à personalidade, como visto), em clara violação do princípio da dignidade da pessoa humana estampado no art. 1º, III, da Constituição Federal.
Por isso, a deficiência, isoladamente considerada, não pode e nem vai subtrair a capacidade civil da pessoa que a portar, de modo que é possível afirmar que, desde o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, houve completo e absoluto desenlace entre os conceitos de deficiência e incapacidade[17], de modo que uma nunca será (ao menos aos olhos da lei) consequência necessária da outra.
Acontece que há situações em que, necessariamente, a deficiência pode, sim, vir a afetar o discernimento e/ou a capacidade de seu portador de praticar os atos da vida civil, colocando-a em situações de vulnerabilidade, coisa que não passou desapercebida pela Convenção de Nova Iorque e pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Assim, para evitar que a pessoa com deficiência seja vítima do abuso que a convenção de Nova Iorque determinou que os Estados Membros se empenhem em prevenir, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, em seu artigo 84, após reiterar que a pessoa com deficiência possui a mesmíssima capacidade legal das demais pessoas, autoriza que ela seja submetida à curatela, quando serão consideradas relativamente incapazes. Veja-se:
Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.
§ 1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei.
§ 2º É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada.
§ 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.
§ 4º Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.
A leitura do dispositivo não deixa dúvidas: a capacidade civil é a regra, somente sendo se admitindo que se submeta a pessoa com deficiência à curatela em situações excepcionais, para sua própria proteção. Por esse motivo, não é a deficiência que determina a sujeição da pessoa à curatela, mas sim sua inaptidão para exprimir sua vontade adequadamente (ou seja, a falta de discernimento), não sendo necessário, pois, avaliar sua condição de deficiente, mas sim apurar seu grau de discernimento.
A curatela, ademais, não deve ser entendida como uma sanção jurídica, como era a absoluta incapacidade atribuída a determinados grupos de deficientes. Ao contrário, deve ser entendida como uma medida verdadeira protetiva, estabelecida com o propósito de evitar que a pessoa com deficiência – muitas vezes vulnerável em razão de sua condição - seja vítima de abuso de qualquer ordem.
É por esse motivo que a curatela, aqui, observará algumas características especiais, que, dado o caráter protetivo da medida, devem ser observadas por ocasião da sua instituição.
A primeira delas decorre do fato de que, em conformidade com o art. 85, caput, do Estatuto, “A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial”. Estando restrita a atos de natureza patrimonial e negocial, a curatela não poderá alcançar os direitos existências da pessoa com deficiência. E isso foi expresso pelo 2º, do mesmo dispositivo, que ressalvou os direitos ditos como essenciais da curatela, ao estabelecer que “A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.”.
O dispositivo se pauta na concepção de que a pessoa com deficiência submetida à curatela perde somente sua capacidade de consentir no âmbito negocial, mas não tem subtraída sua essência como ser humano e nem sua dignidade (ou seja, não perde a capacidade de gozo), de modo que os atos elementares da pessoa humana, como a possibilidade de casar-se e relacionar-se com outras pessoas, não podem ser limitados pela curatela.
Contudo, embora seja louvável a intenção do legislador de preservar a capacidade (plena) da pessoa com deficiência para determinar-se em aspectos como o casamento e a prática de atos sexuais, o Estatuto da Pessoa com Deficiência talvez tenha pecado pelo excesso, pois olvidou-se que existem situações que, nem mesmo para os atos mais elementares, o indivíduo possui condições de determinar-se adequadamente, motivo pelo qual atribuir-lhe capacidade plena nessas situações coloca a pessoa com deficiência em situação de verdadeira vulnerabilidade.
De fato, não é difícil imaginar que uma pessoa com deficiência pode ser despida de discernimento suficiente para avaliar se um casamento lhe é benéfico ou prejudicial, de modo que, sem esse discernimento, fica ela sujeita à influência de qualquer pessoa que queira casar-se com ela, interessada, por exemplo, em seus bens ou animada por outro propósito escuso.
Acontece que, seguindo a letra fria da lei, a pessoa com deficiência é plenamente capaz para casar-se – independentemente de seu discernimento (ou da falta dele) e do manifesto abuso a que pode estar sujeita – e seus familiares ou representantes nada podem fazer para protegê-la.
Tem-se, então, um verdadeiro paradoxo, pois, os artigos 84 e 85 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, embora criados justamente para proteger seus destinatários, podem deixaram aberta uma imensa janela de desproteção.
Por isso, questiona-se: se a pessoa com deficiência é presumidamente capaz para a prática de atos existenciais, independentemente do grau de sua deficiência, como prevenir eventuais abusos de sua situação de fato, evitando que ela contraia um casamento ou união estável, por exemplo, com a qual sequer tem condições clínicas de consentir?
A resposta parece-nos já existir na jurisprudência, que reconhece a necessidade de preservar-se os direitos existenciais da pessoa com deficiência, mas sem se esquecer-se que essa preservação deve ser pautada pelos princípios gerais de direito e pelos princípios que sustentam a Convenção de Nova Iorque.
Com efeito, em pesquisa aos repositórios de precedentes jurisprudenciais, é possível observar que a jurisprudência pátria, de um modo geral, respeita o disposto nos artigos 85, caput e §2°, do Estatuto e não admite que, a priori, sejam limitados pela curatela os atos existenciais de direito da pessoa com deficiência, restringindo, por consequência, a curatela aos atos meramente patrimoniais.
De fato, não se costuma estabelecer uma proibição prévia para que a pessoa com deficiência submetida à curatela contraia núpcias.[18] O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, inclusive, já decidiu no sentido de que a pessoa com deficiência, pode, sim contrair núpcias independentemente da intervenção de seu curador, ressalvada apenas a possibilidade de celebrar pacto antenupcial, pois esse pacto importa em disposição patrimonial e, por isso, está sujeito à curatela:
APELAÇÃO CÍVEL. CURATELA. AÇÃO DE INTERDIÇÃO. SUBMISSÃO À CURATELA QUE AFETA TÃO SOMENTE AOS ATOS RELACIONADOS AOS DIREITOS DE NATUREZA PATRIMONIAL E NEGOCIAL. IMPOSSIBILIDADE DE EXTENSÃO AOS DEMAIS ATOS DA VIDA CIVIL. De acordo com o art. 85 da Lei nº 13.146/2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), “a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial”, sendo descabida, portanto, a extensão da curatela aos demais atos da vida civil. Embora seja permitido o matrimônio, a eventual celebração de pacto antenupcial sempre dependerá de assistência de curador, pois se trata de ato de disposição patrimonial, o que se extrai da leitura conjugada dos artigos 1.772 e 1.782 do CCB. Logo, mostra-se descabida a pretendida ampliação do decreto de curatela, como quer o apelante, de modo a alcançar todos os atos da vida civil, relacionados a direitos políticos, matrimônio, testamento, sexualidade, condução de veículo automotor, entre outros, diante da restrição/ressalva da própria lei. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (TJ-RS - AC: 70081457095 RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 07/11/2019, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: 26/11/2019)
Apesar disso, quando o casamento ou união estável foram ou serão celebrados, já há precedentes nos quais se busca alternativas para preservar o interesse da pessoa com deficiência e evitar que seja ela vítima de abuso, a despeito da garantia de seus direitos.
No âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, há importante precedente no qual referida Corte promoveu uma análise teleológica do Estatuto da Pessoa com Deficiência e da Convenção de Nova Iorque, para assim reconhecer que seria necessária a intervenção da curadora para o casamento ou união estável de seus curatelados.
Fê-lo por entender que o propósito primordial das Normas mencionadas é proteger a pessoa com deficiência. E essa proteção não seria concedido caso se garantisse à parte envolvida no processo o direito de contrair núpcias, já que a perícia produzida na ação no qual proferida a decisão judicial revelou que não teria ela condições mentais de consentir com um casamento, de modo que, se tal casamento fosse realizado, estaria fatalmente sujeita aos abusos que as normas protetivas buscam coibir.
Assim, submeteu o matrimônio também à Curatela, nos termos do acórdão a seguir transcrito:
INTERDIÇÃO. Sentença que julgou procedente o pedido para decretar a interdição parcial dos curatelados, com nomeação da genitora para o encargo de curadora. Necessidade de intervenção da curadora para o casamento e constituição de união estável pelos curatelados. Gravidade da deficiência mental dos curatelados, nos termos da perícia médica, que justifica a excepcional limitação. Finalidade do Estatuto da Pessoa com Deficiência de primordial proteção do deficiente, diante da sua vulnerabilidade. Sentença mantida. Recurso não provido. (TJSP; Apelação Cível 4007229-76.2013.8.26.0554; Relator (a): J.B. Paula Lima; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santo André - 4ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 25/09/2018; Data de Registro: 25/09/2018)
A ementa teve como base o voto proferido pelo eminente Desembargador J. B. Paula Lima, que reconheceu que, de fato, o Estatuto da Pessoa com deficiência assegura os direitos essenciais da pessoa com deficiência, inclusive resguardando sua capacidade para o casamento, mas que o principal propósito da norma (seu objetivo primeiro) é a proteção dessa pessoa, a qual não seria observada acaso se admitisse o casamento na situação dos autos, como se infere do trecho do referido voto:
“O fito do aludido Estatuto é garantir àqueles que possuem alguma deficiência mental ou intelectual o direito ao exercício da capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoais, daí a exclusão daqueles do rol dos absolutamente incapazes.
Nesse diapasão, prevê o artigo 6º do Estatuto da Pessoa com Deficiência que: “A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I - casar-se e constituir união estável”.
Desse modo, em regra, a legislação assegura ao deficiente capacidade para o casamento e para constituição de união estável, independente da atuação do curador.
No caso dos autos, contudo, a gravidade da deficiência mental dos curatelados, somada à finalidade primordial do Estatuto de proteger a pessoa com deficiência, autoriza a intervenção do curador.
Nesse aspecto, bem pontuou o juízo de origem:
“Embora o artigo 6º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, conste esse direito das pessoas com deficiência, o artigo 5º do mesmo Estatuto é expresso ao dispor que: 'Art.5º - A pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante.'
Assim, usando-se o método da ponderação, há que se verificar que entre a plena liberdade de casamento ou constituição de união estável da requerida, com risco de exploração por parte de suposto marido ou companheiro, de violências físicas ou mentais que podem agravar seu estado de saúde, e outras várias situações desgastantes de um relacionamento, que para uma pessoa com a saúde normal já são difíceis de suportar, e a proteção integral que lhe deve ser dada, deve prevalecer a última e, por conta disso, entendo que a requerida não poderá, também sem intermédio de sua curadora, praticar os referidos atos”. (fls. 218/219, destacou-se)”
A decisão em exame não é isolada, pois, em outra oportunidade, o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu a invalidade de um contrato de união estável, por reconhecer, diante das provas dos autos, que um indivíduo que acabará de receber alta médica após longa internação não tinha condições mentais de consentir com uma união estável:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE INSTRUMENTO PARTICULAR C.C. DECLARAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE UNIÃO ESTÁVEL. Sentença de procedência. Inconformismo da ré. Não acolhimento. Magistrado que havia prolatado uma primeira sentença, de improcedência da ação. Interpostos embargos de declaração, o Magistrado reconheceu a existência de omissão na análise da prova e, ao prolatar uma nova sentença, examinou a prova e julgou a ação procedente. Autor que busca a declaração de nulidade de contrato de convivência assinado por seu genitor, falecido, que reconhecia a existência de união estável mantida com a requerida. Alegação de que tal contrato foi assinado após alta hospitalar, quando seu genitor padecia de consequências de hepatite alcoólica e delirium hipoativo. Elementos presentes nos autos que autorizam o reconhecimento da incapacidade momentânea do de cujus no momento da assinatura do contrato de união estável. Embora a requerida e o de cujus tivessem relação de namoro, passando seu tempo juntos, realizando viagens e comparecendo em festas e eventos, não possuíam intenção de constituir família. Prova testemunhal que também corroborou a situação de namoro mantida entre ambos até o falecimento do pai do autor. Ausência de convivência more uxório. Sentença recorrida que deu tratamento adequado à questão. Sucumbência recursal da ré. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. (v.41112). (TJSP; Apelação Cível 1006087-48.2020.8.26.0003; Relator (a): Viviani Nicolau; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional III - Jabaquara - 3ª Vara da Família e Sucessões; Data do Julgamento: 21/03/2023; Data de Registro: 22/03/2023)
As decisões estão alinhadas à carga principiológica que sustenta a matéria, pois, embora aparentem possuir alguma contradição com o disposto art. 85, §1º, do Estatuto e cercear um direito existencial (o da pessoa com deficiência casar-se), o fato é que tais precedentes são amparados pela interpretação conforme a Constituição Federal que deve atribuir-se à referida norma.
De fato, há muito se sabe que as normas jurídicas não podem, em qualquer hipótese, ser interpretadas e aplicadas em tiras, de forma estritamente literal e dissociada do ordenamento jurídico em que inseridas e/ou dos princípios que o sustentam, pois isso dá margem ao absurdo e ao arbítrio, conforme já se viu na história recente da humanidade.
Essa também é a posição de Maria Helena Diniz, que defende que, para ser jurídica, a norma deve estar atenta à sociedade política na qual inserida, sob pena de ser incapaz de atender a um de seus principais propósitos, que é o de garantir a organização social e equilíbrio das relações humanas, permitindo que a pessoa humana se autorrealize[19].
De fato, para a jurisdocente, a norma jurídica deve considerar as circunstâncias fático-axiológicas de seus destinatários, pois, se não o fizer, constituir-se-á como elemento de desordem e de desequilíbrio, a serviço do árbitro e alheia ao homem e à sociedade que, em sua essência, deveria ordenar[20]. Inclusive, o próprio jurista, ao interpretar a norma, deverá assimilar e captar essas circunstâncias, pois não pode esquecer que o direito é uma integração normativa de fatos e valores[21].
Diante dessa concepção, não é cabível a aplicação irrestrita do art. 85, §1º, do Estatuto, admitindo-se em toda e qualquer hipótese o casamento (ou exercício de outros direitos essenciais da pessoa com deficiência, como de relacionar-se sexualmente), mesmo quando se constatar que a pessoa com deficiência nitidamente não é capaz (ou apta) para consentir com o casamento.
Essa admissão irrestrita subverte o princípio elementar que sustenta o Estatuto da Pessoa com Deficiência (e a Convenção que a inspira), consistente na proteção da pessoa com deficiência, pois, a pretexto de garantir um direito seu (e.g., de se casar), deixar-se-ia essa pessoa desprotegida e vulnerável ao arbítrio de quem quiser se aproveitar de sua condição, em clara infringência aos propósitos estabelecidos no art. 1º da Convenção de Nova Iorque[22] e 5º do Estatuto da Pessoa com Deficiência[23].
Noutros termos, aplicar de forma absoluta a autorização contida no art. 85, §2º, do Estatuto, como bem pontuou o Tribunal Bandeirante nos precedentes acima citados, violaria os principais propósitos e princípios do Estatuto da Pessoa com deficiência, e autorizaria que a condição da pessoa com deficiência fosse aproveitada por outras pessoas para fins de abuso e enriquecimento próprio, em prejuízo dessa pessoa e em contradição com toda carga normativa que sustenta o sistema que a protege. Daí, porque o direito não deve fechar os olhos à realidade e admitir um casamento quando a pessoa, por sua condição clínica, não tiver a mínima condição de consentir com esse ato.
Afinal, esse fechar de olhos implicaria em proteção insuficiente à pessoa com deficiência, de modo que não pode ser sustentada, sob pena de violar os dispositivos citados, e a própria Constituição Federal, pois a desproteção dessas pessoas caracteriza violação à sua dignidade, assegurada pelo art. 1º, III, da Carta Marga.
Por essa razão, somente é possível assegurar, de forma plena, o exercício dos direitos previstos no artigo 85, §2º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência se constatado que a pessoa com deficiência ainda é dotada de discernimento para exercer tais direitos. Se evidenciado que esse discernimento não existe, o direito em questão, principalmente em face da repercussão que ele pode possuir na vida da pessoa, deve ser exercido por meio de seu curador, nomeado em regular processo de curatela judicial.
E, para que não paire dúvidas que assim deve ser, a curatela, nesse caso, que dependerá do reconhecimento da incapacidade relativa da pessoa com deficiência (na forma do art. 4º do CC), não possuirá status restritivo ou sancionador, mas sim será exercida no viés protetivo a que se referem as já citadas lições de Silvio Rodrigues, de modo que estará plenamente alinhada aos propósitos do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
No estabelecimento da curatela, seja ela nas situações determinadas pelo legislador, seja quando se fizer necessária para proteção da pessoa com deficiência, deverá ser observado o art. 84, §3º, do Estatuto, que é claro em arrematar que a curatela deve ser proporcional às necessidades e às circunstâncias do caso, que obviamente devem ser definidas em perícia médica, observado o disposto nos artigos 747 e seguintes do Código de Processo Civil vigente.
Além disso, medida extraordinária como é, o magistrado, ao decretá-la, deve expor motivadamente as razões e as motivações de sua definição, inclusive estabelecendo-a de modo apenas temporário, para assim preservar os interesses do incapaz, conforme se extrai dos artigos 756 e 757 do Código Civil.
Dada a necessidade de a medida ser proporcional às necessidades da pessoa com deficiência, a definição da curatela não pode ser ampla e genérica, pois do contrário, estar-se-ia regredindo ao regime anterior ao Estatuto da Deficiência e determinando-se a absoluta incapacidade contra legem.
Por esse motivo, ao definir a curatela, cabe ao magistrado declarar a incapacidade relativa da pessoa com deficiência, o que o fará com base nas provas produzidas no curso da instrução processual, e definir, especificamente, quais serão os atos (de natureza negocial e patrimonial) para os quais a pessoa com deficiência deverá ser representada ou assistida, na forma do artigo 755, I e II, do CPC.
É nessa direção que vem decidindo o E. Superior Tribunal de Justiça, que já se posicionou no sentido de que, à luz do Estatuto da Pessoa com Deficiência, descabe um decreto de curatela genérico, no qual a incapacidade é reconhecida por todos os atos da vida civil, cabendo à sentença decretar, apenas, a incapacidade relativa da pessoa com deficiência, especificando os atos para os quais ele deverá ser assistido ou representado:
RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. CURATELA. IDOSO. INCAPACIDADE TOTAL E PERMANENTE PARA EXERCER PESSOALMENTE OS ATOS DA VIDA CIVIL. PERÍCIA JUDICIAL CONCLUSIVA. DECRETADA A INCAPACIDADE ABSOLUTA. IMPOSSIBILIDADE. REFORMA LEGISLATIVA. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INCAPACIDADE ABSOLUTA RESTRITA AOS MENORES DE 16 (DEZESSEIS) ANOS, NOS TERMOS DOS ARTS. 3º E 4º DO CÓDIGO CIVIL. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A questão discutida no presente feito consiste em definir se, à luz das alterações promovidas pela Lei n. 13.146/2015, quanto ao regime das incapacidades reguladas pelos arts. 3º e 4º do Código Civil, é possível declarar como absolutamente incapaz adulto que, em razão de enfermidade permanente, encontra-se inapto para gerir sua pessoa e administrar seus bens de modo voluntário e consciente. 2. A Lei n. 13.146/2015, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência, tem por objetivo assegurar e promover a inclusão social das pessoas com deficiência física ou psíquica e garantir o exercício de sua capacidade em igualdade de condições com as demais pessoas. 3. A partir da entrada em vigor da referida lei, a incapacidade absoluta para exercer pessoalmente os atos da vida civil se restringe aos menores de 16 (dezesseis) anos, ou seja, o critério passou a ser apenas etário, tendo sido eliminadas as hipóteses de deficiência mental ou intelectual anteriormente previstas no Código Civil. 4. Sob essa perspectiva, o art. 84, § 3º, da Lei n. 13.146/2015 estabelece que o instituto da curatela pode ser excepcionalmente aplicado às pessoas portadoras de deficiência, ainda que agora sejam consideradas relativamente capazes, devendo, contudo, ser proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso concreto. 5. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1927423 SP 2020/0232882-9, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 27/04/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/05/2021)
Por fim, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, por meio de seu artigo 84, §2º, e da inclusão do artigo 1783-A no Código Civil, criou um modelo jurídico de suporte à pessoa com deficiência, denominado “Tomada de Decisão Apoiada”.
Por meio do referido Instituto, a pessoa com deficiência, que ainda mantém sua capacidade civil preservada, requer judicialmente que duas ou mais pessoas idôneas com as quais mantenha vínculo e que sejam de sua confiança, prestem-lhe apoio na tomada de suas decisões da vida civil.
Como a pessoa com deficiência, a princípio, mantém sua capacidade civil, é ela própria que deverá requerer em juízo a instituição do da tomada decisão. Ao formular seu pedido, ela e seus apoiadores devem apresentar termo, em que conste os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo.
A tomada de decisão projeta efeitos sobre terceiros, nos limites do apoio acordado, os quais inclusive podem exigir que os apoiadores assinem o contrato ou ato negocial que será praticado com o apoiado, especificando suas funções.
Como não se fala aqui em assistência ou representação, a assinatura dos apoiadores não é um requisito para a validade do negócio jurídico celebrado. Nossa doutrina, porém[24], entende que os apoiadores podem requerer a invalidade de negócio jurídico que desrespeitar o termo de decisão apoiada e que se apresentarem prejudiciais ao apoiado.
4. CONCLUSÃO
Ao longo do presente artigo, demonstrou-se que a capacidade civil, um dos atributos elementares da personalidade civil (e, portanto, da caracterização do indivíduo como pessoa), depende da existência de discernimento para a pessoa compreender a licitude e benfazeja dos atos jurídicos que praticar.
Por isso, embora seja louvável a intenção do legislador de, por meio do Estatuto da Pessoa com Deficiência, dissociar a deficiência da incapacidade civil, já que a deficiência não necessariamente tolhe seu portador de discernimento, bem como de assegurar aos destinatários da norma aqueles direitos tidos como existenciais e que não podem, em tese, ser objeto de curatela (na forma determinada pelo artigo 85, §2º, do Estatuto), o fato é que, por vezes, a deficiência retira por completo a capacidade do individuo de compreender a dimensão de seus atos e aferir os prejuízos que eles lhe trarão.
À vista disso, admitir que, em qualquer hipótese, ainda que o discernimento para tanto inexista, a pessoa com deficiência seja livre para praticar tais atos existenciais, criaria verdadeiro paradoxo, pois, a pretexto de assegurar seus direitos, criar-se-ia uma imensa janela de desproteção, desconsiderando suas características e condições próprias que poderiam ser aproveitadas indevidamente por pessoas mal-intencionadas, em prejuízo da pessoa com deficiência, que passaria a ser vítima de sua própria deficiência.
Obviamente, isso seria contrário à carga principiológica que sustenta a Constituição Federal, a Convenção de Nova Iorque e o próprio Estatuto da Pessoa com Deficiência, motivo pelo qual deve, com fundamento na necessidade de proteção da pessoa, admitir-se a curatela mesmo para o exercício de direitos essenciais, como o de casar-se, na forma dos precedentes jurisprudenciais citados ao longo deste trabalho.
A curatela, nesse caso, contudo, deve ser considerada como uma medida excepcionalíssima, somente sendo admitida caso se constate, em regular perícia médica, que realmente a pessoa com deficiência não tem o mínimo de discernimento para consentir com os atos necessários ao exercício de seus direitos existenciais, isto é, caso não seja capaz de avaliar os prejuízos que seus atos podem acarretar a si mesma.
Se presente esse discernimento, a curatela não deve ser decretada, devendo ser respeitada a regra constante do art. 85, §2º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
REFERÊNCIAS
Barbosa, Cícera. A trajetória da loucura, revisando o passado das pessoas excluídas por uma sociedade. Disponível em: https://redehumanizasus.net/a-trajetoria-da-loucura-revisando-o-passado-das-pessoas-excluidas-por-uma-sociedade/. Acesso em 02/07/2023
BEVILAQUA. Clóvis. Theoria Geral do direito Civil. 6. Ed., atualizada por Achilles Bevilaqua. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1953
DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva. P. 125/126. Negócio Jurídico, Ed. Saraiva, 4ª Ed.
Diniz, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 1º Volume: teoria geral do direito civil. 24ª Ed. Ver. Rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2007. P. 7.
NERY, Rosa Maria. Instituições de Direito Civil: Volume I: parte geral do Código Civil e direito da personalidade. São Paulo: Thomson Reuters, 2019.
FARIAS, Cristiano Chaves et al. Estatuto da Pessoa com Deficiência Comentado artigo por artigo. 2. rev., ampl. e atual. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. P. 241
PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil – v. I / Atual. Maria Celina Bodin de Moraes. – 30. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2017
PELUZO, Cezar (coord.). Código Civil Comentado: Doutrina e jurisprudência. 16. Ed. rev e atual. Barueri: Manole. 2022.
RODRIGUES, Silvio. Direito civil — São Paulo: Saraiva, 2003. P. 40
[1]_ NERY, Rosa Maria. Instituições de Direito Civil: Volume I: parte geral do Código Civil e direito da personalidade. São Paulo: Thomson Reuters. 2019. P 38.
[2]_ PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil – v. I / Atual. Maria Celina Bodin de Moraes. – 30. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2017 P. 222.
[3]_ NERY, Rosa Maria. Ob. Cit. P. 38.
[4]_ BEVILAQUA. Clóvis. Theoria Geral do direito Civil. 6. Ed., atualizada por Achilles Bevilaqua. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1953, p. 81. Apud PELUZO, Cezar (coord.). Código Civil Comentado: Doutrina e jurisprudência. 16. Ed. rev e atual. Barueri: Manole. 2022. P. 15.
[5]_ NERY, Rosa Maria. Ob. Cit. P. 29.
[6]_ DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva. P. 125/126. Negócio Jurídico, Ed. Saraiva, 4ª Ed., p. 58.
[7]_ “Art. 1º - Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.”
[8]_ DINIZ, Maria Helena. Ob. Cit. P. 29.
[9]_ RODRIGUES, Silvio. Direito civil — V. I: C Saraiva, 2003. P. 40
[10]_ Ibidem. P. 39/40.
[11]_ DINIZ, Maria Helena. Ob. Cit. P. 64.
[12]_ Rodrigues. P. 41/42.
[13]_ “Art. 4 o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV - os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial.”
[14]_ Barbosa, Cícera. A trajetória da loucura, revisando o passado das pessoas excluídas por uma sociedade. https://redehumanizasus.net/a-trajetoria-da-loucura-revisando-o-passado-das-pessoas-excluidas-por-uma-sociedade/. Acesso em 02/07/2023
[15]_in Código Civil Comentado: Doutrina e jurisprudência. 16. Ed. rev e atual. Barueri: Manole. 2022. Beluzo. P. 19.
[16]_ Art. 1º É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.
Parágrafo único. Esta Lei tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008 , em conformidade com o procedimento previsto no § 3º do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil , em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31 de agosto de 2008, e promulgados pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009 , data de início de sua vigência no plano interno.
[17]_FARIAS, Cristiano Chaves et al. Estatuto da Pessoa com Deficiência Comentado artigo por artigo. 2. rev., ampl. e atual. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. P. 241
[18]_ TJ-MG - AC: 10000212014286001 MG, Relator: Wander Marotta, Data de Julgamento: 25/11/2021, Câmaras Cíveis / 5ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 29/11/2021; TJ-RS - AC: 70080923287 RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 27/06/2019, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: 04/07/2019; TJ-SP - AC: 10004490220178260565 SP 1000449-02.2017.8.26.0565, Relator: J.B. Paula Lima, Data de Julgamento: 21/01/2021, 10ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 21/01/2021
[19]_ Diniz, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 1º Volume: teoria geral do direito civil. 24ª Ed. Ver. Rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2007. . P. 7.
[20]_ Diniz, Maria Helena. Ob. Cit. P. 7.
[21]_ Diniz, Maria Helena. Ob. Cit. P. 9.
[22]_ Art. 1 - O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.
[23]_ Art. 5º A pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante. Parágrafo único. Para os fins da proteção mencionada no caput deste artigo, são considerados especialmente vulneráveis a criança, o adolescente, a mulher e o idoso, com deficiência.
[24]_PELUSO, César. Ob. Cit. P. 2.160.
Advogado e Mestrando em Efetividade do Direito, núcleo de Direito Civil, pela PUC-SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MANFREDI, Victor Augusto Aguiar. Da absoluta incapacidade – análise à luz do estatuto da pessoa com deficiência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 out 2023, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63546/da-absoluta-incapacidade-anlise-luz-do-estatuto-da-pessoa-com-deficincia. Acesso em: 26 dez 2024.
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