INTRODUÇÃO
As pessoas jurídicas apenas são rés na esfera penal quando forem autoras de crimes ambientais. Contudo, devido a acontecimentos recentes, estuda-se a possibilidade da responsabilização também em crimes raciais.
Um jogo online chamado “simulador de escravidão” permitia ao usuário simular ser um proprietário de escravos para "extrair lucros e evitar rebeliões e fugas". Após repercussões negativas, o Google o removeu das lojas de aplicativos.
Desenvolvido pelo estúdio Magnus Games, o jogo trazia a imagem de homens negros trabalhando ao redor de um senhor branco em sua imagem de divulgação.
Os produtores afirmavam, na Play Store, que o aplicativo foi criado para "fins de entretenimento", e que "condenam a escravidão no mundo real". Na tela de abertura do jogo havia: "todo o conteúdo é fictício e não está vinculado a eventos históricos específicos" e "todas as coincidências são acidentais".
Ainda, a descrição dizia que o usuário poderia "gerenciar seus escravos, mudar suas condições de vida e treiná-los", "proteger seus escravos para evitar que escapem e se levantem" e "fazer negócios, atribuir escravos a diferentes empresas para trabalhar e gerar renda", entre outros.
E por fim, as informações do jogo explicavam:
Neste simulador de escravidão, existem 3 tipos de escravos: trabalhadores [exibido como um homem negro acorrentado pelo pescoço], gladiadores [tom de pele mais claro] e escravos de prazer [mulher branca com roupa de dança]. Compre e venda-os. Cada escravo é adequado para um determinado negócio. Treine seus escravos para aumentar seu nível de maestria e renda.
Após repercussão negativa, o Google informou que não permite conteúdo que “promova violência ou incite ódio contra indivíduos ou grupos com base em raça ou origem étnica”.
Em nota, disse que removeu o aplicativo da Play Store e que teria um "conjunto robusto de políticas que visam manter os usuários seguros e que devem ser seguidas por todos os desenvolvedores".
"Não permitimos apps que promovam violência ou incitem ódio contra indivíduos ou grupos com base em raça ou origem étnica, ou que retratem ou promovam violência gratuita ou outras atividades perigosas", informou o Google ao Globo (2023).
Nos comentários, que deram uma média de nota 4,0 de 5,0 ao aplicativo, usuários escreveram mensagens de ódio e satisfação com o teor do game.
Posto isso, estuda-se responsabilizar na esfera penal a pessoa jurídica em crimes raciais (racismo recreativo), não excluindo a possível responsabilidade daqueles que fizeram comentários na plataforma.
DA POSSÍVEL RESPONSABILIZAÇÃO DO ESTÚDIO CRIADOR DO JOGO
A ONG Educafro Brasil ingressou com ação civil pública contra o Google após a plataforma disponibilizar o referido jogo em sua loja de aplicativos. A ONG requereu indenização de R$ 100 milhões por danos morais coletivos (Ismerim, 2023).
Deve-se, em princípio, fazer distinção entre a (i) pessoa física, que age em nome da pessoa jurídica; e (ii) pessoa jurídica. Separando a atuação pessoal da atuação da entidade.
Hoje, a pessoa jurídica pode responder na esfera penal apenas por ato criminoso cometido contra o meio ambiente. Existirão tanto a responsabilidade penal da pessoa jurídica como a da pessoa física que, porventura, tenha agido e contribuído para o cometimento do crime (IBCCRIM, 2018).
A lei que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente diz:
Art. 3º, Lei 9.605/98. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras, ou partícipes do mesmo fato.
Assim, a punição em crime ambiental da pessoa jurídica se condicionada ao cometimento da infração com interesse ou benefício próprio e, ainda, por decisão de seu representante legal ou contratual, ou seu órgão colegiado. Além de conduta intelectualmente pensada por seu representante, mas materialmente executada por seus agentes (IBCCRIM, 2018).
Por isso, uma possível responsabilização penal da pessoa jurídica criadora do jogo por racismo deveria seguir o padrão acima.
Se o ato praticado pela pessoa jurídica visou a apenas satisfazer os interesses do dirigente, sem qualquer vantagem ou benefício à pessoa jurídica, esta deixa de ser o agente do tipo penal e passa a ser mero meio utilizado para realização do crime. Por outro lado, quando a conduta visa à satisfação dos interesses da sociedade empresarial, esta deixa de ser meio e passa a ser agente.
Contudo, qual seria a justificativa para a responsabilização penal? Haveria benefício próprio ao promover/praticar condutas racistas em propagandas, produtos ou serviços, por exemplo?
Em paralelo ao Direito Criminal Ambiental, possivelmente a origem da responsabilização é a ideia de que a pessoa jurídica sempre busca o lucro como primeira finalidade. Para chegar a este fim, são frequentemente ignorados prejuízos causados à coletividade e ao meio ambiente, especialmente quando são grandes grupos econômicos.
Parece-nos, em uma primeira análise, que não há interesse, benefício ou satisfação próprios da pessoa jurídica que possam ser capazes de responsabilizá-la por crimes raciais, mas apenas os seus representantes ou sócios.
No entanto, no caso do jogo “Simulador de escravidão”, com cunho claramente racista, houve benefício da pessoa jurídica quando ela lucrou com possíveis compras feitas pelos consumidores dentro do jogo e patrocinador.
Quando mais pessoas baixavam o jogo e comentavam as “boas” experiências, a pessoa jurídica estava lucrando: mais pessoas conheciam o estúdio responsável pela criação do jogo e seus idealizadores ganhavam destaques.
Posto isso, podemos analisar outros desdobramentos da responsabilização.
DA RESPONSABILIDADE CIVIL EM CRIMES RACIAIS
Por responsabilidade civil, temos o dever de um agente reparar (pecuniariamente) após provocar determinado dano (ilícito, no caso do jogo) a um bem jurídico.
Destaca-se que a sanção penal não necessariamente exclui a sanção civil (Cerqueira, 2021). Entende-se que o Código Penal define injúria e o Código Civil possibilita ao magistrado arbitrar uma indenização pelos danos morais (Farias, 2020).
No caso em análise, em uma possível responsabilização penal da pessoa jurídica, poderia haver dupla condenação pecuniária: (i) pena de multa e (ii) danos morais [costumeiramente convertidos em condenações pecuniárias].
Quanto à pena de multa, na lei de crimes raciais, existem várias possibilidades de sua aplicação, especialmente na injúria. Por esta, entende-se a ofensa à honra (subjetiva), à dignidade ou ao decoro, através de termos pejorativos ou depreciativos; é o juízo que a pessoa faz de si própria (Farias, 2020). Em casos de racismo ou injúria racial, que violam a diversidade, a imagem, em uma tentativa de rebaixar a pessoa, são lesionadas as honras objetivas e subjetivas.
No tocante aos danos morais, sabe-se que eles têm uma dupla função: (i) penalizar o agente causador do dano, objetivando a não reiteração da conduta e (ii) compensar financeiramente o ofendido pelo estresse causado.
Salienta-se que a indenização não é meio de enriquecimento ilícito, pois o valor deve ser conforme o nível social das partes e do dano (Gagliano; Pamplona Filho, 2014).
Como o dano moral precisa ter um indivíduo específico, o estúdio criador do jogo responderia na esfera cível apenas ao ser ajuizada uma ação cível por pessoa física, independentemente da esfera penal, exceto em não autoria ou inexistência material do fato, conforme art. 66 do Código Penal.
Ressalta-se que pode haver cumulação com a prestação de atividades de promoção da igualdade racial, conforme a Lei nº 7.716/1989 (define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor).
DA POSSÍVEL RESPONSABILIDADE DO GOOGLE
Como o jogo em análise estava disponível na loja de aplicativos do Google, estuda-se a sua responsabilidade por racismo.
Em paralelo ao Direito do Trabalho, a 3ª turma do TRT da 9ª região decidiu que é objetiva a responsabilidade de empresa por ofensa racial a empregado (Migalhas, 2022), sendo assim, independe de culpa.
O empregador deverá indenizar uma empregada (negra) que sofreu atitudes racistas (xingamentos e gestos ofensivos) de uma colega de trabalho, em horário do expediente[1].
Diante de ofensa à intimidade, à vida privada e à honra, entendeu-se pelo dano in re ipsa, ou seja, que dispensa a comprovação. O dano moral se mostrou inquestionável.
No mesmo sentido, a 15ª Vara Cível de Porto Alegre responsabilizou o Clube Esportivo Bento Gonçalves depois de a torcida praticar atos racistas durante jogo (Martines, 2018).
Apesar de o clube ter afirmado que não teria responsabilidade pelos atos praticados pelos seus torcedores, os argumentos não foram acolhidos[2].
Posto isso, cogita-se responsabilizar o Google ao existir jogo com conteúdo visivelmente racista disponibilizado na loja de aplicativos, podendo entender que faltou curadoria no conteúdo disponibilizado.
Por outro lado, uma das críticas ao Marco Civil da Internet é que, apesar de o intuito de assegurar a liberdade de expressão dos usuários, não proíbe o provedor de suprimir, unilateralmente, conteúdo que julgue ofensivo (Frazão; Medeiros, 2021).
Isso pode gerar uma censura prévia. Diante do temor de ser responsabilizado, o provedor afasta qualquer conteúdo “sensível”, talvez até com ínfima nocividade.
A questão se desdobra ainda na possível lucratividade do Google com o jogo racista disponibilizado em sua loja de aplicativo.
DO PROJETO DE LEI
O Projeto de Lei 5415/20, de autoria do deputado Damião Feliciano (PDT-PB), tipifica para pessoas jurídicas sanções penais, administrativas, civis, econômicas e fiscais contra ações ou omissões relativas à prática de racismo, discriminação, preconceito e intolerância.
Ainda, o texto dispõe medidas de integridade e conformação a práticas antirracistas e antidiscriminatórias na administração pública e na iniciativa privada. Prevendo que a prática de racismo e discriminação pelas pessoas jurídicas que desenvolvam atividade econômica será crime contra a ordem econômica, a economia popular e o consumidor.
Conforme o PL, seria criado Cadastro Nacional de Pessoas Físicas e Jurídicas Sancionadas por Práticas Racistas e Discriminatórias (CPSPRD). O objetivo é reunir e dar publicidade às sanções aplicadas por todas as esferas de governo com base na futura lei.
CONCLUSÃO
Crimes raciais no Brasil estão extremamente ligados ao racismo estrutural, encobertos pelo véu da ignorância, mas sentidos na pele.
A responsabilização na esfera penal se propõe a atribuir peso às condenações cíveis por danos morais, já que “dano moral” não tem as consequências penais como reincidência e agravantes. O agravamento da responsabilização, por si só, já permite outro olhar.
Além disso, enquadrar como injúria racial ou racismo significa trazer a imprescritibilidade para o contexto, ponto importante diante da História do Brasil e da (im)punibilidade brasileira.
Sendo assim, por meio de uma política criminal (Gomes, 2022), a responsabilização criminal no caso em análise poderia ser por meio de multa, prestação de serviços à comunidade e até dissolução e responsabilização dos sócios, seguindo certas diretrizes da responsabilização da pessoa jurídica em crimes ambientais.
Posto isso, o jurista não pode esperar até existirem as condições normais de temperatura e pressão para responsabilizar a pessoa jurídica em casos de crimes raciais. Pelo contrário, precisa trabalhar e aplicar o Direito existente até então, torcendo para encontrar melhores soluções para problemas já existentes.
Apenas o fato de ter sido criado um jogo chamado “simulador de escravidão”, incentivando o racimo recreativo, diz muito sobre a nossa sociedade. É preciso tomar atitudes mais rigorosas para proteger os bens jurídicos tutelados pelos crimes raciais.
REFERÊNCIAS
CERQUEIRA, Lucas de Oliveira. Responsabilidade civil nos crimes raciais: uma atualização necessária do conceito jurídico de racismo. Revista Direito UNIFACS, n° 247, Janeiro, 2021. Disponível em: https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/7074. Acesso em: 01/09/2023.
FARIAS, Alexandre. Responsabilidade Civil nos crimes de racismo e injúria racial. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/responsabilidade-civil-nos-crimes-de-racismo-e-injuria-racial/862249459. Acesso em 01/09/2023.
FRAZÃO, Ana; MEDEIROS, Ana Rafaela. Responsabilidade civil dos provedores de internet: a liberdade de expressão e o art. 19 do Marco Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/340656/responsabilidade-civil-dos-provedores-de-internet. Acesso em 06/09/2023.
GAGLIANO, Pablo Stolze; Pamplona Filho, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. 16 ed., ver. e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2014.
GOMES, Theuan Carvalho. Como aplicar penas às pessoas jurídicas. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-18/theuan-gomes-aplicar-penas-pessoas-juridicas. Acesso em 04/09/2023.
IBCCRIM. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, um caminho sem volta. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/234#:~:text=%E2%80%9CAs%20pessoas%20jur%C3%ADdicas%20ser%C3%A3o%20responsabilizadas,ou%20benef%C3%ADcio%20da%20sua%20entidade. Acesso em 30/08/2023.
ISMERIM, Flávio. ONG pede indenização de R$ 100 milhões a Google por jogo “Simulador de Escravidão”. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/educafro-entra-na-justica-contra-google-por-jogo-simulador-de-escravidao-atitude-racista/, acesso em 25/08/23.
GLOBO. 'Simulador de escravidão': game com negros em volta de 'senhor' branco e torturas é removido da loja do Google. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/05/game-simulador-de-escravidao-e-oferecido-em-loja-do-google.ghtml. Acesso em 25/08/23.
MIGALHAS. É objetiva responsabilidade de empresa por ofensa racial a empregado. Disponível em: www.migalhas.com.br/quentes/373917/e-objetiva-responsabilidade-de-empresa-por-ofensa-racial-a-empregado. Acesso em 04/09/2023.
NOTAS:
[1] A empregada disse que, em mais de uma ocasião, no horário de trabalho, a fiscal de caixa a agrediu verbalmente com palavras racistas. Uma testemunha confirmou as alegações e destacou que os atos foram feitos na presença colegas e clientes. A sentença acolheu o pedido da empregada, responsabilizando o empregador (supermercado, pessoa jurídica) pelo pagamento do dano moral. Em segunda instância, o colegiado explicou que, embora o ato ilícito tenha sido praticado por empregada do reclamado (supermercado), este responde objetivamente pelos atos de seus empregados, conforme art. 932, III, do CPC.
[2] Em 2014, durante jogo, parte da torcida gritou: “volta para a selva, seu negro macaco, ladrão, safado, imundo. Temos que matar todos os negros sujos. Márcio Chagas [ex-árbitro], tu é a escória do mundo, seu lixo, mal-intencionado”. Ao final do jogo, o árbitro encontrou bananas no para-brisa e no escapamento de seu carro. Judicialmente, o clube foi condenado a indenizar em R$ 15 mil o ex-árbitro.
Bacharel em Direito pela faculdade Imaculada Conceição do Recife - FICR. Pós-graduada em Direito Tributário Municipal pelo IAJUF. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALDAS, Mirela Reis. “Simulador de escravidão”: responsabilização criminal da pessoa jurídica em crimes raciais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 out 2023, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63563/simulador-de-escravido-responsabilizao-criminal-da-pessoa-jurdica-em-crimes-raciais. Acesso em: 22 nov 2024.
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