RESUMO : O presente artigo apresenta as divergências observadas na jurisprudência dos Tribunais Superiores referentes à retroatividade da aplicação do acordo de não persecução penal sobre fatos ocorrido antes da vigência da Lei nº 13.964/2019. No ponto de vista de seus objetivos, realizou-se uma pesquisa exploratória mediante o levantamento de bibliografia e decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. O estudo conclui que deve ser analisada a possibilidade de oferecimento do acordo de não persecução penal em todos os processos, sem sentença condenatória transitada em julgado, que estavam tramitando quando entrou em vigor o art. 28-A do Código de Processo Penal, por ser norma de natureza mista, mais benéfica ao autor do fato, atendendo à sua finalidade de evitar o encarceramento, o registro de maus antecentes ou reincidência, além de otimizar o tempo e os recursos despendidos em um processo penal, atendendo aos princípios constitucionais da razoável duração do processo e da eficiência.
Palavras-chave: Acordo de não persecução penal. Retroatividade. Marco termporal. Recebimento denúncia. Trânsito em julgado.
INTRODUÇÃO
O acordo de não persecução penal, inicialmente, possuía previsão apenas na Resolução nº 181, de 07 de agosto de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público e já provocava debates sobre sua aplicação.
O instituto foi criado com a finalidade de apresentar soluções alternativas no processol penal, que proporcionassem celeridade na resolução de fatos considerados menos graves, consequentemente, possibilitando que os recursos financeiros e pessoais do Poder Judiciário e do Ministério Público fossem direcionados aos casos mais gravosos. Além disso, visa atender ao postulado da despenalização, evitando que resultem em desfavor do eventual acusado, uma condenação e todos os efeitos que advém disso, figurando como uma alternativa ao cárcere.
A inclusão do referido negócio jurídico extraprocessual no Código de Processo Penal, promovida pela Lei nº 13.964/2019, é considerada uma opção de política criminal e, apesar de sua boa recepção por alguns operadores do direito, ainda sofre críticas, principalmente em relação às lacunas deixadas pelo legislador.
Uma das omissões constatadas e alvo de divergências é sobre a retroatividade do acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor no ordenamento jurídico.
Sobre a polêmica, surgiram algumas correntes, as quais fixaram como marcos processuais para a aplicação do instituto o oferecimento da denúncia, o recebimento da denúncia, a prolação da sentença, o trânsito em julgado ou mesmo após o trânsito em julgado.
A definição do limite da retroatividade do instituto é de grande relevância para o Direito, uma vez que está presente no cotidiano jurídico, especialmente na seara processual penal, motivo pelo qual o tema será analisado sob o aspecto de sua aplicação pela doutrina e jurisprudência, abrangendo as áreas de Direito Processual Penal, Penal e Constitucional.
O presente estudo visa apresentar o posicionamento dos Tribunais Superiores quando a matéria é submetida a sua análise, em especial, no que toca ao momento processual em que o acordo de não persecução penal pode ser formalizado, bem como as consequências práticas advindas da fixação do limite temporal até o recebimento da denúncia ou mesmo após sentença condenatória.
Para tanto, buscou-se uma revisão de bibliografia aprofundada e ampla sobre o assunto, com base em julgamentos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, doutrinas que tratam sobre o tema, além de normas constitucionais e legais do ordenamento jurídico brasileiro.
A importância da análise do tema se dá a fim de estabelecer qual seria o marco temporal mais adequado para o oferecimento do acordo de não persecução penal referente a fatos ocorridos antes de sua inserção no Código de Processo Penal com a Lei nº 13.964/2019, a fim de garantir segurança jurídica atrelada à observância da norma penal mais benéfica ao autor do fato.
O texto visa contribuir e enriquecer o debate sobre a retroatividade do acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, que ultimamente surgiu com maior intensidade entre os operadores jurídicos, especialmente ante as decisões divergentes que têm sido proferidas pelos Tribunais Superiores.
1 ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
A Lei nº 13.964/2019 acrescentou o art. 28-A no Código de Processo Penal, regulamentando o acordo de não persecução penal, nos seguintes termos:
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
A primeira controvérsia exsurge quanto à nomenclatura do instituto, pois, segundo Madeira, Badaró, Cruz (2022), o termo “persecução penal” corresponde à atividade estatal que busca esclarecer a autoria de uma infração, dividindo-se em duas fases, uma realizada pela polícia investigativa e a outra desenvolvida perante o Poder Judiciário. Nesse sentido, quando da realização do acordo, a persecução penal já terá sido iniciada, considerando que o Ministério Público apenas realizará as tratativas após receber o inquérito policial ou peças de informações, concluindo os autores que:
Daí decorre com clareza que o acordo não se pode denominar como de “não persecução penal”, pois já iniciada. Inclusive, caso efetivado o acordo, a persecução penal será ultimada com êxito, aplicando-se uma sanção penal.
Superado isso, segundo Lima (2020), trata-se de um negócio jurídico de natureza extrajudicial, celebrado entre o Ministério Público e o autor do fato delituoso, necessariamente acompanhado de Defensor(a) Público(a) ou advogado(a), que confessa formal e circunstanciadamente a práticado do delito e, após homologação do juízo competente, caso cumpra integralmente as condições ajustadas, resultará em extinção da punibilidade.
Insta destacar que o rol de crimes abrangidos pela possibilidade da formalização do acordo de não persecução penal é vasto, incluindo todos os crimes contra a Administração Pública, e outros de maior censura como os de organização criminosa (integrar ou participar) e os de lavagem de dinheiro, de forma que a Justiça Penal negociada pode se tornar a principal alternativa para o sistema, se as regras forem aplicadas observando critérios objetivos, preferencialmente, regulados internamente pelo Ministério Público (PACELLI, FISCHER, 2020).
Outro ponto relevante, conforme Capez (2023), é no sentido de que o acordo de não persecução penal não é direito subjetivo do investigado, não havendo ilegalidade na recusa do oferecimento de proposta do acordo quando, fundamentadamente, o representante do Ministério Público constata que não estão presentes os requisitos subjetivos exigidos pela lei para elaboração do acordo, o que, no caso concreto, não atenderia aos critérios de necessidade e suficiência, exigidos pela legislação.
Quanto à análise do direito intertemporal do acordo de não persecução penal, a jurisprudência ainda diverge e é essa temática que será objeto de aprofundamento no presente artigo.
2 RETROATIVIDADE DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL ATÉ O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA
Instada a se manifestar quanto à retroatividade do acordo de não persecução penal, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal fixou que o instituto pode ser aplicado para fato ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia:
Direito penal e processual penal. Agravo regimental em habeas corpus. Acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP). Retroatividade até o recebimento da denúncia. 1. A Lei nº 13.964/2019, no ponto em que institui o acordo de não persecução penal (ANPP), é considerada lei penal de natureza híbrida, admitindo conformação entre a retroatividade penal benéfica e o tempus regit actum. 2. O ANPP se esgota na etapa pré-processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa, sua não homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase de oferecimento e de recebimento da denúncia. 3. O recebimento da denúncia encerra a etapa pré-processual, devendo ser considerados válidos os atos praticados em conformidade com a lei então vigente. Dessa forma, a retroatividade penal benéfica incide para permitir que o ANPP seja viabilizado a fatos anteriores à Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia. 4. Na hipótese concreta, ao tempo da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, havia sentença penal condenatória e sua confirmação em sede recursal, o que inviabiliza restaurar fase da persecução penal já encerrada para admitir-se o ANPP. 5. Agravo regimental a que se nega provimento com a fixação da seguinte tese: “o acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia”. (HC 191464 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 11-11-2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-280 DIVULG 25-11-2020 PUBLIC 26-11-2020)
Em seu voto, o Ministro Relator rememorou o entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal (HC n° 74.305) no caso da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/95), no sentido de que a oferta do benefício poderia ocorrer até que fosse proferida sentença penal condenatória ou absolutória, aduzindo que a mesma ratio decidendi deveria ser aplicada ao acordo de não persecução penal, observadas suas particularidades, pois o referido negócio jurídico pré-processual, se esgotaria antes do oferecimento e do recebimento da denúncia, enquanto a suspensão condicional do processo tem como pressuposto o início da ação penal.
Assim, concluiu que deveria ser aplicada a argumentação extraída do HC nº 74.305 (ação do tempus regit actum conforme a finalidade da inovação processual), mas não o resultado em termos práticos (de viabilizar a oferta do benefício até que seja proferida a sentença).
Por fim, o Ministro Luís Roberto Barroso ressaltou o desvirtuamento da finalidade do acordo de não persecução penal, caso fosse admitida a oferta do acordo de não persecução penal, inclusive para sentenças transitadas em julgado:
“Uma primazia incauta da retroatividade penal benéfica, que não se justifica por se tratar de lei penal híbrida, ensejaria um colapso no sistema criminal: admitir-se a instauração da discussão sobre a oferta do ANPP inclusive para sentenças transitadas em julgado faria com que praticamente todos os processos – em curso, julgados, em fase recursal, em cumprimento de pena -, fossem encaminhados ao titular da ação penal para que avaliasse a situação do réu/sentenciado. Esse contexto não se justifica se considerado o propósito do ANPP, de impedir o início da ação penal, e da máxima de que não devem ser restauradas etapas da persecução penal já efetivadas em conformidade com as leis processuais vigentes”.
Não foi outro o entendimento do Superior Tribunal de Justiça quando instado a se manifestar sobre o tema:
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. VIA INADEQUADA. NÃO CONHECIMENTO. TRÁFICO DE DROGAS. APLICAÇÃO DO ART. 28-A DO CPP. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL (ANPP). DENÚNCIA JÁ RECEBIDA. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES DESTA 5ª TURMA E DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. O Supremo Tribunal Federal, por sua Primeira Turma, e este Superior Tribunal de Justiça, por sua Terceira Seção, diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, passaram a restringir a sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade. 2. A Lei n. 13.964/2019 (comumente denominada como "Pacote Anticrime"), ao criar o art. 28-A do Código de Processo Penal, estabeleceu a previsão no ordenamento jurídico pátrio do instituto do acordo de não persecução penal (ANPP). 3. O acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia. (HC-191.464/STF, 1ª TURMA, Rel. Ministro GILMAR MENDES, DJe de 12/11/2020). No mesmo sentido: (EDcl no AgRg no AgRg no AREsp 1635787/SP, Relator Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Quinta Turma, DJe 13/8/2020 e Petição no AREsp 1.668.089/SP, da Relator Ministro FELIX FISCHER, DJe de 29/6/2020). 4. No caso dos autos, a discussão acerca da aplicação do acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP) só ocorreu em sede de apelação criminal e no momento do recebimento da denúncia não estava em vigência a Lei nº 13.964/2019, o que impede a incidência do instituto. 5. Habeas corpus não conhecido. (HC n. 607.003/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 24/11/2020, DJe de 27/11/2020.)
O Ministro Relator Reynaldo Soares da Fonseca destacou que a formalização do acordo de não persecução penal quando já recebida a denúncia, em data anterior à entrada em vigência da Lei nº 13.964/2019, é incompatível com o propósito do instituto.
Outrossim, em que pese se reconheça o aspecto de “desprocessualização” do acordo de não persecução penal, o que respalda os entendimentos até aqui expostos, ressoa importante analisar também as repercussões e vantagens sob o aspecto material do instituto no que toca aos processos em curso quando da entrada em vigor do art. 28-A do Código de Processo Penal, buscando uma solução consensual (GOMES FILHO, TORON, BADARÓ, 2022).
3 RETROATIVIDADE DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL APÓS SENTENÇA CONDENATÓRIA
Por sua vez, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal tem decidido pela aplicação retroativa do acordo de não persecução penal, mesmo que já tenha sido proferida sentença condenatória:
HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. CRIME DE FURTO QUALIFICADO. SENTENÇA PROLATADA ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI 13.964/2019. APLICAÇÃO DO ART. 28-A DO CPP. NORMA DE CONTEÚDO MISTO. RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA. ART. 5º, XL, CF. ORDEM CONCEDIDA. 1. A expressão “lei penal” contida no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal é de ser interpretada como gênero, de maneira a abranger tanto leis penais em sentido estrito quanto leis penais processuais que disciplinam o exercício da pretensão punitiva do Estado ou que interferem diretamente no status libertatis do indivíduo. 2. O art. 28-A do Código de Processo Penal, acrescido pela Lei 13.964/2019, é norma de conteúdo processual-penal ou híbrido, porque consiste em medida despenalizadora, que atinge a própria pretensão punitiva estatal. Conforme explicita a lei, o cumprimento integral do acordo importa extinção da punibilidade, sem caracterizar maus antecedentes ou reincidência. 3. Essa inovação legislativa, por ser norma penal de caráter mais favorável ao réu, nos termos do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, deve ser aplicada de forma retroativa a atingir tanto investigações criminais quanto ações penais em curso até o trânsito em julgado. Precedentes do STF. 4. A incidência do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, como norma constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não está condicionada à atuação do legislador ordinário. 5. Ordem concedida para reconhecer a aplicação retroativa do art. 28-A do CPP e determinar a conversão da ação criminal em diligência, a fim de oportunizar ao Ministério Público a propositura de eventual Acordo de Não Persecução Penal. (HC 220249, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 19-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 03-02-2023 PUBLIC 06-02-2023).
A esse respeito, Santos (2022) enfatiza que o caráter de novatio legis in mellius atribuído ao acordo de não persecução penal, reflete em sua retroação aos processos em curso por imposição do art. 5º, XL, da Constituição Federal, não lhe sendo oponível o ato jurídico perfeito, devendo incidir sobre as instruções criminais em curso, independentemente de o recebimento da denúncia, fundamentado tanto na retroatividade da Lei nº 13.964/19, quanto, por exemplo, na desclassificação do tipo penal, seja pelo juízo processante ou em sede recursal, para outro que possibilite a formalização do negócio jurídico pré-processual.
Nessa linha, o acordo de não persecução penal, ao evitar a propositura de ação penal, deve retroagir no tempo, assim como a norma penal benéfica, atingindo todos os processos em andamento, ressalvados aqueles em que tenha havido trânsito em julgado.
Outrossim, apesar de reconher a tendência da jurisprudência de não acolher a retroatividade do disposto no art. 28-A do Código de Processo Penal, Nucci (2022) defende que essa limitação, na verdade, deixa de reconhecer a força da norma processual penal de natureza mista.
Portanto, no que toca à aplicação no tempo, é uma norma mais benigna que deverá retroagir, por ser considerada mista, com prevalentes características penais, em razão de o cumprimento extinguir a punibilidade, o que retroage para beneficiar o réu. Dessa forma, pode ser oferecido até o trânsito em julgado, mesmo aos processos anteriores à vigência da Lei nº 13.964/19 (LOPES JUNIOR, 2021).
No âmbito do Ministério Público Federal também foi firmada orientação nesse sentido no Enunciado nº 98 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão:
É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A do CPP, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019, conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para processos com sentença ou acórdão após a vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa, quando haverá preclusão”. (Enunciado alterado na 187ª Sessão de Coordenação, de 31/08/2020).
No caso submetido a julgamento, a ordem do Habeas corpus foi concedida para reconhecer a retroatividade do art. 28-A do Código de Processo Penal e determinou-se a conversão da ação criminal em diligência, para, caso preenchidos os requisitos, fosse oportunizado ao Ministério Público o oferecimento de acordo de não persecução penal.
Ampliando o entendimento anterior, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, decidiu que o acordo de não persecução penal pode, inclusive, ser oferecido depois do trânsito em julgado:
SEGUNDO AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. MATÉRIA CRIMINAL. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. INOCORRÊNCIA. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. APLICAÇÃO DO ART. 28-A DO CPP. NORMA DE CONTEÚDO MISTO. RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA. ART. 5º, XL, CF. ILEGALIDADE FLAGRANTE. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. É descabida a alegação de supressão de instância quando o Superior Tribunal de Justiça se pronunciou de maneira expressa sobre a questão controvertida do habeas corpus impetrado nesta Corte. 2. A expressão “lei penal” contida no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal é de ser interpretada como gênero, de maneira a abranger tanto leis penais em sentido estrito quanto leis penais processuais que disciplinam o exercício da pretensão punitiva do Estado ou que interferem diretamente no status libertatis do indivíduo. 3. O art. 28-A do Código de Processo Penal, acrescido pela Lei 13.964/2019, é norma de conteúdo processual-penal ou híbrido, porque consiste em medida despenalizadora, que atinge a própria pretensão punitiva estatal. Conforme explicita a lei, o cumprimento integral do acordo importa extinção da punibilidade, sem caracterizar maus antecedentes ou reincidência. 4. Essa inovação legislativa, por ser norma penal de caráter mais favorável ao réu, nos termos do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, deve ser aplicada de forma retroativa a atingir tanto investigações criminais quanto ações penais em curso até o trânsito em julgado. Precedentes do STF. 5. A incidência do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, como norma constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não está condicionada à atuação do legislador ordinário. 6. A indevida negativa de aplicação retroativa do art. 28-A do CPP configura hipótese de concessão da ordem de habeas corpus de ofício. 7. Agravo regimental desprovido. (HC 217275 AgR-segundo, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 27-03-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 04-04-2023 PUBLIC 10-04-2023)
Com efeito, segundo o Ministro Relator, o recebimento da denúncia ou mesmo a prolação da sentença não esvaziam a finalidade do acordo de não persecução penal, pois a sua celebração evita prisão cautelar, condenação criminal e seus efeitos como, por exemplo, cumprimento de pena, reincidência e maus antecedentes, além do próprio processo.
No mesmo sentido, de Bem e Martinelli (2020) lecionam que “[...] nem mesmo o trânsito em julgado da sentença condenatória impede a aplicação retroativa de lei posterior favorável (artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal)".
Assim, no referido caso, apesar de já terem sido proferidos a sentença e o acórdão condenatórios, e mesmo a despeito de haver um título judicial transitado em julgado, o feito ainda estava em curso quando a Lei nº 13.964/2019 entrou em vigor, concluindo pela incidência do efeito retroativo do art. 28-A do Código de Processo Penal.
Por fim, destaca-se que a matéria foi afetada ao Plenário do Supremo Tribunal Federal pelo Ministro Gilmar Mendes, no HC nº 185.913/DF, para pacificação do tema, porém o julgamento do referido remédio constitucional ainda não foi concluído.
CONCLUSÃO
O acordo de não persecução penal foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro como mais um instrumento da Justiça Penal negociada. Trata-se, na verdade, de uma das espécies de exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, uma vez que o Ministério Público irá abster-se de oferecer a denúncia e, caso cumpridas integralmente as condições estabelecidas no compromisso, haverá a extinção da punibilidade.
Além disso, se apresenta como uma alternativa para que o sistema de justiça criminal atenda aos princípios constitucionais da razoável duração do processo e da eficiência, uma vez que torna mais célere a prestação jurisdicional e afasta os gravosos efeitos de uma sentença penal condenatória, como a reincidência e a pena privativa de liberdade.
Nesse sentido, considerando sua natureza de norma benéfica, deve ser aplicada para fatos ocorridos antes do início de sua vigência, ainda que a denúncia já tenha sido recebida ou o processo já se encontre em fase bastante avançada.
Outrossim, é preciso possibilitar a máxima efetividade ao acordo de não persecução penal, combatendo o limite de sua retroatividade até o recebimento da denúncia. Não se discute que a aplicação do instituto em qualquer processo que já tenha transitado em julgado é temerosa, porém, no que toca especificadamente às ações penais em trâmite quando da vigência do art. 28-A do Código de Processo Penal, é medida de justiça, que, caso cumpridos os requisitos, seja revisada a possibilidade de formalização do acordo de não persecução penal.
É certo, que as divergências que ainda subsistem nas decisões do Supremo Tribunal Fedeal e do Superior Tribunal de Justiça resultam em profunda insegurança jurídica, por isso, é imperioso que a pacificação da matéria ocorra de maneira célere, observando e atendendo às finalidades do acordo de não persecução penal.
REFERÊNCIAS
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SANTOS, Marcos Paulo D. Comentários ao Pacote Anticrime. São Paulo: Grupo GEN, 2022, p. 207-208.
Graduada em Direito pela UNESC – Centro Universitário do Espírito Santo. Especialista em Direito Constitucional com Ênfase em Direitos Fundamentais pela Faculdade CERS .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIEVORE, MARIANA ARPINI. A (in)definição do marco temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 nov 2023, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63668/a-in-definio-do-marco-temporal-da-retroatividade-do-acordo-de-no-persecuo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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