RESUMO: O objetivo deste trabalho é realizar uma análise acerca da possibilidade de aplicação das imunidades absolutas e relativas, previstas nos artigos 181 e 182 do Código Penal brasileiro, aos crimes contra o patrimônio, cometidos no contexto da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).
Palavras-Chave: Imunidades. Código Penal. Crimes contra o Patrimônio. Lei Maria da Penha. Aplicabilidade.
1. Introdução
O Código Penal (CP), no Título que dispõe acerca dos Crimes contra o Patrimônio, disciplina, no Capítulo VIII, artigos 181 e 182, acerca das imunidades absolutas e relativas, as quais representam a possibilidade de, respectivamente, isenção de pena ao autor do crime ou a exigência de representação para a promoção da ação penal, em relação a condutas previstas no citado Título.
Quanto à previsão legal, assim dispõem os artigos mencionados:
Art. 181 - É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo:
I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;
II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.
Art. 182 - Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste título é cometido em prejuízo:
I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado;
II - de irmão, legítimo ou ilegítimo;
III - de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.
A discussão, portanto, tem como objeto, a incidência ou não dos referidos artigos no contexto da Lei Maria da Penha, que representa um importante marco de proteção à mulher, estabelecendo a violência patrimonial como uma de suas formas de violência.
2. Desenvolvimento
2.1. Das Imunidades Absolutas e Relativas
O artigo 181 do Código Penal, ao prevê a possibilidade de isenção de pena a quem comete crimes contra o patrimônio em face do “cônjuge, na constância da sociedade conjugal” e “de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural” estabelece aquilo que a doutrina conceitua como imunidade absoluta ou escusa absolutória.
Tal previsão reflete a possibilidade de não aplicação de pena em face de crimes cometidos em determinados contextos, salvo as exceções previstas no artigo 183 do Código Penal, uma vez que teria o legislador, ao assim prevê, evitado imiscuir-se nas relações familiares, numa verdadeira ponderação de interesses, por se tratarem, especialmente, os crimes contra o patrimônio, de bens que, em regra, apresentam a característica da sua disponibilidade.
Neste contexto, descreve MASSON (2023, p. 674):
Destarte, quando comprovada a presença de uma imunidade penal absoluta, a autoridade policial estará proibida de instaurar inquérito policial, pois não há interesse nenhum que justifique o início da persecução penal no tocante a um fato que o Estado não pode punir. De igual modo, caso o inquérito policial tenha sido instaurado, e concluído, o Ministério Público deverá promover seu arquivamento, e, se não o fizer, o magistrado terá que decidir pela rejeição da denúncia, em face da ausência de condição para o exercício da ação penal.
Em seguida, o Código Penal prevê as imunidades relativas, no artigo 182, quando informa que, neste caso, a ação penal somente se procederá mediante representação da vítima, quando os crimes ocorrerem em face de “cônjuge desquitado ou judicialmente separado”, “irmão, legítimo ou ilegítimo” e “tio ou sobrinho, com quem o agente coabita”.
MASSON, também, discorre sobre o tema (2023, p. 679):
As imunidades relativas ou processuais não isentam de pena. Seu papel consiste em transformar crimes contra o patrimônio de ação penal pública incondicionada em delitos de ação penal pública condicionada à representação do ofendido ou de quem o represente. Institui-se, desta forma, uma autêntica condição de procedibilidade para o exercício da ação penal.
Logo, nesta hipótese, o legislador instituiu a necessidade de representação da vítima ou de seu representante legal, para o processamento da ação penal pública, de iniciativa do Ministério Público.
De arremate, há se ressaltar que as premissas dos artigos 181 e 182 do Código Penal não se aplicam a todas as hipóteses de crimes contra o patrimônio, uma vez que o artigo 183 do CP assim dispõe:
Art. 183 - Não se aplica o disposto nos dois artigos anteriores:
I - se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa;
II - ao estranho que participa do crime.
III – se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.
Logo, dentre as hipóteses previstas acima, verifica-se que foi excepcionado, de forma expressa, a possibilidade de qualquer imunidade, seja ela absoluta ou relativa, em relação a crimes cometidos em face de pessoas idosas; inciso que, inclusive, foi objeto de alteração no CP pela Lei 10.741/2003, a qual dispõe acerca do Estatuto da Pessoa Idosa.
2.2. Da Lei Maria da Penha e o suposto conflito com as Imunidades
Como se sabe, a Lei 11.340, do ano de 2006, tem como um de seus objetivos a criação de “mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil”.
Nesse aspecto, faz-se necessário transcrever a previsão constitucional acima referenciada:
Constituição Federal de 1988
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(...)
§8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
No que se refere às formas de violência doméstica e familiar, a Lei Maria da Penha cita que, entre outras, poderá ocorrer por meio de violência física, psicológica, sexual, moral e patrimonial.
Quanto a esta última modalidade, a lei define como sendo qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
Desta forma, para alguns, dentre todos, Cleber Masson, “a Lei Maria da Penha foi expressa ao classificar a violência patrimonial como violência doméstica (art. 7.º, inc. IV), e, consequentemente, incide a regra contida no art. 183, inciso I, do Código Penal”. Além disso, ainda argumenta o citado autor que “a questão acerca da constitucionalidade ou não da especial proteção à mulher vítima de violência doméstica é da essência da Lei 11.340/2006 - e já foi superada pelos Tribunais Superiores - e não somente das imunidades penais nos crimes patrimoniais contra ela praticados. Destarte, se este raciocínio é inconstitucional, toda a Lei Maria da Penha também está acometida deste vício, e, como sabemos, a Lei 11.340/2006 reveste-se de constitucionalidade”.
Entretanto, para outros, ao contrário do que previu o Estatuto da Pessoa Idosa, ao excepcionar, de forma expressa, a possibilidade de aplicação das imunidades em face de crimes patrimoniais cometidos em desfavor de pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, a Lei Maria da Penha não apresentou previsão no mesmo sentido.
Logo, teria havido, por parte dos defensores da citada tese, um silêncio eloquente do legislador, o qual ocorre quando, de forma intencional, não se buscou prevê determinada norma por entendê-la, naquele momento, que não seria objeto de proteção, levando-se em conta, dentre outros aspectos, a aplicação do princípio da proporcionalidade.
Outrossim, estaria o intérprete da Lei, ao exigir uma interpretação ampliativa do dispositivo contido no artigo 7º, IV, da Lei 11.340/2006, a se ampliar o grau de incidência da norma, em verdadeira invasão em matéria de competência legislativa, afronta-se, assim, o princípio da separação dos poderes, insculpido no artigo 2º da Constituição de Federal de 1988.
De arremate, no campo jurisprudencial, podemos citar decisão do Superior Tribunal de Justiça que vai ao encontro da tese de aplicação das imunidades, mesmo no caso de crimes cometidos no contexto da Lei Maria da Penha, conforme ementa abaixo transcrita.
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE ESTELIONATO (ARTIGO 171, COMBINADO COM O ARTIGO 14, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). CRIME PRATICADO POR UM DOS CÔNJUGES CONTRA O OUTRO. SEPARAÇÃO DE CORPOS. EXTINÇÃO DO VÍNCULO MATRIMONIAL. INOCORRÊNCIA. INCIDÊNCIA DA ESCUSA ABSOLUTÓRIA PREVISTA NO ARTIGO 181, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL. IMUNIDADE NÃO REVOGADA PELA LEI MARIA DA PENHA. DERROGAÇÃO QUE IMPLICARIA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE. PREVISÃO EXPRESSA DE MEDIDAS CAUTELARES PARA A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO DA MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. INVIABILIDADE DE SE ADOTAR ANALOGIA EM PREJUÍZO DO RÉU. PROVIMENTO DO RECLAMO. 1. O artigo 181, inciso I, do Código Penal estabelece imunidade penal absoluta ao cônjuge que pratica crime patrimonial na constância do casamento. 2. De acordo com o artigo 1.571 do Código Civil, a sociedade conjugal termina pela morte de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, pela separação judicial e pelo divórcio, motivo pelo qual a separação de corpos, assim como a separação de fato, que não têm condão de extinguir o vínculo matrimonial, não são capazes de afastar a imunidade prevista no inciso I do artigo 181 do Estatuto Repressivo. 3. O advento da Lei 11.340/2006 não é capaz de alterar tal entendimento, pois embora tenha previsto a violência patrimonial como uma das que pode ser cometida no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, não revogou quer expressa, quer tacitamente, o artigo 181 do Código Penal. 4. A se admitir que a Lei Maria da Penha derrogou a referida imunidade, se estaria diante de flagrante hipótese de violação ao princípio da isonomia, já que os crimes patrimoniais praticados pelo marido contra a mulher no âmbito doméstico e familiar poderiam ser processados e julgados, ao passo que a mulher que venha cometer o mesmo tipo de delito contra o marido estaria isenta de pena. 5. Não há falar em ineficácia ou inutilidade da Lei 11.340/2006 ante a persistência da imunidade prevista no artigo 181, inciso I, do Código Penal quando se tratar de violência praticada contra a Documento: 1334799 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 14/08/2014 Página 1de 4 Superior Tribunal de Justiça mulher no âmbito doméstico e familiar, uma vez que na própria legislação vigente existe a previsão de medidas cautelares específicas para a proteção do patrimônio da ofendida. 6. No direito penal não se admite a analogia em prejuízo do réu, razão pela qual a separação de corpos ou mesmo a separação de fato, que não extinguem a sociedade conjugal, não podem ser equiparadas à separação judicial ou o divórcio, que põem fim ao vínculo matrimonial, para fins de afastamento da imunidade disposta no inciso I do artigo 181 do Estatuto Repressivo. 7. Recurso provido para determinar o trancamento da ação penal apenas com relação ao recorrente. RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 42.918 - RS (2013/0391757-1)
3. Da Conclusão
Desta forma, percebe-se que o tema ainda está longe de ser pacífico, especialmente, tendo em vista a falta de previsão expressa em lei, bem como de decisões perpetradas pelos Tribunais Superiores que venham a se inclinar, definitivamente, em determinado sentido.
Desta forma, como medida de segurança jurídica, há se apelar ao legislador, o qual, analisando o contexto social, político, cultural, etc., que influenciam as suas manifestações, poderá, dentro do seu poder-dever constitucional, incluir, entre as exceções previstas no artigo 183 do Código Penal, aquela que também venha a proteger a mulher, quando vítima de crimes patrimoniais no contexto da violência doméstica e familiar, evitando-se, assim, que o tema ainda seja objeto de constante debate e a norma penal, se mostre, neste ponto, desproporcional, na vertente de uma suposta proteção deficiente.
Referências:
MASSON, Cleber Direito penal: parte especial (arts. 121 a 212) / Cleber Masson. - 16. ed. - Rio de Janeiro: Método, 2023.
RHC 42.918/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 05/08/2014, DJe 14/08/2014.
Nível Superior em Direito. Advogado. Servidor Público Federal .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Rodrigo de. Da (im)possibilidade de aplicação das imunidades absolutas e relativas aos crimes contra o patrimônio cometidos no contexto da Lei Maria da Penha Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 nov 2023, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63905/da-im-possibilidade-de-aplicao-das-imunidades-absolutas-e-relativas-aos-crimes-contra-o-patrimnio-cometidos-no-contexto-da-lei-maria-da-penha. Acesso em: 21 nov 2024.
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