Resumo: O texto aborda a noção de dano no Direito Civil brasileiro, especialmente o dano ao projeto de vida, considerado uma categoria específica dos danos contemporâneos, que passam a ser reconhecidos como resultado do processo de constitucionalização do direito e de leitura do ordenamento jurídico e da responsabilidade civil sob uma perspectiva existencial, em contraposição ao panorama vigente no século XX. Esse conceito refere-se à liberdade individual de cada pessoa em projetar expectativas para sua vida, guiando suas escolhas e aspirações. Internacionalmente, a Corte Interamericana reconheceu o dano ao projeto de vida como uma modalidade jurídica própria. O Estado tem o dever de proteger esse projeto, evitando intervenções ilícitas de terceiros. No contexto nacional, o dano ao projeto de vida foi citado em decisões importantes, como na ADI 4.277/DF, que reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo como família, contudo, a despeito de sua importância, o tema ainda é pouco comentado e aplicado no âmbito da doutrina e da jurisprudência pátria.
Palavras-chave: Direito Civil. Danos Contemporâneos. Dano ao Projeto de Vida. Jurisprudência Brasileira.
No Direito Civil pátrio a noção de dano encontra-se positivada no âmbito da responsabilidade civil, de modo que, a teor do descrito no art. 927, do Código Civil, aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo[1].
Muito embora inexista em sede constitucional a menção, de maneira expressa, ao direito à personalidade como uma cláusula geral inclusiva de todas as suas possíveis manifestações, tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm recorrido ao princípio da dignidade da pessoa humana, em seu conteúdo existencial, como fundamento para justificar sua posição como direito fundamental autônomo.
Os danos contemporâneos se diferenciam dos danos clássicos, quais sejam, o dano moral e o dano material, em virtude de determinadas peculiaridades que permitem quantificá-los à margem dos demais.
O reconhecimento dessa nova categoria surge como resultado de uma tendência de constitucionalização do Direito e de leitura do ordenamento jurídico e da responsabilidade civil sob uma perspectiva existencial, em contraposição ao panorama patrimonial vigente até o final do século passado, como instrumento para a concretização dos direitos humanos e de uma vida digna para a pessoa humana, merecedora de reparação integral, no caso de violações oriundas de atos ilícitos, o que inclui os prejuízos de ordem extrapatrimonial.
Tratado como uma categoria específica de dano, o de projeto de vida como um bem jurídico autônomo a ser tutelado surge a partir de uma tese elaborada pelo jurista peruano Carlos Fernández Sessarego e diz respeito à liberdade do ser humano para projetar expectativas para a sua própria vida.
O projeto de vida é, assim, o próprio desejo intrínseco de cada ser humano de realizar algo a respeito do seu ser e do seu existir no mundo, que lhe confere sentido à existência, de modo que cada pessoa, de acordo com o seu próprio projeto, irá guiar a sua vida a fim de alcançá-lo, podendo, ainda, alterá-lo durante esse caminho, ou, após realizá-lo, vir a desenvolver um novo objetivo, sempre de acordo com o seu livre arbítrio e em face das possibilidades que se afigurem disponíveis.
Trata-sede uma expectativa razoável e acessível, considerando a vocação, as potencialidades e as circunstâncias fáticas que cada sujeito experimenta durante a vida, competindo ao Estado atuar a fim de viabilizar o exercício desse projeto, protegendo-o da ingerência ilícita ou desarrazoada de terceiros. Nas palavras de SARLET
[...] enfatiza-se o nexo entre o direito de liberdade pessoal e a proteção da personalidade, posto que o direito de personalidade, embora tenha por objeto a proteção contra intervenções na esfera pessoal, é também um direito de liberdade, no sentido de um direito de qualquer pessoa a não ser impedido de desenvolver a sua própria personalidade e de se determinar de acordo com as suas opções.[2]
No âmbito internacional, o dano ao projeto de vida foi reconhecido pela primeira vez, de maneira autônoma, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Loayza Tamayo versus Perú, julgado em 1997, sendo quantificado, a título de indenização de cunho extrapatrimonial apenas no ano de 2001, no Caso Cantoral Benavides versus Peru.[3]
Nesse ponto em particular, impende registrar que, tanto na sentença proferida nesse último caso, que envolveu graves violações de direitos humanos a pessoa em situação prisional, quanto naquela proferida no Mendonza e outros versus Argentina, em que se discutiu sobre a inconvencionalidade da aplicação de pena de prisão perpétua para crianças e adolescentes, a Corte determinou, como medida de reabilitação, que o Estado assegurasse às vítimas opções educativas, inclusive em grau universitário, por elas escolhidas, para além de lhes garantir, durante todo esse período, bolsa de estudos que lhes permitissem se dedicar a esse novo projeto de capacitação para a vida fora do cárcere.[4]
Nesse sentido, cumpre transcrever o seguinte trecho da decisão proferida no primeiro dos julgamentos supramencionados, citado por Caio Paiva e Thimotie Aragon Heemann, no livro Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos:
A via mais idônea para restabelecer o projeto de vida de Luis Alberto Cantoral Benavides, consiste em que o Estado lhe proporcione uma bolsa de estudos superiores ou universitários, com o fim de cobrir os custos da carreira profissional que a vítima escolher – assim como os gastos de manutenção com essa última, durante o período de tais estudos [...] [5]
Os julgados em comento demonstram que há, no âmbito da jurisprudência interamericana de Direitos Humanos, uma tendência ao reconhecimento do dano ao projeto de vida como uma modalidade jurídica própria, merecedora de reparação integral, o que, para além da mera indenização monetária, pressupõe a execução de ações eficazes a proporcionar à vítima a realização de um novo projeto, capaz de direcionar os seus propósitos e a sua própria existência.
Na jurisprudência pátria, o dano ao projeto de vida foi citado, em primeiro momento, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277/DF, na qual a Suprema Corte, com fundamento no conteúdo existencial a dignidade da pessoa humana e em face da possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil[6], conferiu ao referido dispositivo interpretação conforme à Constituição, a fim de excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família.
Nesse sentido, cumpre transcrever o seguinte trecho do voto proferido por um dos Juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o jurista Antônio Augusto Cançado Trindade, no caso Gutiérrez Soler versus Colômbia, julgado em 12 de setembro de 2005, citado em tradução livre pelo Ministro Ayres Brito, no julgamento da Ação de Inconstitucionalidade supracitada:
Todos vivemos no tempo, que termina por nos consumir. Precisamente por vivermos no tempo, cada um busca divisar seu projeto de vida. O vocábulo “projeto” encerra em si toda uma dimensão temporal. O projeto de vida tem, assim, um valor essencialmente existencial, atendo-se à ideia de realização pessoal integral. É dizer, no marco da transitoriedade da vida, a cada um cabe proceder às opções que lhe pareçam acertadas, no exercício da plena liberdade pessoal, para alcançar a realização de seus ideais. A busca da realização do projeto de vida desvenda, pois, um alto valor existencial, capaz de dar sentido à vida de cada um. [7]
No mencionado voto, destaca-se que o gozo de uma vida digna pressupõe a possibilidade de concretização de metas e projetos, bem como de sua alteração ao longo do tempo, de acordo, tão somente, com a vontade do sujeito, havendo dano existencial quando o Estado, por sua ação ou omissão, figura como óbice à realização desses direitos. Vejamos:
O Estado existe para auxiliar os indivíduos na realização dos respectivos projetos pessoais de vida, que traduzem o livre e pleno desenvolvimento da personalidade. [...] Vale dizer: ao Estado é vedado obstar que os indivíduos busquem a própria felicidade, a não ser em caso de violação ao direito de outrem, o que não ocorre na espécie. Certamente, o projeto de vida daqueles que têm atração pelo mesmo sexo resultaria prejudicado com a impossibilidade absoluta de formar família. Exigir-lhes a mudança na orientação sexual para que estejam aptos a alcançar tal situação jurídica demonstra menosprezo à dignidade. Esbarra ainda no óbice constitucional ao preconceito em razão da orientação sexual. [8]
Nesse mesmo sentido, ainda no ano de 2010, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luis Felipe Salomão, fundamentou a sua decisão acerca da temática afirmando que “a igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à autoafirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias.”[9]
Outro caso emblemático que envolve a discussão sobre o assunto foi o incêndio ocorrido em fevereiro de 2019 no alojamento do centro de treinamento do Flamengo, chamado de Ninho do Urubu, que deixou feridos e acabou resultando na morte de 10 adolescentes, entre 14 e 16 anos, que estavam no local.
De acordo com a advogada Juliana Azevedo, verificou-se no caso citado a ocorrência do dano ao projeto de vida, que possui uma dimensão espiritual que o afasta dos demais danos contemporâneos, por prescindir de um juízo de probabilidade, incidindo, todavia, no âmbito da liberdade do sujeito e daqueles que com ele se relacione no âmbito da vida intima e afetiva, de tornar-se aquilo que deseje ser. [10]
o dano ao projeto de vida se distancia do dano material, e se próxima do dano moral, mas com este não se confunde. Comparando o dano ao projeto de vida com o dano moral encontramos uma diferença: as consequências do dano moral afetam os sentimentos e os afetos da pessoa, e estes por mais por profundos que possam ser, não acompanham o sujeito. As dores e sofrimentos tendem a dissipar-se, diminuindo ou atenuando-se com o passar do tempo. Já o dano ao projeto de vida, é uma lesão que, por sua magnitude, suas características e suas consequências, incide na liberdade do sujeito, impedindo-o de alcançar sua realização pessoal e cumprir as metas que dão sentido próprio a sua vida.[11]
No caso narrado o dano ao projeto de vida ocorre independentemente da probabilidade de os meninos do ninho do urubu tornarem-se ou não grandes jogadores de futebol, haja vista que o que lhes foi retirado foi a possibilidade de, por si só, alcançar esses objetivos, falhar na busca, ou, ainda mudar de planos ao longo do caminho.
Trata-se da interrupção do alcance do exercício da vontade do sujeito por ato ilícito de terceiros, o que, por si só, já é um dano e, como tal, merecedor da devida reparação.
Cumpre anotar que, a despeito das decisões mencionadas ao longo desse texto, a jurisprudência pátria segue em fase embrionária na aplicação do instituto aos casos submetidos à sua apreciação, não tendo sido encontrados, nas pesquisas realizadas para a elaboração do artigo, julgados significativos que tenham reconhecido e fixado reparações, de maneira autônoma, para violações dessa natureza.
Em síntese, o texto pretendeu destacar a importância da noção de dano ao projeto de vida no Direito Civil brasileiro e no âmbito internacional. O reconhecimento desse conceito reforça a proteção da liberdade pessoal, associada aos direitos da personalidade.
O gozo de uma vida digna pressupõe a possibilidade de concretização de metas e objetivos ao longo do tempo, cabendo ao Estado atuar para viabilizar o exercício desse projeto, protegendo-o contra ingerências ilícitas de terceiros e garantido, nas hipóteses de violação, que o dano seja integralmente reparado, noção que vai além da simples indenização monetária.
Referências Bibliográficas:
SARLET, Ingo Wolfang. Curso de direito constitucional/ Ingo Wolfang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2012.
PAIVA, Caio Cezar. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, Thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte: Editora CEI, 2017.
Falcon, C. A. (2015). DANO AO “PROJETO DE VIDA”: UM NOVO HORIZONTE ÀS REPARAÇÕES DENTRO DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS?. Revista Direitos Humanos E Democracia, 3(5), 47–88. https://doi.org/10.21527/2317-5389.2015.5.47-88. p. 56-61. Disponível em:
<https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia/article/view/4039> acesso em: 09/11/2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635> acesso em: 09/11/2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça - REsp nº 1.183.378 - RS - 4ª Turma - Rel. Min. Luis Felipe Salomão - DJ 01.02.2012. Disponível em:
<https://www.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ATC?seq=18810976&tipo=5&nreg=201000366638&SeqCgrmaSessao=&CodOrgaoJgdr=&dt=20120201&formato=PDF&salvar=false > acesso em: 09/11/2023.
AZEVEDO, Juliana. Tragédia no Ninho do Urubu e o dano ao projeto de vida. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/depeso/296286/tragedia-no-ninho-do-urubu-e-o-dano-ao-projeto-de-vida > acesso em: 09/11/2023.
[1] Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm> acesso em: novembro de 2023.
[2] SARLET, Ingo Wolfang. Curso de direito constitucional/ Ingo Wolfang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 385.
[3] PAIVA, Caio Cezar. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, Thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte: Editora CEI, 2017. p. 83-86.
[4] Falcon, C. A. (2015). DANO AO “PROJETO DE VIDA”: UM NOVO HORIZONTE ÀS REPARAÇÕES DENTRO DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS?. Revista Direitos Humanos E Democracia, 3(5), 47–88. https://doi.org/10.21527/2317-5389.2015.5.47-88. p. 56-61. Disponível em:
< https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia/article/view/4039> acesso em: 09/11/2023.
[5] PAIVA, Caio Cezar. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, Thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte: Editora CEI, 2017. p. 85.
[6] Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.
Disponível em: < https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635> acesso em: 09/11/2023.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.
Disponível em: < https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635> acesso em: 09/11/2023.
[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça - REsp nº 1.183.378 - RS - 4ª Turma - Rel. Min. Luis Felipe Salomão - DJ 01.02.2012. Disponível em:
<https://www.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ATC?seq=18810976&tipo=5&nreg=201000366638&SeqCgrmaSessao=&CodOrgaoJgdr=&dt=20120201&formato=PDF&salvar=false > acesso em: 09/11/2023.
[10] AZEVEDO, Juliana. Tragédia no Ninho do Urubu e o dano ao projeto de vida. Disponível em:
< https://www.migalhas.com.br/depeso/296286/tragedia-no-ninho-do-urubu-e-o-dano-ao-projeto-de-vida > acesso em: 09/11/2023.
[11] AZEVEDO, Juliana. Tragédia no Ninho do Urubu e o dano ao projeto de vida. Disponível em:
< https://www.migalhas.com.br/depeso/296286/tragedia-no-ninho-do-urubu-e-o-dano-ao-projeto-de-vida > acesso em: 09/11/2023.
Advogada, Formada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Pós graduada em Direito Penal pelo Instituto Damásio de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, natalia das águas costa de. O papel do Estado na tutela jurídica ao projeto de vida como um bem jurídico autônomo: uma abordagem dos precedentes nacionais e internacionais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 nov 2023, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63908/o-papel-do-estado-na-tutela-jurdica-ao-projeto-de-vida-como-um-bem-jurdico-autnomo-uma-abordagem-dos-precedentes-nacionais-e-internacionais. Acesso em: 23 dez 2024.
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