RESUMO: O presente artigo examina o princípio do acesso à justiça no âmbito do Processo Penal e analisa os desafios enfrentados pelos indivíduos que não possuem recursos financeiros ou enfrentam as mais diversas vulnerabilidades para alcançarem assistência jurídica. O acesso à justiça é um direito fundamental, positivado no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, garantindo que todos, independentemente da situação financeira, não terão excluída, por lei ou de qualquer forma, a apreciação do Poder Judiciário da lesão ou da ameaça a direito. Além disso, o artigo examina o direito de assistência jurídica integral e gratuita aos vulneráveis, positivado no art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal. O artigo tem como finalidade abordar a relação entre o acesso à justiça e o direito fundamental de assistência jurídica integral e gratuita aos vulneráveis, discorrendo sobre as nuances e o delineamento do tema. O artigo inicia tratando do conceito de assistência jurídica integral e gratuita e do conceito de acesso à justiça, destacando as diferenças entre ambos os direitos e aprofundando seus embasamentos teóricos e doutrinários, esclarecendo como podem ser realizados na vida prática e a importância dessa observância pelo Estado.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Defensoria Pública. Assistência jurídica integral e gratuita. Processo Penal.
1. INTRODUÇÃO
O acesso à justiça e a garantia de assistência jurídica integral e gratuita são essenciais no sistema de justiça e constituem em direitos constitucionais fundamentais. No contexto do Processo Penal, vislumbra-se ainda maior importância para o tema, uma vez que promovem a proteção dos demais direitos e a prevenção de uma condenação injusta. O artigo examina a relação entre o acesso à justiça e o direito de assistência jurídica integral e gratuita no âmbito do Processo Penal, com foco na necessidade de sua efetiva implementação e na identificação dos desafios que surgem nesse percurso.
O direito ao acesso à justiça é a base da democracia e do Estado Democrático de Direito. Garantir que todos, independentemente de sua situação financeira, tenham a capacidade de buscar justiça perante as instâncias judiciais é essencial para a manutenção da igualdade material e da equidade perante a lei. Todavia, esse princípio muitas vezes é confrontado com a realidade, uma vez que o custo dos serviços legais e as barreiras burocráticas podem tornar o acesso à justiça uma dificuldade para muitos.
A assistência jurídica integral e gratuita é a forma que os vulneráveis e economicamente desfavorecidos tenham acesso ao direito de contraditório, a ampla defesa e ao devido processo legal. Sobretudo, no âmbito do Processo Penal, em que há o bem jurídico indisponível da liberdade em risco, a importância da assistência jurídica é ainda mais evidente.
O artigo examinará a base legal do acesso à justiça e a assistência jurídica integral e gratuita, a base doutrinária e a forma de implementação prática desses institutos. Além disso, serão abordados os desafios e as dificuldades em torno do tema, como a falta de recursos, a escassez de defensores públicos.
O artigo tem como finalidade contribuir para a compreensão e estudo sobre o acesso à justiça e o direito fundamental de assistência jurídica integral e gratuita, essenciais para a proteção de todos os demais direitos e para a manutenção de um sistema de justiça efetivamente democrático e eficiente.
2. O DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA E O DIREITO À ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL E GRATUITA
De acordo com o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário a lesão ou ameaça a direito. Neste sentido, a Constituição Federal torna positivado o acesso à justiça como um direito fundamental, como uma forma de garantir a proteção dos demais direitos.
Sobre o acesso à justiça, dispõe a doutrina de Franklyn Roger e Diogo Esteves:
Em linhas gerais, o direito de acesso à justiça deriva diretamente da própria teoria do contrato social, como matriz fundante do Estado e da ordem social. Quando os indivíduos abrem mão de determinados direitos, inclusive o direito de resolver suas disputas por meio da força, recebem em troca do Estado a correspondente promessa de justiça, paz e bem-estar social. Tendo o Estado assumido o monopólio da jurisdição, assumiu também o compromisso de assegurar a igualdade de todos perante a lei, bem como garantir a igualdade de oportunidades para acessar a ordem jurídica justa.[1]
Compreendendo o acesso à justiça como um direito fundamental, é importante destacar que parte da doutrina faz distinções entre os direitos fundamentais em dimensões ou gerações. Portanto, é relevante, ao estudar o assunto, abordar em qual dimensão o acesso à justiça se encaixaria, razão pela qual serão abordadas dimensões mais pertinentes para o presente artigo.
No que diz respeito à primeira dimensão ou geração dos direitos fundamentais, explica Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino:
Os direitos de primeira geração realçam o princípio da liberdade. São os direitos civis e políticos, reconhecidos nas revoluções Francesas e Americana. Caracterizam-se por impor ao Estado um dever de abstenção, de não fazer, de não interferência, de não intromissão no espaço de autodeterminação de cada indivíduo. São as chamadas liberdades individuais, que têm como foco a liberdade do homem individualmente considerado, sem nenhuma preocupação com as desigualdades sociais. Surgiram no final do século XVIII, como uma resposta ao Estado liberal ao Estado absoluto. Dominaram todo o século XIX, haja vista que os direitos de segunda dimensão só floresceram no século XX.[2]
Por sua vez, no que diz respeito aos direitos de segunda geração, conforme Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino:
Os direitos de segunda geração identificam-se com as liberdades positivas, reais ou concretas, e acentuam o princípio da igualdade entre os homens (igualdade material). São os direitos econômicos, sociais e culturais. Foram os movimentos sociais do século XIX que ocasionaram, no início do século XX, o surgimento da segunda geração de direitos fundamentais, responsável pela gradual passagem do Estado liberal, de cunho individualista, para o Estado social, centrando na proteção dos hipossuficientes e na busca da igualdade material entre os homens (não meramente formal, como se assegurava no Liberalismo). (…) São, por isso, denominados direitos positivos, direitos do bem-estar, liberdades positivas ou direitos dos desamparados.[3]
Sobre a classificação doutrinária atribuída ao direito fundamental de acesso à justiça, dispõe Franklyn Roger:
Tradicionalmente, os direitos que salvaguardam o acesso à justiça têm sido classificados como direitos fundamentais sociais, compondo a segunda geração dos direitos fundamentais. (…) Por outro lado, em virtude de sua indispensabilidade à liberdade fundamental humana e à plena igualdade jurídica de todos os cidadãos perante a lei, os direitos que garantem o acesso à justiça têm sido considerados por alguns estudiosos como direitos fundamentais civis, como leciona o professor Cleber Francisco Alves. (…) Atualmente, entretanto, essa diferenciação teórica tem perdido relevância com a cada vez mais estreita aproximação das dimensões (ou gerações) dos direitos fundamentais. (…) Por essa razão, independentemente do enquadramento dado entre as gerações dos direitos fundamentais, os direitos que salvaguardam o acesso à justiça devem ser considerados como elementos instrumentais da própria dignidade humana (art. 1º, III, da CFRB), pois garantem a efetividade de todos os demais direitos fundamentais. Justamente por isso, devem ser compreendidos como parte indissociável do mínimo existencial e elemento indispensável para a vida humana digna, não estando limitados, portanto, pela reserva do possível.[4]
Nesse sentido, Cappelletti e Garth produziram o ensaio para o “Projeto de Florença”, destacando as ondas renovatórias no acesso à ordem jurídica. Portanto, serão estudadas apenas brevemente no artigo aquelas que forem mais pertinentes.[5] A primeira onda é elaborada em 1965, tratando da assistência jurídica aos hipossuficientes econômicos, que pode ser prestada principalmente, dentre outras formas, através de: (i) atuação profissional esporádica realizada por caridade e benevolência, modelo denominado como “pro-bono”; (ii) advogado remunerado pelo Estado e designado para a prestação de um determinado serviço judicial, modelo denominado como ‘’judicare’’; (iii) instituição estatal de profissionais que prestam serviços jurídicos, na esfera judicial e extrajudicial, remunerados através de uma relação direta permanente com o Estado, modelo denominado como “salaried staff model” e adotado no Brasil (art. 134 da CF/88).
Já no que diz respeito à segunda onda renovatória, abordam-se os direitos difusos e coletivos, e a terceira onda renovatória é conceituada a partir do acesso à representação em juízo com uma concepção mais ampla de acesso à justiça, por meio de um novo enfoque.[6]
Como decorrência do princípio de acesso à justiça, por exemplo, não mais se admite no sistema constitucional brasileiro a denominada ‘’jurisdição condicionada’’, uma vez que é desnecessário o esgotamento das vias administrativas para socorrer-se ao Poder Judiciário, com exceção no que diz respeito à Justiça desportiva (art. 217, §1º e 2º da CF/88), consagrada pelo Poder Constituinte Originário.
Já no que diz respeito especificamente ao direito de assistência jurídica integral e gratuita aos vulneráveis, dispõe o texto da Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;
De acordo com Diogo Esteves e Franklyn Roger:
Para garantir que esse direito fosse efetivamente concretizado na prática, a Constituição Federal formalizou expressamente a previsão da Defensoria Pública como instituição permanente e a incumbiu, fundamentalmente de prestar “a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados’’ (art. 134, caput, da CFRB).
Desse modo, a assistência jurídica estatal e gratuita aos necessitados deve ser prestada exclusivamente pela Defensoria Pública, restando vedado ao Poder Público realizar a destinação de recursos para o custeio ou manutenção de qualquer modelo jurídico-assistencial diverso (art. 134 da CFRB, c/c art. 4º, §5º, da LC nº80/1994).[7]
Convém destacar que a assistência jurídica integral e gratuita é novidade prevista pela Constituição Federal de 1988, em distinção aos ordenamentos jurídico-constitucionais anteriores. O status constitucional brasileiro foi obtido pela primeira vez na Constituição de 1934, quando restou fixada aos necessitados assistência judiciária, pela União e os Estados, a partir da seguinte disposição: “113, item 32). A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais assegurando a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos. patrocínio gratuito, aos pobres, de causas nos juízos criminais e cíveis.”[8]
Na Constituição Federal de 1937, por sua vez, não foi previsto o direito de assistência judiciária. Todavia, nos artigos 68 e 79, o Código de Processo Civil de 1939 dispõe sobre a justiça gratuita aos necessitados. De acordo com a antiga norma processual civil, vejamos:
CAPÍTULO II
DO BENEFÍCIO DA JUSTIÇA GRATUITA
Art. 68. A parte que não estiver em condições de pagar as custas do processo, sem prejuízo do sustento próprio ou da família, gozará do benefício de gratuidade, que compreenderá as seguintes isenções:
I – das taxas judiciárias e dos selos;
II – dos emolumentos e custas devidos aos juízes, órgãos do Ministério Público e serventuários da justiça;
III – das despesas com as publicações no jornal encarregado da divulgação dos atos oficiais;
IV – das indenizações devidas a testemunhas;
V – dos honorários de advogado e perito.
Parágrafo único. O advogado será escolhido pela parte; si esta não o fizer, será indicado pela assistência judiciária e, na falta desta, nomeado pelo juiz.[9]
Posteriormente, na Constituição Federal de 1946 retorna o dever estatal de assistência judiciária aos necessitados, remetendo à legislação infraconstitucional a regulamentação do tema, o que fez surgir a Lei 1.060/50. Dispõe o antigo texto Constitucional: “Art. 141, § 35: ‘’O Poder Público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados.”[10]
Em seguida, até o advento da Constituição Federal de 1988, não houveram alterações significativas em relação ao disposto pela Constituição de 1946. No entanto, quando surge o texto constitucional de 1988, altera-se o conceito de “assistência judiciária” para “assistência jurídica”. Sobre essa distinção, dispõe Barbosa Moreira:
A grande novidade trazida pela Carta de 1988 consistem em que, para ambas as ordens de providências, o campo de atuação já não se delimita em função do atributo judiciário, mas passa a compreender tudo que seja jurídico. A mudança do adjetivo qualificador da ‘assistência’, reforçada pelo acréscimo integral, importa notável ampliação do universo que se quer cobrir. Os necessitados fazem jus agora à dispensa de pagamentos e à prestação de serviços não apenas na esfera judicial, mas em todo o campo dos atos jurídicos. Incluem-se também na franquia: a instauração e movimentação de processos administrativos, perante quaisquer órgãos públicos, em todos os níveis; os atos notariais e quaisquer outros de natureza jurídica, praticados extrajudicialmente; a prestação de serviços de consultoria, ou seja, de informação e aconselhamento em assuntos jurídicos.[11]
Importa salientar que foram expostas apenas as principais considerações acerca do direito fundamental de acesso à justiça e do direito de assistência jurídica integral e gratuita aos vulneráveis, sem a pretensão de exaurir os institutos durante este estudo.
3. AS PRINCIPAIS RELAÇÕES ENTRE O ACESSO À JUSTIÇA E O DIREITO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL E GRATUITA NO ÂMBITO DO PROCESSO PENAL
No âmbito do Processo Penal, o acesso à justiça é um direito fundamental que assegura que o indivíduo possa ser protegido pelo Poder Judiciário, a partir da lesão ou da ameaça de lesão aos seus bens jurídicos.
Nesse contexto, o acesso à justiça no Processo Penal está intimamente relacionado com a proteção dos demais direitos fundamentais em risco. Trata-se da característica da interdependência e da complementaridade dos direitos fundamentais, que sobre o assunto dispõe Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino:
g) as várias previsões constitucionais, apesar de autônomas, possuem diversas intersecções para atingirem suas finalidades; assim, a liberdade de locomoção está intimamente ligada à garantia do habeas corpus, bem como à previsão de prisão somente por flagrante delito ou por ordem da autoridade judicial; h) os direitos fundamentais não devem ser interpretados isoladamente, mas sim de forma conjunta com a finalidade de alcançar os objetivos previstos pelo legislador constituinte.[12]
No que diz respeito ao Processo Penal como um instrumento de garantia do indivíduo, este estabelece um conjunto de normas e princípios que se destinam ao objetivo principal de aplicação jurisdicional do Direito Penal. No entanto, sem a observância de direitos fundamentais, como o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, incisos LIV e LV, CFRB), garantidos a partir do acesso à justiça, ao final da relação processual, o indivíduo pode vir a sofrer arbitrariamente a violação do seu direito de liberdade, a perda dos seus bens, a perda ou suspensão dos seus direitos políticos, dentre outras penas que são admitidas pelo ordenamento jurídico.
Não obstante, a inobservância do acesso à justiça pode resultar em violações de direitos que vão além das penas admitidas pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, é possível destacar a possibilidade de eventuais casos de:
1. Detenções Arbitrárias: A prisão de indivíduos em desrespeito ao ordenamento jurídico é um exemplo de encarceramento arbitrário, em desconformidade aos direitos humanos (art. 7.3 da Convenção Americana de Direitos Humanos). Por exemplo, a prisão temporária que ultrapassa o prazo decorrido no mandado de prisão e não é o indivíduo imediatamente colocado em liberdade o indivíduo, salvo se já tiver sido comunicada da prorrogação da prisão temporária ou da decretação da prisão preventiva (art. 2º, §7º, da Lei 7.960/1989).
2. Erros do Sistema de Justiça Criminal: O comprometimento do acesso à justiça pode resultar em processos judiciais e investigações criminais que não permitem ao réu produzir provas e exercer o seu direito ao contraditório e à ampla defesa no decorrer do devido processo legal, o que pode levar à condenação de inocentes ou à impunidade de culpados.
3. Condições Precárias nas Prisões: Como disposto pelo STF na ADPF 347, o sistema penitenciário é acometido de um ‘Estado de Coisas Inconstitucionais’. Trata-se de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades em modificar a conjuntura. Apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma pluralidade de autoridades podem alterar a situação inconstitucional. Portanto, a superlotação, falta de acesso a cuidados médicos e condições precárias nas prisões podem resultar em tratamento desumano e degradante (art. 5º, inciso III, da CFRB, c/c art. 5.1 e 5.2, da Convenção Americana de Direitos Humanos), tornando o acesso à justiça imprescindível para combater essas violações.
4. Tortura e Maus-Tratos: Em situações nas quais os custodiados sejam submetidos a tratamento de tortura e maus-tratos, afetando a dignidade humana e direitos fundamentais básicos, como o direito à integridade física e mental, descredibilizando todo o sistema de justiça, o acesso à justiça pode prevenir ou reprimir esses casos de violação.
Apesar da exposição da fundamental importância do acesso à justiça no contexto do Processo Penal, muitas vezes esse direito não é implementado na prática. Isso ocorre quando não há Defensoria Pública para atuar como 'custos vulnerabilis' (ou fiscal dos vulneráveis), e os réus economicamente hipossuficientes não possuem recursos financeiros para contratar advogados particulares. Isso resulta em nomeações de advogados dativos para o exercício da assistência judicial. Sobre os advogados dativos na aplicação subsidiária do sistema judicare ao eleito pela Constituição Federal (salaried staff model), vale destacar a seguinte passagem doutrinária:
Podemos afirmar que a advocacia dativa apresenta dois problemas. Carece de legitimidade, por não encontrar previsão na Constituição da República, tal como ocorre com a Defensoria Pública, e por não ser objeto de deliberação de uma assembleia constituinte. E viola, ainda, a exigência constitucional de realização de concurso público para ingresso no serviço público, já que sua escolha ocorre aleatoriamente, por nomeação, sem que tenham sido averiguadas as condições técnicas julgadas essenciais pelo Estado, para que o profissional cumpra a função de patrocínio do acesso à justiça para os economicamente necessitados. Na verdade, os administradores públicos se valem da figura do advogado dativo como forma de se esquivar de seu mister de criação e estruturação da Defensoria Pública. Por meio de tal figura, os governantes afirmam garantir o acesso à justiça dos pobres, porém ferem a legalidade, já que o constituinte previu órgão próprio competente para instrumentalizar essa garantia, que é a Defensoria Pública. A advocacia dativa, por conseguinte, não fere só o texto constitucional, por constituir burla à existência constitucional de ingresso no quadro público por meio de concurso, mas também se afigura como maquiagem de que se valem os governantes, para se esquivarem da obrigação de efetivar o amplo acesso à justiça através da Defensoria Pública.[13]
No que diz respeito ao direito de assistência jurídica integral e gratuita, incumbência constitucional conferida para a Defensoria Pública (art. 134, caput, da CFRB), é imprescindível a análise dos seguintes dados: no âmbito das Defensorias Públicas dos Estados e do Distrito Federal, o Brasil apresenta a razão de 1 Defensor(a) Público(a) para cada 33.796 habitantes. Levando em consideração exclusivamente a população economicamente vulnerável, o Brasil apresenta a razão de 1 Defensor(a) Público(a) para cada 29.730 habitantes com renda familiar de até 3 salários mínimos. Com base na análise demográfica e considerando o quantitativo de Defensores(as) Públicos(as), os dados revelam que, no âmbito das Defensorias Públicas dos Estados e do Distrito Federal, o Brasil apresenta a razão de 1 Defensor(a) Público(a) para cada 31.140 habitantes. Levando em consideração exclusivamente a população economicamente vulnerável, o Brasil apresenta a razão de 1 Defensor(a) Público(a) para cada 27.401 habitantes com renda de até 3 salários mínimos. (Fonte: Defensorias Públicas dos Estados e do Distrito Federal | Pesquisa Nacional da Defensoria Pública (2023). Dados sobre a estruturação geográfica das comarcas obtidos junto aos Tribunais de Justiça dos Estados e Distrito Federal. Porcentagem da população com renda de até três salários mínimos por comarca projetada do Censo Demográfico 2010 com base nos dados populacionais do Censo Demográfico IBGE (2022).
De acordo com o parágrafo supracitado, evidencia-se o déficit de Defensores Públicos em relação à demanda populacional que necessita de atendimento, comprometendo efetividade prática do direito fundamental de assistência jurídica integral e gratuita. Além disso, a ausência de Defensores Públicos também constitui uma afronta à Emenda Constitucional 80/2014, que dispõe:
Art. 98. O número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)
§ 1º No prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)
§ 2º Durante o decurso do prazo previsto no § 1º deste artigo, a lotação dos defensores públicos ocorrerá, prioritariamente, atendendo as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)
Analisando norma supracitada e os dados anteriormente mencionados, evidentemente, o prazo de 8 (oito) anos não será o suficiente para a implementação completa da Defensoria Pública pelo país. Além disso, mesmo considerando a ADPF 279 e o julgamento do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a possibilidade dos Municípios criarem instrumentos de assistência jurídica, ainda assim será insuficiente para o atender a demanda necessária e efetivamente cumprir o dever constitucional de dispor aos necessitados o direito de assistência jurídica integral e gratuita.
Com base no exposto, a ausência de realização efetiva pelo Estado da assistência jurídica integral e gratuita demonstra um obstáculo na concretização do acesso à justiça, possibilitando cada vez mais violações de direitos no sistema penal. A desproporção entre a demanda por serviços jurídicos e os recursos disponíveis para atendê-la a população ainda mais vulnerável, especialmente aqueles que ocupam o polo passivo da relação processual penal, que, unicamente por serem réus em uma ação penal, já se encontram em um estado de vulnerabilidade. Caso o direito fundamental à assistência jurídica continue insuficiente, a igualdade material entre os cidadãos ricos e pobres (aqueles que podem pagar advogados particulares e os que não podem) se tornará cada vez mais uma ilusão, comprometendo o sistema de justiça como um todo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ausência de implementação efetiva pelo Estado da assistência jurídica integral e gratuita no âmbito do Processo Penal destrói a possibilidade de acesso à justiça aos necessitados, e possibilita ainda mais a ocorrência de violações de direitos no sistema penal. A desproporção entre a demanda por serviços jurídicos e os recursos disponíveis para atendê-la torna a população mais vulnerável, especialmente aqueles que ocupam o polo passivo da relação processual penal, que, somente por serem réus em uma ação penal, já se encontram em um estado de vulnerabilidade. A ineficácia de políticas públicas torna o acesso à justiça um desafio cada vez mais inalcançável, comprometendo a integridade do sistema de justiça como um todo, além do sistema penal.
A implementação da assistência jurídica no âmbito do Processo Penal é crucial para garantir o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, além dos demais direitos fundamentais inscritos na Constituição Federal dos necessitados. A falta de recursos e estrutura adequada pode constituir a linha tênue entre a proteção ou a violação da dignidade humana de quem mais necessita dos serviços jurídicos fornecidos pelo Estado. Além da sanção penal, outras formas de violação ao indivíduo podem resultar a partir da ausência de uma representação efetiva no Processo Penal.
É dever constitucional do Estado prover assistência jurídica de qualidade para aqueles que não podem pagar por serviços jurídicos particulares, incumbência que não pode ser eximida. O fortalecimento da Defensoria Pública para ampliar o acesso à justiça é medida fundamental para assegurar que todos os cidadãos, independentemente de sua situação econômica, tenham a oportunidade de fazer valer seus direitos no sistema penal. A realização desse compromisso não apenas protegerá os direitos individuais, mas também fortalecerá a integridade de todo o sistema de justiça.
REFERÊNCIAS
BITTENCOURT, Fabrízia da Fonseca Passos. Defensoria Pública: Modelo Constitucional de Assistência Jurídica. In: ORDACGY, André da Silva; FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Advocacia de Estado e Defensoria Pública – Funções Públicas Essenciais à Justiça. Curitiba: Letra da Lei, 2009.
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm.
_________. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm.
_________. Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939 (Código de Processo Civil). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del1608.htm.
CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1998.
ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O direito à assistência jurídica: evolução no ordenamento brasileiro de nosso tempo. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). As garantias do cidadão na justiça. São Paulo: Saraiva, 1993.
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 21. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Método, 2022.
[1] ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 1.
[2] PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 21. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Método, 2022, p. 89.
[3] Ibidem, p. 90.
[4] ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Op. cit, p. 6.
[5] CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1998, p. 31.
[6] Ibidem, p. 49-67.
[7] ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Op. cit, p. 298.
[8] BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm. Acesso em: 15 nov. 2023.
[9] BRASIL. Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939 (Código de Processo Civil). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del1608.htm. Acesso em: 15 nov. 2023.
[10] BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm. Acesso em: 15 nov. 2023.
[11] MOREIRA, José Carlos Barbosa. O direito à assistência jurídica: evolução no ordenamento brasileiro de nosso tempo. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). As garantias do cidadão na justiça. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 215.
[12] PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Op. cit., p. 88.
[13] BITTENCOURT, Fabrízia da Fonseca Passos. Defensoria Pública: Modelo Constitucional de Assistência Jurídica. In: ORDACGY, André da Silva; FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Advocacia de Estado e Defensoria Pública – Funções Públicas Essenciais à Justiça. Curitiba: Letra da Lei, 2009, p. 166-167.
Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Católica de Santos
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALVES, Sérgio Vinícius. Assistência jurídica no processo penal e o acesso à justiça: perspectivas de assistência jurídica no âmbito do processo penal para o acesso à justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 nov 2023, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63975/assistncia-jurdica-no-processo-penal-e-o-acesso-justia-perspectivas-de-assistncia-jurdica-no-mbito-do-processo-penal-para-o-acesso-justia. Acesso em: 23 dez 2024.
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