RESUMO: Esse artigo aborda a compreensão da violência obstétrica do ponto de vista jurídico, examinando seus fundamentos legais, as responsabilidades das instituições de saúde e profissionais envolvidos, além das proteções legais disponíveis para as vítimas. A violência obstétrica é uma questão delicada que desafia os princípios fundamentais de respeito aos direitos humanos, especialmente no contexto da assistência à gestante, parturiente e puérpera.
PALAVRA-CHAVE: violência obstétrica. Violência de gênero. Caso Alyne Pimentel. Caso Brítez Arce. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Convenção Belém do Pará.
INTRODUÇÃO:
A violência obstétrica é uma violência de gênero, conforme definido na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém do Pará), que engloba um conjunto de práticas que violam os direitos fundamentais (reprodutivos, sexuais, de liberdade, dentre outros) e a integridade das mulheres durante a gestação, parto, nascimento ou pós-parto, inclusive no atendimento ao abortamento, podendo ser física, psicológica, moral ou sexual, além de negligência, discriminação ou condutas excessivas, desnecessárias ou desaconselhadas, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas.
Este fenômeno, reconhecido como uma violação dos direitos humanos, sempre existiu na realidade das mulheres gestantes, contudo são práticas que foram normalizadas em nosso país durante anos, mesmo com leis que vedavam as práticas.
Normativas internacionais, que foram inclusive ratificadas pelo Brasil, vedam tais práticas, por considerar uma violência de gênero contra as mulheres que constitui grave violação aos direitos humanos, sendo obrigação dos Estados Partes de erradicarem tais práticas.
Convém destacar que o Brasil foi condenado já sofreu condenação pelos tribunais internacionais em matéria de violência obstétrica (Caso Alyne Pimentel). Contudo, ainda assim, a violência obstétrica é uma realidade em nosso país, sendo muitas vezes silenciada pela sociedade, que, convencida por uma justificativa “médico-científica” ratifica essas condutas violentas, ilegais e inconvencionais.
1.DEFINIÇÃO DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
Podemos definir a violência obstétrica como a apropriação do corpo e dos processos naturais relacionados à gestação, pré-parto, perda gestacional, parto e puerpério pelos profissionais de saúde, por meio do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais que cause a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente obre seus corpos e sua sexualidade, impactado negativamente na qualidade de vida das mulheres.
Tal conceito encontra-se no Projeto de Lei n. 7.633 de 2014, de autoria do Deputado Jean Wyllys, que dispõe sobre a humanização da assistência à mulher e ao neonato durante o ciclo gravídico-puerperal e dá outras providências, assim define a violência obstétrica no art. 13:
Art. 13 – Caracteriza-se a violência obstétrica como a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres pelos(as) profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, que cause a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.
Parágrafo único. Para efeitos da presente Lei, considera-se violência obstétrica todo ato praticado pelo(a) profissional da equipe de saúde que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes em trabalho de parto, em situação de abortamento e no pós-parto/puerpério.
O Projeto de Lei foi submetido em 2014 para aprovação, entretanto quase 10 anos depois, ele ainda está em tramitação. Isso demonstra que este tipo de violência de gênero não é considerada uma pauta importante pelos legisladores.
O termo de violência obstétrica pode parecer novo, contudo começou a ser debatido em meados da década de 1980, durante debates sobre violência contra a mulher, em que passaram a questionar práticas tradicionais médicas no parto que eram violadoras dos direitos humanos das mulheres, trazendo a discussão sobre a autonomia do corpo feminino, direitos sexuais e reprodutivos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), desde o ano de 1.996, restringe o uso de determinadas práticas pelos profissionais da saúde durante o parto. Já o Ministério da Saúde no Brasil, em 2001, publicou recomendações vedando certas práticas pelos profissionais da saúde, e, em 2002 lançou o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento que já havia sido implementado no país através da Portaria/GM nº 569, de 1/6/2000, subsidiado nas análises das necessidades de atenção específica à gestante, ao recém-nascido e à mãe no período pós-parto, considerando como prioridades concentrar esforços no sentido de reduzir as altas taxas de mortalidade materna.
2.TIPOS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
São diversos tipos de violência que podem ser vivenciadas pelas mulheres gestantes em trabalho de parto, em situação de abortamento e no pós-parto/puerpério, que podem ser psicológicas (através de discriminações, xingamentos, etc.) físicas (ações que causem dor) e até mesmo sexuais (como a episiotomia).
O art. 14 do Projeto de Lei nº 7.633 de 2014, traz um rol de condutas consideradas como violência obstétrica, dentre as quais, destacam-se:
“(...)
V - induzir a mulher a aceitar uma cirurgia cesariana sem que seja necessária, mentindo sobre riscos imaginários, hipotéticos e não comprovados, e ocultando os devidos esclarecimentos quanto aos riscos à vida e à saúde da mulher e do concepto, inerentes ao procedimento cirúrgico;
(...)
X - impedir que a mulher seja acompanhada por pessoa de sua preferência durante todo o pré-parto, parto e puerpério, ou impedir o trabalho de um(a) profissional contratado(a) pela mulher para auxiliar a equipe de assistência à saúde;
XII - submeter a mulher a procedimentos predominantemente invasivos, dolorosos, desnecessários ou humilhantes, tais como: (...) l) praticar Manobra de Kristeller;
XIII – Realizar a episiotomia quando esta não for considerada clinicamente necessária, enfatizando-se, para efeitos desta Lei, que tal procedimento é vedado se realizado para aceleração do período expulsivo por conveniência do profissional que presta assistência ao parto, ou de proteção prévia do períneo para evitar lacerações, não sendo tais justificativas clínico-obstétricas aceitas;
XIV – Realizar episiotomia, quando considerada clinicamente necessária, sem esclarecer a mulher sobre a necessidade do procedimento e receber seu consentimento verbal;
XV – Realizar episiotomia sem analgesia e episiorrafia sem adequada ou suficiente analgesia; (...)”
Em 2001, através de uma recomendação, o Ministério da Saúde no Brasil, destacou que a episiotomia de rotina e a manobra de Kristeller, são procedimentos prejudiciais ou ineficazes e que deveriam ser eliminados, contudo, até hoje são utilizados normalmente pelos profissionais da saúde, com a justificativa de salvar a vida do feto e da gestante, mesmo sem qualquer indicação para tanto.
A episiotomia é um procedimento que consiste no corte da entrada da vagina com uma tesoura ou bisturi, algumas vezes sem anestesia e sem o consentimento da gestante. Tal prática ainda é muito utilizada no Brasil, e, na maioria dos casos sem o consentimento da gestante e sem informações dobre sua necessidade, seus riscos e efeitos adversos, tais como: causar uma maior perda de sangue durante e pós parto, mais dor durante o parto, hematoma, dentre outras.
Já a Manobra de Kristeller, que já foi banida pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é uma técnica agressiva, que consiste em pressionar a parte superior do útero para acelerar a saída do bebê, o que pode causar lesões graves. O Ministério da Saúde define como sendo pressões inadequadamente aplicadas ao fundo uterino no período expulsivo, como claramente prejudicial ou ineficaz e que deve ser eliminada por ser danosa, dolorida e ineficaz.
3. FUNDAMENTOS LEGAIS.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, assegura o direito à integridade física e psicológica, enquanto convenções internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), estabelecem princípios de igualdade e não discriminação.
3.1. VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NO DIREITO INTERNO:
Atualmente, inexiste lei federal sobre o tema. Contudo, é possível verificá-lo em diversas leis esparsas no país, bem como extraí-lo da Constituição Federal de 1988, em especial nos Artigos 5º, 6º e 196, a responsabilização por tais práticas, uma vez que condutas desarrazoadas na condução do parto, violência e procedimentos desnecessários ferem o princípio da isonomia, em razão do tratamento discriminado das mulheres, bem como a garantia constitucional à vida e à saúde da mãe e do bebê, inclusive o de não ser submetida a tratamento cruel e desumano.
A Lei nº 11.108/2005 que altera a Lei nº 8.080/90, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS e prevê expressamente que a gestante tem o direito de ser acompanhada por pessoa de sua escolha durante sua permanência no estabelecimento de saúde.
Há também diversas normativas do Ministério da Saúde, tais como, a Portaria 569/2000, que Institui o Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento, no âmbito do SUS e prevê o direito de atendimento digno, humanizado e de qualidade na gestação, parto e puerpério e traça os princípios gerais e condições para o adequado acompanhamento do pré-natal e para a adequada assistência ao parto.
A Portaria 1.067/2005 dispõe que é dever dos serviços e profissionais de saúde acolher com dignidade a mulher e o recém-nascido, e que a atenção com qualidade e humanizada depende de rotinas com procedimentos comprovadamente benéficos, evitando-se intervenções desnecessárias, garantindo-se a privacidade, a autonomia e compartilhando-se com a mulher e sua família as decisões sobre as condutas a serem adotadas.
Alguns estados elaboraram normas estaduais sobre o tema, como no caso do Estado de Mato Grosso do Sul, que editou a Lei n. 5217 de 2018 que elenca diversas práticas que são consideradas violência obstétrica (art. 2º) e orienta as mulheres a forma como proceder para denunciar tais práticas (art. 5º, §2º), convém destacar certos artigos e incisos da lei:
Art. 2º Considera-se violência obstétrica todo ato praticado pelo médico, pela equipe do hospital, por um familiar ou acompanhante que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes, em trabalho de parto ou, ainda, no período puerpério.
Art. 3º Para efeitos da presente Lei considerar-se-á ofensa verbal ou física, dente outras, as seguintes condutas:
I - tratar a gestante ou a parturiente de forma agressiva, não empática, grosseira, zombeteira, ou de qualquer outra forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido;
II - fazer graça ou recriminar a parturiente por qualquer comportamento como gritar, chorar, ter medo, vergonha ou dúvidas;
III - fazer graça ou recriminar a mulher por qualquer característica ou ato físico como, por exemplo, obesidade, pelos, estrias, evacuação e outros;
(...)
XX - não informar a mulher, com mais de 25 (vinte e cinco) anos ou com mais de 2 (dois) filhos sobre seu direito à realização de ligadura nas trompas gratuitamente nos hospitais públicos e conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS);
(...)
Art. 5º Os estabelecimentos hospitalares deverão expor cartazes informativos contendo as condutas elencadas nos incisos I a XXI do art. 3º desta Lei.
§ 1º Equiparam-se aos estabelecimentos hospitalares, para os efeitos desta Lei, os postos de saúde, as unidades básicas de saúde e os consultórios médicos especializados no atendimento da saúde da mulher.
§ 2º Os cartazes devem informar, ainda, os órgãos e os trâmites para a denúncia nos casos de violência de que trata esta Lei.(...)”
No Município do Rio de Janeiro, foi editada em 2021 uma lei municipal que também trata a temática, a Lei nº 6.898 de 18 de maio de 2021, que define a violência obstétrica e traz as formas em que é verificada. Há também a recente Lei Municipal nº 7.687 de dezembro de 2022, que dispõe sobre medidas para a humanização do parto e combate à violência obstétrica e dá outras providências, que além de prever as formas de violência, traz importante mecanismo para viabilizar as denúncias de tais práticas, sendo importante destacar seu artigo 15:
Art. 15. Os estabelecimentos que oferecem atendimento pré-natal ou ao parto deverão expor cartazes informativos sobre o direito à elaboração do Plano Individual de Parto e demais disposições da presente Lei, bem como disponibilizar às pessoas gestantes um exemplar da cartilha referida no art. 14. desta Lei.
Parágrafo único. Os cartazes devem informar, ainda, os órgãos e trâmites para a denúncia nos casos de não observância à presente Lei, quais sejam:
I - exigir o prontuário da gestante ou da parturiente no hospital, que deve ser entregue sem questionamentos e custos;
II - que a pessoa gestante ou parturiente escreva uma carta, e-mail ou equivalente, contando em detalhes que tipo de desrespeito à Lei ocorreu durante sua assistência e como se sentiu;
III - se o seu atendimento foi em serviço vinculado ao Sistema Único de Saúde - SUS, que envie a carta, e-mail ou equivalente para a ouvidoria do serviço de saúde com cópia para a diretoria clínica, para a Secretaria Municipal de Saúde e para a Secretaria Estadual de Saúde;
IV - se o seu atendimento foi em serviço da rede privada, envie a carta, e-mail ou equivalente para a diretoria clínica do hospital, com cópia para a diretoria do seu plano de saúde, para a ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar e para as secretarias municipal e estadual de saúde;
V - consultar um advogado ou a Defensoria Pública para as outras instâncias de denúncia, se aplicável;
VI - ligar para a Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180, central que acolhe denúncias de Violência Obstétrica no âmbito da Prefeitura do Rio de Janeiro.
No ano de 2022, o CNJ publicou a Resolução nº 123/2022, que recomenda aos órgãos do Poder Judiciário a observância dos tratados internacionais de Direitos Humanos e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, bem como a necessidade de controle de convencionalidade.
3.2. VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NO DIREITO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS:
No âmbito do direito internacional, é possível extrair a violência obstétrica de diversos tratados e normativas. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW- assim prevê no art. 12:
“Artigo 12
1. Os Estados-parte adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive os referentes ao planejamento familiar.
2. Sem prejuízo do disposto no parágrafo 1º, os Estados-parte garantirão à mulher assistência apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactância.”
Já no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais é possível verificar no art. 12 que preceitua que “Toda pessoa tem direito de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental.”
Na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém do Pará), tem-se como violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada (artigo 1). Além disso, dispõe que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica ocorrida no serviço de saúde (artigo 2, b). No artigo 9 trabalha com a interseccionalidade, ou seja, diversos marcadores de vulnerabilidades na mesma situação fática, mencionando que também deve ser considerada a violência contra a mulher gestante.
Foram publicadas diversas recomendações da Comissão interamericana de Direitos Humanos para o Brasil, no Relatório sobre Direitos Humanos, de fevereiro de 2021, sobre o tema da violência obstétrica:
458. A CIDH reconhece que o Brasil alcançou o importante feito de estabelecer um sistema universal de saúde que integra e articula serviços em todos os níveis de complexidade, fazendo-os presentes em todo o território nacional. O Sistema Único de Saúde (SUS), apesar de seus desafios históricos em temas como violência obstétrica, disponibilidade de medicamentos, entre outros, aparece como modelo de universalização de saúde pública gratuita, representando o compromisso do Estado brasileiro com a efetivação do direito à saúde. Dentro do SUS destaca-se ainda o Subsistema de Saúde Indígena, o qual foi exemplo ímpar de política de saúde que acolhe o direito à diferença na realização do direito à saúde.
464. A CIDH também recebeu informações preocupantes a respeito de atos de violência obstétrica696 cometidos contra mulheres no Brasil e, em particular, contra mulheres em situação de maior vulnerabilidade. Segundo a OMS, mulheres em todo mundo sofrem tratamento desrespeitoso, ofensivo ou negligente em unidades de saúde antes, durante ou depois do parto. Esses atos envolvem maus tratos físicos, humilhações, maus tratos verbais, procedimentos médicos sem consentimento ou coercitivos (in cluindo a esterilização), quebra de confidencialidade, não obtenção de consentimento informado completo, não administração de analgésicos, violações de privacidade, recusa de admissão nas unidades de saúde, entre outros.
470. Assim, enfatiza que o Estado deve garantir a investigação rápida, completa, independente e imparcial dos incidentes de violência obstétrica e negligência médica, assegurando a investigação de todas as partes potencialmente responsáveis e, conforme o caso, o seu julgamento e pena. Da mesma forma, o Estado deve eliminar todos os mecanismos legais e de fato para impedir investigações internas, processos criminais, processos civis e investigações federais.
4.CASOS PARADIGMÁTICOS.
4.1. CASO ALYNE PIMENTEL VS. BRASIL
O Brasil foi responsabilizado internacionalmente pelo Comitê da CEDAW- órgão contencioso de natureza quase jurisdicional, incumbido de monitorar o cumprimento pelos Estados-partes da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres- por violência obstétrica, por entender que o Estado Brasileiro atuou de forma insuficiente na proteção dos direitos humanos à vida, à saúde, à igualdade e não discriminação no acesso à saúde.
Foi a primeira condenação do Brasil no Sistema global, bem como o primeiro caso de mortalidade maternal julgado pelo Comitê pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW).
Alyne da Silva Pimentel Teixeira—uma mulher brasileira, de 28 anos, negra, pobre e grávida – foi à Casa de Saúde Nossa Senhora da Gloria, uma clínica de saúde privada em Belford Roxo, no estado do Rio de Janeiro. Apesar de apresentar sintomas de gravidez de alto risco, o médico que realizou o atendimento a mandou de volta para casa. Contudo, seus sintomas se agravaram nos dois dias seguintes, de forma que ela retornou à clínica. À esta altura os médicos não conseguiram mais detectar os batimentos cardíacos fetais.
Seu parto foi induzido seis horas depois, resultando em um feto natimorto. A cirurgia para extrair a placenta ocorreu catorze horas mais tarde, apesar de dever ter ocorrido imediatamente após a indução do parto. Devido ao fato da saúde de Alyne estar se deteriorando rapidamente, ela teve que ser transferida a um serviço de saúde público mais especializado, e teve esperar mais de oito horas para ser transferida ao Hospital Geral de Nova Iguaçu. Alyne morreu depois de mais de 21 horas sem receber assistência médica.
O caso demonstra o evidente reflexo da interseccionalidade (gênero- raça- condição financeira) na compreensão da mortalidade materna enquanto violação do direito à saúde sexual e reprodutiva e oferece parâmetros para a abordagem interseccional da violência contra as mulheres.
4.2. CASO CRISTINA BRÍTEZ ARCE VS ARGENTINA.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em Janeiro de 2023, condenou a Argentina pela violência obstétrica e morte de Cristina Brítez Arce.
Cristina Brítez Arce, de origem paraguaia, com 38 anos, durante a gravidez procurou, por diversas vezes, atendimento no sistema de saúde argentino, por conta da existência de alguns fatores de risco gestacionais, como hipertensão arterial, todavia, não foi devidamente atendida como uma paciente de alto risco.
Em junho de 1992, a senhora Brítez Arce, com mais de 40 semanas de gestação, foi ao Hospital Público Ramón Sardá por conta de dores lombares, febre e pouca perda de líquido pelos órgãos genitais, de modo que, após a realização de uma ecografia, foi indicado que o feto estava morto. Em seguida ela foi internada para que fosse feita a indução do parto, e, durante o trabalho de parto, teve de aguardar por duas horas em uma cadeira. Após, Cristina Brítez Arce faleceu devido a uma parada cardiorrespiratória não traumática. Posteriormente, quanto à morte da senhora Brítez Arce, foram instaurados três processos penais e um civil, que foram todos julgados improcedentes.
Na sentença, de 16 de novembro de 2022, a Corte Interamericana reiterou que a violência obstétrica “abrange todas as situações de tratamento desrespeitoso, abusivo, negligente ou negação de tratamento, durante a gravidez e na fase anterior, e durante o parto ou puerpério, em centros de saúde públicos ou privados”.
Por conta disso, a Corte IDH concluiu como violados os direitos à vida, à integridade pessoal e à saúde (Artigos 4.1, 5.1 e 26, combinados com o Artigo 1.1, todos da CADH), reconheceu, ainda, violação aos direitos dos filhos da sra. Britez Arce que sofreram com o falecimento da principal responsável por seus cuidados, o que alterou significativamente suas vidas e a construção de suas identidades, violando, assim, os direitos à integridade pessoal, proteção à família, direitos da criança, garantias judiciais, e proteção judicial (Artigos 5.1, 17.1 e 19 combinados com o artigo 1.1, todos da CADH).
Dentre outros argumentos, a Corte IDH considerou que ela se encontrava em uma condição de especial vulnerabilidade, não apenas por estar grávida, mas também por apresentar diversos fatores de risco - como sua idade, histórico de hipertensão arterial e aumento significativo de peso durante a gestação - aos quais não se deram a devida atenção médica e que até por conta disso não foram informados à paciente.
CONCLUSÃO:
Em conclusão, pode-se afirmar que a violência obstétrica ainda é uma realidade em nosso país e que desafia os alicerces dos direitos fundamentais. A discussão, a informação e a elaboração de leis para regulamentá-la é essencial para fortalecer a proteção das gestantes, parturientes e puérperas, assegurando que a assistência obstétrica seja pautada pelo respeito, dignidade e garantia dos direitos humanos. Identificar as más condutas e práticas dos profissionais de saúde, entender que são erradas e dar nome à violência faz parte do enfrentamento.
BIBLIOGRAFIA:
https://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/057.asp
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/parto.pdf
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1257785&filename=PL%207633/2014
https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=361631
https://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/brasil2021-pt.pdf
https://www.patriciamagno.com.br/dh-na-corte/caso-alyne-pimentel-vs-brasil/
advogada formada pela PUC-RIO .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COUTINHO, Natália Maria Madureira da Rocha. Violência obstétrica e seus desdobramentos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2023, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64159/violncia-obsttrica-e-seus-desdobramentos. Acesso em: 23 dez 2024.
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