RESUMO: O presente artigo tem o propósito de analisar a conjuntura da Fiança Penal, sob a perspectiva do vigente sistema acusatório, alinhando-se à investigação da origem dessa medida cautelar e das consequências práticas de sua incidência na atualidade – com enfoque na sua inter-relação com o caráter de ultima ratio da prisão preventiva. O objetivo é analisar se a fiança penal, na prática, vem sendo adotada de maneira adequada ao que se espera de um instituto estabelecido como meio substitutivo adverso à prisão. Em um primeiro momento, serão abordados os fundamentos teóricos da discussão acerca da natureza jurídica da fiança, bem como dos fundamentos legais e princípios que a envolvem. Em seguida, será realizada uma análise crítica da sua efetividade e compatibilidade com o sentido que lhe é esperado, destacando exemplos de possíveis abusos na imposição da fiança penal. Diante das críticas e desafios apresentados, serão apresentadas propostas de reforma e aperfeiçoamento da forma em que enxerga e aplica a fiança penal, visando melhorar seu funcionamento e adequação ao sistema processual acusatório. Ao fim, serão apresentadas as considerações finais tendo por base a efetividade e relevância da fiança penal, levando em conta a proteção dos direitos fundamentais do acusado sem prejuízo da necessidade de um processo penal eficaz.
Palavras-chave: Fiança Penal. Sistema Acusatório. Eficácia processual. Desvirtuamento institucional.
1 INTRODUÇÃO
A fiança penal, enquanto medida cautelar, é concebida em nosso sistema de justiça criminal como uma medida alternativa à imposição da prisão preventiva. Em teoria, a finalidade desse instituto deveria ser a de garantir um mais fácil acesso do investigado à liberdade provisória, ao mesmo tempo em que permite assegurar a sua presença durante todo o processo criminal (NUCCI, p. 596, 2016).
No entanto, a efetividade desse instituto, quando apreciada sob uma perspectiva redutora de danos e alinhada às expectativas de um sistema que se diz acusatório, tem sido objeto de questionamento na prática.
Afinal, a fiança penal cumpre adequadamente com o seu papel de medida cautelar alternativa ou apenas evidencia um instituto adotado em dissonância a um sistema processual que enxerga o acusado como um sujeito de direitos?
A essência dessa indagação crítica tem sua base na constatação de que esse instituto, em que pese tenha vivenciado, na teoria, a inevitável mudança da maneira de se enxergar o processo penal, não passou pela concreta renovação que lhe era esperada, colocando em evidência a discrepância existente entre o ideal de justiça e a aplicação dessa medida, supostamente cautelar e alternativa, na prática.
Dessa aversão ao progresso, surge a preocupação do presente artigo em avaliar a relevância e a adequação da fiança penal ao contexto atual.
Para tanto, em um primeiro momento, este trabalho estudará os fundamentos teóricos que perfazem a natureza jurídica da fiança penal, a fim de compreender qual a natureza jurídica, a função e a justificativa desse instituto no sistema de justiça criminal.
No segundo tópico, a análise crítica da efetividade da fiança penal será aprofundada, examinando-se casos em que a imposição dessa medida cautelar revela consequências desproporcionais, seletivas e violadoras de direitos daqueles que estão sendo acusados. Esta avaliação visa identificar os desafios e as lacunas na aplicação desse instituto, evidenciando possíveis abusos ou inadequações que comprometem a busca por um sistema de justiça mais justo e equitativo.
Em seguida, será realizada uma contextualização jurisprudencial a fim de que sejam levantados os impactos que esse olhar crítico gerou, e possa vir a gerar ainda mais, sobre o instituto da fiança penal em nosso ordenamento.
Assim, identificados os problemas que afetam a eficácia e a aplicação da fiança penal como um instituto jurídico importante ao processo criminal, serão apresentadas as propostas de reforma e alternativas viáveis.
Portanto, no quarto tópico, o foco será direcionado à busca por melhorias capazes de aprimorar e adequar a medida cautelar estudada ao atual sistema acusatório, objetivando, ao final, encontrar uma linha de equilíbrio entre a proteção dos direitos fundamentais daqueles que estão sendo investigados e a necessidade de um processo penal eficiente.
2 A NATUREZA JURÍDICA DA FIANÇA PENAL: FUNDAMENTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS ENVOLVIDOS
A palavra fiança, em seu sentido etimológico, conforme destaca Mirabete (2006, p. 414), descende do termo “fidare”, este que significa ‘confiar em alguém’.
Por isso, a fiança penal inseriu-se no ordenamento processual penal como uma espécie de caução ou garantia real a ser prestada pelo acusado a fim de permitir que o Estado possa “confiar” que aquele que está sendo investigado cumprirá, mesmo em liberdade, com as obrigações judiciais que lhe forem impostas durante todo o curso de um moroso processo penal.
Tendo por base a finalidade deste instituto, duas foram as correntes que se estabeleceram na doutrina com o intuito de justificar a sua natureza jurídica.
A primeira corrente, que perdurou durante um momento em que o nosso sistema processual penal era marcadamente inquisitorial, atribuía à fiança um caráter de contracautela. Melhor dizendo, entendia-se que enquanto a manutenção da prisão em flagrante, com sua ulterior conversão em preventiva, serviria como a cautela essencial para a garantia da higidez processual, era a fiança uma condição meramente acessória que surgia como uma contracautela capaz de, justamente, evitar que, em casos excepcionais, o investigado, ainda entendido como objeto do processo, viesse a ser mantido em custódia.
A fiança, sob essa primeira perspectiva, não aparecia como uma medida efetivamente substitutiva à prisão preventiva, mas como uma condição adicional para que o acusado tivesse acesso a uma liberdade provisória. Tratava-se de uma situação arbitrária em que a prisão preventiva aparecia como regra enquanto que a fiança, ao invés de servir como alternativa, restava como mero elemento justificador da manutenção do acautelamento prisional caso não fosse cumprida.
Tal viés era convalidado pelo próprio sentido que o nosso ordenamento jurídico destinava às prisões cautelares. Afinal, tendo por base o ordenamento vigente durante a construção do Código de Processo Penal (1941), o normal era que o réu respondesse o processo já preso para que somente na remota hipótese de vir a ser comprovada, em definitivo, a sua inocência, puder-se falar em uma colocação em liberdade.
A prova disso pode ser extraída da própria leitura da redação originária do art. 596 do Código de Processo Penal de 1941, o qual previa a possibilidade de que o acusado, mesmo sendo absolvido, viesse a ser mantido preso durante a apelação contra a sentença absolutória para determinados crimes que ultrapassassem um certo patamar máximo de pena, in verbis:
“Art. 596 - A apelação de sentença absolutória não impedirá que o réu seja pôsto imediatamente em liberdade, salvo nos processos por crime a que a lei comine pena de reclusão, no máximo, por tempo igual ou superior a oito anos” (Redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948) (grifo nosso).
Evidencia-se aqui que a presunção de inocência, naquela época, era ignorada por completo, haja vista a adoção de um sentido em que o certo era presumir que o investigado por determinados crimes era notadamente culpado e, por isso, deveria permanecer preso até ser sanada, em definitivo, a “dúvida” acerca de sua culpabilidade, tanto que nem mesmo uma sentença absolutória era capaz de afastar a custódia cautelar em determinados certos casos.
No mesmo sentido, o art. 594 do CPP, também em sua redação originária, trazia o instituto da fiança e a própria prisão do acusado como requisitos essenciais para a interposição de apelação, demonstrando, mais uma vez, a preocupação do legislador em garantir a imposição de restrições (ou privações) à liberdade para que o réu pudesse praticar atos processuais que lhes deveria ser intrínseco[1]. Vejamos:
“Art. 594. O réu não poderá apelar sem recolher-se á prisão, ou prestar fiança, salvo se condenado por crime de que se livre solto” (grifo nosso).
Fica claro, portanto, que o objetivo do legislador, naquele momento, era, de fato, estabelecer a prisão como a regra a ser tomada, deixando-se para a via da excepcionalidade a própria aplicação da fiança, com nítido caráter de contracautela, e de qualquer outra medida pautada no afastamento da custódia cautelar do acusado.
Ocorre que, com a chegada da Constituição de 1988, as bases que sustentavam a antiga concepção da fiança como elemento de contracautela e, portanto, menos interessante ao sistema processual do que a imposição de prisões cautelares, foram gradualmente perdendo espaço na teoria jurídica.
A partir da nova hegemonia constitucional, restou estabelecida, de forma explícita, a presunção de inocência do acusado durante o processo penal. Assim, a atuação jurisdicional passou a ser pautada com base em uma regra de tratamento direcionada a evitar, ao máximo, uma privação cautelar da liberdade daquele que está inserido em uma investigação ou em um processo, a menos que não existam outras medidas menos gravosas.
E, com as alterações positivadas pela Lei nº 12.403/11, a fiança, ao menos sob uma perspectiva doutrinária e legal, deixou de ser apenas uma medida de contracautela (CPP, art. 310, III), cedendo espaço à segunda corrente que a enxergava como uma medida cautelar autônoma, podendo ser determinada pelo juiz nas infrações que admitem a fiança, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em casos de resistência injustificada à ordem judicial (CPP, art. 319, VIII) (BRASILEIRO, 2020, p. 1165).
Seguindo-se por uma análise in abstrato, essa nova conjuntura aparentou destinar à fiança um importante papel na consolidação do caráter terminantemente excepcional da prisão cautelar, haja vista posicionar-se como um instituto aparentemente capaz de garantir a liberdade provisória do investigado/acusado, na medida em que, em uma mesma proporção, garante a defesa de seus direitos fundamentais e assegura a higidez do processo penal em curso.
No entanto, não é essa a conclusão que se extrai da apreciação em concreto desse instituto na prática processual vigente.
Adentrando-se no cotidiano forense, a discussão crítica em torno da fiança penal, conforme será melhor destrinchado no tópico a seguir, encontra-se intimamente ligada à noção de justiça social e ao desvirtuamento do sentido a que se era esperado dessa medida cautelar autônoma.
Já que, ao invés de ser elencada como uma medida substitutiva em contextos nos quais a prisão preventiva, subsidiada pelos arts. 311 a 313 do Código de Processo Penal, mostra-se aparentemente inevitável, a fiança, na prática, passa a ser desenvolvida como um novo embaraço econômico à liberdade provisória em casos que sequer foram preenchidos os requisitos legais da prisão cautelar.
Ou seja, o que era para servir como consolidação da natureza da prisão como uma última medida no processo, torna-se, na realidade, um elemento justificador desse acautelamento prisional, gerando injustiças processuais tanto em seu aspecto socioeconômico quanto no próprio sentido a que se é esperado da apreciação da necessidade de uma prisão cautelar em consonância à proteção dos bens jurídicos positivada, também in abstrato, pelo legislador.
Em que pese haver tópico específico deste trabalho destinado à apreciação crítica do debate formado sobre o instituto ora estudado, importa adiantar que, ao contrário da linha de aperfeiçoamento que a teoria da natureza jurídica da fiança se mostrou adotar, essa mudança de paradigma, alinhada ao cerne constitucional e de um direito processual penal acusatório, não vem sendo observada, por exemplo, na sistemática das audiências de custódia ou da própria reavaliação das prisões arbitrariamente impostas.
Sob tal nuance, o citado sentido de ultima ratio da prisão preventiva acaba cedendo espaço a uma indevida utilização da fiança, esta que, influenciada por uma perpetuação da desigualdade no sistema processual penal, deixa de ser um elemento “menos gravoso” àquele que está sendo acusado e passa, sem qualquer embasamento, a servir como uma condicionante hábil a convalidar uma prisão cautelar atípica, já que desprovida de mandado judicial, sobre aqueles que se recusem ou não possam pagá-la, mesmo quando não existam os requisitos ensejadores desse acautelamento.
3 ANÁLISE CRÍTICA DA EFETIVIDADE DA FIANÇA PENAL: UM INSTITUTO MAL APLICADO?
Ao aprofundar a tese crítica ora adiantada no tópico anterior, evidencia-se, desde já, que esse desvirtuamento prático da fiança penal acabou escancarando a insuficiência de sua renovação teórica e, na mesma medida, permitiu a constatação de que esse instituto, ao contrário da natureza jurídica que lhe é destinada, não vem sendo aplicado como uma medida cautelar totalmente autônoma.
Trata-se, na verdade, de uma medida que, dentro de um cotidiano jurisdicional que deveria prezar por uma política redutora de danos e pelo princípio da menor onerosidade ao acusado, parou no tempo.
Constatada uma falha procedimental na forma de se aplicar a fiança, tornou-se corriqueiro que, durante a apreciação da legalidade da prisão em flagrante, os juízes reconheçam expressamente a inexistência de requisitos para a decretação da prisão preventiva e, mesmo entendendo ser o caso de aplicação de uma medida substitutiva, decidam por conceder a liberdade provisória mediante o pagamento de fiança, sem levar em consideração a situação econômica do réu, descumprindo o CPP, que determina a dispensa da fiança nesses casos (PAIVA, 2018).
Com a imposição dessa medida cautelar, especialmente sobre aqueles que não possuem condições financeiras, as consequências serão, naturalmente, a negativa de seu pagamento, seja devido à própria impossibilidade financeira ou ao sentimento de injustiça diante de uma falsa acusação.
Em alguns casos até se chega à concessão da liberdade provisória, mas, para isso, o acusado precisa de um apoio externo de seu ciclo social para levantar o preço necessário para ter acesso a um direito que lhe deveria ser subjetivo, qual seja, o de não permanecer preso em um processo sem elementos mínimos para tal, já que a prisão deveria ser, sempre, a última hipótese a ser considerada.
Sem adentrar na perspectiva de uma violação à intranscendência penal, resta evidente aqui que a natureza dessa prisão, em dissonância ao que já fora consolidado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 466.343[2], se perfaz em um sentido mais civil do que cautelar. Afinal, o acusado não teve a sua liberdade embargada em virtude dos riscos oriundos de sua periculosidade ou da gravidade do crime que lhe é imputado à ordem pública (CRUZ, p. 9, 2009), mas apenas por não ter a mínima condição financeira de pagar a medida cautelar “autônoma” que lhe fora imposta, ficando preso até que o faça.
No entanto, não é apenas a arbitrariedade da fiança em seu aspecto econômico que levanta preocupação sobre a sua aplicação na prática. Ao analisar esse instituto à luz da premissa dos bens jurídicos tutelados pela lei penal, restam evidenciadas novas incongruências à imposição dessa medida cautelar.
A título exemplificativo, estamos a presenciar um sistema processual em que, por exemplo, um agente que tenha praticado um crime hediondo como o de estupro, por não constar as circunstâncias necessárias à imposição de uma prisão, seja colocado em liberdade provisória sem fiança, já que corresponde a um crime inafiançável, enquanto um acusado de ter praticado um crime de embriaguez ao volante ou um mero furto simples, mesmo que também não tenham sido preenchidos os requisitos legais para a sua preventiva, venha a permanecer preso simplesmente por não ter condições de pagar uma fiança.
Ocorre que, em ambos os casos, independentemente do crime ser inafiançável ou não, se não constam os requisitos legais exigidos para a prisão preventiva, a saída deveria ser, justamente, a sua imediata colocação em liberdade provisória com as medidas pertinentes e adequadas à realidade do agente.
Sob essa conjuntura, o que acontece é que um caráter de inafiançabilidade que, na visão do legislador e do constituinte originário, deveria tornar mais severa a situação daquele que está sendo acusado de um crime hediondo, queda-se, pelo fator da incongruência da imposição desmedida da fiança como condicionante à liberdade, com um papel invertido ao que se era esperado da proteção dos bens jurídicos mais relevantes à sociedade.
Assim, em certos casos, torna-se mais fácil o acesso à liberdade provisória ao que cometeu um crime inafiançável em detrimento do que cometeu um crime afiançável e “menos grave” pelo simples fato do julgador optar por aplicar essa medida cautelar, mesmo que, em ambos os casos, não estejam presentes os requisitos necessários à decretação de uma preventiva.
Ora, se a manutenção da prisão daquele que foi preso em flagrante deveria ser a ultima ratio, qual a razão de o Poder Judiciário não buscar outras alternativas antes de impor a fiança como medida condicionante ao acesso à liberdade provisória?
Por exemplo, caso o acusado, mesmo tendo condições financeiras para fazê-lo, se recuse a pagar essa fiança, o ônus da prova dessa capacidade financeira deverá recair sobre o Órgão Acusatório que estar a participar da audiência de custódia e não do próprio acusado.
E, mesmo se constatada essa capacidade financeira, há de se garantir que possa cumpri-la da mesma forma em que ocorre com todas as demais medidas cautelares, ou seja, em liberdade, sem falar que existem uma série de outras medidas constritivas capazes de garantir o acesso a essa quantia esperada para fins de fiança.
Da mesma forma, se há uma constatação da ausência de condições para arcar com tal medida cautelar, por que motivo o julgador não simplesmente a substitui por uma das outras diversas medidas estabelecidas no art. 319 do CPP ao invés de manter a prisão até que se alcance a quantia determinada para a fiança?
Fica claro aqui que, para ver-se estabelecida na prática como uma medida cautelar autônoma, é preciso que a fiança seja compreendida como tal, sendo injustificada qualquer medida que ainda insista em estabelecê-la como um requisito atípico à manutenção da prisão, ainda que sem um efetivo título judicial para esse acautelamento.
Trata-se, na realidade, de um desvirtuamento evidenciado na forma em que esse instituto vem sendo aplicado em nosso ordenamento, incidência esta que não condiz com o que se espera de uma medida cautelar substitutiva da prisão e não justificadora desta.
4 OS IMPACTOS DESSE OLHAR CRÍTICO SOBRE O DIRECIONAMENTO JURISPRUDENCIAL ACERCA DA APLICAÇÃO DA FIANÇA
Essa situação emblemática envolvendo a fiança não passou completamente despercebida pelos Tribunais Superiores, isso muito em razão do papel atuante e do olhar crítico que a Defensoria Pública, órgão com maior proximidade à esse contexto de inequívoca vulnerabilidade, assumiu no embate às injustiças sociais perpetradas diante da desmedida aplicação dessa caução penal.
Fato é que, em razão de uma determinação constitucional, nenhuma pessoa poderia permanecer presa cautelarmente sem uma decisão judicial fundamentada que decrete a sua prisão. Isso, contudo, é o que ocorre na manutenção da prisão anômala daquele que não paga a fiança.
A realidade prática, como já adiantado no tópico anterior, nos mostra que mesmo em situações em que não mais existe uma situação de flagrância, já que esta, via de regra, se esvai dentro de 24 (vinte e quatro) horas, é corriqueira a manutenção, de maneira tácita e anômala, de prisões sob a simples justificativa de que não fora paga a medida cautelar autônoma imposta.
Se adentrarmos mais a fundo na previsão legal disposta no CPP, vê-se que o art. 310 desse diploma legal estabelece que, após o recebimento do auto de prisão em até 24 horas, o juiz deverá tomar uma das três medidas previstas em lei: i) relaxar a prisão; ii) converter a prisão em flagrante em prisão preventiva; ou iii) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, ou aplicar outra medida cautelar.
A justificação da prisão em flagrante morre a partir do momento em que o juiz profere um pronunciamento judicial acerca da sua legalidade e, em seguida, avalia se será o caso da sua conversão em preventiva ou da concessão de sua liberdade provisória (LOPES JR., p. 417, 2021).
Ao constatar que os requisitos dispostos nos arts. 311 a 313 do CPP não foram preenchidos, a única saída do julgador deve ser de conceder ao autuado o direito à liberdade provisória, sopesando se será o caso, ou não, de aplicar-lhe outras medidas cautelares diversas da prisão.
E, em caso de aplicação dessas medidas, deve o acusado ser colocado imediatamente em liberdade para que, em seguida, possa cumpri-las.
Afinal, consiste em um manifesto desvirtuamento procedimental exigir que primeiro se cumpra com o pagamento da fiança para que, só então, possa o afiançado vir a gozar da liberdade no curso de sua investigação ou do próprio processo penal.
Fazendo aqui uma grosseira analogia ao regime civilista, seria como uma aplicação puramente potestativa da cláusula do “solve et repete" na forma de uma condição anômala ao acusado, já que, para poder reclamar o acesso a um direito que lhe é subjetivo, precisaria ele, primeiro, pagar o valor a que lhe fora imposto como obrigação pelo Estado.
Inclusive, ao analisarmos as demais medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP, é fácil observar que, diferentemente do procedimento adotado à fiança, a regra insere-se no sentido de que: acaso imposta uma medida cautelar, deverá ser primeiro o acusado colocado em liberdade para que, sob a supervisão do Estado, venha a cumprir aquilo que lhe fora imposto, seja o comparecimento mensal em juízo, a determinação de distanciamento à vítima ou o não comparecimento a certos lugares (CACICEDO et al., 2013).
Dessa mesma forma deveria ser o procedimento adotado à fiança. Ou seja, primeiro se coloca o acusado em liberdade, já que inexistem os fundamentos para a manutenção da prisão e, em seguida, a justiça lhe concede um prazo para que eventualmente venha a arcar com o pagamento do valor que fora estabelecido ou, subsidiariamente, para que cumpra com outra medida cautelar alternativa.
Só então, em caso de descumprimento dessas medidas cautelares, surgiria, por exemplo, um efetivo motivo para uma eventual prisão preventiva (art. 312, § 1º do CPP).
A exigência de um fundamento concreto para a decretação, ou manutenção, de uma prisão não foi prevista expressamente na constituição federal por acaso, uma vez que decorre tal imposição de um elemento protetivo capaz de impor limites ao poder punitivo estatal e, no mesmo compasso, garantir um mínimo de direitos àqueles que, em situação de vulnerabilidade, precisarão levantar a sua defesa em confronto à máquina do Estado.
Se a prisão é sempre a ultima ratio, é preciso que o julgador respeite essa excepcionalidade ao invés de compactuar com a aplicação de medidas que, na prática, apenas servirão de direcionamento à prisões anômalas e sem qualquer respaldo legal.
Caso contrário, acabará tornando-se natural um constrangimento ilegal que insiste na manutenção de uma prisão sem amparo legal, haja vista que não pode ser preventiva ou temporária, por já ter sido concedida a liberdade provisória, nem uma prisão em flagrante, considerando que já se encerrou a audiência de custódia e, muito menos, uma pena, uma vez que sequer houve uma sentença condenatória para transitar em julgado. Aliás, trata-se de uma prisão sem título judicial.
De maneira esdrúxula, acaba que uma prisão dita como “processual penal” acaba assemelhando-se, na prática, a uma prisão civil por dívida, esta que, conforme tratado anteriormente, já fora devidamente abolida de nosso ordenamento jurídico (BARROS; FABBRO, 2022).
Evidencia-se, nas palavras de Adhemar de Barros e de Stefano Fabbro, uma situação paradoxal, considerando que o acusado encontra-se juridicamente solto, mas, fáticamente, está preso pelo fundamento que deveria justificar a sua liberdade.
Justamente por isso, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo levantou a importante tese crítica nº 92 no sentido de que: “A fixação de fiança pelo juízo ou a manutenção da fiança arbitrada pela autoridade policial deve implicar a imediata expedição de alvará de soltura e seu efetivo cumprimento”.
Essa tese crítica, embora ainda seja contramajoritária, enfatiza a necessidade de se respeitar os princípios fundamentais da presunção de inocência, da igualdade e da dignidade da pessoa humana. A ideia por trás dessa proposta é que a fixação da fiança não deve resultar na manutenção da pessoa presa até o pagamento, pois isso viola o direito à liberdade e pode perpetuar uma situação injusta, especialmente para aqueles que não têm condições financeiras para pagar a fiança por conta própria.
E é justamente esse viés crítico que deve direcionar o posicionamento jurisprudencial daqui em diante.
Inclusive, este artigo científico não ignora o fato de que, no recente julgamento do AgRg no HC 582.581/GO, a Sexta Turma do STJ decidiu que o não pagamento da fiança deve ensejar a concessão da liberdade do acusado, haja vista que se demonstra irrazoável a manutenção da sua prisão cautelar apenas em razão do não pagamento de fiança, principalmente diante do fato de que já foi reconhecida a possibilidade de concessão da liberdade provisória, estando pendente apenas o cumprimento de uma condição imposta (fiança).
Todavia, trata-se, por enquanto, de um posicionamento que, de certo modo, ainda não condiz com a realidade procedimental da fiança perante as autoridades policiais e os julgadores responsáveis pela realização das audiências de custódia.
A prática ainda mostra que a tendência permanece sendo a priorização da manutenção da prisão até que se constate o cumprimento da fiança, inserindo-se esta como uma nova condição atípica para o acesso do investigado à liberdade provisória que deveria ser a regra.
Só então, quando efetuado o pagamento, é que o juízo expede o alvará de soltura, exigindo que a defesa, por vezes, busque a adoção de mecanismos para comprovar a insuficiência financeira, ônus este que não lhe deveria ser destinado já que a prisão que é a ultima ratio, ou, até mesmo, impetre um Habeas Corpus com a esperança de que o Tribunal de Justiça ou os Tribunais Superiores possam, à luz do caso concreto, constatar a ilegalidade do acautelamento prisional.
Aparece, portanto, como um instituto que, apesar de ter passado por uma harmonização de sua natureza jurídica e de seu sentido teórico ao cerne constitucional vigente, ainda se encontra contaminado por uma tradicionalidade prática, esta que insiste em embargar uma adequação da fiança penal à atual forma de se enxergar o processo penal.
Ora, se o sistema processual penal passou por um contexto de transformações direcionadas à garantir um posicionamento central para a proteção dos direitos fundamentais, é essencial que todas as medidas cautelares, especialmente a fiança penal, acompanhem essas mudanças e, para tanto, permitam-se passar por um aprimoramento, não só teórico, mas também prático.
Caso contrário, a realidade acabará por perpetuar um cenário no qual consta como regra a arbitrariedade e o constrangimento em detrimento daqueles que estão sendo acusados, enquanto a exceção condiz com a incessante busca por remédios e alternativas defensivas que, em casos raros, consigam reverter as graves falhas perpetradas pelo Estado. Tudo isso, sempre, em uma triste dissonância ao que se espera de um sistema regido pelo princípio da presunção da inocência.
5 PROPOSTAS DE REFORMA E ALTERNATIVAS À FIANÇA PENAL: MELHORIAS E ADEQUAÇÃO AO SISTEMA ACUSATÓRIO SOB UMA PERSPECTIVA REDUTORA DE DANOS
Levantadas as considerações críticas acerca da concretude dessa tradicional medida cautelar, resta escancarado o seu desvirtuamento frente ao que se era esperado dentro de um sistema acusatório.
Afinal, um instituto que fora originariamente concebido para equilibrar a liberdade individual com a necessidade de se garantir a efetividade do processo penal, não deveria, na prática, tornar-se um fundamento para desigualdades e para a violação aos direitos fundamentais daqueles que já estão sujeitos à investigações ou a um processo penal que, como sabemos, é sempre tortuoso.
Diante desse panorama, torna-se imperativo buscar melhorias que aprimorem e adequem essa medida cautelar, a fim de estabelecer uma abordagem mais justa e equilibrada.
Para tanto, deve-se partir de uma perspectiva redutora de danos[3] que permita compatibilizar a premente e inegociável necessidade de assegurar um processo penal eficiente[4], sem que tal objetivo sirva como elemento justificador à ruptura de direitos e à mitigação de direitos subjetivos que precisam ser assegurados aos acusados.
O primeiro passo, considerando que a fiança penal detém uma previsão constitucional em nosso ordenamento jurídico, é cumprir adequadamente com o procedimento que se espera de qualquer outra medida cautelar autônoma. Ora, se a lei e a doutrina destinam essa natureza jurídica à fiança penal, qual seja, a de garantir-lhe uma autonomia voltada a lastrear a liberdade provisória do acusado, não comporta sentido que essa medida venha a servir como uma condicionante à expedição do alvará de soltura.
Em outras palavras, se o juiz entender que não restaram preenchidos os requisitos à prisão preventiva, deve, de imediato, conceder a liberdade provisória ao acusado com a consequente expedição de um alvará de soltura, sem prejuízo de que neste conste uma clara e expressa disposição de que, se dentro de um prazo razoável, não vir a cumprir com a medida cautelar diversa imposta, seja ela a fiança ou qualquer outra, passará a existir uma justificativa à prisão preventiva, esta que, de fato, encontra lastro na previsão do art. 312, § 1º do CPP.
É importante lembrar, neste ponto, que a dúvida deve sempre caminhar em favor daquele que está sendo acusado e não “em favor da sociedade”, já que apenas o princípio do in dubio pro reo encontra amparo na legalidade estrita afeita ao processo penal. Assim, a ausência de fundamentos e requisitos para a preventiva e eventuais dúvidas acerca da possibilidade, ou não, do investigado vir a cumprir com uma determinada medida cautelar, devem, também na prática, servir de amparo para a sua imediata liberdade provisória e não como justificativa arbitrária para uma prisão anômala.
Somente após ter sido oportunizado esse cumprimento dentro de um prazo razoável é que será possível averiguar se o acusado correspondeu ou não às expectativas cautelares do Estado.
É esse o rito que, respeitadas as particularidades de cada uma das hipóteses previstas, deve ser adotado para toda e qualquer medida cautelar autônoma.
Como segundo passo, adentrando mais a fundo nas peculiaridades da fiança, estas que, de maneira crítica, já foram trazidas neste excerto, não se pode ignorar a linha tênue que tal medida cautelar ainda carrega entre o apreço pela efetividade processual e a relativização da desigualdade social que ainda aflige o nosso país e serve como propulsor direto da seletividade enraizada no sistema penal ora vigente.
Assim, ainda nesta segunda alternativa, propõe-se que a fiança cumpra com os requisitos genéricos das medidas cautelares, quais sejam, da necessidade e adequação, a fim de que esteja tal medida efetivamente alinhada à situação econômica do réu. Aliás, em casos envolvendo a representação da Defensoria Pública, deve ser a fiança ainda mais evitada, ante a presunção de hipossuficiência já reconhecida pelo próprio STJ no Ag Rg no HC 582.581/GO[5].
A situação de pobreza e de incapacidade financeira, para arcar com a cautelar imposta, não podem, de maneira alguma, servir como fundamento à manutenção de uma prisão sem título judicial.
E, ainda mais, deve passar a ser reconhecido e punido, na prática, como crime de abuso de autoridade (art. 12, inciso IV, da Lei de Abuso de Autoridade) a fixação pelos julgadores de fianças em patamares altíssimos com o único e claro intuito de manter o acusado preso, já que, naturalmente, o agente não terá condições, assim como nem mesmo o juiz teria, de pagar um valor tão alto em troca de um direito que lhe deveria ser subjetivo.
Seguindo na linha da análise da condição financeira dos acusados, é preciso entender, de uma vez por todas, que se a imposição de uma fiança é do interesse do Órgão Acusatório, já que este que busca uma garantia reparatória e de colaboração até o fim do processo, é do Ministério Público, ou do querelante, o ônus de provar que o agente efetivamente possui uma suficiência de riquezas para arcar com o valor imposto da fiança.
Caso contrário, deve ser considerada inaplicável tal medida.
Sem falar que, nos casos em que for imposta a fiança penal após a avaliação da condição financeira do acusado, não pode uma eventual falta de pagamento servir, por si só, como uma justificativa para a decretação da prisão preventiva, já que antes da imposição dessa gravosa medida de ultima ratio, devem ser tentadas outras medidas cautelares — dentre as diversas hipóteses previstas no art. 319 — que, por vezes, já serão suficientes para assegurar a eficácia processual esperada.
Ademais, contribuindo no levantamento de uma terceira alternativa à impropriedade da fiança penal, o autor Caio Paiva (2018) cita que a fiança, assim como ocorre com as penas, não pode violar o princípio da intranscendência penal, já que afronta os ditames da Constituição Federal exigir que terceiros, dentre familiares e amigos do acusado, busquem mecanismos para cumular a quantia imposta pelo Estado.
Seguindo em frente, já como um quarto passo, é inevitável concluir que, se a fiança penal não for, ou não puder, ser extirpada de uma vez por todas pelo legislador de nosso ordenamento jurídico ante a previsão oriunda do Poder Constituinte Originário, tal medida cautelar deverá ser considerada como uma "penúltima ratio”, antecedendo apenas a prisão preventiva.
Isso porque o próprio CPP permite, em seu art. 319, §4º, que a fiança seja cumulada com quaisquer outras medidas cautelares previstas, demonstrando que, para além das impropriedades afeitas a esse instituto, o pagamento da caução penal não “livrará” provisoriamente o acusado de todas as demais medidas, já que estas poderão ser aplicadas independentemente do crime ser afiançável, inafiançável, ter sido paga ou não tal medida pecuniária.
Por isso, em todas as hipóteses, o acusado que teve contra si imposta a fiança será sempre o mais prejudicado, mesmo que esteja respondendo por um crime que, na visão do legislador, deveria ser tratado como de menor gravidade.
De todo modo, é preciso que tais abordagens, voltadas ao aprimoramento do instituto em estudo, sejam considerados de forma integrada e harmônica, a fim de que as balizas ao equilíbrio entre a efetividade do processo penal e a salvaguarda dos direitos do acusado possam ser fincadas em nosso ordenamento.
6 CONCLUSÃO
Em sede conclusiva, fica claro o esforço do presente artigo em analisar a efetividade e a relevância da fiança penal como medida cautelar substitutiva à prisão, à luz do sistema processual acusatório.
Ao longo da abordagem, partiu-se da discussão acerca da natureza jurídica e da incidência prática do instituto da caução penal a fim de levantar as incongruências dessa medida e, assim, fundamentar as severas críticas que escancaram os abusos e desigualdades dessa cautelar, supostamente autônoma, em nosso ordenamento jurídico.
Diante dessas constatações, foi possível aferir que, da forma em que vem sendo aplicada, a fiança se mostrou uma medida parada no tempo e que, ao invés de garantir que o processo penal caminhe efetivamente com a concessão da liberdade ao acusado em situações que descabem uma preventiva, apenas serve como um novo elemento condicionante à própria liberdade provisória, esta que, em que pese devesse ser a regra a ser buscada, vem cedendo espaço à prisões anômalas justificadas não pela concessão de um título judicial mas, simplesmente, pela impossibilidade financeira do acusado em arcar com o pagamento da caução penal.
Em suma, a fiança penal comporta-se como um instituto que, sob a sua avaliação na prática, ainda precisa ser repensado e aperfeiçoado para que possa cumprir o real propósito substitutivo a que se espera de sua aplicação no contexto atual. A superação de sua natureza disconforme e a sua compatibilidade com os princípios do sistema processual acusatório são desafios a serem enfrentados e que, inevitavelmente, devem servir de direcionamento ao cerne jurisprudencial necessário à garantir um sistema de justiça mais justo e equitativo.
Para tanto, é fundamental que as críticas atinentes à fiança não se encerrem, na prática, com uma eventual reversão de uma prisão arbitrária justificada, unicamente, pelo seu não pagamento. É preciso que esse debate, inserido no cotidiano daqueles que assumem o papel de defesa no processo penal, tome uma posição central e para além do processo.
Só assim será possível direcionar esse ideal de mudança a um gradativo aperfeiçoamento de um sistema processual efetivamente com o viés acusatório, agora positivado no art. 2º do CPP, e garantista, sem comprometer a eficácia do processo penal. A busca por uma justiça efetiva e equilibrada requer a constante reflexão e aprimoramento das medidas cautelares, incluindo a fiança penal, em prol de um sistema mais justo e coerente com os princípios constitucionais e processuais acusatórios.
Dessa forma, espera-se que este estudo contribua para o debate e a reflexão sobre a fiança penal, incentivando a busca por soluções que aprimorem, sob uma perspectiva redutora de danos, o funcionamento de um sistema de justiça criminal que, como cediço, ainda é contaminado, desde as suas raízes, por um quadro de seletividade penal, sem que, para tanto, haja qualquer prejuízo à garantia dos direitos fundamentais dos acusados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal – 13. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de. Janeiro: Forense, 2016.
PAIVA, Caio. Quando o óbvio precisa ser dito: pobres não podem pagar fiança! Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-fev-20/tribuna-defensoria-quando-obvio-dito-pobres-nao-podem-pagar-fianca. Acesso em: 20 maio 2023.
SOARES, Rodrigo Duque Estrada Roig. Aplicação da pena privativa de liberdade e o dever jurídico-constitucional de minimização da afetação individual: uma nova proposta discursiva. UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2011.
[1] Tal redação, inclusive, produziu efeitos até datas recentes, tanto que ainda em 2008, posteriormente à promulgação da Constituição Federal, foi preciso que o Superior Tribunal de Justiça aprovasse a Súmula nº 347 do STJ: “O conhecimento de recurso de apelação do réu independe de sua prisão”.
[2] EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. (RE nº 466.343-1/SP, Relator: Ministro Cezar Peluso, Dje: 03/12/2008.
[3] Essa concepção é defendida pelo professor Rodrigo Roig, o qual propõe um duplo direcionamento à forma de se interpretar o direito penal e processual, de modo que na direção punitiva/perseguidora a interpretação deverá ter uma força centrípeta, apontando restritivamente para o núcleo do texto, de modo a provocar o mínimo sofrimento possível ao que está vulneravelmente na posição de acusado, enquanto que na direção libertária e garantista essa interpretação deve mover-se de maneira centrífuga, em vista a proporcionar a máxima extensão possível dos direitos e garantias individuais. SOARES, Rodrigo Duque Estrada Roig. Aplicação da pena privativa de liberdade e o dever jurídico-constitucional de minimização da afetação individual: uma nova proposta discursiva. UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2011.
[4] Abro parênteses para deixar claro que um sistema processual penal “eficiente” não significa um processo penal ditatorial, que vise “prender mais” ou cumprir com um viés simbólico de repressão estatal, mas um processo que, efetivamente, caminhe e cumpra com o ideal de celeridade sem prejuízo do cuidado em se analisar as provas e a situação do próprio acusado.
[5] AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PRISÃO CAUTELAR. REVOGAÇÃO. FIANÇA. IMPOSSIBILIDADE DE PAGAMENTO. PACIENTE ASSISTIDO PELA DEFENSORIA PÚBLICA. PRESUMIDAMENTE POBRE. ORDEM CONCEDIDA.
1. Afigura-se irrazoável manter o réu preso cautelarmente apenas em razão do não pagamento de fiança, mormente porque já reconhecida a possibilidade de concessão da liberdade provisória. Paciente assistido pela Defensoria Pública, portanto presumidamente pobre, sem condições de custear o pagamento. 2. Agravo regimental improvido. (AgRg no HC 582.581/GO, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 09/02/2021, DJe 18/02/2021)
Bacharel em Direito e Pós-Graduado em Direito Penal e Processo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUSA, Mateus Wesley Teixeira de Lima e. A fiança penal e o desvirtuamento prático de seu viés substitutivo: propostas de conformação ao sistema acusatório Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 mar 2024, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64940/a-fiana-penal-e-o-desvirtuamento-prtico-de-seu-vis-substitutivo-propostas-de-conformao-ao-sistema-acusatrio. Acesso em: 23 dez 2024.
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