Resumo: Este artigo pretende analisar o RESP 1.977.165/MS e do AGRG no ARESP 2.389.611-MG julgados, recentemente, pelo Superior Tribunal de Justiça, ambos, sobre a temática de situações em que se excepciona a regra da vulnerabilidade absoluta introduzida pelo art. 217-A, do Código Penal Brasileiro, trazido pela Lei n. 12.015/19. A partir disso, visa-se trazer a lume a resistência da Corte Cidadã Brasileira em relação à tese da “Exceção de Romeu e Julieta” trazida doutrinariamente para excluir a tipicidade material do crime de estupro de vulnerável quando praticado em determinadas circunstâncias. Considerando uma revisão de literatura e da jurisprudência, é possível perceber o esforço argumentativo do tribunal em situações em que seria aplicável a tese excepcional. Nesta senda, a Corte opta por adotar teses minoritárias, como a teoria quadripartida do crime, para evitar o referido argumento, o qual, na verdade, seria um avanço para o direito de defesa tanto dos réus quanto da liberdade sexual das próprias vítimas. Portanto, o presente trabalho ao apresentar o mencionado comportamento da corte pretende demonstrar, que, a despeito deste, o entendimento que se coaduna com os princípios protetivos dos adolescentes envolvidos, que seriam as supostas vítimas, seria a aplicação da “exceção de Romeu e Julieta”.
PALAVRAS-CHAVE: Estupro de Vulnerável; Vulnerabilidade Absoluta; Exceção de Romeu e Julieta; Atipicidade; Jurisprudência.
ABSTRACT: This article aims to analyze RESP 1.977.165/MS and AGRG in ARESP 2,389,611-MG recently judged by the Superior Court of Justice, both, on the subject of situations in which the rule of absolute vulnerability introduced by art. 217-A, of the Brazilian Penal Code, introduced by the Law n. 12.015/19, is an exception. From this, the aim is to bring to light the resistance of the Brazilian Citizen Court in relation to the thesis of the “Romeo and Juliet’s Law” brought by the doctrine to exclude the material typicality of the crime of rape of a vulnerable person when committed in certain circumstances. Considering a review of literature and jurisprudence, it is possible to perceive the court's argumentative effort in actual situations in which the exceptional thesis would be applicable. In this path, the Court chooses to adopt minority theses, such as the quadripartite theory of crime, to avoid the aforementioned argument, which, in fact, would be an advance for the right of defense of both the defendants and the sexual freedom of the victims themselves. Therefore, the present work, by presenting the mentioned behavior of the court in question, intends to demonstrate, synthetically, that despite this, the understanding that is in line with the protective principles of the teenagers involved, who would be the alleged victims, would be the application of the “Romeo and Juliet’s Law”.
KEYWORDS: Rape of a Vulnerable Person; Absolute Vulnerability; Romeo and Juliet’s Law; Atypicality; Jurisprudence.
1.INTRODUÇÃO
De início, necessário ressaltar que a justificativa para o presente estudo é justamente a percepção de que a Corte Cidadã detém um posicionamento de resistência à “Exceção de Romeu e Julieta” trazida pela doutrina como possível resposta aos casos de estupro de vulnerável.
De fato, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi sendo sedimentado desde a vigência da Lei n. 12.015/19, quando foi criada a figura da vulnerabilidade para substituir a anterior presunção de violência, que era aplicável aos casos de estupro praticados contra menores de 14 (quatorze) anos.
Em um primeiro momento, será comentada a construção do posicionamento do STJ de que, em casos de estupro de vulnerável, a vulnerabilidade seria presumidamente absoluta, sendo este entendimento repetido tanto em sede de recursos repetitivos, súmula e posteriormente pelo art. 217-A, §5º, do Código Penal, inserido pela Lei n. 13.718/18.
Após, será considerada a existência de um “neomenorismo” não somente no contexto da prática e investigação de atos infracionais, mas nos entendimentos judiciais em geral que tenham o envolvimento de crianças e adolescentes, num contexto de proteção sem medida e sem considerar a sua autonomia progressiva tão festejada atualmente e tão cara a sua condição de pessoas em desenvolvimento.
Por conseguinte, será feita breve apresentação da teoria da “exceção de Romeu e Julieta” como forma de resposta aos casos em que jovens namorados, com pouca diferença de idade, sejam apresentados ao judiciário, e, em especial, considerando a situação em que adolescentes que tenham consciência e capacidade de consentir, possam ter sua vontade e liberdade sexual respeitados.
Ato contínuo, será apresentado o comportamento contraditório da própria Corte Cidadã no que tange a diferenciação entre vulnerabilidade e presunção de violência, para fundamentar seu entendimento vinculante pela vulnerabilidade em sua forma absoluta.
Outrossim, serão discutidos os dois casos de distinguishing à presunção absoluta de vulnerabilidade, em que o Superior Tribunal de Justiça considerou, em um caso, inexistente a necessidade de pena, adotando a teoria quadripartite do crime, e, em outro, excluiu a culpabilidade, por estar a ausente a potencial consciência da ilicitude naquele caso concreto.
Assim, o objetivo geral deste trabalho é demonstrar, de forma breve, que existe, no contexto das decisões da Corte Cidadã, uma resistência à aplicação da tese da “exceção de Romeu e Julieta”, justamente, pelo contexto neomenorista em que está inserida a jurisprudência brasileira atual.
2. A CONSTRUÇÃO DO ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: A visão absoluta da vulnerabilidade e a consequente inexistência de liberdade ou autonomia sexual aos adolescentes.
Com os passar dos anos, a Corte Cidadã fixou o argumento de que a vulnerabilidade era um novo conceito, totalmente desvinculado da presunção de violência, sendo determinado, no Resp 1.480.881/PI, Tema Repetitivo 918, que
O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.
Por conseguinte, foi editada a Súmula 593, de autoria do mencionado tribunal, a qual repetiu o entendimento do referido julgado vinculante e, em decorrência dessa repercussão na jurisprudência, o Poder Legislativo, por meio da Lei n. 13.718/18, incluiu o § 5º ao art. 217-A, do Código Penal, o qual dispõe: “As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.”
Assim, fixou-se pela visão absoluta da vulnerabilidade de pessoas menores de 14 (quatorze) anos, não havendo qualquer possibilidade de exceção a esse entendimento, o que, como será discutido no presente estudo, a pretexto de realizar a proteção integral dos adolescentes envolvidos, plasmada na Carta da República pelo art. 227, restringia, sobremaneira, a própria liberdade sexual destes.
Todavia, mais recentemente, em específico, nos julgamentos do RESP 1.977.165/MS e do AGRG no ARESP 2.389.611-MG, o Tribunal realizou um distinguishing ao entendimento vinculante anteriormente exarado.
Porém, ao invés de enxergar a possibilidade de uma relativização da vulnerabilidade, a Corte adotou entendimentos justamente para evitar a adoção da referida teoria. Em um caso, trouxe a teoria quadripartida do crime, francamente minoritária na doutrina brasileira, (ARAÚJO, 2018, p. 273-276) para excluir o crime pela inexistência de necessidade de pena no caso concreto apresentado (BRASIL, 2023). No outro, o entendimento da Corte foi pela exclusão da culpabilidade por erro de proibição inescusável, em razão das circunstâncias do caso concreto apresentadas (BRASIL, 2024).
Em ambos os casos, houve um esquecimento da liberdade sexual a ser protegida em relação ao adolescente, em homenagem ao princípio da autonomia progressiva, mantendo-se o foco no agente, supostamente, agressor.
3. A DESCONSIDERAÇÃO DO PODER DE DECISÃO DOS ADOLESCENTES E DE SUA LIBERDADE SEXUAL: adolescente como objeto de proteção?
Tendo em vista o entendimento construído, especialmente, pelo Superior Tribunal de Justiça, fica flagrante a adoção de um entendimento que retoma a doutrina da fase tutelar ou menorista da criança e do adolescente (BARROS, 2019. p. 23), em que as crianças e adolescentes eram vistas pura e simplesmente como objetos de proteção. Nesta fase, o juiz de menores detinha total poder sobre a vida das crianças e dos adolescentes, decidindo o que fosse melhor conforme seu entendimento e não considerando as reais necessidades daqueles sujeitos.
Apesar da expressiva alteração vivida na legislação, especialmente a partir da promulgação da Constituição Federal em 1988 e, posteriormente, com a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente que trouxeram ao sistema jurídico brasileiro o paradigma da proteção integral e que efetivamente reconheceram as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, na verdade, na prática, nada mudou.
A doutrina, atualmente, analisando especificamente o comportamento do judiciário relativo aos atos infracionais, denuncia a existência de um neomenorismo, reproduzido nas práticas assistencialistas voltadas aos adolescentes em conflito com a lei, (BRAÚNA, 2021. p. 10; 20) em que o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente é deturpado para reproduzir uma interpretação que permita ao juiz decidir qual seria este melhor interesse.
A despeito de ter sido criado para analisar a atuação do judiciário em relação aos adolescentes em conflito com a lei, o neomenorismo pode ser aplicado analogicamente na situação ora analisada.
A vulnerabilidade, deve-se destacar, conforme Rogério Cézar Soehn (2016), nada mais é que uma presunção legal de incapacidade de decisão das crianças e adolescentes feita pelo Código Penal:
[...] O legislador, por presunção legal, entendeu que as crianças, bem como os adolescentes com menos de quatorze anos, não possuem capacidade de decidir sobre sua vida sexual. Até por isso o Capítulo é denominado ‘dos crimes contra a dignidade sexual’ pois tais pessoas não possuem, em tese, liberdade sexual nenhuma [...] (SOEHN, 2016, p. 298, grifos nossos).
Desta feita, ao analisar de forma absoluta o conceito de vulnerabilidade, a Corte Cidadã negou aos adolescentes qualquer tipo de poder de decisão em relação a sua sexualidade, tornando-os, novamente, objetos de proteção.
Porém, no atual contexto em que se insere a doutrina da proteção integral, especialmente sob a luz do princípio da autonomia progressiva, desconsiderar toda e qualquer possibilidade de decisão do adolescente envolvido, em especial, em um aspecto tão íntimo como a sua sexualidade, é retroceder no âmbito da proteção dos direitos desse grupo vulnerável.
Uma das faces do princípio da proteção integral, prevista pelo art. 227 da Constituição Federal, é justamente a ampla possibilidade da criança e do adolescente participarem de todas as questões que lhe digam respeito, como consectário de sua condição de sujeitos (DA SILVA; SCHWEIKERT, 2018). O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, em seus arts. 28, § 2º e 45, § 2º, em especial, em relação aos adolescentes, isto é, maiores de 12 anos, e, portanto, dentro do espectro de sujeitos “vulneráveis” trazidos pelo art. 217-A, do Código Penal, traz como regra a obrigatoriedade da oitiva dos adolescentes sobre questões que lhe digam respeito.
Sendo assim, deve, sim, ser considerada a condição das crianças e adolescentes como pessoas em peculiar situação de desenvolvimento, que, por isso, devem ser protegidas. Todavia, como são sujeitos de direitos, devem ter a si reconhecidos os de manifestação conforme sua fase de crescimento, não havendo lugar para presunções absolutas de uma vulnerabilidade que, afinal, pode não estar presente em todos os casos.
Por outro lado, faz-se mister ressaltar que considerar a vulnerabilidade como relativa não nega proteção a estes sujeitos, mas sim, permite a análise casuística para casos específicos, os quais, perceba-se que, pela conjunção de alguns fatores, em especial, a diferença de idade entre supostos agressor e vítima, não existe lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal.
4. A “EXCEÇÃO DE ROMEU E JULIETA”: Atipicidade material da conduta por meio da realização do princípio da autonomia progressiva.
A “exceção de Romeu e Julieta”, ou em sua língua originária, Romeo and Juliet Law, é um instituto de direito norte-americano e consiste exatamente em admitir que não há crime na relação sexual consentida com pessoa menor de 18 (dezoito) anos, quando a diferença de idade entre autor e vítima for igual ou inferior a 05 (cinco) anos, justamente por não reconhecer a presunção de violência contra o adolescente envolvido (COLVARA, 2014) – ou, para usarmos o termo da legislação brasileira, não reconhecer a vulnerabilidade em sua face absoluta.
Deveras, o instituto – nomeado com base na obra de William Shakespeare a qual trouxe Romeu, maior de idade, tendo relações sexuais com Julieta, ainda adolescente – foi criado como uma possibilidade de defesa, exatamente nos casos em que jovens namorados são flagrados por suas famílias, as quais, por motivos comumente morais, acabam por denunciar o componente maior da relação à justiça criminal justamente para finalizar forçosamente o relacionamento.
No mínimo questionável a utilização do Direito Penal como um instrumento de proteção da moral individual, quando deveria servir como ultima ratio na proteção de bens jurídicos especialmente selecionados para a proteção da paz social (ARAÚJO, 2019, p. 350). Por isso, de suma importância a criação da teoria, justamente, para apresentar uma saída defensiva nestes casos.
Guilherme de Souza Nucci (2018, p. 63. grifo nosso.) já denunciava o problema na jurisprudência justamente pela adoção da visão absoluta da vulnerabilidade:
Temos acompanhado julgados condenando jovens namorados, geralmente porque a garota já tem relação com o rapaz, este com 18 anos e aquela com menos de 14. No entanto, existem no Brasil, especialmente no interior de Estados menos desenvolvidos, o nascimento precoce da atividade sexual (...) Veem-se, com frequência, vários desses casais chegar à maturidade e à velhice juntos. Completa, então, que, nesse cenário, não se pode atribuir nenhuma relevância jurídico-penal.
A despeito do autor não dispor diretamente sobre a exceção em comento, a relativização do conceito de vulnerabilidade por ele defendida justamente para que estes casos sejam analisados com especial cuidado (NUCCI, 2018, p. 60-63), comunica-se amplamente com a possibilidade de aplicação da tese, uma vez que leva em conta as circunstâncias do caso concreto, como a vida pregressa de autor e vítima, seu relacionamento, o consentimento dado e o estágio de desenvolvimento da vítima, para verificar se efetivamente o fator vulnerabilidade está presente, e não somente a idade cronológica.
A teoria traz ao centro da discussão a suposta vítima adolescente e a sua vontade, como deve ser feito no contexto inaugurado pelo princípio da proteção integral e a autonomia progressiva que, como dito anteriormente, deve ser analisada caso a caso.
5. A CONTRADIÇÃO NA JURISPRUDÊNCIA: o reconhecimento em outro julgado do próprio Superior Tribunal de Justiça da equivalência entre vulnerabilidade e presunção de violência.
Outrossim, a doutrina afirma repetidamente que o conceito de vulnerabilidade seria totalmente diferente do conceito de presunção de violência, informando que a Lei n. 12.015/09 mudou o cerne da questão para uma condição presente em todo e qualquer menor de 14 (quatorze) anos, não embasando-se mais em ficções relativas ao aspecto da violência (CAPEZ, 2014; DAMÁSIO, 2014). Desta forma, alicerçada estaria a visão absoluta e invariável do aspecto vulnerabilidade, a qual também é defendida pelos Tribunais Superiores, especialmente, no julgado vinculante já mencionado neste trabalho.
Porém, mais recentemente, ao tratar do crime continuado especificamente nos casos de estupro de vulnerável, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que o que existe neste delito é, nada menos que, ficção jurídica de violência, e, por isso, não é possível a aplicação do crime continuado específico – o qual demanda violência real:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME DE TORTURA. REEXAME DO DOLO. NÃO CABIMENTO. SÚMULA 7/STJ. ESTUPRO DE VULNERÁVEL CONTRA VÍTIMAS DISTINTAS. CRIME CONTINUADO. VIOLÊNCIA REAL. AUSÊNCIA. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO.
1. A pretensão recursal de rever a conclusão da instância a quo acerca do dolo empregado pela ré, para fins de classificação da conduta no delito de tortura, importa revolvimento do conjunto fático do autos, o que não comporta análise na via eleita. Incidência da Súmula 7 do STJ.
2. A violência de que trata a continuidade delitiva especial (art. 71, parágrafo único, do Código Penal) é real, sendo inviável aplicar limites mais gravosos do benefício penal da continuidade delitiva com base, exclusivamente, na ficção jurídica de violência do legislador utilizada para criar o tipo penal de estupro de vulnerável, se efetivamente a conjunção carnal ou ato libidinoso executado contra vulnerável foi desprovido de qualquer violência real (PET no REsp n. 1.659.662/CE, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 11/5/2021, DJe de 14/5/2021.) 3. Agravo regimental improvido.
(AgRg no AREsp n. 2.165.385/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 5/9/2023, DJe de 8/9/2023.)
Desta feita, a despeito da resistência, é cristalina a permanência da presunção de violência no sistema jurídico brasileiro sob a forma do “disfarce” do conceito de vulnerabilidade. Bitencourt (2014, p. 101) dedica um tópico de sua obra justamente para demonstrar que o legislador de 2009 utilizou as mesmas circunstâncias que o legislador de 1940, fugindo das críticas anteriormente existentes na doutrina de um contexto ficcional de violência (BARROS, 2010, apud ARAÚJO; LIMA, 2014, p. 139) e criando um tipo incriminador aparentemente novo, enquanto escondia os mesmos problemas sob esse novo “traje”.
6. O PRIMEIRO DISTINGUISHING: A APLICAÇÃO DA TEORIA QUADRIPARTITE DO CRIME.
Em 2023, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça realizou distinguishing no que tange à tese fixada em recursos repetitivos no REsp 1.480.881/PI:
RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. DENÚNCIA REJEITADA PELO JUÍZO DE ORIGEM. RECEBIMENTO PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. VÍTIMA COM 12 ANOS E RÉU COM 19 ANOS AO TEMPO DO FATO. NASCIMENTO DE FILHO DA RELAÇÃO AMOROSA. AQUIESCÊNCIA DOS PAIS DA MENOR. MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DA ADOLESCENTE. DISTINGUISHING. PUNIBILIDADE CONCRETA. PERSPECTIVA MATERIAL. CONTEÚDO RELATIVO E DIMENSIONAL. GRAU DE AFETAÇÃO DO BEM JURÍDICO. AUSÊNCIA DE RELEVÂNCIA SOCIAL DO FATO.
1. A Terceira Seção, no julgamento do REsp 1.480.881/PI, submetido ao rito dos recursos repetitivos, reafirmou a orientação jurisprudencial, então dominante, de que é absoluta a presunção de violência em casos da prática de conjunção carnal ou ato libidinoso diverso com pessoa menor de 14 anos.
2. A presente questão enseja distinguishing quanto ao acórdão paradigma da nova orientação jurisprudencial, pois, diante dos seus componentes circunstanciais, verifica-se que o réu possuía, ao tempo do fato, 19 anos de idade, ao passo que a vítima, adolescente, contava com 12 anos de idade, sendo que, do relacionamento amoroso, resultou no nascimento de um filho, devidamente reconhecido, fato social relevante que deve ser considerado no cenário da acusação.
3. "Para que o fato seja considerado criminalmente relevante, não basta a mera subsunção formal a um tipo penal. Deve ser avaliado o desvalor representado pela conduta humana, bem como a extensão da lesão causada ao bem jurídico tutelado, com o intuito de aferir se há necessidade e merecimento da sanção, à luz dos princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade" (RHC 126.272/MG, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 1/6/2021, DJe 15/6/2021).
4. Considerando as particularidades do presente feito, em especial, a vontade da vítima de conviver com o recorrente e o nascimento do filho do casal, somados às condições pessoais do acusado, denotam que não houve afetação relevante do bem jurídico a resultar na atuação punitiva estatal.
5. "A manutenção da pena privativa de liberdade do recorrente, em processo no qual a pretensão do órgão acusador se revela contrária aos anseios da própria vítima, acabaria por deixar a jovem e o filho de ambos desamparados não apenas materialmente, mas também emocionalmente, desestruturando e entidade familiar constitucionalmente protegida" (REsp n. 1.524.494/RN e AREsp 1.555.030/GO, Relator Ministro Ribeiro Dantas, julgado em 18/5/2021, DJe 21/5/2021).
6. Recurso especial provido. Restabelecimento da decisão que rejeitou a denúncia.
(REsp n. 1.977.165/MS, relator Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), relator para acórdão Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 16/5/2023, DJe de 25/5/2023. grifo nosso.)
Os argumentos utilizados pela Corte para sustentar a inexistência de crime foram baseados na inexistência do quarto substrato do crime no caso concreto analisado, isto é, a punibilidade.
De acordo com Fábio Roque (2019, p. 276), a teoria quadripartida do crime divide-o em fato típico, ilícito, culpável e punível. Para essa teoria, conforme Guilherme de Souza Nucci (2018, p. 287. grifo nosso), “crê-se que, sem a possibilidade punir o agente (pela presença de alguma excludente de punibilidade), não haveria crime. A corrente existe no Brasil, mas em desuso, ainda remanescendo no exterior”.
De acordo com o inteiro teor do decisum do Superior Tribunal de Justiça, a punibilidade no caso concreto foi excluída pela comunhão dos seguintes fatores: a diferença de idade entre o acusado e a vítima não ser tão distante; a manutenção de um relacionamento amoroso (namoro) consensual entre acusado e vítima; o consentimento dos pais da vítima ao relacionamento; o nascimento de prole decorrente do relacionamento.
Porém, neste ponto é necessário enfatizar a especial importância que os ministros deram ao consentimento dos pais da vítima e ao nascimento de prole posterior ao crime. Nas palavras do Ministro Relator (2023, p. 14-15. grifo nosso):
Aplicando o aludido posicionamento na presente hipótese, extrai-se da decisão que rejeitou a denúncia que o "acusado e a vítima mantiveram relacionamento amoroso, tudo com ciência e consentimento da família da vítima", consignando também que a mãe da vítima, ao prestar depoimento na fase inquisitorial, mencionou "que a vítima teve um filho e que o denunciado já registrou a criança em seu nome como pai; que atualmente a vítima mora com a declarante e que ela pretende morar com o denunciado
(...)
Não se evidencia relevância social do fato a ponto de resultar a necessidade de sancionar o acusado, tendo em vista que o Juízo de origem não identificou comportamento do denunciado que pudesse colocar em risco a sociedade, ou o bem jurídico protegido.".
A despeito de louvável a decisão pela distinção do caso, que, realmente, enseja a necessidade de maiores discussões dos tribunais superiores, o cerne da questão foi deturpado.
Em primeiro plano, colocou-se a decisão sobre a vida sexual daquela adolescente, supostamente vítima de estupro de vulnerável, “sob a batuta” de seus pais, dando ênfase a decisão destes sobre qualquer consentimento que ela mesma tenha exarado. De fato, durante o inteiro teor da decisão percebe-se que, apesar de ser citado de forma transversal o consentimento da adolescente relativo ao relacionamento, o grau de importância dado aos paternos era, sem dúvidas, maior.
Prova de tal circunstância, também, foi o entendimento exarado pela Corte Cidadã tempos mais tarde, em que não existia o famigerado consentimento da família. Nas palavras da relatora do AgRg no REsp n. 1.979.739/MT:
Como se vê, as instâncias ordinárias absolveram o Réu em razão de ter havido consentimento da Vítima (que contava com doze anos à época dos fatos), do relacionamento daquela com o Acusado e, além disso, porque, quando da prolação da sentença e do acórdão, eles mantinham união estável. (...) Ocorre que, além de pessoalmente não concordar com a relativização casuística levada a termo no referido caso, consoante voto-vogal que apresentei naquela oportunidade, destaco peculiaridades do caso concreto que, a meu sentir, evidenciam uma moldura fática bastante distinta daquela verificada no RESP n. 1.977.165/MS antes citado, motivo pelo qual entendo ser o caso de adotar solução diversa.
Primeiro porque, na espécie, conforme os depoimentos prestados pela Vítima e genitora, na fase extrajudicial e em juízo, não houve assentimento familiar”.(AgRg no REsp n. 1.979.739/MT, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 14/8/2023, DJe de 21/8/2023. grifo nosso.)
A despeito de ser mencionado pela própria Ministra Laurita Vaz que o fato de o consentimento familiar ser irrelevante para a legislação pátria nestes casos, os fatos analisados pelo STJ neste julgado tinham apenas duas diferenças vitais em relação aos que foram alvo de distinguishing: a inexistência de consentimento da mãe da vítima e de filho decorrente da relação. Sendo assim, inegável que tal circunstância foi, sim, um dos pontos fatais para a permanência da punibilidade do agente que, frise-se, tinha exatos 18 (dezoito) anos à época do crime, era namorado com consentimento da suposta vítima e manteve com ela união estável.
É neste ponto que se deve fazer uma breve pausa e perguntar: voltamos à etapa tutelar? Ou pior, à fase da absoluta indiferença em relação às crianças e adolescentes[1]?
De acordo com a teoria da proteção integral, plasmada não somente no ordenamento jurídico brasileiro, mas também na Declaração e Convenção Internacionais dos Direitos das Crianças, é reconhecido às crianças e aos adolescentes o direito de serem ouvidos de acordo com a sua capacidade de exercício de seus direitos (Princípio 1º da Declaração e artigos 5º e 12 da Convenção). Essa mudança de paradigma justamente é o que sustenta a possibilidade desses sujeitos em desenvolvimento poderem se opor aos próprios pais, quando estiverem agindo em desconformidade com seus interesses e procurarem, pessoal e individualmente, recursos judiciais para fazer cumprir seu direito de expressão.
Por isso, a Convenção internacional mencionada dispõe que o princípio a ser seguido seria o superior interesse da criança e do adolescente, (art. 3º) em substituição ao melhor interesse defendido nacionalmente, justamente, para transmudar esse aspecto de substituição da vontade e dos interesses das crianças e dos adolescentes pelo do juiz ou de seus pais, o qual é insistentemente repetido pelos tribunais, em uma costumeira manutenção do contexto menorista.
Por outro lado, a segunda diferença, ainda mais problemática, trazida no julgado em questão para excluí-lo do distinguishing foi a inexistência de prole provinda do relacionamento entre autor e vítima. Novamente nas palavras da relatora Min. Laurita Vaz (2023, p. 8. grifo nosso):
Outrossim, ressalto que, no caso dos autos, a despeito de existir informação de que o Réu e a Vítima, após os fatos, chegaram a viver em união estável, não consta que tenha sido gerada prole, fato que, em minha percepção, conferiria ainda mais gravidade à conduta, porém foi considerado como elemento distintivo relevante no julgamento do RESP n. 1.977.165/MS
De fato, utilizar-se da existência de prole para excluir o crime de estupro de vulnerável é um retrocesso. Em outras palavras, se considera fato punível criminalmente um relacionamento que a vítima consentiu, que teve convivência marital e que tinha pequena diferença de idade entre esta e o autor, mas, caso essa mesma adolescente engravide e tenha um filho, o fato é considerado despido de necessidade de pena e não há crime.
Aqui, além de desconsiderar completamente a autonomia da adolescente envolvida e substituir sua vontade pela do tribunal, sem nem considerar ou avaliar sua capacidade de realizar escolhas, se impõe mais um fator de vulnerabilidade a ela: a produção de prole. Em realidade, entende-se o mote da Corte Cidadã ao injetar no caso concreto que gerou o distinguishing este fator, uma vez que, como dito diversas vezes neste estudo, a prioridade é o superior interesse da criança, e, portanto, a proteção de uma família deve ser levada em consideração.
Porém, deturpou-se este aspecto para utilizá-lo de requisito para a proteção da vontade daquela adolescente, que já existe e deve ter seus interesses, especialmente a sua liberdade sexual, considerados no caso concreto em análise.
Desta feita, percebe-se que apesar de ter havido um avanço com o referido julgamento que distinguiu o caso concreto analisado do posicionamento vinculante da Corte Cidadã, ele mesmo abriu margem para violações ao direito da própria vítima, pois, além de adotar uma teoria minoritária para excluir o crime, criou requisitos que criam maior vulnerabilidade social ao adolescente envolvido que, novamente, não tem respeitado seu estágio de desenvolvimento face a uma presunção, insistentemente, absoluta de sua vulnerabilidade.
7. O SEGUNDO DISTINGUISHING: A EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE POR ERRO DE PROIBIÇÃO.
Posteriormente, houve um segundo distinguishing no que tange a casos como os analisados. Desta vez, considerando que era um jovem de 20 (vinte) anos, morador do interior, trabalhador rural, que constituíra família com uma adolescente. Porém, neste caso, a Corte Cidadã decidiu por excluir o elemento do crime “culpabilidade”, em razão da inexistência de potencial consciência da ilicitude por parte do agente, que estaria em erro de proibição invencível:
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. 1. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ERRO DE PROIBIÇÃO INVENCÍVEL. RECORRIDO ABSOLVIDO PELO TRIBUNAL LOCAL (TJMG). PEDIDO DE CONDENAÇÃO. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ÓBICE DA SÚMULA 7/STJ. 2. DEFESA INTRANSIGENTE DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DOS ADOLESCENTES. REAFIRMAÇÃO DA PRINCIPIOLOGIA DA JURISPRUDÊNCIA. RECURSO ESPECIAL REPETITIVO E SÚMULA 593/STJ. SITUAÇÃO EXCEPCIONALÍSSIMA. PRIORIDADE ABSOLUTA DA CRIANÇA NA PRIMEIRA INFÂNCIA. 3. ERRO DE PROIBIÇÃO CONSTATADO PELA CORTE LOCAL. STJ TRATADO COMO TERCEIRA INSTÂNCIA RECURSAL. RECURSO ESPECIAL UTILIZADO COMO NOVA APELAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. 4. PONDERAÇÃO ENTRE VERBETES 7/STJ E 593/STJ. ENUNCIADOS QUE REFLETEM NORMAS DE HIERAQUIAS DISTINTAS. PREVALÊNCIA DA NORMA CONSTITUCIONAL. TEORIA DE KELSEN. 5. ART. 227 DA CF. PRIORIDADE ABSOLUTA. CRIANÇA, ADOLESCENTE E JOVEM. TODOS PRESENTES NOS AUTOS. PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA NA PRIMEIRA INFÂNCIA. 6. NUANCES DO CASO CONCRETO. JOVEM TRABALHADOR RURAL DE 20 ANOS. ADOLESCENTE DE 12 ANOS. 2013. UNIÃO ESTÁVEL E FILHA. CONSTITUIÇÃO DE NÚCLEO FAMILIAR. DISTINÇÃO NECESSÁRIA. 7. APLICAÇÃO LITERAL DA LEI. COLISÃO COM O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. DERROTABILIDADE DA NORMA. HARD CASES. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. 8. VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA. DESESTRUTURAÇÃO DO VÍNCULO FAMILIAR. OFENSA MAIOR. 9. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. NECESSIDADE DE PONDERAÇÃO. MANUTENÇÃO DA ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. 10. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
(...)
- Na presente hipótese, o Tribunal local, com base no acervo fático-probatório constante dos autos, consistente no depoimento da vítima, na prova testemunhal e no interrogatório do acusado, concluiu que "não se verificou, in casu, o conhecimento sobre a ilicitude da conduta". Consta, ainda, do acórdão recorrido que "a pouca escolaridade do acusado e sua boa-fé de que estaria em um relacionamento lícito, aferida a partir da prova produzida em juízo, permitem a conclusão de que o apelante agiu em erro de proibição invencível".
- Nesse contexto, a desconstituição das conclusões da Corte de origem, fundadas em exame exauriente do conjunto de fatos e provas constante dos autos, para restabelecer a condenação do réu, mediante afastamento do erro de proibição invencível, demandaria necessariamente aprofundado revolvimento de matéria fático-probatória, providência vedada em sede de recurso especial, conforme o enunciado n. 7/STJ. Precedentes.
(...)
- No entanto, não se deve deixar de levar em consideração que a vida é maior que o direito. Logo, a indesejável antecipação da adolescência ou mesmo da fase adulta não pode acarretar um prejuízo maior para aqueles que estão envolvidos, em especial para a criança que adveio do relacionamento do casal (que durou mais ou menos 1 ano - e-STJ fl. 199 ) e é a prioridade absoluta do sistema brasileiro, por meio do estatuto da primeira infância.
(...)
3. Relevante registrar, dando às coisas o exato nome que elas têm, que a hipótese dos autos não trata de atipicidade da conduta em virtude de eventual consentimento da vítima ou pelo fato de o réu "ser matuto", nem de excludente de ilicitude por paixão. De igual sorte, não se está diante de erro de tipo, mas sim de excludente de culpabilidade, por erro de proibição invencível. Não é possível retirar das instâncias ordinárias, no ponto, a soberania a respeito do exame do conjunto fático e probatório dos autos, uma vez que o STJ não pode ser considerado uma terceira instância recursal bem como o recurso especial não pode ser tratado como nova apelação.
(...)
6. Um exame acurado das nuances do caso concreto revela que a conduta imputada, embora formalmente típica, não constitui infração penal, haja vista a ausência de culpabilidade, em virtude do reconhecimento do erro de proibição. Ademais, deve se levar igualmente em consideração a ausência de relevância social e de efetiva vulneração ao bem jurídico tutelado, uma vez que se trata do relacionamento de dois jovens, que havia sido, em um primeiro momento, aceito pela família da adolescente, sobrevindo uma filha e a efetiva constituição de núcleo familiar, apesar de não estarem mais juntos como casal.
(...)
8. Não se mostra coerente impor à vítima uma vitimização secundária pelo aparato estatal sancionador, ao deixar de considerar "seus anseios e sua dignidade enquanto pessoa humana". A manutenção da pena privativa de liberdade do recorrido acabaria por deixar a adolescente e a filha de ambos desamparadas não apenas materialmente mas também emocionalmente, desestruturando entidade familiar constitucionalmente protegida. "Está em julgamento a vida de três pessoas que, mesmo chegando a este Tribunal disfarçadas de autos processuais, são as mais diretamente interessadas na resolução do conflito decorrente do crime". (AREsp 1555030/GO e REsp 1524494/RN, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 18/5/2021).
No mesmo sentido: AgRg no REsp n. 2.015.310/MG, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, julgado em 12/9/2023, e REsp n. 1.977.165/MS, relator para acórdão Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 16/5/2023.
(...)
- Proclamar uma censura penal no cenário fático esquadrejado nestes autos é intervir, inadvertidamente, no novo vínculo familiar (que existiu e que ainda permanece- pai e filha; mãe e filha - onze anos depois - 2013/2024), de forma muito mais prejudicial do que se pensa sobre a relevância do relacionamento e da relação sexual prematura entre a vítima e o recorrido, haja vista o nascimento da filha do casal. E a partir disso, um novo bem jurídico também merece atenção: a absoluta proteção da criança em sua primeira infância (no caso um bebê, hoje uma criança quase adolescente). No jogo de pesos e contrapesos jurídicos não há, neste caso, outra medida a ser tomada: a manutenção da opção absolutória quer na perspectiva da ausência de culpabilidade quer na de atipicidade material.
(...)
(AgRg no AREsp n. 2.389.611/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 12/3/2024, DJe de 10/4/2024. grifo nosso.)
Novamente, a problemática de considerar, na proporção feita em relação às normas protetivas, mais importantes os direitos da família formada e da criança que nasceu do relacionamento que os da adolescente protagonista da relação processual se repete no entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
Das palavras retiradas da ementa do julgado em comento é “indesejável antecipação da adolescência ou mesmo da fase adulta”. Aqui, repetidamente, o tribunal injeta seus pensamentos e a sua moral para decidir sobre a vida e o direito de alguém que já tem capacidade para expressar, mesmo que de forma adequada ao seu desenvolvimento, o seu “querer”.
Sem dúvida, o que se observa especialmente em casos como este, é uma outra face do “menorismo”, descrito como utilizado pelos melhores interesses daquelas crianças e adolescentes, para protegê-los, até mesmo, de si mesmos:
De fato, o Código de Menores instituiu tipos abertos para caracterizar situações irregulares que justificariam a intervenção do Estado, através do Juiz de Menores, na vida da criança ou do adolescente que estivesse em “perigo moral” ou com “desvio de conduta”. (LEITE, 2003. p. 5. grifo nosso.)
De fato, a única teoria que, realmente, sustenta a autonomia progressiva que hoje é tão propagada internacionalmente é a “exceção de Romeu e Julieta”.
Neste caso de exclusão da culpabilidade, novamente o foco de atenção se volta ao suposto criminoso. Se consideram as suas vivências e a sua individualidade para verificar, se, em si, havia como ter consciência de que estava praticando uma infração penal para excluir este estamento do conceito de crime.
Novamente, a vítima é relegada ao esquecimento, quando ela era parte do relacionamento, a ela foi imposta a necessidade de produzir um filho e com o agente constituir família, pela forma da união estável, e está intimamente ligada, por meio de seus próprios pensamentos e interesses àquela situação, que se for concluída com a prisão de seu companheiro irá atingi-la imensamente, pois, além de negar a ela a possibilidade de ter um relacionamento, também a retirará do convívio daquele que ela escolheu para conviver.
Assim, nesta segunda oportunidade, apenas foram renovadas as tendências da Corte Cidadã de resistência à tese sob o manto de suposta proteção integral da criança e do adolescente, porém, que, como demonstrado, são faces de um neomenorismo em uma insistência dos tribunais em substituir a vontade destes sujeitos de direito pela dos juízes aos quais suas causas são apresentadas.
8.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho fizemos uma análise sobre a contínua resistência do Superior Tribunal de Justiça em adotar a tese de “exceção de Romeu e Julieta”, que está intimamente ligada com a possibilidade de consentimento, em especial, dos adolescentes, em atinência a sua autonomia progressiva.
Motivação para isto foi a opção da parte majoritária da doutrina e jurisprudência, além dos legisladores nacionais, pela visão cristalizada da vulnerabilidade absoluta, em casos de estupro de vulnerável, além da vinculação pelos precedentes, tanto em sede sumular quanto em repetitivos, além da legislação mais recente, mesmo que não seja a alternativa mais adequada considerando a atual situação das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, tanto na legislação nacional quanto nas normativas internacionais.
Em um primeiro momento, por meio da demonstração da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, indicou-se a preferência do tribunal pela visão absoluta da vulnerabilidade e como, consequentemente, esta visão perpetua a negativa de liberdade sexual, especialmente, aos adolescentes.
Após, introduziu-se a ideia de que o neomenorismo está no fundo de fundamentação dessas decisões, a despeito de não aparecer expressamente e ter sido criado para o contexto do direito infracional, e, quão problemática é essa visão no contexto que considera o superior, e não o “melhor”, interesse das crianças e adolescentes. Em um terceiro momento, apresentou-se a tese da “exceção de Romeu e Julieta”, concluindo que, por meio de sua visão casuística, a partir da análise da diferença de idade entre os protagonistas da relação e da capacidade de apresentação de consentimento por ambas as partes, seria ela uma forma de resposta que melhor se adequaria ao princípio da autonomia progressiva previsto expressamente na Convenção Internacional dos Direitos da Criança.
Nos três últimos capítulos, houve a análise da jurisprudência mais recente do Superior Tribunal de Justiça no que tange aos casos de estupro de vulnerável. Primeiro, argumentou-se que a própria Corte Cidadã se contradiz ao aplicar a visão absoluta da vulnerabilidade, informando que seria um conceito diferente ao anterior de presunção de violência, mas, em julgado recente, afirma que o que existe no caso do art. 217-A, do Código Penal, nada mais é do que uma “ficção de violência”.
Por conseguinte, comentou-se o primeiro distinguishing realizado pelo STJ nestes casos, em que, novamente optando por negar ao adolescente envolvido sua liberdade de optar e se manifestar pelo relacionamento que já mantinha, a corte fixou requisitos para que a necessidade da pena fosse excluída, em uma adoção da teoria quadripartite do crime. Neste âmbito, indicou-se como essa visão na verdade viola os direitos da adolescente envolvida no caso, que, além de ter sua vontade desconsiderada e substituída pela do juiz e de sua família, também tem a si imposta a necessidade de produzir uma vida para que a seu companheiro não seja imputada a prática de um crime hediondo.
Ademais, em último capítulo, em análise do mais recente caso da Corte Cidadã de distinção, novamente, o tribunal optou por colocar o protagonismo somente no agente, excluindo sua potencial consciência da ilicitude, quando, na verdade, existia um casal a ser considerado, um relacionamento, que era consentido e que deveria ser analisado casuisticamente, antes de qualquer analise individualista.
Desta feita, ainda que, em nenhum momento, o Superior Tribunal de Justiça afirme sua resistência à tese da “exceção de Romeu e Julieta”, por diversas vezes, o fez em relação à relativização da vulnerabilidade e à própria possibilidade de manifestação de vontade da vítima, considerando-a, ao fim, um objeto de proteção, visão que não se coaduna com a atual proteção da infância e juventude, que como sujeitos de direito, devem ter, sim, sua vontade dita e levada em consideração no que tange a direitos tão caros como de sua descoberta da sexualidade.
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_______. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp n. 1.979.739/MT. Rel. Laurita Vaz. DJe de 21/8/2023.
_______. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp n. 2.389.611/MG. Rel. Reynaldo Soares da Fonseca. DJe de 10/4/2024.
_______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1480881/PI. Rel. Rogério Schietti Cruz. Ac nº 0207538-0. DJe 10/09/2015.
_______. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.977.165/MS. Rel. Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região). DJe de 25/5/2023.
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[1] Segundo Thalissa Corrêa de Oliveira (2013, p. 3), a fase originária do tratamento da criança e do adolescente, mundialmente, trazia a ideia de que o pater familiae, no contexto da Grécia e Roma Antigas, tinha total autoridade familiar e religiosa em relação a seus filhos menores. Portanto, o Estado não se imiscuía neste âmbito.
Graduada em direito pelo Centro Universitário do Pará desde 2018 e pós-graduada em Direito Penal, pela Faculdade Damásio desde 2019. Além disso, foi assessora jurídica da Defensoria Pública do Estado do Pará, entre 2019 e 2022.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, THAIS TORRES MONTEIRO. A contínua resistência à tese da “exceção de Romeu e Julieta” nos casos de estupro de vulnerável no Brasil: uma análise do Resp 1.977.165/MS e do Agrg no Aresp 2.389.611-MG julgados pelo Superior Tribunal de Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 ago 2024, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/66106/a-contnua-resistncia-tese-da-exceo-de-romeu-e-julieta-nos-casos-de-estupro-de-vulnervel-no-brasil-uma-anlise-do-resp-1-977-165-ms-e-do-agrg-no-aresp-2-389-611-mg-julgados-pelo-superior-tribunal-de-justia. Acesso em: 21 nov 2024.
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