Não é de hoje que o desenvolvimento tecnológico impacta no Direito Penal e Processual Penal. Afora as modernas técnicas de investigação, a tecnologia disruptiva que se avizinha impõe novos olhares em instituições consagradas da teoria geral do delito e a formulação de novos institutos. Em um futuro próximo despontarão novidades como superchips neurais, fMRI de 20T, IAG e rede 6G. Neste ensaio vamos incursionar sobre essas tecnologias e suas implicações no Direito Penal e Processual Penal.
Iniciaremos a análise das novas tecnologias que têm impacto no direito penal pela interface cérebro-máquina (BCI), cujas pesquisas remontam há décadas, mas que nos últimos dez anos passaram por um avanço formidável. Um estudo publicado na Nature Communications em 2014 mostrou um símio usando a mente para controlar os movimentos de outro animal da mesma espécie. Um chip no cérebro converteu sua atividade cerebral e enviou impulsos elétricos para a espinha do animal controlado. Em 2019, um estudo mostrou a possibilidade de interface cérebro-cérebro (BBI), com um acoplamento sem fio dos cérebros de um operador humano e de um rato, com transmissão da atividade cerebral em tempo real. Os sinais elétricos foram registrados por um computador e traduzidos em instruções específicas. Quando o operador humano pensava em uma instrução, o eletrodo enviava um sinal de estimulação ao cérebro do rato, fazendo-o responder à direção comandada. Em 2020, um estudo de BCI com ratos feito pela Sainsbury Welcome Centre mostrou como o cérebro representa o controle intencional. Em 2023 foi lançado um implante cerebral sem fio, na forma de um microestimulador que simula um marcapasso no cérebro, para tratar problemas mentais como DRT, TDM e MDD. E no início de 2024, Noland Arbaugh, portador de tetraplegia, respondeu bem ao implante do chip neural da Neuralink Corp. O chip possibilitou que ele jogasse xadrez e Civilization VI por meio do controle direto cérebro-máquina.
Com base nesse progresso vertiginoso dos últimos dez anos, bem como nos aportes de recursos destinados a novos estudos, é esperada para os próximos dez anos uma revolução ainda mais profunda nessa área. Com a incorporação de inteligência artificial, as próximas “rodadas” de novidades tecnológicas nesse campo devem suscitar questões éticas importantes, com forte impacto no Direito Penal.
O controle da mente passou muito tempo no reino da ficção. Matrix e Avatar são duas franquias que fizeram sucesso explorando o tema. Mas nem tudo é ficção. Em 1953, a CIA pesquisou o controle da mente por meio do projeto MK Ultra, presidido pelo agente Sidney Gottlieb, que perdurou até meados dos anos 1960. A agência lançou mão das mais variadas técnicas, desde o uso de lavagem cerebral, tortura, eletrochoque, hipnose, radiação e drogas alucinógenas, como LSD. O projeto não obteve sucesso no controle da mente humana, tendo apenas deixado muitas sequelas nas cobaias.
Mas algo semelhante a esse controle se aproxima de se tornar realidade, resultando em potenciais condutas criminosas praticadas sob a influência decisiva de um chip neural. Em breve, um hacker poderá controlar as ações de outra pessoa com implante no cérebro, ordenando comandos que ela não conseguirá resistir.
Isso já ocorre com o efeito de algumas substâncias químicas, como a escopolamina, uma droga potente conhecida como hálito do diabo. Na Colômbia ela é chamada de burundanga e possibilita um controle mental de seus usuários. A imprensa mostrou muitos vídeos em cidades colombianas de pessoas que fizeram uso da droga sendo facilmente convencidas a cometer crimes violentos.
Muitos dispositivos de estimulação cerebral de consumo já chegaram ao mercado. O cérebro é um órgão complexo, contendo trilhões de conexões, mas os microchips estão cada vez mais potentes. Um chip também é capaz de direcionar estímulos à produção de hormônios específicos, como adrenalina e endorfina, criando um sistema de recompensa e punição que impactaria paulatinamente no comportamento e preferências do implantado. A despeito das intenções altruístas das pesquisas nessa área, não tardará para que seu uso seja direcionado para finalidades criminosas.
É importante salientar que o implante cerebral de chips nas pesquisas de BCI não se confunde com o implante realizado por neurocirurgiões em casos de acidentes vasculares cerebrais, traumatismos e tumores no cérebro. Nestes casos, um chip faz a leitura dos estímulos elétricos gerados pelos neurônios responsáveis pela fala, por exemplo, que seriam enviados para o sistema respiratório, que não funciona em virtude de um acidente. Os sinais elétricos captados pelo chip são então enviados para um computador, possibilitando que um paciente mudo se comunique pelo microfone da máquina. Essas interfaces neurais também são usadas para aliviar a depressão resistente ao tratamento, com doses direcionadas de estimulação elétrica. O cérebro funciona mediante atividade elétrica célula a célula e esses implantes cocleares possibilitam a restauração de funções específicas, como audição e fala.
Já no caso dos chips da Neuralink Corp. e do Chip de Berger, a arquitetura e finalidade são distintas. Aqui não se trata da leitura da mente, mas apenas comandos direitos do paciente para um computador. No entanto, com a incorporação de IA, essa abordagem passiva pode ser alterada para abordagens ativas, numa via de mão dupla, por meio da interface inversa máquina-cérebro, tornando possível impulsionar a vontade do implantado ou controlá-la.
Um implante cerebral com tal capacidade, combinado com a administração de drogas específicas, pode tornar uma pessoa vulnerável ao controle mental, possibilitando sua manipulação por terceiros. De fato, próteses neurais com entrada direta ao cérebro podem ignorar os filtros existentes, havendo muitos grupos com interesse ilegais objetivando o uso dessa tecnologia para o estímulo do fanatismo ideológico ou sectário.
Com base na realidade que se avizinha, é forçoso analisar algumas indagações pertinentes. No caso de crimes praticados sob a influência determinante de próteses neurais haverá exclusão da conduta, caracterizando autoria mediata? Ou o controle da mente seria uma nova dirimente, encaixando-se como uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade?
Em termo dogmáticos, a inexigibilidade de conduta diversa advém da coação moral (vis compulsiva, vis conditionalis, vis animo illata). Na coação moral irresistível, o agente age dolosamente, mas esse controle é viciado pelo temor da ameaça. Já na coação física irresistível (vis absoluta, vis atrox, vis corpori illata), o executor é mero instrumento do crime, como no ato de o coator forçar seu dedo no gatilho, ou quando o coator o empurra contra a vítima, que cai do alto de um prédio. Nesses casos o coator é autor mediato e responde integralmente pelo resultado. No primeiro caso há exclusão da culpabilidade, ao passo que no segundo há exclusão da conduta, que está alojada no fato típico.
Desta forma, a prática de crime sob a influência decisiva de chips cerebrais e drogas específicas fica a meio caminho entre as duas modalidades acima, representando um tertium genus, aqui denominado de coação neural irresistível.
Levando esse raciocínio ao limite, os pacientes tetraplégicos da Neuralink Corp. passaram a ter a capacidade de cometer crimes contra a honra nas mídias digitais, bem como realizar golpes virtuais e até financiar grupos terroristas. Nesse contexto, algumas questões se colocam: como comprovar a autoria? Diante de um álibi defensivo de influência determinante do chip neural, como comprovar o elemento subjetivo da conduta, a imputabilidade e a culpabilidade, em especial o poder agir de outro modo e a inexigibilidade de conduta diversa? São questões pertinentes, dado o enorme universo de pessoas incapacitadas que serão beneficiadas em breve com esses dispositivos e passarão a integrar o universo de pessoas capazes, inclusive para cometer crimes.
Uma prótese biônica, como um braço de titânio, não oferece maiores desafios dogmáticos. Mesmo amputações abaixo do cotovelo, que oferecem maiores obstáculos de engenharia, são restauradas por meio de osseointegração. Esse procedimento de engenharia integrada faz com que a prótese seja reconhecida pelo corpo como se fosse osso, e não como um objeto estranho. A mão biônica também possui sensores que captam a temperatura, à semelhança da mão humana, e eletrodos podem ser ligados ao cérebro para comandar as próteses. O método de impressão 3D igualmente reduziu os custos destas próteses, que se tornaram mais acessíveis. Esse método de impressão já é extensivamente utilizado na fabricação de peças de navios e aeronaves, tendo sido incorporado na manufatura protética. Assim, um comando mental que percorre os eletrodos até o braço biônico e efetua um disparo de arma de fogo se encaixa induvidosamente no elemento subjetivo dolo, e uma alegação defensiva de falha no envio do neurotransmissor demandaria uma perícia especializada, com inversão do ônus da prova.
Contudo, no caso de próteses neurais, como os chips da Neuralink Corp., poderá haver alegações de falha no próprio comando mental, como erros na leitura sináptica das conexões cerebrais, indução de comandos involuntários, condutas decorrentes de estímulos intermitentes ou mesmo um comando direto de terceiro. Os próprios cientistas envolvidos com as pesquisas nessa área têm demonstrado receio de que hackers possam controlar pacientes implantados como se fossem marionetes para o cometimento de toda sorte de delitos.
O desafio para individualizar as condutas se mostra ainda mais complexo, uma vez que duas pessoas podem ter experiências subjetivas muito diferentes diante dos mesmos estímulos cerebrais. Essa realidade impõe a necessidade de perícias para constatar se o comando cerebral foi realmente determinante no caso concreto. Imaginemos o caso de A implantar um chip neural em B, ou hackear um implante já existente. O dispositivo passa a estimular a animosidade de B contra C. Após um tempo alimentando esse estímulo, o implante neural leva B a contratar na internet o matador profissional D para dar cabo à vida de C, o que se concretiza. O enquadramento legal da conduta de D como executor do crime não traz maiores dificuldades. Mas o exame da culpabilidade de A e B reclama uma reformulação em institutos chaves da teoria geral do delito. Além disso, a vítima C pode não ser uma pessoa específica. Utilizando técnicas que incluem vieses nos algoritmos, seria perfeitamente possível induzir a animosidade do implantado contra pessoas integrantes de grupos específicos da sociedade.
Para a análise dogmática desses casos é necessário diferenciar três conceitos do Direito Penal: impunibilidade, imputabilidade e inimputabilidade. O Código Penal brasileiro trata do primeiro no artigo 31, indicando que a determinação ou instigação só será punida quando o crime chega a ser tentado. Neste último caso, o artigo 62 do CP elenca agravantes para quem coage, induz, instiga ou determina a conduta de terceiro. O induzimento e a instigação também compõe tipos penais específicos, como no caso de suicídio e crimes sexuais. Já os dois outros conceitos se relacionam à culpabilidade.
A imputação também pode ser definida como o efeito de atribuir a culpa ou responsabilidade a alguém por determinado ato. Em outras palavras, é a ação de culpabilizar alguém por um crime. Uma pessoa imputável é aquela que pode ser responsabilizada por um fato punível, por se considerar ter as faculdades mentais e a liberdade necessária para avaliar o ato quando o praticou. Esse sentido do termo não se confunde com a imputação objetiva, relacionada ao nexo de causalidade, a partir do incremento do risco pelo agente, conforme os aportes de Roxin, Frisch e Puppe.
A despeito da limitação trazida no artigo 31 do CP, é imperioso tipificar como crime formal a conduta de quem implanta ou hackeia um chip neural, com a finalidade de induzir a prática de crimes, ainda que não venham a ocorrer. Ou ainda, para quem desenvolve, produz ou distribui chips com essa capacidade, ainda que não vise uma pessoa específica, dado o risco difuso desta conduta.
Nos últimos anos, com o surgimento de novos bens jurídicos, cuja proteção foi lançada à alçada do Direito Penal, surgiram em igual medida tipos penais novos, que demandam enormes esforços dos tribunais para adequação típica, a exemplo dos delitos de intenção, aos quais a teoria causal da ação não responde adequadamente. Na teoria causal clássica, o injusto era a parte externa da estrutura do crime (parte objetiva), enquanto a culpabilidade era a parte interna (parte subjetiva). A culpabilidade era psicológica, com um vínculo psíquico entre o agente e o fato. Esse modelo formal e avalorado dava uma aparente sensação de segurança, que contrastava com a prática do direito penal, em especial nos crimes formais, de mera conduta e omissivos, que não se encaixavam na teoria clássica. Na visão de Francisco de Assis Toledo: “O sistema, entretanto, começaria a desmoronar-se, na área penal, com a descoberta dos elementos anímicos, subjetivos, do tipo, nos denominados ‘delitos de intenção’”. (Princípios Básicos de Direito Penal, editora Saraiva, 1994, pág. 94).
A teoria da culpabilidade atualmente vigente também passa por revisão doutrinária. No alerta de Cezar Roberto Bitencourt: “Tudo isso com o objetivo final de esclarecer se estamos diante de uma crise irreversível da teoria normativa da culpabilidade, ou se estamos, em realidade, testemunhando o momento histórico da sua evolução e aperfeiçoamento.” (Tratado de Direito Penal, Vol. I, editora Saraiva, 2022, pág. 490)
Além disso, o estudo de novos institutos, como a antijuridicidade subjetiva, a liquefação do Direito Penal (para defesa de bens jurídicos difusos, com origem na doutrina alemã) e a antecipação do Direito Penal (com origem na doutrina italiana), possibilitou a disseminação de tipos penais em branco, de mera conduta, de perigo abstrato e com punição de atos preparatórios.
No caso prático de um paciente implantado que comete um delito sob efeito de confusão mental causada pelo chip, também é possível aproveitar aportes da teoria do erro, gerando um tertium genus, situado a meio caminho entre o erro de proibição e o erro de tipo, que aqui denominamos de erro neural escusável.
Essa espécie de erro possui certa confluência com o excesso exculpante, que era previsto no art. 3º, §1º, do CPM de 1969. Esse excesso advém do estado psíquico do agente, que age com medo, pavor ou surpresa. Mesmo tendo se excedido, o estado de confusão mental torna a conduta impune. Não se trata de excesso culposo, que pressupõe a falta do dever objetivo de cuidado, mas sim de excesso decorrente de uma atitude emocional do agredido. O excesso derivado do medo é previsto como exculpante no art. 45, parágrafo único, do Código Penal Militar. A doutrina entende que nessas situações não há reprovação na conduta, não cabendo punição ao agente. Mesmo sem previsão expressa no CP, o excesso exculpante é aplicado no direito penal comum. Ele se aproxima do excesso doloso, mas com ele não se confunde, por ser decorrente do estado de confusão psíquica decorrente do pavor. Um crime cometido pela confusão mental causada por um implante cerebral possui semelhança com a conduta praticada em excesso exculpante.
É possível ainda compará-lo com o erro de proibição culturalmente condicionado, desenvolvido por Zaffaroni. Essa modalidade de erro se divide em três: erro de compreensão, consciência dissidente e justificativa putativa. Esses erros ocorrem quando índios isolados atacam não índios, por vê-los como inimigos.
Para maior acurácia dogmática, precisamos incursionar pela teoria geral do delito buscando reformular institutos que tragam uma resposta segura na aplicação do Direito Penal nesse novo mundo que se descortina. De uma maneira geral, o erro de tipo incide sobre os elementos constitutivos do tipo penal, enquanto o erro de proibição incide sobre a consciência da ilicitude. A teoria normativa pura da culpabilidade se desdobra em teoria limitada e extremada. Esta teve o mérito de unificar todas as descriminantes putativas como erro de proibição, albergando tanto a existência e os limites de uma causa de justificação, como a legítima defesa, quanto seus pressupostos fáticos. Aquela diferenciou este último caso, considerando-o um erro de tipo permissivo. Essa diferenciação se afigura importante para a análise do erro neural aqui tratada.
Na fase causal-naturalista, a conduta era tida como um movimento voluntário, o que trazia problemas relacionados à conduta omissiva. Essa deficiência foi contornada na fase neokantista, com os contributos de Mezger, Schmidt e Radbruch. No finalismo de Welzel, o agente antecipa mentalmente as consequências necessárias e eventuais da conduta. Essa capacidade que o ser humano tem de escolher os meios e antecipar as consequências é denominada por Zaffaroni de antecipação biocibernética do resultado. O direito positivo brasileiro adota a teoria da ação final, mas o requisito da antecipação mental das consequências da conduta pode não estar presente nos casos de coação ou erro neural.
Quando de sua formulação, o finalismo ainda estava apegado à estrutura lógico-natural do causalismo. Com o funcionalismo, houve o rompimento dessa amarra, possibilitando um juízo de valor da ação, que será punida apenas se houver conveniência político-criminal. Para Jakobs, que elaborou a teoria funcional da culpabilidade, deve-se buscar na culpabilidade se a pena é ou não necessária, estabelecendo o tipo total da culpabilidade, com a junção do tipo positivo e do tipo negativo.
Como regra, as ações penais são ajuizadas após análise perfunctória da tipicidade e da ilicitude, procedendo-se ao exame da culpabilidade pelo órgão acusatório apenas no decorrer do feito. Esse exame incidirá: na imputabilidade, que segue o critério biopsicológico, com análise da autodeterminação do agente; na exigibilidade de dirigibilidade normativa, com análise da possibilidade de o agente atuar conforme o direito; e na possibilidade de o agente alcançar a ilicitude de seu comportamento. Esse último critério não se confunde com a análise da ilicitude como segundo substrato do delito, indicada acima ao lado da tipicidade. É dizer: a ilicitude do fato em si é analisada tão logo é ofertada a denúncia, mas a possibilidade de o agente alcançar essa ilicitude é examinada posteriormente, no decorrer do trâmite processual.
É preciso ainda descartar as causas supralegais de exclusão da culpabilidade para emitir um veredicto condenatório. São exemplos dessas causas: a desobediência civil, como a ocupação pacífica de prédios públicos para reivindicações sociais; o conflito de deveres, comum nos casos de escassez de leitos de UTIs, acidentes com muitos feridos em estado grave, surtos e epidemias, que demandam uma escolha entre vidas distintas, com preferência para quem já está em atendimento; cláusula de consciência, como a negativa do pai para a transfusão de sangue do filho maior, que partilha da mesma crença. Neste último caso, se o filho for menor, o pai responde pelo crime, tendo em vista que a vida é um bem jurídico de maior valor que a liberdade de crença e de consciência. O consentimento do ofendido é causa supralegal de exclusão da ilicitude, podendo também excluir a tipicidade, caso integre o tipo penal.
Percebe-se que a coação neural irresistível e o erro neural escusável podem impactar institutos diversos, como o elemento subjetivo da conduta, a imputabilidade do agente e o poder agir de outro modo, com reflexos nas teorias da ação e da conduta, que devem ser aperfeiçoadas para se adequar às novas tecnologias emergentes. O julgador também pode lançar mão da semi-imputabilidade nos casos intermediários, com aplicação por analogia do parágrafo único do artigo 26 do CP, recorrendo-se à redução de pena ao invés da absolvição imprópria.
Afora os casos até aqui tratados, os avanços tecnológicos também trazem impactos na própria relação de imputação, em especial o imageamento cerebral. Em outras jurisdições, esse procedimento tem se tornado comum, como no caso de tribunais norte-americanos. No Brasil, já há um nascente movimento nesse sentido, tal como retratado no estudo “Utilização de Imagens de Ressonância Magnética e Tomografia Computadorizada como Meio de Prova em Processos Criminais”, publicado na revista “Perspectivas” da Associação Brasileira de Medicina Legal e Perícia Médica (Vol. 08, 2023).
O Código Penal brasileiro se reporta à imputação de forma indireta, no Título III - Da Imputabilidade Penal, indicando se tratar da capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Com o avanço no imageamento cerebral, o vínculo de imputação não se limita apenas à tradicional inferência decorrente do exame das circunstâncias fáticas que cercam o fato, sendo possível em alguns casos se estabelecer um vínculo entre o estado cerebral e a conduta criminosa, aqui denominada de neurimputação, estipulando um vínculo de imputação neural mais seguro.
De fato, já existem diversos exames no cérebro capazes de desvendar aspectos cruciais da intenção do agente ao cometer um crime. O ECC (eletroencefalograma) avalia a atividade elétrica do cérebro. O doppler transcraniano utiliza ultrassom, convertendo o eco sonoro em imagens cerebrais. A tomografia usa radiação ionizante, o mesmo princípio físico dos raios X, e uma estrutura helicoidal com anéis deslizantes que possibilita uma dupla captação de imagens. A ressonância magnética funcional não emite radiação, mas tem um custo mais elevado. Em geral, usa-se um contraste intravenoso. O magnetismo dos ímãs força os prótons a alinharem seus spins. Em seguida, uma corrente de radiofrequência é pulsada, fazendo os prótons se realinharem. Por fim, os sensores da máquina detectam a energia liberada neste realinhamento, formando a imagem cerebral. A fMRI é um exame acurado, sendo utilizado no sistema nervoso central para o diagnóstico da epilepsia, por exemplo. O exame PET-TC utiliza emissão de pósitrons por meio de radionuclídeos, uma forma radioativa do elemento químico, com a injeção de um radiomarcador intravenoso, como glicose ou oxigênio, para detectar a radiação liberada. Os radionuclídeos liberam fótons de alta energia na forma de raios gama, mas o exame PET utiliza radionuclídeos que liberam pósitrons, partículas que têm a mesma carga do elétron, mas sinal oposto. Este exame é utilizado principalmente para o diagnóstico de tumores cerebrais e metástase, tendo sido incorporado no diagnóstico da esquizofrenia e em pesquisas criminológicas.
Esse aparato tecnológico foi exposto de forma didática por Franco Pose e Gabriele A. Losa, no artigo “Neurociências em Criminologia” (traduzido do inglês) publicado na plataforma OAText em 2016. Sobre o tema os autores pontuam: “As aplicações da neurociência à criminologia adquiriram um valor científico e legal crescente graças aos estudos recentes da anatomia e da atividade metabólica do cérebro. Nos últimos anos, a genética comportamental, a sociologia, a psicologia evolutiva, a neuroquímica e a neurociência cognitiva apresentaram individualmente e destacaram as correlações entre o organismo e o comportamento. Os principais meios de investigação que permitem a exploração do cérebro para fins clínicos (neuroimagem) há alguns anos são: análise computadorizada do EEG, com mapeamento seletivo da atividade elétrica de áreas cerebrais específicas e bem definidas; tomografia axial computadorizada (TAC); ressonância magnética funcional (fMRI); tomografia por emissão de pósitrons (PET), magnetoencefalografia (MEG); tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT); bem como aquisições de atividade de neurotransmissão e neuromodulação; e por último, mas não menos importante, o estudo da neurobiologia molecular.”
A essa lista também é possível acrescentar a incorporação da técnica CKA - Avaliação Informatizada do Conhecimento, que mede oscilações da onda cerebral P300. Além disso, os exames cerebrais embarcaram métodos de aprendizado de máquina na sua análise. A fMRI com IA faz com que o algoritmo aprenda com cada novo caso, aprimorando a qualidade das imagens e a precisão no posicionamento das fatias. Isso possibilita uma análise em tempo real da oxigenação do cérebro e dos padrões de fluxo sanguíneo, indicando onde os neurônios estão disparando com mais frequência.
Existem espalhados pelo mundo dezenas de aparelhos de fMRI de 7 T. Em 2015, a USP inaugurou o primeiro aparelho deste tipo no Brasil. No entanto, a ressonância magnética de 7 T possui algumas desvantagens, como a falta de homogeneidade do campo magnético, além do relato de efeitos adversos nos pacientes, como tonturas, indução de gosto metálico e queimaduras.
Em 2018, em Minnesota, o CMRR inaugurou um aparelho de ressonância magnética de 10,5 T, pesando 110 toneladas. Em 2021, começou a operar no laboratório Neurospin, na França, um aparelho de ressonância magnética com um campo de 11,7 tesla, pesando 132 toneladas, o equivalente a três aviões Boeing 737. O maior desafio deste aparelho era a blindagem magnética, que foi resolvida com o uso de duas bobinas de quatro metros de diâmetro. O eletroímã é alimentado por uma corrente elétrica de 1.500 amperes, contendo 182 km de fios supercondutores no enrolamento, sendo resfriado com hélio superfluido a -271,35ºC, próximo ao zero absoluto (1,8 K). Ele gera imagens cerebrais com resolução de 400 micrômetros em 3D. Além de patologias, o aparelho proporciona progressos formidáveis na pesquisa fundamental e nas ciências cognitivas, já tendo emitido as primeiras imagens cerebrais com altíssima resolução no início de 2024.
Um scanner ainda mais potente, de 14 teslas, está em desenvolvimento em Nijmegen na Holanda, por meio de um consórcio de 7 parceiros. E existe um projeto para uma futura máquina de fMRI de 20 teslas, conhecido como Ekose Tesla. Essa potência magnética tem a capacidade de observar escalas biologicamente relevantes, como mudanças dinâmicas em tempo real que examinam simultaneamente tanto a atividade excitatória quanto inibitória, por meio de imagens espectroscópicas que medem todas as camadas do córtex, do cerebelo, das estruturas subcorticais e dos núcleos internos. Esses projetos envolvem enormes desafios em engenharia de crioresfriamento e de supercondutores em altas temperaturas, tendo incorporado avanços na tecnologia de fusão nuclear a quente, que também utiliza bobinas magnéticas na geração de plasma em combustão. O objetivo é conseguir imagens cerebrais com resolução abaixo de 100 micrômetros.
Experimentos futuros podem utilizar neuroimagens com resolução de apenas alguns mícrons em tempo real, examinando o mecanismo cerebral durante a escolha no cometimento de crimes, especialmente crimes violentos. Outras propostas incluem a implantação de chips cerebrais em egressos do sistema prisional para o monitoramento da reincidência, com o desestímulo de condutas ilícitas por meio de mecanismos hormonais de punição e recompensa.
O uso dessas imagens cerebrais na seara criminal é reportada tanto antes como depois do crime. Alguns autores, como Eagleman e Raine, indicam a necessidade de uma varredura cerebral em possíveis delinquentes, a fim de evitar futuras práticas criminosas, com críticos vendo semelhanças com as abordagens da fase antropológica da escola positivista. Seu uso mais intenso tem sido feito após o crime, para analisar a possível existência de problemas no cérebro. Mas já existem abordagens que usam imagens cerebrais para diferenciar em tempo real os estados mentais intencionais e imprudentes durante a prática de um delito, auxiliando no encaixe entre crime doloso e culposo.
O aprofundamento da tecnologia e das técnicas de pesquisa nessa área podem facilitar a análise do vínculo de imputação entre a consciência do agente e a conduta praticada, ou entre o mundo numênico e fenomênico apregoado por Kant. Também podem indicar a maturidade cerebral, revelando possíveis discrepâncias entre a idade real e a idade mental do acusado. Uma forte linha de pesquisa é aplicada na prevenção da reincidência criminal, com a busca de biomarcadores da reincidência feitas pela equipe de Kent Kiehl. O campo de aplicação dos exames cerebrais tem se expandido a cada ano, incidindo antes do crime, durante o crime, por ocasião do julgamento, para prevenção da reincidência e após o cumprimento da pena.
No entanto, é necessário ter cuidado para não se criar uma visão neurohype, que pode resultar em exageros neste tipo de evidência científica. Para tanto, é necessário perscrutar até que ponto as pesquisas em neuroimagem podem impactar na análise da conduta delituosa.
Iris villares e colaboradores publicaram um estudo na Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos em 16/03/2017, revisado em 28/03/2019, contando com a participação de psicólogos e juristas, empregando aprendizado de máquina em dados de imagens cerebrais, a fim de captar evidências neurais do estado mental do participante, utilizando ressonância magnética funcional e tomografia cerebral. O estudo buscou analisar a culpabilidade do participante, diferenciando seu estado mental nos casos de intenção e imprudência, o equivalente ao dolo e à culpa. No contexto do direito norte-americano, aferir os limites da intenção criminosa pode decidir se o agente é elegível para a pena de morte, caso o exame indique um estado mental intencional ou ciente de um risco elevado na sua conduta. O estudo indicou uma correlação entre a ínsula anterior e o córtex pré-frontal com as funções de tomada de decisão e cálculos. Na função associada às decisões morais, houve uma associação com o córtex occipital e a junção temporoparietal (TPJ), a área do cérebro onde os lobos temporal e parietal se encontram, na extremidade posterior do sulco lateral.
David C. Rowe fez uma incursão sobre os aspectos fisiológicos do corpo humano que se vinculam ao comportamento criminoso, incluindo genética comportamental e molecular, imagem neural, teoria evolutiva, hereditariedade, competição sexual, testosterona, serotonina, frequência cardíaca e condutância da pele. Também explora estudos com gêmeos, confrontando as interações genotípicas e ambientais. Para ele, a pesquisa biológica sobre o crime, chamada de “biologia criminal”, não se confunde com a “biologia forense”, que inclui a botânica, genética, entomologia, ornitologia, toxicologia, patologias, DNA e proteínas. Apesar de terem métodos semelhantes, seus escopos são diferentes. (in “Biology and Crime”, editora Roxbury Pub Co, 2002).
A virtópsia também tem sido incorporada nessa análise. Trata-se do exame dos restos mortais, para investigar as causas da morte, em especial no casos de abuso infantil, conjugal ou geriátrico. O termo remete à autópsia tradicional, mas realizada por meio de imagens virtuais.
Por seu turno, Carl Delfin, Hervig Krona e Björn realizaram um estudo para a predição de reincidência usando imagens cerebrais para a medição do fluxo sanguíneo cerebral regional em repouso, por meio de tomografia computadorizada por emissão de fóton único e avaliação psiquiátrica clínica. Já Josjan Zijlmans, Reshmi Marhe e Arne Popma estudaram 127 jovens delinquentes, utilizando neuroimagem funcional e eletroencefalografia, buscando padrões de reincidência em crimes em geral e reincidência específica em crimes graves. O estudo revelou um poder preditivo moderado de traços comportamentais. A frequência cardíaca em repouso foi fortemente associada à reincidência. O estudo confirmou que medidas neurobiológicas melhoraram significativamente o poder preditivo para a reincidência geral e, principalmente, para a reincidência grave.
O projeto da Mind Research Network tem o escopo de reduzir a reincidência e desenvolver alternativas ao encarceramento. O projeto visa detectar crianças com alto risco de cometimento de crimes e adaptá-las a um tratamento que reduza esse risco. Para isso, a equipe de Kent Kiehl escaneou o cérebro de 4.000 jovens infratores distribuídos por dez prisões, utilizando uma máquina de ressonância magnética portátil. É o maior banco de dados neurocientífico de criminosos violentos do mundo. Paralelamente, foram realizadas entrevistas clínicas intensivas com os jovens, buscando desenvolver um programa de tratamento cognitivo-comportamental para fortalecer habilidades pró-sociais. O programa conseguiu diminuir a reincidência em 85% após um ano, e 92% após dois anos.
Segundo o estudo publicado em julho de 2012 por Manuela Fumagalli e Alberto Priori, intitulado “Neuroanatomia Funcional e Clínica da Moralidade” (traduzido do inglês), as estruturas anatômicas implicadas na moralidade são os córtices frontal e temporal. O lobo frontal, em particular os córtices pré-frontal orbital e ventromedial, tem um papel primordial no comportamento moral. O lobo temporal intervém nas decisões morais por meio de seu papel na intencionalidade e complexidade social das decisões morais (no sulco temporal superior e na junção temporo-parietal) e é frequentemente associado ao comportamento agressivo. De uma maneira geral, as pesquisas nesta área associam a moralidade ao hipotálamo, amígdala, hipocampo, ínsula e área 25 (área de Brodmann).
O uso de exames cerebrais em casos criminais teve início com a adoção do eletroencefalograma (EEC) em casos que envolviam epilepsia, na década de 1930. Nas décadas seguintes, outros exames foram incorporados, envolvendo uma gama mais ampla de casos criminais. A ressonância magnética foi aplicada em julgamentos criminais a partir da década de 1970. Em 30 de março de 1981, John Hinckley Jr atirou no presidente dos EUA, Ronald Reagan, na fachada do Washington Hilton Hotel, deixando o presidente e três seguranças feridos. No julgamento do acusado, a defesa pediu a análise da tomografia computadorizada axial do seu cérebro para sustentar a alegação de inocente por motivo de insanidade (NGRI). A acusação se opôs ao uso do exame, mas o juiz acatou. O exame constatou atrofia cerebral, o que livrou o atirador da pena de morte. Depois deste caso, a incorporação de exames cerebrais nos julgamentos criminais ganhou novo impulso. No caso “people v. Weinstein”, em 1992, a defesa utilizou exame de tomografia por emissão de pósitrons (PET) para mostrar um cisto aracnoide no cérebro do acusado, que matou a esposa. A partir dessa constatação, a imputação mudou para homicídio culposo.
Em 2015, Denno analisou 800 casos criminais nos EUA entre 1992 e 2012, em que houve utilização de exames cerebrais, como PET, RM e TC. Dois terços deles se referiam a casos de penas de morte, com a grande maioria servindo para alegar atenuantes. Em menos de 10% dos casos houve a utilização dos exames para alegar agravantes. Em 2016, Meixner revisou o uso de evidências neurocientíficas em julgamentos criminais entre 2005 e 2012 nos EUA, Canadá, Holanda, Inglaterra e País de Gales, constatando um aumento crescente em todas as jurisdições analisadas, principalmente nos EUA, onde houve a emissão de milhares de pareceres judiciais.
O uso se tornou tão comum que os condenados passaram a apelar com a alegação de “strickland”, quando a defesa negligencia na apresentação de evidências neurocientíficas. Já a acusação pode lançar mão dos exames cerebrais para reforçar a alegação de periculosidade ou o próprio vínculo de imputação.
Mas nem sempre essa alegação livra o acusado da pena máxima. Nos EUA, Patrick McDowell matou um delegado durante uma blitz de trânsito em 2021 no condado de Nassau, sendo capturado após cinco dias de buscas intensas que mobilizaram todo o aparato policial. No decorrer do processo, a defesa alegou que o acusado sofria de transtorno de estresse pós-traumático - TEPT, após servir por quatro anos na marinha, além de fazer uso de metanfetaminas. A defesa solicitou a realização de exames neurológicos para constatar o transtorno. Contrariamente a essa alegação, as testemunhas disseram que o acusado não atuava no corpo a corpo quando foi convocado para o serviço militar. A promotoria sustentou que o acusado matou o delegado apenas para evitar a prisão. Ao tempo do fato, a legislação da Flórida exigia um julgamento unânime para a condenação à pena de morte, de 12 a 0. No decorrer do processo a legislação foi alterada, passando a exigir apenas um veredicto de maioria simples, de 8 a 4. O tribunal entendeu que essa alteração retroagiria para alcançar o caso de Patrick McDowell. Em 2024, o réu foi condenado à pena de morte por maioria qualificada, de 12 a 1, com um voto dissidente pela prisão perpétua. Neste caso, os exames neurológicos e a alegação de TEPT não evitaram a sua condenação à pena capital. Ele aguarda o agendamento de sua execução por injeção letal.
O uso de exames cerebrais também tem sido comum em casos civis, quando a questão em jogo gira em torno de uma lesão cerebral ou em alegações de danos morais. Esses exames captam o estado fisiológico do cérebro e suas funções quantificáveis, podendo auxiliar no reforço ou descarte de danos morais, bem como na sua quantificação. No direito brasileiro, essa espécie de dano é presumida, descartando-se apenas nos casos de mero aborrecimento.
É importante destacar que os exames cerebrais que captam a intenção do agente podem alterar radicalmente o enquadramento legal e o patamar de punição. De fato, as mesmas consequências causadas à vítima podem ensejar diferentes penas ao agressor, a depender do móvel que lhe faz agir. Como exemplo, o crime de lesão corporal grave, com a debilidade permanente de um membro da vítima, possui pena mínima de um ano de reclusão (art. 129, §1º, III, do CP). Este mesmo resultado causado à vítima, mas em um contexto no qual o agressor tem a intenção de subtração patrimonial (art. 157, §3º, I, do CP) enseja uma pena mínima de sete anos de reclusão. Por fim, se esse mesmo resultado lesivo é provocado no contexto da intenção do agressor de obter indevida vantagem econômica mediante restrição da liberdade da vítima (art. 158, §3º c/c art. 159, §2º, do CP – sequestro relâmpago), a pena mínima é de 16 anos de reclusão. Percebe-se uma gradação da pena mínima de 1, 7 e 16 anos de reclusão para o mesmo resultado lesivo provocado à vítima, como a surdez de um ouvido decorrente de um disparo de arma de fogo próximo ao rosto, visando a intimidação. Neste caso, ainda que o projétil não seja direcionado ao corpo da vítima, a violência é causada pela pressão sonora que atinge o tímpano, causando sua debilidade permanente. Como se trata de resultado previsível e bastante provável, não há que se falar em preterintenção, mas sim em dolo, ainda que eventual. Esse é um resultado lesivo abstrato e objetivo, previsto no tipo penal, e não considera possíveis traumas psicológicos na vítima constatados pericialmente no caso concreto, que são valorados na dosimetria da pena.
Essa comparação demonstra uma grande oscilação na pena abstratamente cominada, a depender da intenção do agente, ainda que o resultado lesivo na vítima seja o mesmo.
No direito penal, a inconsciência pode dar ao réu o direito de alegar automatismo, um estado sem controle das próprias ações, condição que lhe permite sustentar a irresponsabilidade penal. Dogmaticamente, a síndrome do automatismo mental pode atingir a conduta, alojada no fato típico, onde reside o dolo e a culpa, conforme a teoria finalista da ação. Nela incluem-se as crises epilépticas, as disfunções neurológicas e o sonambulismo. Essa alegação, no entanto, não se estende ao sono. No caso de o indivíduo adormecer na condução de um veículo, ou em outra atividade crítica à segurança, não haverá isenção da responsabilidade penal.
Como visto, é preciso considerar os achados neurológicos no acusado que indiquem propensão ao crime. No entanto, é importante diferenciar uma propensão no momento da prática da conduta e uma propensão constatada posteriormente. O exame realizado meses ou anos após a prática do fato pode detectar anomalias encefálicas que não foram determinantes no momento do crime, ainda que ensejem maior periculosidade futura. Os achados neurológicos também podem impactar na análise da intenção do agente. De fato, a medição da intensidade do dolo, se refletido ou premeditado, possui relevo na reprovação da conduta, em comparação ao dolo de ímpeto.
Além de anomalias cerebrais e implantes neurais, a alteração do comportamento também pode advir do consumo de drogas, que podem incutir ideias criminosas em pessoas saudáveis, ou mesmo potencializar transtornos latentes, como a escopolamina. A neuroquímica também pesquisa drogas com efeito contrário, que reduzem a agressividade, como antipsicóticos, estimulantes, antidepressivos e estabilizadores do humor.
Esse tema foi explorado de forma brilhante na literatura pelo romance “Alamut” de Vladimir Bartol, publicado em 1938, considerada a obra prima da literatura eslovena. O autor fez uma intensa pesquisa sobre a época do romance, que é ambientado no século XI. Ele era seguidor de Jung e Freud, e sofreu as agruras do fascismo durante a ocupação italiana da Eslovênia na Segunda Guerra Mundial. No livro, Bartol entrelaça psicologia e literatura, para mostrar como ideologias podem transformar crenças individuais em fanatismo. Na virada do século XX para o século XXI o romance teve a lembrança renovada em eventos de crise, como na guerra dos Balcãs na década de 1990 e no atentado de 11/09, cujo fanatismo e radicalização foram determinantes. O líder de “Alamut”, o ismaelita Hasan ibn Sabbah, foi comparado a Osama bin Laden. O romance teve forte influência da obra “A República”, de Platão, e seu rei filósofo, governante da cidade utópica de Calípolis. Segundo Karl Popper, a engenharia social e o radicalismo ideológico da figura do rei filósofo platônico estimulou movimentos totalitários no século XX. Ele vê essa influência na filosofia de Hegel, que teria estimulado a ascensão do hitlerismo, e na filosofia de Marx, que teria estimulado a ascensão do stalinismo. O aiatolá Khomeini também se baseou na figura do rei filósofo de Platão para implantar a República Islâmica no Irã, no período de 1979 a 1989, cujos princípios totalitários perduram até os dias atuais, como as execuções de manifestantes pela morte de Mahsa Amini em 2022.
Na América do Norte, carneiros selvagens se arriscam em montes rochosos íngremes para comerem um líquen alucinógeno. Os líquens são animais complexos, produto de uma simbiose entre algas e fungos. No reino animal, os fungos do gênero Ophiocordyceps e Massospora infectam insetos e dominam os comandos cerebrais, criando corpos de frutificação. Da mesma forma, a vespa-joia infecta baratas e domina seus cérebros para que sirvam de substrato de crescimento e futuro alimento à sua prole. Merlin Sheldrake explorou essa característica dos fungos no livro “Vida Emaranhada: Como os Fungos Fazem Nosso Mundo, Mudam Nossa Mente e Moldam Nosso Futuro”, publicado em 2021. Expedições recentes a Delfos, no templo de Apolo, na Grécia, durante os anos de 1996 e 1998, descobriram fendas no solo que exalavam gases alucinógenos, formados por hidrocarbonetos, que alteram a consciência. Estudos toxicológicos no ano 2000 confirmaram a semelhança com os efeitos causados nas sacerdotisas que profetizavam no templo há milhares de anos, segundo o relato de Platão sobre o oráculo.
No artigo de 2011 “Political Orientations Are Correlated with Brain Structure in Young Adults” (As orientações políticas estão correlacionadas com a estrutura cerebral em adultos jovens), Ryota Kanai, Tom Feilden, Colin Firth e Geraint Rees estudaram o cérebro por meio de ressonância magnética funcional, em especial o cíngulo anterior e a amígdala, para demonstrar um correlato funcional das atitudes políticas com a estrutura cerebral. A adesão a ideologias extremistas intriga os neurocientistas há muito tempo, assim como a questão das transformações neurológicas e neuroanatômicas que estão por trás do processo de radicalização.
Um exemplo são efeitos de contágio e imitação dos tiroteios em massa. Esses dois efeitos são bem documentados em casos de suicídio e de sequestro de aviões, estimulando a sua prática por outras pessoas. Também há o efeito de notoriedade, ilustrado por Heróstrato, o incendiário que destruiu o templo de Ártemis. Esse último efeito desencadeou o Massacre de Columbine em 1999, um dos primeiros tiroteios em massa em escolas nos EUA, perpetrado por Eric Harris e Dylan Klebold, resultando em 13 mortes e 21 feridos. Os dois atiradores se esforçaram para serem reconhecidos nas imagens das câmeras de segurança da escola.
Em 15/03/2019, o atirador Brenton Tarrant, de 28 anos, matou a tiros 51 pessoas em duas mesquitas na cidade de Christchurch, na Nova Zelândia, e deixou várias outras gravemente feridas. O crime de ódio foi motivado pela Teoria da Substituição. No ano seguinte, Brenton Tarrant foi condenado à prisão perpétua sem direito à condicional, tornando-se a primeira pessoa a receber essa condenação no país.
Outros casos recentes de radicalização atingiram as juízas do Afeganistão, o juiz libanês responsável pela investigação da explosão no porto de Beirute e o ex-primeiro-ministro do Japão, morto em 2022 durante discurso de campanha. No continente americano, há casos recentes de violência homicida contra candidatos presidenciais no Brasil, Argentina, Equador e EUA.
A crescente polarização política observada no Brasil e no mundo, com radicalização dos discursos e ações, deve ensejar modificações legislativas, para incluir majorantes relacionadas à intolerância política nos tipos penais vinculados às suas manifestações, como homicídio, lesão corporal, ameaça e delitos contra a honra, buscando a salvaguarda de bens jurídico-penais específicos, como a democracia e a liberdade de expressão.
Essa espécie de radicalização não é recente. Na virada do século XIX para o século XX, cerca de 2 milhões de judeus fugiram da Rússia por causa de pogroms, como o de Kishinev em 1903, que perdurou por 3 dias, e o de Ekaterinoslav, que não poupou sequer as crianças. O pogrom de São Bartolomeu na França, em 1572, e a noite dos Cristais, em 1938, são eventos atribuídos à “loucura de massa”, que pode bloquear os filtros morais dos participantes, impulsionando-os à conduta criminosa. Também há registros recentes no Oriente Médio, África e Ásia, como os ocorridos no Irã, Afeganistão, Ruanda, Burundi e Camboja.
A esse respeito, o antropocentrismo foi uma evolução humanista advinda da renascença. Esse movimento não buscou a superação do teocentrismo, mas sim a convivência harmônica entre o pensamento racional e a crença religiosa. Na história dos tribunais seculares, formados logo após a instituição dos Estados Nacionais, houve a adoção do processo penal das inquisições, em substituição à aleatoriedade das ordálias. Não restam dúvidas de que as conquistas do mundo atual são tributárias do antropocentrismo, que estabeleceu a paz duradoura no conflito entre a razão e o sagrado, conferindo valor inestimável à vida humana. Hieronymus Bosch debochou do juízo final na época do teocentrismo, contribuindo com suas pinturas para livrar a sociedade de superstições danosas. O pintor holandês Jeroen van Aken também retratou com fidelidade em suas obras esse período de superstições na Europa Central no século XV, servindo de inspiração para Salvador Dalí.
Essa radicalização pode em alguns casos ser atribuída a distúrbios psicológicos ou mesmo anomalias cerebrais. Algumas doenças adquiridas podem causar males similares. A doença Kuru é causada por príons, e é adquirida pelo consumo de tecido cerebral humano, prática comum em algumas tribos. Cogita-se que os neandertais possam ter sido extintos pela prática de canibalismo e consequente proliferação desse mal. Ainda há a prática de comer a si mesmo, conhecida como autosarcofagia, que decorre de graves episódios psicóticos.
O filme “Holocausto Canibal”, de 1980, explorou a temática do canibalismo praticado por tribos Yanomamis na Amazônia. O filme foi censurado pela acusação de snuff, por ser muito realista. O diretor italiano Ruggero Deodato ordenou que os atores se escondessem durante um ano após as gravações. Ele ficou detido pela polícia até que provasse que os atores estavam vivos. Na vida real, os assassinos em série Ng e Leonard Lake foram confirmados para o corredor da morte em 2022, após uma série de vídeos snuff com suas vítimas na década de 1980.
Nos Estados Unidos, um terço dos encarcerados sofrem de alguma doença mental. A Suprema Corte do país proibiu a aplicação da pena capital em réus com deficiência intelectual. Para a corte, no entanto, um achado neurológico sobre a impulsividade do réu em um determinado momento não implica necessariamente em impulsividade no momento da prática do delito, não acarretando automática atenuação da pena. O movimento de “justiça terapêutica” também propõe que parte da pena de crimes de menor potencial ofensivo ligados à dependência química de álcool e outras drogas seja cumprida na forma de tratamentos, como internação em clínicas de recuperação.
Mas apesar da influência da cultura, das drogas e de problemas mentais, não é possível descartar a crueldade como marca propulsora para a prática de crimes graves. Desde o início dos tempos existem pessoas cruéis, e seus atos não devem ser automaticamente atribuídos a problemas comportamentais ou defeitos no cérebro.
De igual modo, a influência dos implantes neurais não deve conduzir automaticamente à alegação de coação neural, erro neural ou semi-imputabilidade neural. Mesmo diante do laudo pericial neurológico, o juízo valorativo irá recair sobre a irresistibilidade da coação neural, sobre a escusabilidade do erro neural ou sobre o vínculo de imputação neural. Comparativamente, a própria dependência química não caracteriza por si só exclusão da ilicitude (estado de necessidade) ou da culpabilidade (inexigibilidade de conduta diversa).
Dogmaticamente, a inexigibilidade de conduta diversa é elemento da coação moral irresistível e da obediência hierárquica. A irresistibilidade da coação ocorre quando ela não pode ser suportada pelo coato. A irresistibilidade é aferida a partir do padrão do homem médio ou do próprio coato concretamente. É comum ela ocorrer em casos de extorsão mediante sequestro de familiares do coato. A pressão sobre o coato deve ser insuperável. Caso a ameaça seja dirigida a pessoas desconhecidas poderá caracterizar inexigibilidade de conduta diversa. A coação moral irresistível também é aplicada se houver apenas duas pessoas, quando o coato age contra o próprio coator. Se a coação for resistível poderá caracterizar concurso formal entre coato e coator.
Na obediência hierárquica é necessário haver uma relação de subordinação de direito público entre mandante e executor, apta a ensejar graves consequências para o subordinado que desrespeita a ordem. A inexigibilidade é elemento integrante da coação moral irresistível e da obediência hierárquica, mas pode ser aferida como elemento autônomo, caracterizando uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Na jurisprudência há diversos casos que a reconhecem autonomamente, desde seu surgimento na Alemanha no início do século XX. Esses institutos servem de parâmetro para o tratamento da coação neural.
No tocante ao erro neural, é possível vislumbrar algumas diretrizes da teoria do erro. A escusabilidade do erro ocorre quando é invencível, acometendo qualquer pessoa dentro de sua atenção normal. Não se exige um estado de vigilância intenso para excluir o dolo e a culpa. Se for vencível, exclui apenas o dolo, subsistindo a culpa. O erro neural advém da confusão mental causada pelo chip, que entrelaça o erro sobre os elementos constitutivos do tipo e a consciência da ilicitude, desde que essencial, e não apenas acidental. Pode ser escusável, quando imbuído de diligência ordinária, ou inescusável, quando não há de sua parte o mínimo empenho de se informar.
O crime de tortura também fornece uma diretriz aplicável ao coato (coação neural) ou ao terceiro que determina o erro (erro neural), quando dispõe no 1º, b, da Lei nº 9.455/1997: “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental para provocar ação ou omissão de natureza criminosa.” Se a coação neural for resistível ou o erro neural for inescusável, haverá concurso formal entre o hacker e o implantado. A acessoriedade limitada da participação exige que a ação principal seja típica e antijurídica. Se o crime praticado pelo implantado for culposo, não caberá participação nem autoria, não se admitindo igualmente a tentativa. Além disso, o chip neural pode incutir a ideia de crime putativo no implantado.
A doutrina tradicional oscila entre as teorias diferenciadoras e unitárias da autoria. As primeiras distinguem autor e partícipe, enquanto as segundas não fazem essa distinção. Dentro das teorias unitárias, as teorias subjetivas pregam penas idênticas para autor e partícipe, enquanto as teorias extensivas permitem penas distintas para ambos. Dentre as teorias diferenciadoras, a teoria objetiva-formal identifica o autor a partir da ação nuclear típica, e a objetiva-material utiliza como elemento diferenciador a conduta mais relevante para o desdobramento causal e o resultado típico.
Hanz Welzel concluiu seu doutorado em 1928, com tese sobre Pufendorf. Na década seguinte ele criou a teoria do domínio do fato, que foi aperfeiçoada por Roxin em 1963. Na teoria do domínio do fato há distinção entre autor e partícipe, mas o conceito de autor é mais amplo, podendo ser considerada uma teoria extensiva que incorpora a distinção entre autor e partícipe. No conceito de autor mediato, o executor age sem dolo ou culpa, enquanto na autoria intelectual, o autor planeja a empreitada criminosa, sem tomar partido nos atos de execução. Em muitos casos, porém, não é possível identificar com clareza quando o autor tem ou não controle completo da situação. Em se tratando do mandante, por exemplo, é possível que o executor cometa crime mais grave do que o combinado.
No caso do hacker que manipula a conduta de terceiro por meio do chip neural, será ele considerado autor pela teoria do domínio do fato. A participação pode ser moral ou material, e sua conduta pode caracterizar um misto de ambas. A modalidade de “auxílio” pode se caracterizar pelo fornecimento ou implante do chip neural, com ou sem consentimento do implantado. No induzimento, há uma sugestão para o crime que não existia na mente do executor. Na instigação, há reforço de uma ideia criminosa preexistente. No entanto, nem sempre será possível constatar pericialmente se houve controle completo da conduta, auxílio, induzimento ou instigação. Além disso, a teoria do domínio do fato só se aplica aos crimes dolosos, sendo inviável para os crimes culposos.
Nesse sentido, é preciso proceder-se a uma análise mais acurada do dolo. Consideremos a seguinte situação exemplificativa. Um motorista de um veículo persegue de forma sorrateira outro veículo, até que ele pare em um cruzamento com trânsito intenso e rápido. Ao perceber que uma motocicleta se aproxima da lateral do veículo, o motorista de trás acelera e bate no veículo da frente, fazendo-o colidir com a motocicleta, causando a morte do piloto, e se evade do local em seguida. A intenção do primeiro motorista era prejudicar o segundo, atribuindo a ele a responsabilidade pelo grave acidente, ainda que não lhe causasse ferimentos. Apesar de casos deste tipo serem frequentes, não existe na doutrina uma classificação específica para essa modalidade de dolo. A situação se assemelha à coação física absoluta, quando o executor é mero instrumento para a prática do crime pelo coator. De fato, o segundo motorista não age com dolo ou culpa, excluindo-se a própria conduta e o fato típico. Já o primeiro motorista age com a intenção deliberada de abalroar qualquer motoqueiro que por ali transitasse no momento propício, utilizando para isso o veículo da frente. Também não se trata de dolo genérico, que se aplica quando não há finalidade específica, sendo desimportante o motivo do agente. O dolo geral igualmente não é aplicável, pois se relaciona ao erro sucessivo. O dolo indeterminado ocorre quando não há um resultado determinado, dividindo-se em alternativo e eventual. O primeiro se aplica a dois ou mais resultados possíveis para a conduta, como matar ou ferir. O segundo ocorre quando o agente não quer o resultado, mas assume o risco de produzi-lo. No caso narrado, o agente quer o resultado, e a indeterminação recai sobre o piloto da motocicleta. Também não se trata de dolo subsequente, quando o agente age em erro, mas alegra-se com o resultado posteriormente. É possível cogitar-se no enquadramento em “aberratio ictus” com unidade simples, já que só o motoqueiro veio a falecer, ou em “aberratio criminis”, quando há erro no crime praticado. Contudo, na situação concreta não houve erro, apenas indeterminação intencional quanto à vítima. A situação fática tem proximidade com o dolo direto de segundo grau, quando a vontade se dirige aos meios para alcançar determinado resultado com vítimas indeterminadas. Aqui o agente não persegue imediatamente esse resultado, mas tem ele como certo, como no exemplo da bomba plantada no avião. No caso narrado, se a motocicleta estivesse sendo pilotada por uma mulher grávida, resultando com sua morte no aborto do feto, poderia também ocorrer o dolo direito de terceiro grau, apesar de não haver perfeita correspondência com sua conceituação doutrinária. Também não poderia ser aplicado o dolo eventual ao resultado morte do motociclista, que é uma modalidade de dolo indireto. Isso porque o primeiro motorista agiu imbuído de dolo direto, já que a possibilidade de o resultado ocorrer tal como sucedido é bastante provável em se tratando de uma via de trânsito rápido. Essa diferenciação é importante, uma vez que muitos autores, como Paulo Busato, sustentam que o dolo direto deve ter uma reprimenda maior que o eventual na dosimetria da pena, a despeito de serem equiparados pelo Código Penal. De igual modo, é necessário colmatar a lacuna dogmática para o tratamento do dolo do hacker e do implantado.
Já no tocante à neurimputação, com uso de exames cerebrais para estabelecer o vínculo de imputação neural, bem como constatar anomalias cerebrais que denotem perigosidade do réu, é preciso analisar a admissibilidade de seu uso no contexto dos direitos fundamentais do acusado.
Inicialmente, há uma diferença importante no tratamento do acusado como meio de prova nos sistemas jurídicos anglo-americano e continental. Naquele, o acusado pode se calar, mas se resolver falar será ouvido como testemunha, sob juramento. Daí a importância do privilégio contra a autoincriminação. Já no Brasil vige o direito do acusado de não fazer prova contra si mesmo. Desta forma, a determinação de uma perícia neural pode esbarrar no princípio da não autoincriminação, previsto em termos gerais pelo artigo 5º, LXIII, da CF/88, que dispõe sobre o direito do acusado de permanecer calado, reforçado pelo artigo 8º, 2, “g”, da CADH. Isso implica que o implantado não deve ser obrigado a fazer prova com si. Mas sua alegação de coação neural irresistível, de erro neural escusável ou semi-imputabilidade neural, atrai a si o ônus da prova, que deve ser insofismável.
Superada essa limitação, depois de confeccionado o laudo pericial, o juiz não estará vinculado às suas conclusões. De fato, o sistema vinculatório do juiz à prova técnica existe apenas como exceção, prevalecendo o sistema liberatório. Se assim não fosse, a decisão seria proferida pelo perito, e não pelo juiz. Vige, como regra, o livre convencimento motivado, disposto nos artigos 93, IX, da CF/88 e 182 do CPP. A exceção se aplica no caso da alegação de insanidade mental, cujo laudo técnico é imprescindível, com a jurisprudência exigindo outra prova técnica caso o juiz resolva discordar do primeiro laudo, não podendo decidir contrariamente por conhecimento próprio. A doutrina reporta que o juiz terá nestes casos a função de gatekeeper (guardião) da prova técnica, analisando a valoração que ela merece.
As provas neurocientíficas são consideradas provas atípicas, não regidas por disposição expressa do CPP, podendo ser albergadas por aplicação analógica dos artigos 369 do CPC e 295 do CPPM. No direito extrangeiro, o artigo 189 do CPP italiano prevê o acolhimento da prova não regida por lei, se for adequada para a apuração dos fatos e não prejudicar a liberdade moral da pessoa.
A esse respeito, uma avalanche de artigos científicos foi publicada em anos recentes contando com substanciosos levantamentos empíricos sobre a aplicação de provas neurocientíficas, que passaram a afetar os julgamentos de diversos tribunais ao redor do mundo e induziram a inúmeras alterações legais. A despeito dessa influência, carece a doutrina de debruçar-se mais intensamente sobre o tema, moldando a dogmática penal neste campo.
Para um rápido vislumbre, Paul Catley e Lisa Claydon publicaram um estudo em 2015 com um levantamento sobre o uso de evidências neurocientíficas pelos tribunais de apelação da Inglaterra e País de Gales no período de 2005 a 2012. De uma maneira geral, essas evidências foram determinantes ou reforçaram entendimentos para anular condenações, levar a condenações por delitos menores (como alterar a adequação típica de lesão ou homicídio doloso para culposo), reduzir penas, evitar extradição, desafiar condições de fiança ou resistir às apelações da promotoria que buscavam punições maiores. Já Annalise Perricone e coautores publicaram um estudo em 2022 com um levantamento feito com 784 participantes, onde constataram que a percepção sobre o uso de evidências neurocientíficas nos julgamentos criminais muda conforme as razões pessoais para o encarceramento. O estudo foi realizado por integrantes de departamentos de psicologia. De seu turno, Zain Khalid e coautores publicaram um estudo em 2024 defendendo o uso de evidências neurobiológicas para mitigação de sentenças. Para eles, a neuroimagem, com uso de ressonância magnética funcional e tomografia por emissão de pósitrons, é capaz de demonstrar anormalidades cerebrais que reduzem as penas. Por sua vez, Armin Alimardani publicou um estudo em 2023 contando com um levantamento empírico sobre o uso de evidências neurocientíficas em Nova Gales do Sul, na Austrália. Segundo ele, essas provas já são utilizadas há quarenta anos pelos tribunais australianos, tendo examinado 331 sentenças relevantes proferidas até 2016, concluindo que na maioria dos casos a neurociência apoiou uma decisão mais branda. Por fim, Sjors Ligthart e coautores publicaram um estudo em 2020 na revista Neuroethics sobre a leitura cerebral forense e a privacidade mental à luz do direito europeu dos direitos humanos, em especial da CEDH e da jurisprudência do TEDH. Os autores deste último estudo pertencem a departamentos de Direito Penal na Holanda.
Em solo europeu, foi adotada recentemente a Declaração de Léon, buscando um tratamento ético da neurotecnologia, aplicável tanto às técnicas inovadoras, como implantes invasivos (BCIs) e neurofeedbacks de circuito fechado, quanto às tradicionais, como fMRI, EEG e TMS (estimulação magnética transcraniana), que passaram por avanços com a incorporação de IA. Os consignatários da declaração destacaram que o uso da neurotecnologia não se resume apenas à saúde, sendo utilizada também na educação e entretenimento, por meio da neuroestimulação, alargando seu campo de incidência que pode impactar nos julgamentos criminais.
De fato, em vários julgamentos criminais na Holanda, exames cerebrais indicaram que o réu tinha síndrome da disfunção frontal, reputando os tribunais holandeses tratar-se de uma condição exculpatória. No entanto, não houve explicações satisfatórias de como se chegou a esse diagnóstico, e tampouco do porquê ser ele exculpatório. Em 2009, um tribunal italiano reduziu a pena de um assassino condenado porque seus genes estavam estatisticamente ligados a uma propensão à violência. No ano seguinte, no caso Graham v Flórida, a Suprema Corte dos EUA decidiu que evidências neurocientíficas podem resultar em sentenças diferentes para alguns réus.
O movimento de justiça terapêutica na Noruega também propõe intervenções cerebrais diretas para tratar criminosos antissociais. Recentemente, no entanto, após uma onda de crimes que assolou o país, o sistema judicial norueguês retomou a adoção do padrão punitivo tradicional mais rigoroso.
A despeito desses casos, é preciso cautela no uso das evidências neurocientíficas, para não perder a objetividade na aplicação da lei. De fato, essa modalidade de prova pode resultar na aplicação personalíssima da pena, ao invés do tradicional padrão objetivo e imparcial. Consideremos o exemplo de três indivíduos que adentram uma casa em conluio visando cometer um assalto. No decorrer da ação, utilizam violência contra os moradores, resultando na morte de um deles. Mesmo que os três agentes tenham tido idêntica participação no crime, as provas neurocientíficas podem resultar em sentenças muito diferentes para cada um deles, esvaziando o critério de imparcialidade da lei.
Além disso, essas provas podem se limitar ao estado mental posterior ao fato, e não mostrá-lo durante a ação delituosa. Isso faz o neurodireito impactar de diferentes maneiras de país para país, a depender do sistema jurídico adotado. No extremo, para escapar da pena de morte em países que a adotam, o réu pode intencionalmente causar um dano cerebral em si mesmo após o crime, buscando posteriormente fazer uso das provas neurocientíficas em seu benefício por ocasião do julgamento.
No geral, essas evidências carecem de uma avaliação crítica mais aprofundada. É preciso cautela no seu uso, para que o cérebro não esteja sob julgamento, ao invés da pessoa. Afinal, o cérebro não é a consciência, nem tampouco se confunde com a subjetividade do indivíduo. O exame do estado de uma região do cérebro não é o mesmo que o estado do cérebro como um todo, já que ele tem um funcionamento modular. E mesmo o escrutínio completo de todo o cérebro não é capaz de revelar a consciência e a subjetividade de uma pessoa. Nesse sentido, algumas indagações são pertinentes. Uma tomografia cerebral que mostra um dano numa região do cérebro significa que o réu é insano? A resposta depende da localização e extensão do dano. O exame é capaz de constatar a imprudência, que caracteriza o crime culposo? Essas inferências possuem correspondentes específicos na atividade cerebral? Nada obstante o avanço das pesquisas, essas questões ainda não possuem uma resposta conclusiva.
Tradicionalmente, o neurodireito se limitava a casos graves de insanidade, para aplicação de medidas de segurança ao acusado. No entanto, o uso de evidências neurocientíficas irrompeu nos últimos anos, sendo estendido para casos civis e casos criminais envolvendo réus sãos. Na práxis do sistema judicial brasileiro, esse crescimento pode ser constatado na alegação desmedida de surto psicótico pela defesa em diversos casos midiáticos, arguindo-se que o acusado agiu sem consciência e vontade na prática da conduta criminosa. No entanto, em muitos casos essa alegação não se coaduna com as circunstâncias do fato, como a premeditação na prática do crime.
Mas há casos em que a alegação é pertinente. Como exemplo paradigmático, no final de 2020 ocorreu um caso emblemático de surto psicótico, após uma viatura policial em alta velocidade abalroar um caminhão na cidade de Santa Cruz do Rio Pardo, em São Paulo. Após a batida, os dois policiais que ocupavam a viatura sofreram traumatismo craniano e ficaram sentados na lateral da pista. O médico socorrista que primeiro chegou ao local constatou que nenhum deles sabia informar quem dirigia o veículo por conta da amnésia causada pelo acidente. O policial que estava em estado mais crítico foi imediatamente “pranchado” e colocado dentro da ambulância. O outro policial acidentado ficou sentado ao lado da prancha no interior do veículo, quando de repente sacou sua arma e matou à queima-roupa seu colega. Em seguida, tentou suicidar-se, mas foi contido pelo médico.
O autor dos disparos não demonstrou nenhum comportamento agressivo prévio durante o atendimento na via nem teve qualquer desentendimento com a vítima. No decorrer do processo demonstrou-se que autor e vítima eram amigos próximos. Foi realizada perícia de insanidade mental pelo Instituto de Medicina Social e de Criminologia - IMESC, cujo laudo descartou qualquer doença mental prévia, mas constatou o transtorno mental na forma de um surto psicótico agudo e transitório em decorrência do acidente de trânsito (CID-10, DSM-V, OMS, OPAS e CIF). A defesa alegou que houve concussão, o que teria desencadeado eventos ilusórios no acusado. Essa alegação excluiria o fato típico por ausência do elemento volitivo, seja dolo ou culpa.
De fato, um traumatismo craniano pode ou não causar concussão cerebral, que ocorre quando todo o órgão é atingido, ocasionando perda temporária da consciência. Após traumatismo crânio-encefálico (TCE), podem ocorrer delírios persecutórios e alucinações auditivas, bem como amnésia pós-traumática. Danos no lobo frontal, lobo temporal e nos gânglios basais também podem causar psicose. Esses sintomas podem ser positivos e negativos. Exemplos dos primeiros são os delírios, alucinações e o comportamento desorganizado. Já os segundos podem ser alogia (redução das palavras faladas), avolição (diminuição da motivação), anedonia (diminuição do prazer) e embotamento afetivo (que impacta a expressão facial, tom de voz, uso das mãos e movimentos corporais). Estes são sintomas comuns da esquizofrenia paranoide, que atinge mais de um milhão e meio de pessoas no Brasil. Na maioria dos casos, os medicamentos contêm os sintomas mais graves.
No decorrer do processo, a defesa travou uma profunda discussão com o órgão acusatório acerca da possibilidade de uma concussão causar um surto psicótico, recorrendo-se a inúmeros estudos estrangeiros. No entanto, apesar das suspeitas, o laudo não confirmou a concussão no policial que efetuou os disparos, já que é necessário o preenchimento de critérios diagnósticos por meio de observação hospitalar, com a comprovação de sintomas neuropsíquicos logo após o acidente. Com esse fundamento, a sentença considerou o fato típico e ilícito, mas não culpável, decidindo pela absolvição imprópria do réu com base no art. 386, VI, e parágrafo único, III, do CPP, com isenção de pena, mas impondo medida de segurança na forma de tratamento ambulatorial, com aplicação dos arts. 26 e 97, caput, e §1º, do CP. Após o cumprimento mínimo da medida de segurança, foi determinada perícia para averiguar a cessação de periculosidade, laudo indispensável para a liberação ou desinternação, segundo o art. 176 da LEP, bem como recomendar, se for o caso, a medida mais adequada, seja tratamento ambulatorial ou internação em hospital de custódia.
A despeito de o caso acima se enquadrar nessa excludente de culpabilidade, quase sempre não é o caso nas arguições de surto psicótico. Ademais, eventos dessa ordem deixam evidências anatômicas, como alterações na espessura cortical, e anomalias químicas no cérebro, que podem ser constatadas em exames neurológicos.
Citando Guido Arturo Palomba, aduz Guilherme de Souza Nucci: "por doença mental compreendem-se todas as demências (de negação; mentis, mente; ausência de mente) cujos quadros mentais manifestam-se por rebaixamento global das esferas psíquicas. Compreendem-se, também, todas as psicoses (psicose epilética, psicose maníaco-depressiva, psicose puerperal, esquizofrenia, psicose senil, psicose por traumatismo decrânio etc.), mais o alcoolismo crônico e a toxicomania grave. Essas duas últimas entidades mórbidas, embora possam engendrar quadros psicóticos, não são originalmente psicoses, mas nem por isso deixam de ser verdadeiras doenças mentais,uma vez que solapam do indivíduo o entendimento e o livre-arbítrio, que, diga-se de caminho, são arquitraves da responsabilidade penal" (Manual de direito penal, editora Forense, 16º edição, 2020, pág. 403).
Desta forma, é no mínimo questionável o uso de provas neurocientíficas para veredictos totalmente exculpatórios, indicativos de perigosidade futura ou que resultem em determinações probabilísticas da culpabilidade. Essas diferentes abordagens podem resultar num julgamento baseado no que o réu cometeu (direito penal do fato), no que pode vir a cometer (ordem pública) ou pelo que ele é (direito penal do autor). De qualquer maneira, essas provas não devem ser tomadas isoladamente, mas sim como reforço, de modo a corroborar outras provas tradicionais, como o testemunho de peritos especializados e os achados psicológicos clínicos.
Nos EUA, é comum a promotoria lançar mão de varreduras cerebrais nos chamados casos capitais, para mostrar ao júri a potencial perigosidade do réu, como fator agravante na decisão entre a pena de morte e a prisão perpétua sem liberdade condicional. Isso busca persuadir o júri de que o réu provavelmente cometerá novos crimes graves se puder viver, ainda que na prisão.
Mas o uso indiscriminado de evidências neurocientíficas pelas autoridades investigativas pode esbarrar na Quarta e Quinta emendas à Constituição dos EUA, que protegem a privacidade do cérebro e a não autoincriminação, mesmo com uso de técnicas não invasivas, como os exames EEG e fMRI, que exigem um mandado judicial.
Além disso, as sentenças de prisão perpétua têm um impacto desproporcional nos chamados adolescentes tardios, pois cumprirão mais tempo de prisão que adultos mais velhos na mesma situação. No caso “Commonwealth v Mattis”, a Suprema Corte de Massachusetts decidiu que a Declaração do estado proíbe a prisão perpétua sem liberdade condicional para menores de 21 anos, tendo em conta que seus cérebros ainda estão em desenvolvimento, resultando em uma culpabilidade diminuída e maior capacidade de mudança de comportamento em comparação a adultos mais velhos. Esse precedente confere uma oportunidade de liberação condicional a ser analisada caso a caso, e não uma garantia ou direito automático.
De fato, nos EUA, a prisão perpétua sem liberdade condicional impõe custos humanos e fiscais sem benefício significativo na segurança pública. Diversos levantamentos convergem à conclusão de que condenados à prisão perpétua em liberdade condicional têm pouca chance de incorrer em novas prisões.
Na tradição anglo-saxã, as evidências neurocientíficas afetam em geral as discussões sobre “mens rea”, insanidade mental, detecção de mentiras e premeditação, tendo a expressão “inocente por motivo de neuroimagem” ganhado repercussão nos últimos anos. O nascente campo da neurociência forense pode ser um ativo importante nos julgamentos criminais, desde que utilizado com cautela. Outros a denominam de neuropsicologia e psicopatologia forense. Estes estudos surgiram em meados do século XIX, com Paul Broca e seu paciente mudo Leborgne. Após a morte deste, Broca abriu seu cérebro e descobriu uma lesão no lobo frontal esquerdo, associando essa anomalia ao sentido da fala. Na mesma época, Phineas Gage sofreu uma acidente ferroviário, tendo uma barra de ferro atravessado seu crânio. Ele se recuperou bem, não tendo atingido nenhum de seus sentidos e membros. No entanto, sua personalidade alterou-se profundamente com o tempo, tornando-se uma pessoa antissocial e violenta. Atualmente, essa sondagem no cérebro pode ser feita em pessoas vivas, utilizando modernas técnicas de imageamento cerebral. Atualmente, é possível associar quase todas as áreas do cérebro responsáveis pelas funções do corpo, desde os sentimentos até a mobilidade.
O exame de EEG mede sinais específicos associados à memória. Ele ajuda a avaliar o álibi do acusado de que nunca esteve na cena do crime ou não conhece a vítima. Já a fMRI mede o fluxo sanguíneo em regiões específicas do cérebro. Algoritmos de IA sobrepõem esses “pontos quentes” em uma imagem computadorizada tridimensional em tempo real. Esses pontos são registrados como reações a perguntas específicas e outros estímulos, como a visualização de fotografias de locais, objetos e pessoas.
A Suprema Corte dos EUA estabeleceu certos parâmetros nos casos “Daubert v Merrell Dow Pharmaceuticals” e “Frye”, eliminando o uso de evidências científicas não confiáveis e exigindo métodos testados e revisados por pares. A mesma corte também proibiu a pena de morte para menores de 18 anos no caso “Roper v Simmons”.
No artigo “Responsabilidade Criminal e Neurociência: Nenhuma Revolução Ainda” (traduzido do inglês), publicado em 2019, Ariane Buchenwald e Valerian Chambon procederam a uma extensa revisão crítica dos alardeados progressos nesta área, apontando uma série de limitações da neurociência aplicada à criminologia. Contudo, nessa meia década desde a publicação deste levantamento, sobrevieram inúmeros avanços que mudaram essa perspectiva. Em março de 2024, R Ryan Darby e coautores publicaram um estudo intitulado “Neurologia forense: uma subespecialidade distinta na interseção da neurologia, neurociência e direito”. E no mês seguinte, Arielle Baskin-Sommers e coautores publicaram um estudo na revista Nature (“Communications Psychology”) defendendo que políticas informadas pela psicologia e neurociência têm o potencial de afetar mudanças legais significativas e necessárias. O primeiro estudo citado acima foi feito por pesquisadores do departamento de filosofia. O segundo por pesquisadores do departamento de neurologia e psiquiatria. E o terceiro estudo foi realizado por pesquisadores do departamento de psicologia. Percebe-se com isso o pouco interesse de juristas e criminologistas pelo tema. Isso decorre em grande parte pelo fato de os pesquisadores das outras áreas recolherem-se ao ambiente acadêmico, não participando de seminários e debates públicos sobre suas propostas e achados científicos, certamente temerosos da responsabilidade perante a sociedade que elas podem causar.
Da parte dos juristas, muitos ainda veem a neurociência e a genética comportamental como meras extensões da psicologia e psiquiatria. Também há uma queixa de que a incorporação dessas tecnologias pode substituir os formuladores de políticas e os profissionais do direito por cientistas e tecnólogos. Há igualmente comparações do neurodireito com a frenologia, eugenia e psicocirurgia, um procedimento cirúrgico no cérebro para tratar distúrbios mentais.
Mas os exames cerebrais de alta acurácia que estão surgindo podem causar uma grande revolução nos processos criminais, não em substituição aos métodos tradicionais, mas em seu reforço e corroboração. De fato, a IA incorporada a estes exames pode gerar uma impressão cerebral única do acusado, à semelhança da impressão facial, uma alegoria com a impressão digital, que pode dirimir dúvidas e prestar esclarecimentos essenciais ao deslinde do caso. Se no Brasil a plenitude de defesa do Tribunal do Júri permite provas psicografadas e testemunhos de espíritos, não haverá problemas no uso de provas neurocientíficas.
Os registros de casos criminais que utilizam exames cerebrais no Brasil são escassos, mas já foram usados em julgamentos de brasileiros no exterior. Patrick Nogueira é de Altamira, no Pará, e foi acusado de cometer um quádruplo homicídio em 2016 em Piaz, na Espanha. A defesa realizou uma perícia neurológica, que utilizou imagens de tomografia e radiografia do cérebro do acusado. O laudo acostado aos autos indicou anomalia no lado direito do lóbulo temporal anterior, que afetaria a tomada de decisões e causaria acessos de ira. O laudo contém imagens que assinalam as áreas de funcionalidade alterada do cérebro. A promotoria espanhola sustentou que essa alegação visava apenas evitar a punição máxima, de prisão permanente revisável, o equivalente a uma prisão perpétua com possibilidade de liberdade condicional. É importante pontuar que a alegação defensiva de defeito cerebral não se confunde com a condição de sociopata ou psicopata, o qual compreende perfeitamente o mal que causa à vítima e ainda assim decide levar a conduta adiante. Mas a alegação da defesa não prosperou. Após recurso do Ministério Público espanhol, a pena foi majorada para a condenação máxima. Em 2021, Patrick foi espancado na prisão por cerca de dez detentos, permanecendo internado por quatro dias, em represália ao fato de que entre suas quatro vítimas figurarem duas crianças.
Outro caso ocorreu em 20/05/2024, quando um adolescente matou os pais e a irmã em São Paulo. O móvel do crime teria sido o controle no uso do aparelho celular. O adolescente foi encaminhado para internação em ambiente específico, por ser considerado menor infrator de alto risco, dada a brutalidade do crime, havendo possibilidade de motim. Após o crime, especialistas foram convocados pela mídia, e declararam que o adolescente possivelmente sofre de graves transtornos psiquiátricos. O juiz determinou um teste de higidez mental no adolescente. Este caso merece a mesma reflexão dos alardeados estados de surto. De fato, a crueldade pode se manifestar de forma prematura em jovens adolescentes, sem ter relação com anomalias cerebrais. Muitos psicopatas notórios iniciaram seus crimes ainda na adolescência. Apesar disso, tem sido comum um diagnóstico de insanidade nestes casos, visando a internação compulsória por prazo indeterminado com base na Lei Antimanicomial, e não no Código Penal. Este artifício legal visa manter o perpetrador longe do convívio social por mais tempo.
A despeito das vicissitudes no tratamento dogmático, o fato é que o uso destas tecnologias é irrefreável. Já existem superchips com capacidade de processamento de 20 petaflops, contando com mais de 200 bilhões de transistores embutidos. Um petaflops significa dez elevado a quinze flops, a mesma ordem de grandeza das conexões cerebrais. A tecnologia 6G, que possibilita velocidades da ordem de 100 Gb/s, também caminha a passos largos, já tendo sido lançado o primeiro satélite. De seu turno, a internet espacial já é uma realidade, contando com constelação de nanosatélites e torres espaciais de 220 metros quadrados em órbita baixa geoestacionária, lançados em foguetes reutilizáveis. Por outro lado, a inteligência artificial geral (IAG) virá com capacidade de raciocínio em tempo real e abrangência cognitiva, em contraste às IAs generativas atuais, que operam segundo probabilidades matemáticas. Ela irá possibilitar a leitura de vídeos e a resolução de questões complicadas de ciência, tanto na área de saúde quanto na área de exatas.
É preciso vigilância para que as big techs não controlem a mente e as big pharma não controlem o corpo. No futuro próximo, haverá chips para estimulação de áreas específicas do cérebro, além de chips para resolução de doenças mentais, que serão complementadas com engenharia genética.
Mesmo considerando a diferença entre o que é anunciado e o que é concretizado, já há uma grande revolução científica em andamento. Essa diferença é normal, dadas as aspirações dos projetos, e a busca para motivar as equipes e os investidores.
Mas a ciência deve ser vista como um processo, em vez de um resultado que pode ser rotulado de certo ou errado. O movimento da Terra pode servir de exemplo. O sistema ptolomaico perdurou por muitos séculos, até ser substituído pelo sistema copernicano. Galileu transmitiu esse conhecimento de forma enigmática para o público. Newton juntou as parábolas de Galileu e as elipses de Kepler para formular sua teoria. No entanto, por mais de trezentos anos o heliocentrismo não foi compreendido pela população, que não entendia os cálculos complexos dos astros e tinha pouco acesso à obras proibidas. Até que em 1851, Léon Foucault demonstrou tanto o movimento de rotação e translação da Terra, quanto seu formato geoide, com um experimento simples usando um pêndulo no panteão de Paris.
Foucault também é conhecido por estudos sobre a natureza ondulatória da luz e sobre correntes parasitas. No experimento em Paris, o pêndulo não estava rigidamente fixo na Terra, por ter um fio longo medindo 64 metros de comprimento, ao contrário dos observadores e da estrutura do panteão, que rotacionavam no mesmo ritmo do planeta. O giro do plano do pêndulo dá a impressão de que seu eixo está rotacionando, mas na verdade ele está fixo, e o que gira é o panteão e os observadores. O tempo para “nós darmos a volta ao redor do pêndulo” difere a depender da latitude, sendo de 24 horas nos polos e zero no equador. Com essa demonstração simples, Foucault possibilitou uma visão intuitiva ao grande público, demovendo as superstições da época.
A velocidade com que essa revolução científica ocorre contrasta com o avanço lento da ciência em tempos antigos. Os cientistas do renascimento e do iluminismo, como Robert Hooke e Voltaire, comunicavam a incerteza e a complexidade da ciência de forma didática para o grande público da época. Esse exemplo serve para ilustrar a necessidade de os cientistas atuais informarem os avanços científicos e tecnológicos para o público de forma simples, reduzindo a complexidade e destacando a incerteza e oscilação da ciência. Isso se aplica principalmente ao campo da neurociência, que tem vaticinado verdades axiomáticas com forte impacto no Direito Penal.
Urge que os pesquisadores desçam da torre de marfim de suas cátedras e participem abertamente dos debates públicos, junto a juristas e formuladores de políticas, propondo aperfeiçoamentos na dogmática e nas leis penais, buscando adequá-las às novas tecnologias, possibilitando uma aplicação justa da lei nos casos que a envolvem.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. Dogmática Neuropenal: coação neural irresistível, erro neural escusável e neurimputação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 set 2024, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/66541/dogmtica-neuropenal-coao-neural-irresistvel-erro-neural-escusvel-e-neurimputao. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
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