Este escrito discute a aplicação dos Protocolos adicionais às quatro Convenções de Genebra para proteção de civis em conflitos armados no contexto da Guerra em Gaza. As quatro Convenções de Genebra de 1949 foram adotadas após o rescaldo da Segunda Guerra Mundial, garantindo uma proteção genérica à população civil. Entre 1974 e 1977, foi realizada uma conferência diplomática para atualizar essa proteção, sob o pálio do Direito Internacional Humanitário, resultando na aprovação de três protocolos adicionais para a proteção às vítimas de conflitos armados. O Brasil aderiu aos protocolos I e II com o Decreto 849/1993.
Vamos incursionar em situações limite no contexto do conflito israelo-palestino, em especial: funcionários da ONU que atuam em colaboração com terroristas; punição à população civil que atua no cativeiro dos reféns; uso da subnutrição como arma de guerra; utilização de bombas burras e de fragmentação; uso da população civil como escudo humano; utilização da infraestrutura civil como base de operações terroristas.
Inicialmente, é preciso lembrar que tanto Israel quanto a Palestina ratificaram as quatro Convenções de Genebra de 1949, mas Israel não ratificou os protocolos de 1977, a despeito de ter participado ativamente dos trabalhos da conferência. Na verdade, Israel foi o único estado que votou contra a versão final do texto, e até hoje é considerado um “objetor persistente” a algumas de suas disposições, alegando que incentivam as organizações guerrilheiras a usar o terror como tática de combate. Já a Palestina ratificou os protocolos de 1977.
O artigo 50 do Protocolo I não conceitua diretamente as pessoas civis e a população civil, preferindo corretamente utilizar a técnica de definição por exclusão. No âmbito do “jus in bello”, os terroristas são considerados combatentes ilegais, e por isso não possuem o direito à vida. Mas seu status não se confunde com o de soldados inimigos de um exército regular. No texto do Protocolo I, esses combatentes são enquadrados na exceção prevista na segunda parte do artigo 51.3, que dispõe que as pessoas civis que participam diretamente das hostilidades, enquanto durar essa participação, não terão as garantias outorgadas pelo Protocolo, especialmente a proibição de ataques ou ameaças de violência, tal como indicado no artigo 51.2. No entanto, ainda que haja participação nas hostilidades, o Protocolo proíbe ataques indiscriminados, como bombardeios que atinjam incidentalmente a população civil, conforme o artigo 51.5. O artigo 51.6 também proíbe que a população civil seja atacada em represália. Por fim, tratando das medidas de precaução, o artigo 57.2.a.ii determina que haja a seleção dos meios e métodos de ataque que reduzam ao máximo o número de mortos e feridos da população civil e os danos a bens de caráter civil, como casas, escolas e hospitais.
Em 2006, a Suprema Corte de Israel autorizou a política de assassinatos seletivos no exterior, desde que respeitado o Direito Internacional Consuetudinário. Só no último ano, Israel já executou 15 oficiais inimigos fora de suas fronteiras. Neste mesmo julgamento, o tribunal rejeitou a alegação de que não teria competência para apreciar o tema, sob o argumento de que ele seria afeto a questões militares, e não jurídicas. Na mesma assentada, o tribunal decidiu que o país deve respeitar as garantias listadas no artigo 75 do Protocolo I em relação aos prisioneiros de guerra. Assim, a despeito de Israel não ter aderido aos Protocolos, e atuar como um “objetor persistente”, deve cumprir certas disposições que se caracterizam como Direito Internacional Consuetudinário.
Quanto à Palestina, em 2006 o Hamas venceu as eleições legislativas, e em 2007, após uma guerra civil com o grupo Fatah, assumiu o controle da Faixa de Gaza. Dentre os objetivos declarados do grupo está o fim de Israel, tendo perpetrado um atentado terrorista no sul do país em 2023 que ceifou a vida de mais de 1.300 pessoas, a maioria civis, e capturado 240 reféns. O ataque desencadeou uma guerra na Faixa de Gaza que resultou em milhares de mortos.
O atentado de 7 de outubro de 2023 teve como alvo vários bebês israelenses. Em depoimentos gravados, terroristas que participaram da ação confessaram que também visavam os bebês porque eles iriam se transformar em soldados israelenses no futuro. De igual modo, os ataques israelenses na Faixa de Gaza ceifaram a vida de muitas crianças. Vídeos anteriores mostraram as crianças nas escolas da Palestina declarando que irão destruir Israel.
É manifesto que neutralizar bebês e crianças, sob o argumento de que podem se transformar no futuro em soldados ou potenciais terroristas, atenta contra as disposições dos Protocolos e do Direito Internacional Consuetudinário.
Dentre os meios, as forças de Israel utilizam ataques aéreos com bombas burras, que não têm um alvo bem definido. Na guerra da Ucrânia, a Rússia acoplou planadores em bombas de queda livre para diminuir o efeito colateral dos ataques. Essas bombas não guiadas causam estragos desproporcionais à população civil.
Na época da Segunda Guerra Mundial, era comum a utilização de bombas explosivas que destroçavam os corpos das pessoas atingidas, espalhando seus restos mortais. Esse tipo de bomba também foi utilizado largamente na Guerra do Iraque por ambos os lados do conflito. Mas existem bombas que não causam esse efeito dilacerador, mantendo o corpo intacto, apesar de ceifar sua vida, possibilitando cerimônias funerárias.
Na guerra da Ucrânia, há denúncias de utilização de bombas termobáricas, bombas de fragmentação e bombas sujas, e até de bombas nucleares táticas. Na Faixa de Gaza, foram utilizadas bombas burras e bombas de fragmentação. Também foram usadas bombas que pesam quase uma tonelada, cujos estilhaços podem atingir até 300 metros, com alta letalidade de civis.
O Hamas utiliza basicamente granadas lançadas por foguetes (RPG) no conflito de guerrilha urbana. Dentre os mísseis lançados ao território israelense, destaca-se o M-302s, com alcance de até 200 km, que visam alvos indiscriminados.
Percebe-se que ambos os lados do conflito em Gaza utilizam meios e métodos que ferem as disposições dos Protocolos que protegem os civis nos conflitos armados. Do lado Palestino, há acusações de que Israel atinge equipamentos e infraestruturas civis, como universidades, escolas e hospitais, o que contraria o Direito Internaional Humanitário. De seu turno, Israel se defende alegando que os terroristas montaram base no complexo hospitalar de Al-Shifa, além de haver armas e túneis em escolas, e que o grupo terrorista usa a população civil como escudo humano. Mas mesmo esse seja o caso, não significa passe livre para bombardeios indiscriminados, sendo plenamente aplicável o artigo 57.2.a.ii do Protocolo I, compondo o Direito Internacional Consuetudinário, portanto obrigatório para ambas as partes do conflito.
O uso da subnutrição como arma de guerra remonta há séculos, como nos cercos do extenso Império Mongol. No caso da Faixa de Gaza, ainda que não vise exterminá-la pela fome, como ocorreu com os armênios, percebe-se o intuito não declarado de Israel em manter a população palestina subnutrida, retirando suas forças para um possível ataque terrorista contra seu território, ou como represália pela colaboração da população no cativeiro dos reféns. Além disso, a ajuda humanitária que conseguiu penetrar o bloqueio foi confiscada por homens armados do Hamas, na busca por reforçar a nutrição de seus combatentes. Com isso, os países que enviaram ajuda passaram a fornecê-la por via aérea, lançando-a diretamente à população civil aglomerada nas praias. Percebe-se que ambos os lados do conflito utilizam os alimentos como arma de guerra, atingindo diretamente a população civil. Na Guerra da Ucrânia, a Rússia também utilizou o fornecimento de gás como arma de guerra, mantendo milhões de pessoas no frio intenso do inverno rigoroso. Ambas são condutas que afrontam os Protocolos aqui tratados e o Direito Internacional Consuetudinário.
A identificação dos civis também é uma questão humanitária. As forças de Israel identificam os combatentes inimigos pelo termo “homens armados”. Já o Hamas identifica os soldados israelenses por meio do uniforme. Mas ambos os lados atingem civis de forma indiscriminada. O Hamas com ataques terroristas pontuais com uso de facas no território israelense ou por meio do lançamento de drones e mísseis visando deliberadamente os civis. E Israel com bombardeios indiscriminados em áreas densamente povoadas. Também é preciso atenção aos demais integrantes do conflito em Gaza. A ONU demitiu 9 funcionários de sua agência para refugiados palestinos por conta de sua participação no ataque terrorista de 07/10. O escritório da agência é protegido pelo Direito Internacional, assim como seus agentes. Mas no caso de colaborarem com os terroristas, passam a ostentar o mesmo status de combatentes ilegais.
Ainda que a paz ou um cessar-fogo duradouro sejam os principais objetivos de um conflito persistente, não há como fechar os olhos para a realidade, cabendo o mesmo ímpeto para a proteção de civis enquanto durar as hostilidades. A despeito das complexas questões que se desenrolam no teatro de operações na guerra israelo-palestina, é preciso reforçar a proteção da população civil de ambos os lados do conflito, preconizando o status de Direito Internacional Consuetudinário às principais disposições dos Protocolos aqui tratados.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. A Proteção da População Civil no atual Conflito Israelo-Palestino. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 set 2024, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/66554/a-proteo-da-populao-civil-no-atual-conflito-israelo-palestino. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: FELIPE GARDIN RECHE DE FARIAS
Por: Andrea Kessler Gonçalves Volcov
Por: Lívia Batista Sales Carneiro
Por: Benigno Núñez Novo
Precisa estar logado para fazer comentários.