MARCOS VINÍCIUS DE JESUS MIOTTO[1]
(orientador)
RESUMO: O estudo versa sobre a desapropriação da propriedade privada urbana, motivada pelo não atendimento da sua função social. A finalidade da pesquisa é encontrar uma definição mais precisa dos critérios que caracterizam a violação a função social, que permita a desapropriação do imóvel como forma de sanção, garantindo a prevalência do interesse coletivo. A temática abordada é de enorme relevância no contexto jurídico, por se tratar de uma intervenção direta do Poder Público no direito privado. Foi utilizado o método dedutivo, com a análise de doutrinas, bem como legislação e jurisprudências pertinentes. A pesquisa também aborda a evolução do direito à propriedade privada, no âmbito da história brasileira, iniciando pela análise do regime das capitanias hereditária, até a Constituição Federal de 1988. Para exemplificar a função social de forma prática, foi explorada a legislação do Município de Jales, quanto ao Plano Diretor da cidade. Verificou-se quanto a aplicação medidas de parcelamento, edificação ou utilização compulsória e IPTU progressivo, para possibilitar o procedimento de desapropriação, e seu respectivo procedimento. Ao fim, inferiu-se o entendimento que a desapropriação constitui uma forma eficiente de garantir o cumprimento da função social e o interesse coletivo, desde que seja seguido o procedimento legal.
PALAVRAS-CHAVE: Desapropriação. Função social. Propriedade privada urbana. Interesse Social.
ABSTRACT: The study deals with the expropriation of urban private property, motivated by the failure to fulfill its social function. The purpose of the research is to find a more precise definition of the criteria that characterize the violation of a social function, which allows the expropriation of the property as a form of sanction, ensuring the prevalence of collective interest. The topic addressed is of enormous relevance in the legal context, as it is a direct intervention by the Public Power in private law. The deductive method was used, with the analysis of doctrines, as well as relevant legislation and jurisprudence. The research also addresses the evolution of the right to private property, within the scope of Brazilian history, starting with the analysis of the hereditary captaincy regime, until the Federal Constitution of 1988. To exemplify the social function in a practical way, the legislation of the Municipality of Jales, regarding the city’s Master Plan. It was verified the application of installment measures, compulsory construction or use and progressive IPTU, to enable the expropriation procedure, and its respective procedure. In the end, the understanding was inferred that expropriation constitutes an efficient way of guaranteeing the fulfillment of the social function and collective interest, as long as the legal procedure is followed.
KEYWORDS: Expropriation. Social function. Urban private property. Social interest.
1 INTRODUÇÃO
A desapropriação da propriedade privada urbana, em razão do descumprimento da função social, constitui um polêmico instituto, visto que implica na intervenção direta do Estado ao direito do particular, em um aspecto altamente sensível e essencial ao atual sistema econômico no país, carregando, portanto, uma carga de preconceitos de senso comum, evidenciando a relevância da realização desta pesquisa.
Em vista desta premissa, faz-se necessário estabelecer quais os critérios que permitem caracterizar, no caso concreto, se houve o descumprimento da função social da propriedade, verificando se os atos ou omissões do proprietário trouxeram um real prejuízo ao interesse social.
Em seguimento, inferiu-se fundamental verificar qual o procedimento a ser seguido para que se proceda à desapropriação da propriedade, por meio da análise dos requisitos legais para a esta modalidade desapropriação, bem como quais atos devem ser praticados pela Administração Pública após a incorporação dos bens ao seu patrimônio, observando-se os critérios estabelecidos pela doutrina e legislação.
Esta dinâmica de conflito de interesses entre o direito coletivo e o individual deve ser observada pelo Estado, para que a sua intervenção se atenha às limitações legais, de forma que o equilíbrio e o bem-estar social sejam mantidos, sem que haja abusos do uso desta prerrogativa do Poder Público.
Corroborando com o anteriormente indicado, é pertinente que as informações obtidas sejam interpretadas levando-se em consideração o percorrer histórico do direito à propriedade privada, pois, por meio desta verificação, será possível indicar se a desapropriação é uma forma conveniente ao Poder Público para lidar com a redução da desigualdade, dado todo o contexto que levou a atual situação de concentração de terras particulares, em especial com a observância da evolução das Constituições do Brasil.
Ademais, o estudo analisou a base legal que possibilita a desapropriação por descumprimento da função social, observados os requisitos estabelecidos pela Constituição Federal, bem como da legislação infraconstitucional, estabelecendo qual o entendimento doutrinário sobre o tema e suas nuances interpretativas.
Para a elaboração desta pesquisa foi utilizado o método dedutivo, por meio da análise bibliográfica, com consultas a doutrina, legislação e jurisprudência pertinente ao tema, objetivando elucidar a indagação que motivou o desenvolvimento do artigo, do limite da intervenção do Poder Público no direito à propriedade privada e caracterização do descumprimento da função social.
2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO À PROPRIEDADE DE TERRAS NO BRASIL
O marco inicial da positivação da propriedade de terras, no Brasil, ocorreu durante o regime das capitanias hereditárias, a partir de 1532, imposto por D. João III, tendo como diretriz principal a necessidade de ocupação do território, recentemente reivindicado pela Coroa Portuguesa. Durante este período, aqueles que recebiam a incumbência de tomar conta das terras, não eram seus proprietários, somente possuidores, sendo o direito de modificar a posse ou extingui-la de prerrogativa do próprio rei, conforme explica o autor Boris Fausto (2022).
Contudo, estes que recebiam as terras também detinham direitos para assegurar os objetivos da coroa, como o de formar vilas e distribuir terras nativas para cultivo, as denominadas sesmarias. Ao entendimento de Nozoe (2006), tal meio de distribuição de terras não considerava as peculiaridades do território brasileiro, sendo um regime deveras complexo e dificultoso, que trouxe diversas consequências para o território no futuro.
Este método anteriormente descrito perdurou até o início do século XIX, com independência do Brasil em 1822, extinguindo-se o sistema das sesmarias. Até este evento histórico, a ocupação de terras percorreu um padrão em que, na prática, prevalecia a lei do mais forte, visto que títulos de posse podiam ser contestados facilmente por outro título superveniente. Conforme o explana Boris Fausto (2022, p.101): “O mais forte era quem reunia condições para manter-se na terra pela força, desalojar posseiros destituídos de recursos, contratar bons advogados, influenciar juízes e legalizar assim a posse de terras”.
O principal marco de mudança veio com a Constituição do Império, de 1824, quando assim definiu em seu artigo 179, inciso XXII (Brasil, 1824): “E'garantido [sic] o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnizado [sic] do valor dela”.
Verifica-se do dispositivo acima que, embora houvesse a previsão do direito à propriedade, não se definia claramente como se regulava ou limitava tal direito. Esta lacuna somente foi sanada no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei de Terras, de 1850, sendo, nos termos do que indica Fausto (2022), contemporânea a proibição do tráfego marítimo de escravos, que também ocorreu neste ano, demonstrando as particularidades do contexto histórico que o Brasil se inseria.
Neste período, as terras brasileiras encontravam-se em cinco situações distintas, conforme explica Forster (2003), em consonância com o artigo 3° da Lei de Terras (Brasil, 1850). A primeira situação diz respeito às terras que tinham uso público efetivo, em comparação, seriam aquelas que atualmente nomenclamos como “bens públicos”. Devido o anterior sistema de sesmarias, encontram-se outras duas situações, terras de beneficiários das sesmarias que cumpriram todos os regramentos estabelecidos pela Coroa, recebendo os seus devidos títulos de posse, e, em contrariedade, as terras distribuídas em que houve irregularidades, em que não se cumpriram as demarcações, registros ou aproveitamento. Haviam, ainda, as terras que eram simplesmente ocupadas por mera posse irregular, sem nenhum título de domínio. Por fim, a última situação compreendia as terras que não se enquadrassem entre as anteriormente descritas, sendo consideradas como terras devolutas, que nunca deixaram de ser propriedade da Coroa, e, pós independência, ao Império Brasileiro.
O principal aspecto de mudança sobre a aquisição de terras veio justamente quanto esta última hipótese, quando, assim determinava o artigo 1° da Lei de Terras, Lei nº 601/1850 (Brasil, 1850): “Ficam prohibidas as acquisições [sic] de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra”. Ademais, a Lei, em seu artigo 4°, revalidou as sesmarias para os possuidores das terras, ainda que não tivessem sido cumpridas as determinações anteriores, usando como critério o efetivo uso para cultivo ou morada habitual.
Explica Antonio Carlos Wolkmer (2011) que, num contexto de grande influência liberal inglesa sobre o Brasil, diante da Revolução Industrial, o Brasil encaminhou-se para a instauração de políticas capitalistas, que, por consequência, afetaram as normas que iriam regulamentar o direito à propriedade.
Esse aspecto é notório ao verificarmos o dispositivo legal anteriormente citado, que estabeleceu como critério para aquisição de terras a sua comercialização, favorecendo o indivíduo em razão de seu poder econômico, visto que o acesso às terras só era possível por meio do pagamento de seus elevados preços.
Em sequência, o próximo ponto importante que merece destaque quanto à evolução histórica, ocorreu durante após a proclamação da República, foi esta a promulgação da Constituição de 1891, logo após a queda do império. Esta, em seu artigo 72, parágrafo 17°, regula: “O direito de propriedade mantém-se em toda sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia” (Brasil, 1891). Possível notar, portanto, sua semelhança com a Constituição anterior, visto que ambas traduzem o mesmo entendimento quanto ao direito de propriedade.
Entretanto, durante o período da República Velha, explica Laura Beck Varela (2005) que a ideologia liberal burguesa atingiu com enorme influência o direito a propriedade, notando-se especialmente os traços das obras francesas, principalmente no Código Civil de 1916, que, em seu art. 524, indicava: “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua” (Brasil, 1916). Desta forma, vislumbra-se uma prevalência do desenvolvimento da defesa da propriedade individual, afastando-se da antiga predominância das terras concentradas nas mãos de um governante.
Ademais, as duas próximas Constituições, sendo a primeira de 1934 e a seguinte de 1937, por serem muito próximas cronologicamente, também possuíam similaridades quanto o direito à propriedade.
A Constituição de 1934 foi pioneira no ordenamento jurídico brasileiro, ao condicionar o exercício ao direito da propriedade com a limitação de não contrariar o interesse social ou coletivo, prevendo, inclusive, a possibilidade de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, estas disposições estavam previstas no seu art. 113, parágrafo 17 (Brasil, 1934).
Neste sentido, a Constituição, de 1937, apenas reproduziu as disposições anteriores, mantendo o mesmo entendimento quanto à necessidade de manutenção do interesse social quanto ao exercício do direito de propriedade, reafirmando a ser possível a desapropriação por necessidade ou utilidade pública (Brasil, 1937).
Dando sequência à ordem histórica, em inovação as suas predecessoras, a Constituição de 1946 estabeleceu mudanças ao entendimento anteriormente regrado, condicionando, em seu artigo 147, o uso da propriedade ao bem-estar social, com a hipótese de que houvesse a justa distribuição da propriedade, com igualdade de oportunidades (Brasil, 1946).
Faz-se notório a evolução histórica da formação de normas, aproximando-se cada vez mais do entendimento e disposições atuais sobre as limitações do exercício do direito à propriedade.
Contudo, o aspecto mais relevante de mudança vem a ocorrer pela promulgação da Constituição de 1967, quando introduziu explicitamente, em seu artigo 157, em razão da justiça social da ordem econômica, o princípio da função social da sociedade, usado até a atualidade (Brasil, 1967). Este inédito instituto no ordenamento somente seria regulamentado posteriormente, com os enfoques necessários estabelecidos pela Constituição atualmente vigente, de 1988.
Neste sentido, vale ressaltar que a garantia ao direito de propriedade, na Constituição de 1988, foi inclusive inserido no rol de direitos fundamentais do artigo 5°, estabelecendo que esta deve atender a sua função social (Brasil, 1988).
Em sequência, veio a ser positivado no ordenamento jurídico brasileiro o Estatuto da Cidade, em 2001, objetivando regulamentar as disposições trazidas pela Constituição anteriormente, quanto à propriedade urbana. O principal elemento que merece destaque no estatuto é seu art. 39, que estabelece que a propriedade cumpre a função social quando atendidas todas as exigências do plano diretor da cidade (Brasil, 2001).
Por fim, vale salientar o Código Civil (Brasil, 2002), que trouxe um título próprio para regular o direito de propriedade, aprofundando o tema e estabelecendo normas para garantir o seu uso, em observância ao limite estabelecido pela Constituição, e em consonância com as disposições do Estatuto da Cidade.
3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Conforme nota-se do disposto no tópico anterior, a atuação conjunta da função social e do direito à propriedade foi introduzida no século passado, impulsionado pelas necessidades sociais, principalmente quanto à proteção do interesse coletivo, dado o contexto histórico da época. Portanto, para a análise do direito à propriedade, é fundamental a verificação, de forma conjunta, do respeito ao devido cumprimento da função social.
3.1 Conceito de função social da propriedade da propriedade urbana
É de suma importância estabelecer qual o sentido da expressão “função social”, para que seja possível identificar e caracterizar seu descumprimento em um caso real. Buscar esta definição também se faz essencial para coibir que ocorram práticas abusivas do Poder Público.
Para tanto, buscando explicações doutrinárias, esta é a definição do tema pelo autor Marçal Justen Filho (2024, p.363):
Atualmente, reconhece-se a função social da propriedade, que significa a vinculação das faculdades inerentes ao domínio à realização das necessidades coletivas, segundo o princípio da proporcionalidade.
Os bens devem ser explorados de modo compatível com a sua função social, impedindo-se que o proprietário exercite as faculdades do domínio de modo abusivo. Isso se verifica quando o uso e a fruição da propriedade são inadequados, excessivos ou inúteis e produzem lesão a interesse protegido juridicamente.
Aos dizeres de Hely Lopes Meirelles (2016), em vista da Constituição Federal de 1988 assegurar o direito a propriedade em associação ao respeito a sua função social, este direito que originalmente entendia-se isoladamente ser individual e subjetivo do proprietário, absorveu características que o tornaram um direito condicionado ao bem-estar da comunidade. Nesse mesmo sentido, compreende-se que a propriedade privada deixou de ser intocável com a adição da restrição de seu uso beneficiar o interesse social.
Vale ressaltar a aproximação do conceito com o dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, implícitos na Constituição Federal de 1988, que devem ser respeitados não somente pelo particular proprietário do imóvel em seu uso, bem como pela Administração Pública, em todos os seus atos.
Quanto à origem da utilização do conceito de função social, associada ao direito da propriedade, leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2024, p.343):
Não há dúvida, no entanto, de que a inspiração mais próxima do princípio é a doutrina social da Igreja, tal como exposta nas Encíclicas Mater et Magistra, do Papa João XXIII, de 1961, e Centesimus Cennus, de 1991, de João Paulo II, nas quais se associa a propriedade a uma função social, ou seja, à função de servir de instrumento para a criação de bens necessários à subsistência de toda a humanidade.
Ao entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello (2019), existem duas formas distintas de se interpretar o conceito de função social da propriedade, uma sob o espectro econômico e a outra a justiça social. A primeira, segundo indica o autor, caracteriza-se quando a propriedade é útil economicamente, produzindo uma utilidade especifica, ou mesmo quando sua fruição não turbe outras atividades que estejam cumprindo a função social.
Contudo, ao observar a função social sob esta óptica, não está sendo discutido a justa distribuição das terras, o critério utilizado torna-se, tão somente, a utilização correta de recursos por meio dos proprietários, com a limitação de que não seja usada a propriedade para fins que sejam contrários ao interesse social.
A outra hipótese, conforme leciona o autor, corresponde a uma interpretação visando a discussão de políticas de diminuição de desigualdade e desequilíbrio social, de forma que seja possível proporcionar uma ampliação de oportunidades, independentemente da produtividade econômica da propriedade.
Sob esta interpretação, justificam-se as medidas de desapropriação para fins de moradia para aqueles que não dispõem de habitação, ou mesmo distribuições agrárias para produção familiar, visando corrigir o desiquilíbrio causado pelas políticas anteriores e ao sistema econômico vigente, com melhores condições de existência aos necessitados.
Desta forma, aos dizeres de Kiyoshi Harada (2015), em que pese a propriedade privada estar contida entre os direitos e garantias individuais, a inclusão conjunta da função social conferiu a este direito uma relatividade, com objetivo de garantir a justiça social, constatando-se que, atualmente, predomina uma base de finalidade social da propriedade.
3.2 Análise do Plano Diretor do Município de Jales
Em se tratando de uma propriedade urbana, a Constituição Federal (Brasil, 1988), em seu art. 182, §2°, indica que, ao respeitar todas as exigências fundamentais no plano diretor da cidade, estará sendo cumprida a sua função social. Neste sentido, segundo estabelece a autora Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2024), ao vincular a observância ao plano diretor do Município, a Constituição delimitou a aplicação do princípio da função social da propriedade.
Desta forma, faz-se necessário apontar que, ao não indicar expressamente o conceito de função social da propriedade, repassando tal responsabilidade à elaboração de plano diretor aos Municípios, a Constituição permite que a regulamentação do uso da propriedade possa ser maleável a cada realidade em locais distintos do país. Ademais, vale ressaltar que a obrigatoriedade de criar um plano diretor é estabelecida às cidades com mais de 20 (vinte) mil habitantes, conforme o art. 4, inciso I, do Estatuto da Cidade (Brasil, 2001), reproduzindo o disposto no art. 182, parágrafo 2º, da Constituição Federal (Brasil, 1988).
Portanto, para melhor visualização de todo exposto até o momento, é fundamental analisar um plano diretor, exemplificando como funcionam, na prática, as normas que regulam o desenvolvimento urbano de um município, que, como anteriormente indicado, podem ensejar na desapropriação da propriedade em caso de desrespeito da função social.
Inicialmente, vale ressaltar que o Plano Diretor vigente no Município de Jales, Lei Complementar Municipal nº 298/2018 (Jales, 2018), em seu artigo 5º, inciso II, indica expressamente que será regido pelo princípio da função social da propriedade urbana. Ademais, o parágrafo 2º deste mesmo artigo estabelece que a função social da propriedade urbana é atendida quando cumpridos os critérios e exigências de organização do território, dando ênfase ao cumprimento das disposições da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, em relação aos coeficientes mínimos de utilização.
Em sequência, em consonância com a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade, a Lei Municipal traz, em seu art. 20, III (Jales, 2018), a possibilidade de desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública, nos casos em que o proprietário do solo urbano não o aproveitar adequadamente.
Entretanto, para proceder com a desapropriação, indica a lei que deve preceder, para solução do problema, das medidas de parcelamento, edificação ou utilização compulsória, e, em sendo estas infrutíferas, de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo, nos mesmos termos do que estabelece o art. 182, parágrafo 4º, da Constituição Federal (Brasil, 1988).
Cabe ainda ressaltar que esta última medida, de cobrança de IPTU progressivo, perdurará pelo prazo de 5 (cinco) anos, ou até que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar, para que então, consideradas esgotadas estes meios de solução, possa a Administração Pública iniciar o procedimento de desapropriação da propriedade, à luz do art. 24 do Plano Diretor (Jales, 2018), em consonância com o que determina o Estatuto da Cidade em seus arts. 7º e 8º (Brasil, 2001).
Outrossim, conforme anteriormente indicado, faz-se necessário fazer os devidos apontamentos à Lei Complementar Municipal nº 351/2021 (Jales, 2021), que trata sobre o parcelamento, uso e ocupação do solo urbano do Município. O aspecto mais relevante trazido por esta lei é o zoneamento urbano, em uma estrutura classificatória de zonas, seguindo um critério de definição pela atividade desempenhada na porção do solo da cidade. Dentre as apontadas pela lei, destacam-se a Zona Exclusivamente Residencial, Zona de Desenvolvimento Econômico, Zona Especial de Conservação Ambiental e Zona Especial de Interesse Social.
Por consequência, como cada zona possuí características distintas, a cada qual foi atribuído um coeficiente mínimo de aproveitamento, a depender das exigências que o Poder Público Municipal verificou serem cabíveis. Em uma situação em que o aproveitamento do imóvel for inferior do que determina referida lei, o imóvel será considerado subutilizado, devendo o ente público proceder com as medidas anteriormente elencadas, podendo, em última hipótese, sendo infrutíferas as demais, ensejar na desapropriação.
4 DESAPROPRIAÇÃO COMO SANÇÃO AO DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL
Inicialmente, para que se ilustre da melhor forma o conceito de desapropriação, vale transcrever a definição do conceito de desapropriação para o autor Celso Antônio Bandeira de Mello (2015, p.889-890):
À luz do Direito Positivo brasileiro, desapropriação se define como o procedimento através do qual o Poder Público, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo, normalmente adquirindo para si, em caráter originário, mediante indenização prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou rurais, em que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em títulos a dívida pública, resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservado seu valor real.
Ao entendimento de Di Pietro (2024), a desapropriação por descumprimento da função social é uma modalidade que ocorre quando o Estado está diante do desrespeito ao interesse social, embora o termo “interesse social” não esteja previsto expressamente na Constituição Federal, sendo o conceito doutrinário que mais se adequa a este instituto, diferenciando-se das espécies de desapropriação por utilidade pública e necessidade pública.
Está hipótese de desapropriação está prevista no art. 182, parágrafo 4°, inciso III, da Constituição Federal. No caso das propriedades urbanas, a desapropriação pelo respetivo Município será paga em títulos da dívida pública, que são resgatáveis no prazo de 10 (dez) anos (Brasil, 1988).
Um importante ponto de destaque, que merece ser apontado, é que deverá haver prévia aprovação do Senado Federal para emissão dos títulos da dívida pública que servirão como pagamento, sendo ainda assegurados os juros legais de seis por cento ao ano, conforme o art. 8º, parágrafo 1º, do Estatuto da Cidade (Brasil, 2001).
Especificamente, ao regulamentar os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257 de 2001, indica o procedimento a ser seguido para a desapropriação da propriedade urbana. Conforme explica Hely Lopes Meirelles (2016), o procedimento de desapropriação se desdobra em duas fazes, declaratória e executória, sendo nesta primeira que a Administração Pública declara o interesse social na desapropriação do bem particular, devendo indicar ainda a ocorrência do descumprimento da função social. Já a segunda fase, de caráter executório, corresponde à transferência do bem expropriado para o domínio público, após o pagamento da devida indenização anteriormente citada.
Quanto à natureza jurídica do instituto da desapropriação, explica Celso Antônio Bandeira de Mello (2015) que se trata de uma forma originária de aquisição de propriedade, de modo que independe de qualquer relação com o título anterior, tendo por si só força para constituir propriedade ao Poder Público, sendo, nesta modalidade, somente necessário que a Administração exerça o pagamento sobre o bem expropriado.
A lei estabelece algumas exigências, como forma de coibir que a intervenção do Estado na esfera individual se dê de forma desordenada e arbitrária. Neste sentido, leciona Di Pietro (2024) que, por consequência das determinações do Estatuto da Cidade, somente poderão ser atingidos por esta modalidade de desapropriação as propriedades em que, anteriormente, o Município tenha um plano diretor, devidamente aprovado em lei, bem como que preexista lei específica que determine o parcelamento, edificação ou utilização compulsória do imóvel. Preenchidos os requisitos anteriores, deve haver notificação, averbada em cartório pelo Município ao particular, para que solucione as irregularidades, sob pena de sujeitar-se ao IPTU progressivo no tempo.
Corroborando com o anteriormente explicitado, aos dizeres do autor Marçal Justen Filho (2024), em que pese à desapropriação ser um ato unilateral do Poder Público, não enseja uma atuação imperativa e totalmente desconsiderada a participação do particular proprietário durante seu procedimento, em razão da garantia da observância do devido processo legal, coibindo eventuais decisões arbitrárias, ou mesmo atos irracionais da Administração.
Vale consignar quanto ao momento que se consuma a desapropriação. Para tanto, assim conceitua Celso Antônio Bandeira de Mello (2015, p.913):
Tendo em vista o texto do art. 5º, XXIV, da Carta Constitucional, que subordina a desapropriação à "prévia e justa indenização (...)”, desde logo depreende-se que não se pode consumar antes do pagamento da indenização. Em consequência, o Poder Público só adquirirá o bem e o particular só o perderá com o pagamento da indenização. Isto só é excepcionado nos casos invulgares em que a Constituição admite desapropriação paga com títulos, desde que o resgate deles se faça ao longo do tempo.
Nesta seara, o autor ainda pondera que o expropriante poderá a qualquer tempo anterior ao pagamento desistir da desapropriação, pois esta ainda não se consumou. Contudo, estabelece que será devida indenização pelos eventuais prejuízos causados pela fase declaratória, caso já tenha ocorrido, desde que demonstrados pelo proprietário.
Outro ponto que merece observação quanto à desapropriação corresponde à análise do estado atual da propriedade. Ao ensinamento de Di Pietro (2024), as benfeitorias que forem construídas posteriormente a declaração de desapropriação devem ser levadas em consideração no cálculo da indenização do imóvel, indicando que serão indenizadas obrigatoriamente as benfeitorias necessárias e, havendo autorização do Poder Público, as úteis. Já as voluptuárias não serão indenizadas. Ademais, indica a autora que todas as benfeitorias anteriores à declaração deverão incidir no valor da indenização, inclusive as voluptuárias.
Em decorrência de ser uma forma originária de aquisição, os ônus referentes ao imóvel são extintos, de modo que o Poder Público não se torna obrigado em nenhuma responsabilidade anteriormente estabelecida pelo antigo proprietário. Ademais, na hipótese em que o pagamento em títulos da dívida recaia para particular que se prove não ser o real proprietário do bem, a desapropriação não será afetada, em decorrência da soberania do interesse público, cabendo ao terceiro prejudicado buscar os meios para solução de seu problema.
Ao fim, ao passar a integrar o patrimônio do Poder Público, o bem expropriado deve ser destinado de forma correspondente ao motivo que levou sua desapropriação. No caso da desapropriação por descumprimento da função social, cujo objetivo é assegurar que a propriedade se adeque à legislação de aproveitamento do solo urbano, o Estatuto da Cidade (Brasil, 2001), em seu art. 8º, §4º, indique que o Município deverá proceder com o aproveitamento do imóvel no prazo máximo de cinco anos, que, conforme §5º do mesmo artigo, poderá ocorrer por meio da alienação ou concessão a terceiro, desde que observado o regular procedimento licitatório.
5 CONCLUSÃO
Por meio do estudo realizado, constatou-se que o fundamental a ser analisado para determinar a ocorrência do descumprimento da função social da propriedade, podendo ensejar a atuação da Administração Pública, além do critério objetivo da demonstração da inobservância do disposto no plano diretor da cidade da localização do imóvel, é a demonstração de que o uso da propriedade, ou seu abandono, causou danos à sociedade, tanto econômicos quanto sociais.
Ademais, em virtude da pesquisa em relação à evolução histórica das normas brasileiras quanto o direito à propriedade, evidenciou-se a necessidade da atuação interventiva do poder público, coibindo possíveis abusos ao interesse social, consequentes da estrutura de distribuições de terras que ocorreu no país, em da predominância da concentração de propriedades a pequena parcela da população, iniciada durante o período de colonização, sendo mantida em razão da ordem econômica de cada período.
Outrossim, mediante a consulta doutrinária, associada a análise histórica, explicitou-se o conceito de função social, tornando possível compreender como este fundamento do direito se vincula ao direito à propriedade, sendo essencial a verificação conjunta destes dois institutos, de modo a possibilitar a oportuna incidência da prerrogativa pública de desapropriação. Consignando tais entendimentos, a análise do Plano Diretor do município de Jales demonstrou o funcionamento prático de todos os conceitos anteriormente citados, sendo substancial para a obtenção dos resultados.
Corroborando com os tópicos anteriormente indicados, a modalidade de desapropriação por descumprimento da função social foi objeto de análise ao decorrer do estudo, sendo verificada a legislação que regulamenta este instituto do direito, bem como o seu procedimento, desde a fase de declaração de desapropriação até a destinação final do bem após a incorporação ao patrimônio da Administração Pública.
Ante todo exposto, infere-se a enorme importância do instituto da desapropriação como sanção ao descumprimento da função social da propriedade, se tratando de uma forma eficiente para coibir abuso do direito, em respeito à prevalência do interesse coletivo em face do individual, desde que seu procedimento siga todo o caminho permitido e estabelecido no ordenamento jurídico.
REFERÊNCIAS
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[1] Professor orientador do Centro Universitário de Jales, UNIJALES. Mestre em Direito pela Universidade de Marília. E-mail: [email protected].
Graduando em Direito pelo Centro Universitário de Jales, UNIJALES
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BERJAS, Bruno Sposito. Desapropriação por descumprimento da função social da propriedade privada urbana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 set 2024, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/66567/desapropriao-por-descumprimento-da-funo-social-da-propriedade-privada-urbana. Acesso em: 24 nov 2024.
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