RESUMO: O presente trabalho pontua o surgimento do Pacote Antifeminicídio ao cenário jurídico brasileiro, nome de batismo popular conferido a Lei 14.944/24, visando ao combate mais eficaz da violência de gênero em nosso território, e, para tanto, realizando alterações pontuais em diversos dispositivos insertos no Código Penal e na Legislação Penal e Processual Penal Extravagante. O instituto também é palco para uma maior proteção a vítima de tal violência.
Palavras-Chave: Pacote Antifeminicídio. Reforma Legislativa. Proteção. Garantias.
ABSTRACT: This work highlights the emergence of the Antifeminicide Package on the Brazilian legal scene, a popular baptismal name given to Law 14,944/24, aiming to combat gender-based violence more effectively in our territory, and, to this end, making specific changes in several provisions inserted in the Penal Code and in the Extravagant Criminal and Criminal Procedure Legislation. The institute is also a stage for greater protection for victims of such violence.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Na escada criminal o feminicídio subiu um degrau. 2. Na escada criminal o feminicídio subiu um degrau. 3 Reflexos do Pacote Antifeminicídio no art. 394 do CPP. 4 Crimes praticados contra a mulher por razões do sexo feminino. 5. Outros Reflexos do Pacote Antifeminicídio. 6 O delito anão cresceu. 7 Causas de aumento de pena em crimes contra a honra. 8 Influência do Pacote Antifeminicídio nos crimes de ameaça. 9 Influxo do Pacote Antifeminicídio na Lei Maria da Penha. 10 Interferência do Pacote Antifeminicídio na Lei de Execução Penal. 11. Conclusão.12. Referências Bibliográficas.
1.INTRODUÇÃO
A lei 14.494/24 nasceu na data de 09 de outubro de 2024 e, longe de prestar uma homenagem ao atletismo, apesar da coincidência da data comemorativa, foi mesmo apelidada informalmente de Pacoteantifeminicídio, reportando-nos aos sensíveis casos de violência de gênero no Brasil.
Trata-se de uma lei que foi publicada, sem vetos, pelo Presidente da República e despida de vacatio legis, entrando, pois, em vigor na data de 10 de outubro de 2024.
Importante salientar que a prática do feminicídio, ou seja, o assassinato que envolvia violência doméstica e familiar cometido contra mulher (termo amplo que abarca a transexual), motivados pela violência de gênero, já era prática criminosa, contudo, só foi rotulada como crime autônomo com o advento da Lei 14.494/24.
Há que se destacar que o feminícidio está entre nós desde o ano de 2015. Sua certidão de nascimento remonta a Lei 13.104/24 - que trouxe o instituto como uma qualificadora do crime de homicídio. Em verdade, trocou de roupa, mas a roupa nova foi vista sob o espelho de um novo diploma legal.
Por certo, o novo espelho trouxe sensíveis alterações ao conceito de feminicídio e, por conseguinte, novas implicações ao ordenamento jurídico como um todo, em uma visão sistemática que o abraçou. É o que veremos a seguir!
2.NA ESCADA CRIMINAL O FEMINICÍDIO SUBIU UM DEGRAU.
Dita alteração foi responsável por individualizar o crime de feminicídio. Até então, o feminicídio era uma qualificadora do crime de homicídio e, após o advento da nova lei, tornou-se um crime autônomo: art. 121, A do CP.
Rememorando a vida como ela é nos vem à mente a seguinte situação.
Herculano Garganta era daquele tipo que gostava de contar vantagens e se sobressair em todos os lugares, especialmente, em casa, com a sua mulher.
Nascido e criado em ambiente machista, desde criança, na escola com as colegas e, em casa com a irmã, sempre cultivou um sentimento de superioridade, pelo simples fato pertencer ao sexo masculino.
Eis que dia desses, um colega da repartição em que trabalhava, que havia escutado de outro colega, e, aqui, quem conta um conto aumenta um ponto, confidenciou a Herculano que ele seria promovido naquele mês e que receberia aumento de salário.
Naquele mesmo dia, qual seja, 12 de novembro de 2024, Herculano não só espalhou a notícia em casa, mas para o bairro todo em que morava. Eis que o final do mês chegou e Belinha Arrumada, colega da repartição fora a única funcionária promovida e com aumento de salário.
A casa caiu.
Para Herculano aquilo teria sido o fim do mundo. Pior do que perder a promoção era perder a promoção e aumento de salário para uma mulher. Na sua cabeça complicada, se a mulher não existisse, ele seria promovido. Logo, para ser promovido bastaria ela não existir.
Disposto a resolver o problema, Herculano desabafou sobre ele com o filho Amarildo Cornélio, machista ao dobro, e, disposto a ajudar o pai, aceitou auxiliá-lo a tirar a vida de Belinha. Cornélio conseguiu o veneno de rato e entregou para o pai. No dia seguinte Herculano colocou sorrateiramente o veneno no cafezinho da colega Belinha, que veio a óbito, em alguns minutos.
Mas o que eles não contavam é que os e-mails da repartição eram checados pelo chefe diariamente, e, dentre as mensagens uma constava os horários do café e o intervalo de almoço da cozinheira. Não demorou muito para a polícia indiciar Herculano e o filho. Pergunta-se: Qual o crime praticado por Herculano e Cornélio? Qual o máximo da pena cominada ao delito?
Resposta: Ambos praticaram o crime autônomo de feminicídio, (Lei 14.994/24, sancionada em 09 de outubro de 2024), constatado o menosprezo à condição de mulher da vítima, com pena mínima de vinte e pena máxima de quarenta anos.
No caso em apreço, o crime de feminicídio, diferentemente do crime de homicídio que é qualificado pelo uso de veneno, recebe uma causa de aumento de pena, que será de 1/3 (um terço) até a metade, em virtude do veneno. As condições de caráter pessoal de Cornélio, ser funcionário público, e matar a vítima por ser mulher comunicam-se ao filho, por força do parágrafo terceiro do art. 121, A - mesmo sendo esse um particular, despido de qualquer vínculo funcional e emocional com o caso em comento.
Para sermos fiéis ao novo diploma legal colacionamos trecho dele. Confira: Feminicídio
Art. 121-A. Matar mulher por razões da condição do sexo feminino:
Pena – reclusão, de 20 (vinte) a 40 (quarenta) anos.
§ 1º Considera-se que há razões da condição do sexo feminino quando o crime envolve:
I – violência doméstica e familiar;
II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Coautoria
§ 3º Comunicam-se ao coautor ou partícipe as circunstâncias pessoais elementares do crime previstas no § 1º deste artigo.”
Observe o leitor que o feminicídio tal qual previsto no Art. 121, A do CP elencou algumas causas de aumento de penal, quais sejam:
a) quando o feminicídio é cometido durante a gestação, nos três meses posteriores ao parto ou se a vítima é mãe ou responsável por criança;
b) quando é contra menor de 14 anos, ou maior de 60 anos, ou mulher com deficiência ou doença degenerativa;
c) quando é cometido na presença de pais ou dos filhos da vítima;
d) quando é cometido em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha e
e) e no caso de emprego de veneno, tortura, fogo, dissimulação,emboscada ou arma de uso restrito ou proibido contra a vítima.
Registre-se, por oportuno, que o patamar de aumento varia de 1/3 até a metade, mas tal dispositivo dialoga com art. 75 do CP, ou seja, o tempo máximo de pena privativa de liberdade é de 40 anos. Trata-se do tão falado diálogo de fontes que nada mais é que um aprimoramento da interpretação sistemática.
Há que se destacar que houve uma mudança topográfica/formal na Lei 8.072/90 alocando o feminicídio como crime autônomo e não mais como qualificadora do homicídio, que já era hediondo.
3. REFLEXOS DO PACOTE ANTIFEMINICÍDIO NO ART. 394 DO CPP.
O artigo “bola da vez” do Pacote Antifeminicídio em seara processual penal é o art. 394 do CPP, objeto de sensíveis modificações.
O artigo 394 do CPP foi acrescentado com a alínea A. O dispositivo elenca hipóteses de priorização dos trâmites processuais, em todas as instâncias, quais sejam: nos processos que apurem crimes hediondos ou de violência contra a mulher.
É importante que se diga que, em período anterior ao advento da mencionada lei, figuravam apenas os crimes hediondos como hipótese de priorização do trâmite processual.
A nova lei acrescentou os crimes praticados com violência contra a mulher. Nestes últimos, tal como os primeiros, não haverá os pagamentos de custas, taxas ou despesas processuais, salvo se presente a má-fé. Essas isenções aplicam-se apenas a vítima e, no caso de morte, aos sucessores elencados no art. 31 do CPP, e não ao autor da infração, sob pena de violação a isonomia em seu aspecto material. Em outras palavras: a forma não pode subverter o fundo.
Para sermos fiéis a modificação legislativa colacionamos trecho dela. Confira:
Art. 394-A. Os processos que apurem a prática de crime hediondo ou violência contra a mulher terão prioridade de tramitação em todas as instâncias. § 1º Os processos que apurem violência contra a mulher independerão do pagamento de custas, taxas ou despesas processuais, salvo em caso de má-fé.
4. CRIMES PRATICADOS CONTRA A MULHER POR RAZÕES DO SEXO FEMININO.
Muitos pensam erroneamente que são apenas aqueles crimes cometidos no bojo da Lei Maria da Maria da Penha. Ledo engano! O feminicídio não se resume apenas a ceifar a vida de uma mulher no arcabouço de violência doméstica ou familiar. As razões da condição do sexo feminino ultrapassam tais fronteiras. Há que se ter em mente aqueles crimes que são cometidos contra a mulher pelo menosprezo e discriminação a sua condição e que nem sempre acontecem acompanhados da violência doméstica e familiar.
Não vamos muito longe...
Lindomar, na condição de marido, em uma relação íntima de afeto, mata a sua mulher por ter sido traído por ela. Lavou a sua honra com sangue, segundo ele.
Já na sua condição de empregado mata a sua chefe por não admitir ser chefiado por uma mulher. As hipóteses são distintas e há feminicídio em ambas.
Note que só existiu violência doméstica e familiar na primeira hipótese.
E por falar em lavar a honra com sangue, argumento totalmente desproporcional a se justificar a legítima defesa, vamos conversar sobre a vida como ela é.
O fazendeiro Lucas da garrucha era coronel lá pelas bandas de Deus Me Livre.
Neto, criado por avô, guardava os valores machistas de um tempo que, felizmente, não volta mais.
Desde menino namorou Lucélia Santista, moça bonitinha, mas ordinária. Igual perfume! Gostava de tocar de corpo em corpo. Todos ali sabiam que a moça era para frente do seu tempo, mas Lucas, cego de paixão não dava ouvidos ao falatório do povo e pensava ser tudo intriga da oposição.
Casou com Lucélia em grande estilo. Até boi foi sacrificado para a festa de casamento.
Contudo, após alguns anos de traição e risinhos pelas suas costas, Lucas resolveu investigar e, para o seu espanto, Lucas flagrou a esposa com três funcionários seus fazendo sabe-se lá o quê.
Com sede de vingança, Lucas, que andava armado, atirou e ceifou a vida da esposa e dos três funcionários de sua fazenda.
Em defesa, no plenário do Júri, o seu advogado arguiu a legítima defesa da honra. Foi válida tal tese defensiva?
A resposta negativa se impõe.
O Supremo Tribunal Federal analisou o caso atinente à legítima defesa da honra, ao julgar a arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF – 779.
Os profissionais do direito em geral, após essa decisão paradigmática, não poderão mais invocar a legítima defesa da honra, em casos em que restar configurado o feminicídio.
Isso ao fundamento de que legítima defesa da honra não configura legítima defesa. A traição, por si só, não autoriza reação, a fim de ceifar a vida da vítima. Se tal argumento for exposto em plenário do júri isso acarretará a nulidade do julgamento, por violação a dignidade da pessoa humana.
Muitos sustentaram que isso representaria censura prévia, a macular o princípio da plenitude de defesa, já que, no júri, muito se é utilizado argumento extrajurídico. Já se soube de casos, inclusive, em que os jurados absolveram o réu baseados em argumentos do além, em cartas psicografadas, supostamente escritas pelo falecido.
Acreditamos que em juízo de ponderação entre a plenitude de defesa e a vida humana, a última deverá prevalecer. Até por que justificar a traição como defesa, sob o rotulo de legítima seria tentar dar moderação ao imoderado. Quem ama não mata. Amor é vida. A passionalidade de outrora, retrato do machismo estrutural, não perfaz os requisitos da legítima defesa, a ser usada como argumento de autoridade para absolvições.
Não está a Corte se valendo de censura prévia, mas apenas delimitando os requisitos, já delimitados, de uma excludente de ilicitude, para que essa não seja banalizada e a técnica do Direito seja subvertida e utilizada em desfavor da vida humana. Os fins não justificam os meios.
O processo penal é instrumento do direito material penal e não o seu avesso. A Constitucionalização do Direito nos impõe que os demais ramos do Direito, dentre eles o Direito Processual Penal, devem ser relidos à luz da Constituição e não o contrário. A vida humana é o bem jurídico mais precioso que um ser humano possui. Direito fundamental e cláusula pétrea. A plenitude de defesa, outra cláusula pétrea, deve com ela se harmonizar, pois sem vida não há defesa, não há nada.
Para sermos fiéis ao que decidiu a Suprema Corte colacionamos ao leitor trecho da decisão. Confira:
EMENTA Referendo de medida cautelar. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Interpretação conforme à Constituição. Artigos 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e art. 65 do Código de Processo Penal. “Legítima defesa da honra”. Não incidência de causa excludente de ilicitude. Recurso argumentativo dissonante da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF). Medida cautelar parcialmente deferida referendada. 1. “Legítima defesa da honra” não é, tecnicamente, legítima defesa. A traição se encontra inserida no contexto das relações amorosas. Seu desvalor reside no âmbito ético e moral, não havendo direito subjetivo de contra ela agir com violência. Quem pratica feminicídio ou usa de violência com a justificativa de reprimir um adultério não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma desproporcional, covarde e criminosa. O adultério não configura uma agressão injusta apta a excluir a antijuridicidade de um fato típico, pelo que qualquer ato violento perpetrado nesse contexto deve estar sujeito à repressão do direito penal. 2. A “legítima defesa da honra” é recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra a mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões. Constitui-se em ranço, na retórica de alguns operadores do direito, de institucionalização da desigualdade entre homens e mulheres e de tolerância e naturalização da violência doméstica, as quais não têm guarida na Constituição de 1988. 3. Tese violadora da dignidade da pessoa humana, dos direitos à vida e à igualdade entre homens e mulheres (art. 1º, inciso III , e art. 5º, caput e inciso I, da CF/88), pilares da ordem constitucional brasileira. A ofensa a esses direitos concretiza-se, sobretudo, no estímulo à perpetuação da violência contra a mulher e do feminicídio. O acolhimento da tese tem a potencialidade de estimular práticas violentas contra as mulheres ao exonerar seus perpetradores da devida sanção. 4. A “legítima defesa da honra” não pode ser invocada como argumento inerente à plenitude de defesa própria do tribunal do júri, a qual não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. Assim, devem prevalecer a dignidade da pessoa humana”.
Ainda sobre crimes passionais, vamos falar de Aloísio que matou a sua esposa. Quando o amor virou ódio, em clássico caso de feminicídio e julgamento pelos seus pares, no tribunal do júri. Da vida como ela é, mas não deveria ser...
Aloísio Aluado era daqueles que beijou tem que casar. Apaixonado por Amélia que era mulher de verdade e pelos muitos entorpecentes que consumia e vendia, depois de uma década de espera, finalmente levou Amélia ao altar.
Mas o problema foi que Amélia era apaixonada por Estrela, que era apaixonado por Lua, que era muito apaixonada por si mesma. Pois não deu outra, com dois meses de casamento Amélia passou a “cozinhar para fora”.
Em outras palavras. Era mesmo infiel ao marido. Descoberta a traição Aloísio ceifou-lhe a vida, sem dó e sem piedade.
A essa altura entorpecido pelas drogas e pelo ciúme.
O caso foi levado ao tribunal do júri que condenou Aloíso a uma pena de 14 anos de reclusão.
Contudo, os amigos que não presenciaram o julgamento, mas souberam da pena decretada, mais aluados que ele, já haviam matado um boi para o churrasco, pois um deles ouviu o galo cantar de um amigo que era amigo de um advogado que teria dito que no tribunal do júri existe execução provisória apenas quando a pena for igual ou superior a 15 anos, e como o amigo recebeu 14 anos, aguardaria o julgamento do seu recurso em liberdade.
Quem disse isso?
O art. 492 do CPP.
A voz dos amigos aluados virou a voz do povo.
Pergunta-se: nesse caso, a voz do povo era a voz de Deus? A resposta negativa se impõe.
Instado a pronunciar-se sobre o tema, o Supremo Tribunal federal, na data de 12 de setembro de 2024, ao analisar um caso, similar ao nós narrado, nos ensinou que a decisão do tribunal do júri porque lastreada em consolidação do entendimento da sociedade é soberana.
O que isso quer dizer?
Quer dizer que a soberania dos veredictos prevalece sobre tudo e não importa nem mesmo o quantum da pena, se de 5, 10 ou 15 anos e, por conseqüência, a execução provisória no tribunal do júri ganha preponderância.
Mas e a ADC 43 que proibia a execução provisória da pena em prol do princípio da presunção de inocência?
Só vale quando o crime não for doloso contra a vida.
Hum... Mas a soberania dos veredictos não está alocada na Constituição da República como um direito fundamental do cidadão? Sim. Mas um direito fundamental que garante ou que pune?
Segundo o STF que garante a sociedade que a punição por ela determinada será eficaz.
Para sermos fiéis colacionamos trecho do julgado. Confira.
A tese de repercussão geral fixada foi à seguinte:
“A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”.
5. OUTROS REFLEXOS DO PACOTE ANTIFEMINICÍDIO
A violência doméstica foi objeto de mudança, não em seu significado, mas na sua conseqüência jurídica, qual seja, a sua pena. Base Legal: Art. 129, parágrafo 9º do CP.
A pena antiga, de detenção era de 3 meses a 3 anos. Hoje, a pena, de reclusão é de 2 a 5 anos, de modo que restou inviabilizada, agora, a suspensão condicional do processo.
Nessa hipótese o sujeito passivo engloba o homem.
A título de exemplo, se Ribamar, em ato de fúria, mata o irmão, aproveitando-se das relações domésticas, fica enquadrado no parágrafo nono; já, se no mesmo ato de fúria ceifa a vida da irmã, aproveitando-se das mesmas relações domésticas será enquadrado no parágrafo treze do mesmo art. 129 do CP.
O parágrafo treze do referido artigo, que enfatiza a mulher como sujeito passivo, agora, teve a pena aumentada para 2 a 5 anos, saindo do patamar anterior de 1 ano, em casos de violência contra a mulher, pelas suas condições de gênero.
Note o leitor, as situações dos parágrafos são distintas, mas o legislador igualou a sanção penal.
Na vida como ela é, dona Crecineide nunca desejou casar-se. Sempre alardeou a todos que se tornou esposa por um infeliz acidente do destino. Um dia desses, resolveu dar uns bofetões em seu marido Cornélio, por ele ter criticado o seu corte de cabelo.
Denunciada por seus vizinhos Dona Crecineide foi presa, em meados de setembro do ano de 2024, mas tinha pavor de ver o sol nascer quadrado. A pergunta que não quer calar é a seguinte: O delegado de polícia poderá arbitrar fiança em favor de Crecineide?
A resposta afirmativa se impõe. E, para tanto, se fazem necessárias algumas análises acerca de lições de Direito Intertemporal, bem como noções acerca da natureza híbrida das normas.
Isso porque a Lei 14.944/24 publicada em 09 de outubro de 2024 entrou em vigor no dia seguinte a data de sua publicação, e, despida de vacatio legis. Sendo novatio legis in pejus as suas disposições só encontrarão adequação típica nas condutas praticadas após a sua entrada em vigor e, para tanto, na data da conduta a pena não ultrapassava o período de quatro anos, razão pela qual é cabível o arbitramento de fiança pelo delegado. É o Direito Penal Intertemporal que assim nos ensina.
6. O DELITO ANÃO CRESCEU
Iremos abordar, agora, as contravenções penais de vias de fato, tipificadas no art. 21 da Lei de Contravenções Penais, que nada mais são do que a violência que não deixa lesões, que não deixa vestígios, tal como um empurrão ou mesmo um puxão no cabelo, diferenciando-se das lesões corporais pelos vestígios deixados nessas últimas.
A pena para as condutas de vias de fato também sofreu alteração. O delito anão cresceu. A natureza jurídica de tal alteração: Trata-se de causa de aumento de pena. Agora, se a contravenção de vias de fato for praticada contra a mulher, por condições do sexo feminino, a pena será aplicada em triplo, variando a prisão simples de 45 dias a 9 meses. O período de uma gestação!
7. CAUSAS DE AUMENTO DE PENA EM CRIMES CONTRA A HONRA
O Pacote Antifeminicídio acrescentou o parágrafo terceiro ao art. 141 do CP espraiando o seu influxo aos crimes contra a honra.
A vida sendo ela mesma grita.
Abrazivo, estressado pela demora na fila atinente à compra de ingressos para assistir a um filme no cinema e, sabedor que a demora no atendimento estaria ocorrendo pelo fato de a atendente estar trocando mensagens no celular, em horário de atendimento passa a proferir-lhe palavras de tom ofensivo do tipo: - “só podia ser mulher! Além de preguiçosa é feia e só sabe atrapalhar”.
Nesse caso, se a conduta de Abrazivo se der após o advento da Lei 14.494/24, por tratar-se de crime de injúria, dará ensejo a uma condenação, com pena aumentada até o dobro, por ter sido a conduta praticada em face de mulher, menosprezando-a pelo tão só fato de ser mulher.
Trata-se de uma violência moral punida com mais severidade pelo novo diploma legal.
Em palavras miúdas a lei deu um tratamento mais severo aos crimes contra a honra tipificados no Código Penal em razão da mulher por ser mulher, ou seja, pelas suas condições do sexo feminino.
8. INFLUÊNCIA DO PACOTE ANTIFEMINICÍDIO NOS CRIMES DE AMEAÇA.
A regra do crime de ameaça é de ser crime de ação penal pública condicionada à representação. Essa, a sua condição de procedibilidade para a propositura da ação penal.
Contudo, embora a regra seja a representação da vítima para a lavratura da prisão em flagrante e propositura da ação penal, tal regra, agora, é excepcionada se ameaça for perpetrada contra a mulher, pelas condições do sexo feminino fato que, por si só, transmuda ação para pública incondicionada e que também é responsável por aumentar a pena até o dobro. Exceção que não infirma a regra, mas que nem, por isso, é desnivelada de importância, a fim de resguardar a mulher da violência psicológica praticada pelo seu algoz.
Trata-se de norma de caráter híbrido que não retroage para prejudicar o réu.
Note o leitor o quão interessante foi o tratamento dado pelo Supremo Tribunal Federal quanto à questão da não retroatividade maléfica e, por lógica, da retroatividade benéfica às normas de caráter híbrido ao crime de estelionato, raciocínio da retroatividade benéfica e irretroatividade da norma maléfica que poderá ser aplicado a qualquer crime, em uma visão sob as lentes da multifuncionalidade da aplicação dos direitos e garantias fundamentais. Confira:
Ribamar Calado, de calado só tinha o nome. Vendedor, desde criança, diziam as más línguas, que, só não vendia a mãe porque essa já havia falecido. Eis que a atual função de Calado, no momento, era a venda de veículos.
Contudo, Calado vendia veículos com gravame judicial, e nada informava aos compradores. Um de seus clientes, furioso com a descoberta, colocou a boca no trombone e comunicou o fato à polícia. Preso em flagrante, em uma de suas operações, Calado foi processado e sentenciado pelo delito de estelionato. Interpôs o recurso de apelação e sua pena foi mantida.
Todavia, antes do trânsito em julgado da condenação, Calado alegou que com o advento do pacote Anticrime (Lei 13.964/19) que alterou o tipo da ação penal para o crime de estelionato, passando de pública incondicionada para condicionada a representação do ofendido, há que se tomar por termo a representação do ofendido, sob pena de ilegalidade do título prisional, ainda que já oferecida à denúncia.
Como um rosto de uma pessoa, não dá para escolher só um lado. O rosto é único.
Logo, se a norma é incindível há que preponderar o caráter material e retroagir. Interpretação outra, denotaria afronta ao princípio do favor rei, decorrência do princípio da presunção de inocência. E vamos além, se o princípio da presunção de inocência, é garantia fundamental do indivíduo, limitar a retroatividade temporal de uma norma ao início do processo seria, por via transversa, apresentar um grau de irretroatividade a uma norma mista, a depender da fase processual em que se encontrasse o indivíduo, em clara ofensa aos princípios da isonomia e do contraditório e do devido processo legal, em seu aspecto material. Dois pesos e duas medidas.
Com tal pensar, alinhado ao garantismo penal, o Supremo Tribunal Federal garantiu a retroatividade benéfica da norma processual penal de caráter misto, prevalecendo o favor rei, com a cautela de intimação da vítima, no prazo de 30 (trinta) dias, para que ofereça a representação, valendo-se da analogia ao art. 91 da Lei 9.009/95, em obediência ao art. 3º do CPP.
A representação ganhou a feição de condição de prosseguibilidade da ação penal, devido à peculiaridade de ser uma norma híbrida e ao respeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão.
Se o caso de Calado ficar nas ruas vendendo carros com gravames judiciais foi justou ou não, isso não sou eu, não é você leitor, tampouco o Ministério Público ou juiz quem decide. Isso quem decide é a vítima e, pouco importa a fase processual em que se encontre o feito, desde que antes do trânsito em julgado. Se ainda não transitou em julgado, Calado ainda poderá ter esperanças.
Confira o leitor trecho do julgado exarado pela Suprema Corte, no ano de 2024:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PROCESSO PENAL. RETROATIVIDADE DO § 5º DO ART. 171, INCLUÍDO NO CÓDIGO PENAL PELA LEI N. 13.964/2019. NORMA DE NATUREZA HÍBRIDA. RETROAÇÃO EM BENEFÍCIO DO ACUSADO. PRECEDENTE DO PLENO: HC N. 208.817, DE MINHA RELATORIA. COMUNICAÇÃO DO FATO, PELA VÍTIMA, À AUTORIDADE POLICIAL. REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA PRESCINDE DE FORMALIDADE. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO PARCIALMENTE. (decisão oriunda do Recurso Extraordinário 1437446/SP – Publicada em 04/04/24).
9. INFLUXO DO PACOTE ANTIFEMINICÍDIO NA LEI MARIA DA PENHA
O art. 24 A da Lei Maria da Penha tipificou o crime de desobediência às medidas protetivas de urgência. Era pena de detenção. Agora virou pena de reclusão. Os patamares também mudaram: de três meses a dois anos; agora serão de dois a cinco anos e multa.
Houve, pois um recrudescimento ao crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência.
As hipóteses de violência doméstica contra a mulher revelam, por si só, uma cláusula de reserva de jurisdição no tocante ao instituto da fiança. Em tais casos, o delegado encontra óbice legal no arbitramento, que se dá unicamente por ato do juiz.
Mas, atenção! A cláusula de reserva de jurisdição, quanto ao arbitramento da fiança, somente ocorrerá quando do descumprimento da medida protetiva acima elencada. O delegado poderá arbitrar fiança nos crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher. O que o delegado não poderá fazer é arbitrar fiança para o crime específico de descumprimento de medida protetiva (art. 24 da Lei Maria da Penha), atinente a violência perpetrada em face da vítima. Não confunda, o leitor, alhos com bugalhos!
10.INTERFERÊNCIA DO PACOTE ANTIFEMINICÍDIO NA LEI DE EXECUÇÃO PENAL
A Lei 14.994/24, de 2024, alterou pontualmente a Lei de Execução Penal (LEP) e, para tanto, acrescentando novidades no que concerne a execução penal de condenados por crimes de feminicídio.
São as seguintes:
a) Vedação a visita íntima;
b) Transferência do condenado para um estabelecimento penal longe da residência da vítima;
c) Inclusão de um inédito critério para a progressão de regime, a cujo percentual chega a 55% da pena, a ser cumprida em regime fechado. Cumpre-nos, aqui, traçarmos uma distinção entre a progressão e a regressão de regime. Os dois institutos se resumem em duas palavras: benefício e prejuízo. Enquanto a progressão de regime é um benefício ao condenado, a regressão de regime é um prejuízo ao condenado. Isso por que a progressão de regime é um benefício que possibilita ao condenado o cumprimento de sua pena em um regime menos gravoso, enquanto a regressão de regime é um prejuízo que acarreta na transferência ao condenado para um regime mais gravoso.
E por falar em possibilidade de regressão de regime, a vida como se revela bate nas grades das celas do Complexo Penitenciário È Para Lá Que Eu Não Vou. Vejamos.
Apolinário Brigadeiro tinha duas grandes paixões na vida: o mundo do crime e o mundo dos doces. Obeso desde a mais tenra infância Apolinário estava cumprindo verdadeira penitência desde que preso e condenado pelo crime de feminicídio foi cumprir pena no complexo penitenciário É Para Lá Que Eu Não Vou. O caso é que já estava perdendo peso, pois a comida que era servida na unidade prisional, a seu sentir, tinha gosto de azedo.
Após algumas reclamações com o pessoal responsável e nenhuma providência, Brigadeiro resolveu fazer greve de fome.
Contudo, a sua conduta teve consequências.
Insatisfeita, e, a fim de demonstrar quem manda em quem, a Administração Penitenciaria instaurou um processo administrativo disciplinar e o detento foi punido por falta grave e, por conseguinte, obteve a regressão de regime.
Pergunta-se: A greve de fome, por si só, é causa de regressão de regime?
A resposta negativa se impõe. Seria um contrasenso a Constituição da República Federativa do Brasil assegurar assistência material à saúde e, em contrapartida, obrigar o preso a ingerir alimento impróprio a sua saúde. Seria dar com uma mão e tirar com a outra.
A greve de fome poderá constituir falta grave apenas quando ocasionar desordem e indisciplina, ou seja, quando associada aos crimes de dano e motim.
Assim se posicionou a Corte Cidadã. Confira trecho da decisão: A recusa do detento em se negar a aceitar alimento que julga impróprio para consumo não se caracteriza como falta grave. Ao contrário, essa atitude representa o exercício de seu direito à liberdade de expressão e à preservação de sua dignidade, respeitando os direitos fundamentais do ser humano no sistema penitenciário, conforme preconizam as leis nacionais e os tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Isso, desde que seja feita de forma ordeira e sem colocar em risco a ordem e a disciplina do estabelecimento prisional.
Logo, a recusa do detento em aceitar alimento que julga impróprio para consumo, quando realizada de forma pacífica e sem ameaçar a segurança do ambiente carcerário, não configura falta grave. [STJ. 5ª Turma. AREsp 2.418.453/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 17/10/2023 (Info 792)]; Obrigatoriedade do uso de monitoramento eletrônico nas condições em que o condenado estiver em gozo de benefícios entrelaçados com a saída do estabelecimento penal.
CONCLUSÃO
O Pacote Antifeminicídio teve o mérito de fortalecer o intuito do loperador do direito em acrescentar de uma forma mais enfática os institutos da prevenção e proteção no Direito Penal, e, assim o fez, através do recrudescimento inerente às sanções penais, bem como às inovações a serem concretizadas e que espelham o anseio popular de uma repressão mais uniforme no tocante a um maior cuidado com a mulher (heterosexual ou transexual), através de uma resposta penal do legislador voltada ao caráter de gravidade do crime de feminicídio, levando-se em contaa posição de maior vulnerabilidade da vítima.
Assim, se por um lado a intenção do legislador ao editar a Lei 14.494/24 foi a de aumentar a proteção às mulheres discriminadas, menosprezadas e, muitas das vezes aprisionadas em uma relação íntima de afeto, por outro lado a autonomia do referido delito não poderá consistir em promessas em branco, ou seja, de um direito penal simbólico.
Fato é que a violência por razões da condição do sexo feminino existe no Brasil e mundo a fora e, não dá, simplesmente, para fecharmos olhos para ela achando que um dia irá acabar.
Houve, sem sobras de dúvidas, uma evolução legislativa sobre a temática e uma maior responsabilidade aos órgãos de persecução penal que compõem a criminalização secundária no projeto de executar a lei.
Isto posto, contra fatos não há argumentos.
Esperamos que o Pacote Antifeminício não seja um mero reflexo do direito penal simbólico - e que as garantias fundamentais das mulheres vítimas do feminicídio não façam da Lei Maior mera folha de papel, nas sábias palavras de Lassalle.
Que seja eterno enquanto dure! E que dure o suficiente para garantir efetividade ao sistema.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de: Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa: Processo Penal. Vol. 1 a 4. São Paulo: Saraiva, 2007.
FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002
Ex Tabeliã pelo TJMG. Especialista em Compliance Contratual, pela Faculdade Pitágoras. Mestre em Direito das Relações Internacionais pela Universidad de La Empresa – Montevideo – UY. Escritora. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAULA NAVES BRIGAGãO, . O Feminicídio trocando de roupa no espelho legislativo. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 fev 2025, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/67748/o-feminicdio-trocando-de-roupa-no-espelho-legislativo. Acesso em: 05 fev 2025.
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