No começo de 2025, teve início os efeitos práticos da reforma agrária implantada pela África do Sul, com expropriação sem indenização, equivalente a um confisco de terras improdutivas, gerando forte reação no país. De fato, a Lei de Expropriação 13 de 2024 revogou a anterior Lei de Expropriação 63 de 1975, que previa a desapropriação exclusivamente para finalidades públicas, com benefícios coletivos, tendo sido recentemente aplicada para a construção do Gautrain, com a desapropriação de extensas áreas por onde o metrô passaria, com extensão de 80 km, ligando Joanesburgo a Pretória.
A nova lei, contudo, estendeu a expropriação para os casos de interesse público, vinculado à reforma agrária. A polêmica fica por conta da Seção 12(3) da nova lei, que prevê uma compensação de rands nula, desde que preenchidas as condições de pouco uso da terra. Muitos argumentam que essa disposição da nova lei é inconstitucional, já que essa possibilidade não consta expressamente na seção 25 da constituição do país.
Muitos problemas surgiram em países que adotaram reformas agrárias tardias. No Brasil, após a rápida urbanização nos anos 1980, a reforma agrária passou a enfrentar diversos percalços, como a baixa produtividade agrícola dos assentados, que muitas vezes recorrem à venda dos lotes e dos arames novos das cercas para tentar a vida no meio urbano.
Nos EUA, ainda no século XIX, muitas famílias foram contempladas com glebas nas terras do oeste, para exploração individual. Esse modelo ficou famoso pelas imagens de carroças cobertas seguindo estradas isoladas com famílias indo ocupar glebas distantes doadas pelo governo visando a construção de ranchos familiares, resultando em grande prosperidade econômica, tal como retratado por Darcy Ribeiro.
Da mesma forma, a reforma fundiária no Japão, Taiwan e Coreia do Sul nas décadas de 1940 e 1950 estimularam a produção, consolidando o modelo capitalista de exploração da terra e garantindo uma rápida industrialização destas nações, que tinham acabado de sair de conflitos armados intensos. No final dos anos de 1950, a China adotou um caminho oposto, de coletivização da terra, que foi mantido pelo sistema HRS (Household Responsibility System) aprovado em 1978. Contudo, nos anos recentes o país deu uma guinada para a agricultura capitalista.
As reformas agrárias tardias precisam estar sintonizadas com as mudanças sociais por que passaram os países nas últimas décadas. Muitos estudos abordam as causas e possíveis soluções para os conflitos de terra na África subsaariana pós-colonial. Em Botsuana, foi adotado um modelo de viés liberal, procedendo-se a uma intensa reforma fundiária que focou essencialmente no aumento da produtividade. Segundo a sua lei de regência, conhecida como TGLP, uma parte das terras tribais foram designadas para ranchos comerciais, destinando-se 20% destas terras para áreas protegidas da vida silvestre, para serem exploradas pelo turismo de safári, que gera milhares de empregos no país.
No Brasil, o art. 243 da Constituição Federal prevê duas hipóteses de expropriação de terras sem qualquer indenização ao proprietário: quando houver plantação de culturas ilegais de plantas psicotrópicas e exploração de trabalho escravo, conforme a redação dada pela Emenda Constitucional nº 81/2014. Essa última hipótese ainda não foi regulamentada por lei. Já a primeira foi regulamentada pela Lei nº 8.257/1991, prevendo a imediata expropriação da terra e sua destinação para assentamento de colonos. A jurisprudência dos tribunais superiores firmou a compreensão de que essa expropriação deve limitar-se à área plantada, não se estendendo à integralidade da gleba. Além disso, no RE 635.336, julgado em 2017 (Tema 399), o Supremo Tribunal Federal entendeu que o proprietário pode se defender com o argumento de que não incorreu em culpa, ainda que in vigilando ou in eligendo, para evitar a expropriação.
Quanto à hipótese de trabalho escravo, muitos projetos já tramitaram no Congresso Nacional visando regulamentá-la, adotando os mesmos requisitos para a configuração do crime de sujeição à condição análoga à escravidão elencados no Código Penal, mas não alcançaram o consenso. Recentemente, foi discutido no parlamento e por integrantes do primeiro escalão do poder executivo a possibilidade de estender a expropriação de terras sem indenização aos proprietários que fossem autores de incêndios criminosos em suas terras, visando conter as queimadas que assolam o país.
Nos três casos, plantação de substâncias psicotrópicas (já regulamentado), exploração de trabalho escravo (não regulamentado) e queimadas (aventada a propositura de uma PEC), aplica-se o raciocínio esboçado pela Suprema Corte no tema 399, podendo o proprietário obstar o confisco da terra caso demonstre a ausência de culpa. Mas essa demonstração demanda certas peculiaridades no caso concreto, a depender da hipótese tratada, já que o trabalho escravo é uma atividade contínua que se constata no decorrer da prática produtiva, ao passo que as plantações são constatadas de imediato. Quanto às queimadas, caso a ideia prospere, seria preciso diferenciar os incêndios naturais e controlados dos incêndios criminosos, além de considerar a conduta de incendiários, que ateiam fogo em terras alheias.
O panorama acima demonstra que a expropriação de terras improdutivas para reforma agrária sem compensação, adotada pela África do Sul em 2024, e posta em prática em 2025, caracteriza um verdadeiro confisco de terras, não tendo paralelo nos países democráticos, incluindo o Brasil. De fato, o art. 5º, inciso XXIV, da Constituição Federal prevê o direito de indenização tanto ao proprietário quanto ao possuidor da terra, admitindo como exceção apenas as hipóteses elencadas no próprio texto constitucional, indicadas no art. 243.
Contudo, duas situações também previstas no texto constitucional podem ter efeitos práticos semelhantes ao confisco tratado no art. 243 da CF: o art. 68 do ADCT e 231, §6º, da CF, que preveem as terras quilombolas e indígenas. O primeiro artigo determina que: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos” enquanto o segundo dispõe que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo…não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.”
Este ensaio irá confrontar o entendimento pretoriano acerca dessas duas hipóteses acima, em paralelo com a reforma agrária indicada no art. 184 da CF, a cargo do INCRA. Inicialmente, é preciso diferenciar a titulação das terras quilombolas a cargo da Fundação Palmares, quando os beneficiários se tornam proprietários da terra, da demarcação de terras indígenas a cargo da FUNAI, quando a propriedade da terra passa à União. Na primeira hipótese, apesar do título de propriedade, a terra não pode ser vendida ou dividida, mas pode ser usucapida. Na segunda hipótese, o art. 231, §6º, da CF prevê um direito tradicional, dispondo que os títulos anteriores serão nulos, com exclusivo usufruto da terra pelos indígenas.
Apesar disso, o entendimento jurisprudencial se formou no sentido de que cabe indenização da terra aos possuidores de boa-fé em ambas as hipóteses, não se limitando à benfeitorias. De fato, o Decreto nº 4.887/2003 é uma norma autônoma, que retira validade diretamente da Constituição Federal, segundo decidido pelo STF na ADI 3239 em 2018. No caso da titulação das terras quilombolas, haverá indenização das benfeitorias de boa-fé, com os ocupantes da terra tendo preferência no reassentamento da reforma agrária, conforme estipulado no art. 14 do decreto acima. Essa titulação se inicia mediante a publicação de um decreto específico para cada terra, o qual não caduca no prazo de dois anos, segundo decidido pelo STJ em janeiro de 2025, sendo inaplicável o prazo de caducidade previsto no art. 3º da Lei nº 4.132/1962.
Já no caso de demarcação de terras indígenas, o processo é regido pelo Decreto nº 1.775/1996, que retira seu fundamento de validade do art. 231 da CF e art. 17, I, da Lei nº 6.001/1973. Referido decreto estipula que os ocupantes não índios da área demarcada terão prioridade para reassentamento, em disposição semelhante à aplicada no caso dos ocupantes não quilombolas.
Sobre o fundamento de validade das normas jurídicas, o Supremo Tribunal Federal adota a teoria kelseniana, que escalonou uma pirâmide normativa até a norma ápice, chamada de grundnorm. Mas é importante confrontá-la com visões distintas, como o realismo de Alf Ross. Segundo Alaôr Caffé Alves, em prefácio à tradução brasileira da obra Direito e Justiça, de Ross, “a vigência de uma norma jurídica significa que seu conteúdo ideal é ativo na vida jurídica da comunidade, como direito em ação. Enquanto na teoria pura de Kelsen, pergunta-se pela validade da norma superior, no pensamento de Ross, a pergunta é pela vigência que se obtém por remissão ao comportamento de seus destinatários, com o sentimento de sua obrigatoriedade social.”
Apesar da perspectiva realista, o STF encampou a teoria kelseniana, entendendo que o Decreto 1.775/96 retira fundamento de validade na Lei nº 6.001/73 e no art. 231 da CF, ao passo que o Decreto 4.887/03 retira fundamento de validade diretamente no art. 68 do ADCT, prescindindo da aprovação de lei específica.
O art. 14 do Decreto 4.887/03 (terras quilombolas) e o art. 231, §6º, da CF (terras indígenas) fazem referência apenas à indenização das benfeitorias realizadas de boa-fé. Contudo, o STF estendeu essa indenização à terra ocupada de boa-fé. De fato, em setembro de 2023, o STF decidiu no RE 1.017.365 (Tema 1031) que pode haver indenização para os ocupantes de boa-fé das terras indígenas demarcadas, englobando a terra nua e as benfeitorias, chancelando ainda o direito de retenção da terra até o pagamento da indenização, conforme previsto na Lei nº 14.701/2023, conhecida como Lei do Marco Temporal.
Com base nisso, em 25/09/2024 o STF homologou um acordo envolvendo a terra indígena Ñanderu Marangatu localizada em Mato Grosso do Sul, prevendo-se a indenização aos fazendeiros desapossados no importe de R$ 118 milhões pelo VTN (valor da terra nua) e R$ 28 milhões pelas benfeitorias. O VTN varia conforme as condições da terra, como capacidade produtiva, recursos hídricos e características geofísicas. Desta forma, na prática, a demarcação deixou de ter natureza expropriatória e transformou-se numa forma de desapropriação nos casos de ocupação de boa-fé, excluindo-se grileiros, madeireiros e garimpeiros de má-fé. Idêntico raciocínio é aplicado para os casos de titulação de terras quilombolas.
O terceiro caso é a desapropriação para reforma agrária, regulada pela Lei nº 8.629/1993, que regula a função social da terra prevista no art. 184 da Constituição Federal. O art. 2º, §6º, da referida lei dispõe que o imóvel invadido não será desapropriado para reforma agrária no período de dois anos. Já o art. 6º trata dos requisitos para qualificar a terra como improdutiva, prevendo um grau mínimo de utilização da terra de 80% e um grau mínimo de eficiência na exploração da terra de 100%, devendo os respectivo laudo ser atualizado a cada cinco anos, conforme dispositivo incluído pela Lei nº 14.757/2023. A Lei nº 13.465/2017 igualmente realizou modificações na lei de regência da reforma agrária, alterando os critérios de seleção das famílias beneficiárias e a regularização da posse de lote em projetos de assentamentos ocupados sem autorização. A reforma agrária é regida subsidiariamente pela Lei nº 4.505/1964 (Estatuto da Terra) e pelo Decreto-Lei 3.365/1941 (desapropriação).
A indenização na desapropriação para reforma agrária segue a regra do art. 184 da CF, com pagamento pela terra nua e benfeitorias voluptuárias em títulos da dívida agrária (TDA) e das benfeitorias úteis e necessárias em dinheiro. Esses conceitos são extraídos do direito agrário, e não coincidem necessariamente com as definições do direito civil e tributário. De fato, para o direito civil, a plantação na terra é classificada como acessão, e não benfeitoria, conforme delineado no art. 1.255 do Código Civil. Da mesma forma, tratores e máquinas agrícolas são classificadas como pertenças, e não benfeitorias. Por fim, os animais de criação, como gado e ovelhas, são classificados como semoventes. De outro giro, o Decreto 84.685/1980, que regulamentou a Lei nº 6.746/1979, que rege o Imposto Territorial Rural (ITR), elenca as benfeitorias no parágrafo 1º do art. 6º: “casas de moradia, galpões, valas, silos, currais, açudes, estradas e edificações”, não tendo identidade conceitual com as benfeitorias oriundas do direito civil.
Na indenização da terra nua, seja na desapropriação de terras quilombolas, demarcação de terras indígenas ou desapropriação para reforma agrária, a indenização deve seguir o critério da contemporaneidade, conforme definido pela jurisprudência dos tribunais federais. Isso porque esses processos costumam perdurar por anos, podendo decorrer valorização externa, vinculada ao mercado agropecuário da região onde a terra encontra-se encravada. Com isso, o entendimento dos tribunais federais se firmou pela validade dos laudos de avaliação contemporâneos ao decreto de desapropriação ou demarcação, desconsiderando assim a valorização posterior da região. Na Lei Complementar nº 76/1993, que rege o processo de desapropriação para reforma agrária, o art. 5º, IV, "c" dispõe que a petição inicial deve vir acompanhada dos laudos de avaliação, discriminando os valores da terra nua e das benfeitorias indenizáveis. Além disso, o art. 12, §1º, da mesma lei permite ao juiz considerar, além dos laudos de avaliação, a pesquisa de mercado, a fim de aferir o valor real da propriedade.
O Decreto-Lei nº 3.365/1941 é aplicado subsidiariamente na desapropriação para reforma agrária, na titulação de terras quilombolas e na demarcação de terras indígenas. O art. 4º-A do referido decreto, que tem status de lei ordinária, incluído pela Lei nº 14.620/2023, dispõe que se o imóvel desapropriado for ocupado por população de baixa renda, as famílias devem ser realocadas, procedendo-se à indenização das benfeitorias. É uma disposição semelhante ao reassentamento e realocação dos ocupantes nos casos de terras indígenas e quilombolas. A Lei nº 14.620/2023 também limitou a indenização, prevendo juros compensatórios de 6% a.a., vedando ainda sua incidência em casos de descumprimento da função social da propriedade previstos no art. 182, §4º, III e art. 184 da CF, o que inclui a reforma agrária. O mesmo dispositivo também veda a aplicação de juros compostos e limita os juros moratórios em 6% a.a.
A Lei nº 14.620/2023, ao limitar os juros remuneratórios na desapropriação em 6% a.a., encerrou um embate doutrinário e jurisprudencial que se arrastava por décadas. Importante pontuar que a incidência de juros compensatórios e moratórios na mesma indenização não caracteriza anatocismo, uma vez que se aplicam a fases distintas. Segundo os temas 210 e 211 do STJ, os juros compensatórios incidem até a data da expedição do precatório original, enquanto os juros moratórios somente incidirão se o precatório expedido não for pago no prazo indicado no art. 100, §5º, da CF, com redação dada pela EC 114/2021, que alterou a data de apresentação de 01 de julho para 02 de abril.
Desta forma, é possível que haja a incidência de juros remuneratórios de forma simples (sem capitalização) de 6% a.a., e posteriormente, a dívida seja recalculada com incidência de juros moratórios simples de 6% a.a. Contudo, no caso de indenização para reforma agrária, vinculada à função social da propriedade, somente se aplicam os juros moratórios. Essa limitação se justifica pois a desapropriação nestes casos se fundamenta na improdutividade da terra, não havendo o que remunerar, mas apenas indenizar.
Comparando o procedimento que se delineou no ordenamento pátrio nos últimos anos, na desapropriação para reforma agrária, demarcação de terras indígenas e titulação de terras quilombolas, com indenização em todos os casos de boa-fé, tanto da terra nua quanto das benfeitorias, com o procedimento atualmente adotado pela África do Sul, percebe-se que este país encampou um modelo inconstitucional, ferindo direitos humanos a pretexto de realizar a reforma agrária, assemelhando-se às famigeradas expropriações coletivas de terras nos países do sudeste asiático décadas atrás.
É imperioso alavancar a produtividade da reforma agrária no Brasil. Não é demais rememorar que a desapropriação por interesse social se fundamenta na improdutividade da terra, retirando-a do atual proprietário e destinando-a aos assentados. Contudo, a função social da terra que serviu de lastro à desapropriação entra em completa contradição quando a terra passa a ter uma produtividade inferior ao padrão que existia quando foi desapropriada.
De fato, já foram destinados 85 milhões de hectares no Brasil para reforma agrária, área superior aos 70 milhões de hectares de área produtiva do país. A baixa produtividade dos assentamentos está vinculada à infraestrutura deficiente, falta de acesso ao crédito, ausência de assistência técnica e localização distante dos centros comerciais consumidores, que dificultam a comercialização e o acesso a insumos essenciais para produção. Essa realidade faz com que a quase totalidade dos assentados da reforma agrária fiquem dependentes de programas sociais do poder público para sobreviver, impactando na produtividade da agricultura familiar. O mesmo dilema atinge as terras indígenas e quilombolas, que possuem amarras legais vinculadas a aspectos culturais para produzir e comercializar.
O tema desperta a atenção de administrativistas e constitucionalistas. Para um rápido vislumbre, confira-se o escólio de José dos Santos Carvalho Filho sobre o direito de propriedade:
“A Constituição é peremptória no que se aplica ao reconhecimento do direito: ‘É garantido o direito de propriedade’ (art. 5º, XXII). O mandamento indica que o legislador não pode erradicar esse direito do ordenamento jurídico positivo. Pode, sim, definir-lhe os contornos e fixar-lhe as limitações, mas nunca deixará o direito de figurar como objeto da tutela jurídica.” (Manual de Direito Administrativo, editora Atlas, 28º edição, 2015, p. 813).
Mais à frente, o autor discorre sobre as intervenções do Estado nesse direito fundamental:
“Essa intervenção, tornamos a frisar, pode ser categorizada em dois grupos: de um lado, a intervenção restritiva, através da qual o Poder Público retira algumas das faculdades relacionadas ao domínio, embora salvaguarde a propriedade em favor do dono; de outro, uma intervenção supressiva, que gera a transferência da propriedade do seu dono para o Estado, implicando, por conseguinte, a perda da propriedade…O interesse social consiste nessas hipóteses em que mais se realça a função social da propriedade. O Poder Público, nesses casos, tem preponderantemente o objetivo de neutralizar de alguma forma as desigualdades coletivas. O exemplo mais marcante é a reforma agrária, ou o assentamento de colonos…Apesar de serem duas as suposições expropriatórias, cabe desde logo registrar um aspecto que nos parece importante. As expressões utilidade pública e interesse social espelham conceitos jurídicos indeterminados, porque despojados de soluções que permitem identificá-los a priori. Em virtude desse fato, as hipóteses de utilidade pública e as de interesse social serão ex vi legis, vale dizer, serão aquelas que as respectivas leis consideram como ostentando um ou outro dos pressupostos constitucionais. (Manual de Direito Administrativo, editora Atlas, 28º edição, 2015, p. 856).
Discorrendo sobre o cumprimento da função social, o administrativista pondera:
“Isto só se considera cumprido nos casos do art. 186 da CF, de onde se infere, a contrario sensu, que fora deles a propriedade é passível de desapropriação. O expropriante nessa modalidade é exclusivamente a União Federal, e a indenização, da mesma forma que sucede com a modalidade anterior, será paga através de títulos, e não em dinheiro. A disciplina básica desse tipo de desapropriação é que se inscreve entre as artes. 184 e 191 da CF, e supera em muito a disciplina que vigorava anteriormente…À guisa de esclarecimento, contudo, convém registrar que não há óbice a que o Estado-membro promova a desapropriação de imóveis rurais por interesse social. Não pode ser feito para fins de reforma agrária, esta sim, reservada à União Federal. Inaplicável, portanto, o preceito do art. 184 da CF. Necessitando do imóvel, o Estado deverá promover a desapropriação ordinária, assinando-lhe as obrigações de proceder à indenização prévia, justa e em dinheiro. Há, entretanto, algumas situações que tornam impossível a desapropriação. Pode-se agrupar tais situações em duas categorias: as impossibilidades jurídicas e as impossibilidades materiais. As impossibilidades jurídicas são aquelas que se referem a bens que a própria lei considera insuscetíveis de determinado tipo de desapropriação. Como exemplo, temos uma propriedade produtiva, que não pode ser objeto de desapropriação para fins de reforma agrária, como emana do art. 185, II, da CF (embora possa ser para desapropriação de outra natureza). Por outro lado, impossibilidades materiais são aquelas pelas quais alguns bens, por sua própria natureza, se tornam inviáveis de serem desapropriados. São exemplos dessas impossibilidades a moeda corrente, porque é ela o próprio meio em que se materializa a indenização; os direitos personalíssimos, como a honra, a liberdade, a cidadania; e as pessoas físicas ou jurídicas, porque são sujeitos, e não objeto de direitos…Podemos dividir o procedimento em duas grandes fases: a fase declaratória e a fase executória. Na fase declaratória, o Poder Público manifesta sua vontade na futura desapropriação; na fase executória, adotam-se as providências para consumar a transferência do bem.”
Logo adiante, Carvalho Filho discorre sobre o instituto do interesse social:
“Os casos que a lei considera como de interesse social estão no art. 2º da Lei nº 4.132/62. A maioria deles envolve maior interesse do Estado em distribuir os bens desapropriados do que em deixá-los permanecer em seu patrimônio. Outro exemplo é a hipótese de desapropriação para abastecimento da população, prevista na Lei Delegada nº 4, de 26.9.1962: nesse caso, o Poder Público desapropria os bens porque pode estar tendo sonegação especulativa por parte dos fornecedores; ultimada a desapropriação, contudo, os bens são distribuídos à população.
Por fim, o autor pontua sobre a desapropriação-confisco:
“Esta forma expropriatória, como vimos, tem previsão no art. 243 da CF e não rende ensejo à indenização. Nesse critério está expresso que as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país desapropriadas pelo fato de haver cultivo ilegal de plantas trópicas ou exploração de trabalho escravo psicopata são específicas ‘à reforma agrária e aos programas de habitação popular’. Nota-se, pois, que, de início, os bens desapropriados serão destinados, provisoriamente, ao patrimônio da entidade expropriante, e só depois transferidos a terceiros em decorrência de reforma agrária ou programa de habitação popular.” (Manual de Direito Administrativo, editora Atlas, 28º edição, 2015, p. 869).
De outro giro, no magistério de Marcelo Pacheco Machado:
“A técnica processual tenta equalizar esses problemas, e o fez mais efusivamente nos últimos anos, com as leis de reforma ao Decreto-lei 3.365/1941, responsáveis por trazer instrumentos modernos de desapropriação, como o fomento das técnicas de resolução extrajudicial de conflitos, o julgamento parcial de mérito, a ampliação das hipóteses de levantamento de valores no curso do processo, assim como uma melhor delimitação dos efeitos da sentença…Diferentemente das demais hipóteses de restrição ao direito de propriedade, pautadas no interesse público, a desapropriação tem escopo muito mais intenso, afetando o caráter perpétuo do direito de propriedade. Não apenas restrinja algumas das faculdades do art. 1.228 do Código Civil, mas elimina o domínio da coisa, para criar outro, público, em seu lugar…A doutrina mais tradicional ressalta que a desapropriação seria o procedimento pelo qual o Poder Público ‘despoja compulsoriamente alguém de uma propriedade e adquire, mediante indenização, fundado em um interesse público’. A noção de despojamento e aquisição, todavia, está mais próxima de uma noção teórica de desapropriação, a qual não considera as características de nosso direito positivo. E isto porque, segundo nossa lei, a desapropriação não representa forma de despojo e aquisição, transferência ou alienação de propriedade. Diferentemente, a desapropriação é um ato pelo qual a propriedade é extinta, perdendo todas suas características prévias, para o surgimento de novo direito, o qual não se contamina por eventuais ônus ou restrições existentes previamente sobre o bem…O procedimento é uma condição de validade do ato de desapropriação, a lei e a Constituição exigem que a expropriação coercitiva, ou mesmo consensual, da propriedade privada, siga o devido processo legal, concebido especificamente para assegurar ao cidadão as condicionantes impostas para que o Estado possa restringir a propriedade privada (CF, art. 37). A expropriação não é o procedimento, mas o ato culminante do procedimento, apto a gerar o efeito estipulado pela lei: perda da propriedade privada e constituição da propriedade pública…A desapropriação por interesse social, diferentemente, segue requisitos distintos. Geralmente, apenas a administração pública no âmbito federal pode realizar atos de desapropriação pautados no interesse social, especialmente nos casos de reforma agrária. O escopo é a função social da propriedade, eleita pela Constituição como meio de restringir a liberdade do indivíduo no exercício das faculdades inerentes ao direito de propriedade (CF, arts. 5º, XXIII, e 170, III). (Desapropriação e Técnica Processual, editora Foco, 2024).
Discorrendo sobre os requisitos para desapropriação para reforma agrária, o mesmo autor pondera:
“Nesta hipótese, a configuração do interesse público para a desapropriação exige situação muito específica, devendo o Estado demonstrar que a propriedade objeto da desapropriação não atende à ‘função social da propriedade’. A função social da propriedade é norma cogente, a limitar o exercício deste direito por seu titular, mediante a "imposição de comportamentos positivos" relativamente à destinação do bem, a qual deve estar de acordo com certos objetivos previamente estipulados pela ordem jurídica. O art. 9º da Lei 8.629/1993 especifica as exigências a serem atendidas, tais como o aproveitamento ‘racional e adequado da terra’, a adequada utilização dos recursos naturais e o respeito ao meio ambiente, o respeito às normas trabalhistas e o comprometimento com o bem-estar dos proprietários e trabalhadores. A desapropriação por desatendimento à função social da propriedade é consequência jurídica (sanção) delimitada pelo não atendimento desses deveres, inerentes ao direito de propriedade. Exatamente por este motivo, a Constituição prevê um regramento especial para tanto: o ente expropriante tem o dever de demonstrar a situação especial que legitima a extinção do direito de propriedade…Existe uma gradação quanto às exigências prévias para a desapropriação e aos meios de compensação correspondentes. Na desapropriação por utilidade pública, as hipóteses que a permitem são mais abertas e menos exigentes, de modo que a compensação ao particular deve ser mais efetiva, mediante indenização prévia e justa e em dinheiro. Nos casos de desapropriação por interesse social, a admissibilidade é mais restrita, cabendo ao Poder Público demonstrar infrações do particular quanto ao exercício do direito de propriedade, por consequência, a compensação a ser proporcionada é menos efetiva, sendo autorizado o pagamento de indenização por meio de título de dívida pública, com menor liquidez e efetividade.” (Desapropriação e Técnica Processual, editora Foco, 2024).
Já na visão do constitucionalista Clever Vasconcelos:
“A Constituição Federal estampou a garantia da propriedade logo na cabeça de seu art. 5º. Trata-se, aliás, do único direito contemplado no caput do dispositivo referenciado que possui notação econômica. Disso, várias consequências podem ser mencionadas, entre elas, que a intervenção do direito de propriedade só será constitucionalmente permitida se encontrar sustentação na norma constitucional para tanto. Com efeito, esse direito não possui caráter absoluto, visto que a propriedade poderá ser desapropriada por necessidade ou utilidade pública e, desde que esteja cumprido a sua função social, será paga justa e prévia indenização em dinheiro (art. 5º, XXIV). Por outro lado, caso a propriedade não esteja atendendo a sua função social, poderá haver a chamada desapropriação-sanção pelo Município com pagamentos em títulos da dívida pública…O § 1º do art. 5º da Lei n. 8.629/93, dispositivo que prevê a indenização em dinheiro para as benfeitorias úteis e necessárias, chegou a ser suspenso por liminar do Supremo Tribunal Federal (ADI 1.178-1). A liminar foi cassada e não se conheceu da ação. Assim, ao menos por ora, o dispositivo resta íntegro…O conceito de reforma agrária consta do art. 16 do Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/64), que assim dispõe: ‘A Reforma Agrária visa a estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do País, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio'. Os dispositivos indicam que a propriedade rural é um bem de produção, e não apenas um bem patrimonial. Contudo, conforme ensina José Afonso da Silva, ‘o artigo 185 da Constituição Federal contém uma exceção à desapropriação especial prevista no artigo 184, e não ao poder geral de desapropriação por interesse social do artigo 5º, XXIV. Quer dizer: desde que se pague a indenização nos termos do artigo 5º, XXIV (justa e prévia, em dinheiro), qualquer imóvel rural pode ser desapropriado por interesse social para fins de propriedade fundiária’...Para alguns autores, a colonização distingue-se da reforma agrária porque ocorre sobre as públicas, estando aqui incluídas as devolutas, e, além disso, não depende de desapropriação. Terras devolutas são aquelas que pertencem ao domínio público, mas que não se acham utilizadas pelo ente a que pertencem, nem destinadas a qualquer atividade administrativa, sendo passíveis de transferência aos particulares (arts. 20, II, e 26, IV, CF). Classificam-se entre bens dominicais (art. 99, III, CC)...As terras devolutas que não estão especificadas no inciso II do art. 20 da Constituição Federal (as especificadas são da União) pertencem aos Estados nas quais se localizam, conforme estabelece o inciso IV do art. 26 da Constituição Federal. Pela ‘regularização’ e pela ‘legitimação da posse’, a terra devoluta pode ser transferida para um particular (art. 188, CF; arts. 11 e 97 a da Lei n. 4.504/64; e Lei n. 6.383/76, respectivamente). Ambas são espécies de transferência do domínio do patrimônio público para o patrimônio particular.” (Curso de Direito Constitucional, editora Revista dos Tribunais, 9° edição, 2024, p. 772).
Em conclusão, percebe-se dos aportes doutrinários que o interesse social apto a caracterizar a função social da terra não se limita à reforma agrária. Mesmo a indenização pela desapropriação tem um caráter limitador nestes casos, já que não é paga em dinheiro, mas em títulos da dívida agrária, resgatáveis em até 20 anos, além de não incidir juros compensatórios. Nos casos de confisco, em que a função social se transmuda em desvio de finalidade do direito de propriedade, haverá destinação preferencial da terra para a reforma agrária. E nos casos limítrofes, de reconhecimento de terras tradicionais, como a demarcação de terras indígenas e a titulação de terras quilombolas, os ocupantes também terão preferência para realocação e reassentamento. Avulta, contudo, uma contradição inescapável no instituto da função social para reforma agrária.
Essa contradição, que usa a função social da terra para justificar a desapropriação, e em seguida rebaixa ainda mais a função social da terra desapropriada, tornando-a mais improdutiva, é um aspecto que deve ser considerado pelo poder legislativo em futuras alterações legais, tendo contornos próprios da tredestinação. Além disso, os severos critérios de produtividade exigidos pela lei, com elevados graus de utilização e eficiência do uso da terra, também devem ser aplicados à sua posterior utilização após a desapropriação, sob pena de configurar nulidade do procedimento.
De fato, em tempos de colheitadeiras movidas por avançados algoritmos de inteligência artificial, não é admissível a desapropriação de terras para reforma agrária com uma produtividade tão baixa. Afinal, a posse de terras na atualidade não confere nenhum status social ou benefício econômico, mas sim o fluxo de produção agrícola e pecuária. Essa realidade pode ser contornada com a vinculação legal do poder expropriante, no caso a União, em manter um elevado nível de produtividade em favor dos assentados da reforma agrária, tal como foi exigido do proprietário expropriado.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. A Função Social da Terra nas Modernas Reformas Fundiárias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 mar 2025, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/68041/a-funo-social-da-terra-nas-modernas-reformas-fundirias. Acesso em: 13 mar 2025.
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