RESUMO: A Lei nº 13.964/2019, conhecida como “Pacote Anticrime”, criou o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), que permite a extinção da punibilidade do acusado, sem persecução judicial, desde que ele confesse formalmente o crime. No entanto, essa exigência é considerada por parte da doutrina como uma violação de direitos fundamentais. Este estudo, de caráter qualitativo, bibliográfico e doutrinário, tem como objetivo analisar os elementos do ANPP, avaliando a conformidade de seus requisitos com a Constituição Federal e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, para ponderar sobre sua possível inconstitucionalidade ou inconvencionalidade.
Palavras-chave: ANPP. Constitucionalidade. Convencionalidade. Confissão. Processo penal.
ABSTRACT: Law No. 13,964/2019, known as the “Anti-Crime Package”, created the Non-Criminal Prosecution Agreement (ANPP), which allows the defendant to be extinguished from punishment without judicial prosecution, provided that he or she formally confesses to the crime. However, this requirement is considered by some doctrines to be a violation of fundamental rights. This study, of a qualitative, bibliographical and doctrinal nature, aims to analyze the elements of the ANPP, assessing the compliance of its requirements with the Federal Constitution and International Human Rights Treaties, in order to consider its possible unconstitutionality or unconventionality.
Keywords: NCPA. Constitutionality. Conventionality. Confession. Criminal proceedings.
1.INTRODUÇÃO
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) consiste em um instrumento jurídico legalmente previsto no ordenamento jurídico pátrio, originado por meio da Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), posteriormente alterada pela Resolução 183/2018, do mesmo Conselho (PACELLI, 2020).
Com a entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, denominada “Pacote Anticrime”, a pormenorização funcional do ANPP concretizou-se por meio do procedimento instrucional descrito a seguir: após a conclusão do procedimento investigatório, em regra o inquérito policial, caberá ao Ministério Público (MP), titular da ação penal, oferecer denúncia, requerer novas diligências ou ordenar o arquivamento. Não sendo o caso de arquivamento, o MP pode, ainda, propor o ANPP (PACELLI, 2020). Cabe à doutrina e à jurisprudência determinarem se o ANPP se trata de um direito subjetivo do acusado ou uma discricionariedade do parquet, o que influencia diretamente na obrigatoriedade de sua oferta.
É importante a correta caracterização do referido acordo no que tange à sua implementação jurídico-pragmática e, consequentemente, a avaliação da adequação de suas peculiaridades normativas e de sua validade formal e material, devendo estar consonantemente congruente, tanto na esfera constitucional quanto em relação às convenções internacionais de direitos humanos do qual o Brasil é signatário.
Conforme será apresentado ao longo deste estudo, um dos preceitos procedimentais do ANPP consiste na exigibilidade de confissão formal obrigatória por parte do indivíduo que pleiteia sua participação na condição de beneficiário desse negócio jurídico processual. Tal confissão possibilita a fruição dos benefícios previstos no acordo, incluindo a extinção da punibilidade, o que significa que não ocorrerá persecução penal na esfera judicial, e o fato delituoso não constará em sua ficha criminal para fins de reincidência.
Enfatiza-se que há discrepâncias interpretativas entre os doutrinadores que abordam a temática. Parte da doutrina entende que a exigência da confissão formal, no contexto do ANPP, não se insere no campo de responsabilidade do processo judicial, caracterizando-se como um procedimento de natureza extrajudicial, uma vez que não ocorre sob a supervisão de um juiz togado. Sob essa ótica, o requisito confessional do acordo seria plenamente constitucional.
Outra parcela da doutrina, entretanto, sustenta entendimento oposto, argumentando que a confissão exigida na formalização do ANPP configura uma violação de direitos e garantias fundamentais constitucionalmente previstas. Nesse contexto, discute-se a impossibilidade de aproveitamento da confissão e de seus efeitos para outras finalidades, sob pena de transgressão ao sistema processual acusatório e aos princípios da boa-fé objetiva e processual, do contraditório, da ampla defesa e do princípio nemo tenetur se detegere, previsto no artigo 8º, parágrafo 2º, alínea “g”, do Pacto de San José da Costa Rica.
No intuito analisar os pormenores procedimentais que estão abarcados no ANPP, bem como acerca das particularidades validadoras de tal instituto dentro do ordenamento jurídico vigente, este estudo realiza uma revisão bibliográfica documental pautada em uma análise qualitativa, doutrinária e jurisprudencial. Dessa forma, pondera-se as características jurídicas pertinentes ao instituto em questão, destacando, sob abordagem descritiva, sua estrutura funcional e sua compatibilidade – ou não – com a Constituição Federal e com os Tratados de Direitos Humanos ratificados e incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro.
De maneira objetiva, considerando as discussões interpretativas que permeiam o tema, este estudo justifica-se pela relevância da análise de uma temática ainda pouco explorada no meio jurídico e acadêmico. Isso se deve ao fato de que o debate jurisprudencial e doutrinário acerca da inconstitucionalidade e da inconvencionalidade do ANPP emergiu apenas com a sanção da Lei nº 13.964/2019.
Devido às divergências doutrinárias acerca da compatibilidade do art. 28-A do Pacote Anticrime com a Carta Magna brasileira e com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, este trabalho tem o intuito de apresentar o embasamento jurídico e as motivações teórico-pragmáticas que consubstanciam a ideia de alguns dos elementos legais que constituem o ANPP, sobretudo a utilização condicional da confissão como requisito para sua formalização, representam, de fato, uma violação ao ordenamento máximo brasileiro e aos direitos humanos previstos no Pacto de San José da Costa Rica.
Sob tal panorama contextual, objetiva-se apresentar, de forma ampla e crítica, a discussão jurídico-doutrinária retromencionada, a fim de instruir análises interpretativas e para o enriquecimento do arcabouço teórico-científico e jurídico, especialmente no que concerne à análise da eventual inconstitucionalidade e inconvencionalidade do ANPP.
2.1 Análise da adequação funcional do ANPP
O art. 28-A da Lei nº 13.964/2019 traz em sua redação as hipóteses de incidência (ou requisitos para a formalização) do ANPP. Observa-se as características imprescindíveis para que o Acordo seja proposto: o processo não deve ser arquivado, devendo ser observada a viabilidade acusatória, que corresponde às condições de admissibilidade da acusação; o indivíduo imputado deve confessar, de modo formal e circunstancial, a prática do crime, havendo a possibilidade, tanto na investigação quanto na realização do próprio acordo; os crimes devem ter pena mínima inferior a 4 anos e não devem ser cometidos com violência ou grave ameaça. No tocante à aferição da pena, conforme o §1º do art. 28-A, leva-se em consideração as causas de aumento - devendo incidir no mínimo - e de redução - devendo incidir no máximo -, demonstrando que o que se busca com o ANPP é a pena mínima cominada (LOPES JR, 2020).
A legislação supracitada ainda apresenta, nos incisos do §2º, as hipóteses de inaplicabilidade do ANPP, considerando-se como elemento causal impossibilitador do Acordo, de modo que apenas uma delas já é suficiente para inviabilizar o estabelecimento da relação consensual penal. Neste sentido, não há aplicabilidade de tal benefício caso seja possível a ocorrência legal de transação penal de responsabilidade dos Juizados Especiais Criminais. Ele também não se aplica em situações de reincidência por parte do indivíduo sob investigação ou caso haja provas que apontem para conduta criminal habitual, reiterada ou profissional. Se, nos últimos 5 (cinco) anos, o agente for beneficiado pelo ANPP ou houver suspensão do processo, ele igualmente não poderá fazer uso deste instrumento. Também fica inviabilizado o uso de tal dispositivo nas situações de caracterização de crimes, em benefício do agressor, relacionados à violência de gênero ou naqueles vinculados à violência doméstica ou familiar (LOPES JR, 2020).
Ainda no artigo 28-A, os incisos I a IV trazem as condições as quais o investigado poderá ser submetido caso realizado o Acordo, podendo elas sofrer ajustes cumulativa ou alternadamente. A primeira delas consiste na reparação do dano ou restituição da coisa, ressalvados os casos de impossibilidade. Deve ocorrer também enquanto condição sine qua non a renúncia de forma voluntária a bens e direitos caracterizados como instrumentos, produto ou proveito do crime, por meio de indicação realizada pelo Ministério Público. Outra condição é a prestação de serviços comunitários ou destinados às entidades públicas, em localidade previamente definida pelo juízo da execução, durante um período equivalente à pena mínima cominada ao delito e diminuída de um a dois terços. No intuito de salvaguardar, de forma preferencial, bens jurídicos equivalentes àqueles que foram alvos de lesão do delito ocorrido e por meio de indicação do juízo da execução, é previsto também o pagamento de prestação pecuniária a entes públicos ou sociais, a ser estipulada nos termos do Código de Processo Penal. É necessário, ainda, que sejam cumpridas, em contexto de proporcionalidade e compatibilidade com a infração penal, desde que por período de tempo determinado, outros eventuais elementos condicionantes determinados pelo Ministério Público. (LOPES JR, 2020).
Segundo Lopes Jr (2020), o ANPP deve ser proposto antes do recebimento da denúncia e deve ser homologado pelo juiz; também podendo ser proposto na audiência de custódia (a depender da especificidade do caso). O acordo pode ser oferecido nos processos em curso, já que possui natureza jurídica de norma mista (norma material e processual), retroagindo para beneficiar o réu.
Nesse sentido, manifestou-se recentemente o Supremo Tribunal Federal (2020), afirmando que, a lei nº 13.964/2019, no que diz respeito ao ANPP, possui natureza de caráter híbrido, permitindo, consonantemente, que haja o tempus regit actum e que a lei penal possa retroagir quando benéfica ao acusado – desde que o recebimento da denúncia ainda não tenha sido realizado. Isso se dá pelo fato de que esse tipo de acordo se encerra na fase pré-processual, porque os atos de ofertar e receber a denúncia são deflagados principalmente quando o acordo for recusado, descumprido ou não homologado; quando a denúncia é recebida, os atos concretizados de acordo com a lei vigente ganham validade.
O ANPP deve ser firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor, e sua formalização documental deve ser realizada por escrito, para que ele seja judicialmente homologado em audiência, na qual o acordo deve ter caráter voluntário e legal comprovado (LOPES JR, 2020).
Em caso de homologação do Acordo, o juiz devolve os autos ao MP para que o mesmo ajuíze ação de cumprimento no juízo das execuções penais, de acordo com os termos do § 6º da lei nº 13.964/2019. Nos casos em que o juiz considerar a existência de inadequabilidade, insuficiência ou abuso nas condições do acordo, ele deverá devolver os autos ao MP para que a proposta seja reformulada, devendo haver aceite por parte do investigado e de seu defensor, conforme o §5º da referida lei. Segundo os §7º e 8º da mesma, o juiz pode não homologar o acordo por entender que ele não é contextualmente cabível em determinada situação, devendo, nestas circunstâncias, devolver os autos para o MP para que este ofereça denúncia, faça as devidas adequações na proposta ou requeira novas diligências (LOPES JR, 2020)
Aury Lopes Jr. (2020) aponta a problemática nessa medida, que pode representar uma inquisitória atuação judicial em uma esfera de negociação exclusiva das partes. Se o juiz devolver os autos ao MP, este pode promover o arquivamento e, consequentemente, não oferecer a denúncia.
Destaca-se que, diante da ausência de homologação do Acordo pela Autoridade Judicial seguida pela inércia do parquet em oferecer denúncia, novo Acordo ou prosseguir com as investigações, a vítima pode se valer da ação penal privada subsidiária da pública.
No que concerne à vítima, ela não participa da formulação do acordo, porém toma ciência deste por meio de intimação, bem como do eventual descumprimento do acordo. Mesmo que a vítima não possa ter uma maior participação no acordo, sua presença neste é importante para a delimitação das condições a serem cumpridas para a sua validação e concretização jurídica. Mesmo que não previsto legalmente, Aury Lopes Jr. (2020) discorre que seria coerente intimar a vítima em caso de não homologação, pois, dependendo da situação, ela poderá propor ação penal privada subsidiária da pública.
Nos casos em que houver o descumprimento dos requisitos do Acordo, os §§ 10 e 11 da Lei nº 13.964/2019 determinam que deve haver comunicação ao juízo, por parte do MP, no intuito de que seja rescindido e haja, posteriormente, oferecimento de denúncia, podendo o MP não oferecer a suspensão condicional do processo, sob a justificativa do descumprimento do Acordo.
Aury Lopes Jr. (2020) dá prosseguimento ao procedimento do ANPP, explanando que, após o MP informar ao juiz acerca do seu descumprimento, este deverá realizar a designação de audiência de caráter oral e público, para que seja exercido o direito ao contraditório. Nesse momento, a fim de constatar a veracidade e as justificativas para o descumprimento do Acordo, o imputado deve ser ouvido pelo juiz, sendo ponderada a proporcionalidade do descumprimento em relação às consequências deste.
Por fim, ao ser cumprido integralmente o Acordo, sendo preenchido os requisitos legais, o juiz declarará extinta a punibilidade, conforme o §13 da Lei aqui analisada, além de não constar certidão de antecedentes criminais com exceção apenas para o fim não ocorrer novo Acordo em prazo de 5 anos (III, §2º) conforme o §12.
Com a inclusão da Lei 13.964/2019, o denominado “Pacote Anticrime”, o sistema jurídico brasileiro passou a adotar expressamente o modelo acusatório, conforme artigo 3º-A do Código de Processo Penal.
Gustavo Badaró (2003) entende que, sobretudo por conta da publicização do processo, o sistema acusatório deu início a uma estrutura organizacional na qual existe uma nítida separação funcional entre acusação, defesa e julgador. Tal estrutura tem como elemento basilar a distinção dos sujeitos no processo penal, ainda que o sistema judiciário brasileiro misture e ofusque os limites de atuação de cada indivíduo no processo.
O sistema inquisitório, por outro viés, trata de juntar as funções de acusação e julgamento em um mesmo sujeito-agente, sendo contrário, portanto, aos ideais de garantias constitucionais que determinam um limite para o excesso de poder do Estado contra o acusado. Pode-se observar como objetivo primordial em tal modelo o poder de punição estatal dentro do âmbito processual penal (COSTA, 2019).
2.2 Análise comparativa entre o Plea Bargaining norte americano e o ANPP
O sistema jurídico brasileiro encontra-se edificado sob a égide da cultura do litígio, com uma dinâmica organizacional que termina por estabelecer e estimular um binarismo processual conflituoso entre MP e defesa, ficando, por fim, a cargo do magistrado proferir a decisão. É fato que o direito deve se adequar às diversas mutações de relações sociais, especialmente para atender às demandas dos tutelados. (VIANA, 2019)
Dessa forma, a Justiça Consensual progride e consolida-se amplamente no Brasil. De acordo com Alves (2018), Justiça Consensual Penal consiste em uma macroestrutura que engloba três subtipos: Justiça Restaurativa, Justiça Colaborativa e Justiça Negociada.
Cardoso Neto (2018) compreende a Justiça Restaurativa como uma “tentativa de responder ao fenômeno criminal de forma diferente daquela praticada pelo sistema de jurisdição penal tradicional”. Assim, observa-se uma nova vertente interpretativa sobre os conceitos de crime e de justiça, abordando tais institutos sob uma nova ótica.
No que diz respeito à Justiça Colaborativa, que ganhou mais destaque após os acordos de delação premiada firmados na Operação Lava Jato, consiste em uma ferramenta investigativa especial, através da qual o coautor e/ou partícipe da infração penal confessa sua participação no delito e presta, aos órgãos incumbidos da persecução penal, informações necessárias à concretização dos objetivos definidos em lei, e recebe, em troca, benefícios legais (LIMA, 2017).
A Justiça Penal Negociada, por sua vez, consagrada no ordenamento jurídico através da Lei dos Juizados Especiais, instituiu duas medidas despenalizadoras no processo penal. Uma delas é a transação penal, que consiste em aplicar imediatamente penas que impliquem em restrição de direitos ou multa - dependendo do contexto da proposta -, cabível às infrações de pequeno potencial ofensivo. A outra é a suspensão condicional do processo, cabível em casos de crimes cuja pena mínima seja igual ou menor a um ano. Para que o acusado faça jus a este benefício, é necessário que ele não tenha sido condenado por outro crime, não esteja respondendo processo judicial, bem como cumpra as outras condições para a autorização da suspensão condicional presente no art. 77 do CP. Tais requisitos necessários são a reparação do dano causado e a necessidade de permanência na comarca em que reside. O Juizado Especial Criminal é o responsável por conciliar, julgar e executar as infrações penais de baixo potencial ofensivo. (VIANA, 2019)
Os institutos supracitados desvinculam-se da ideia de justiça penal do conflito, frequentemente abordada no sistema processual penal. O ritual processual penal, influenciado pelo modelo norte americano de Justiça Negociada, conhecida como plea bargaining, consubstancia-se como uma distinta estrutura organizacional de acordos firmados entre acusação e defesa, na qual o acusado confessa (guilty plea) - ou deixa de contestar (plea of nolo contendere) -, de forma voluntária, a prática de uma determinada infração penal por ele cometida, em troca de benefício ofertado pela promotoria. Esses procedimentos são concretizados visando traçar novos caminhos processuais em relação à estruturação habitual de um processo criminal (VIANA, 2019).
A partir do momento em que o indivíduo aceita o acordo estabelecido no chamado guilty plea, ocorre o reconhecimento de culpa e ele deve cumprir sua pena, tendo como benefício a diminuição desta (VIANA, 2019).
Há uma consonância normativo-principiológica entre os elementos consensuais elencados na Lei dos Juizados Especiais e em alguns dos preceitos jurídicos do plea bargaining dos EUA, pois os dois modelos baseiam-se na implementação de uma estrutura funcional pautada na valorização dos acordos de compatibilidade firmados entre as partes, em detrimento da clássica organização na qual os entes judiciais representam autores de maior destaque no processo resolutivo das lides. Tal estruturação procedimental colabora na formação de um sistema penal de caráter exclusivamente acusatório. Em ambos os sistemas processuais, o indivíduo sobre quem recai a acusação pode receber como benefício um abrandamento de sua penalização, bem como impedir que haja continuidade processual de uma ação penal que, eventualmente, possa prejudicá-lo (DE SOUSA JÚNIOR; CARDOSO, 2017).
Apesar das semelhanças, as espécies consensuais elencadas na lei dos juizados especiais apresentam peculiaridades em relação ao plea of guilty e ao nolo nos contendere, de modo que os acordos figuram, no caso dos institutos estrangeiros, praticamente como decisões penais de caráter condenatório, diferindo apenas no âmbito cível. Já na composição processual penal brasileira quase não se verifica, com algumas poucas exceções normativas, equiparação procedimental dos referidos institutos em comparação com decisões penais de caráter condenatório. (GIACOMOLLI, VASCONCELOS, 2015).
Outra diferença relevante manifesta-se na medida em que o plea bargaining norte-americano fundamenta-se na discricionariedade dos órgãos acusatórios no processo penal (SANTOS, 2016) sem obrigação de firmar acordos com o acusado, ao passo que, no Brasil, o acusado pode efetivar negociações processuais, desde que cumpridos os requisitos legais. (GIACOMOLLI, VASCONCELOS, 2015).
Ressalta-se que a propositura de ANPP não se configura como uma das hipóteses plausíveis de arquivamento dos autos investigativos, de modo que, na investigação realizada pelo MP, este deve averiguar a presença de prova da materialidade e indícios suficientes de autoria. Assim, o acordo a ser estabelecido só deve ser proposto pelo MP quando estiver formada a opinio delicti, de forma que a descrição factual e a confissão realizada pelo investigado consistem apenas em um requisito para não implementação da denúncia tendo em vista que, em caso de divergência narrativa dos elementos factuais e autorais entre investigado e parquet, a via adversarial figura como a única cabível. Nesse contexto, a confissão presente no acordo não representa um componente probatório inicial de uma ação penal pública, que possa prejudicar o indivíduo acordante, pois a utilização inquisitória/acusatória de uma confissão inicialmente voltada aos objetivos consensuais do acordo poderia ser entendida como uma violação ao princípio geral do direito venire contra factum proprium (vedação do comportamento contraditório) (MESSIAS DOS SANTOS, 2019).
É importante ressaltar, ainda, que o plea bargaining é tido apenas uma modelo embasador do ANPP do Brasil, e não deve, assim, haver confusão entre eles, pois, diferentemente do Acordo brasileiro, a estrutura do Acordo norte americano é dotado de coercitividade, consubstanciando-se no decorrer de um processo penal, sob validação do Estado Juiz, por meio de uma sentença criminal. Em síntese, o ANPP preconiza evitar-se que o caso seja levado às vias judiciais, não representando, então, meio substituto ao processo penal. O seguimento se dá por via extrajudicial, desde que o acusado cumpra os requisitos do pacto firmado; caso eles não sejam cumpridos, a denúncia deverá ser ajuizada pelo MP, sem a necessidade de executarem-se as obrigações acertadas no acordo (VIANA, 2019).
2.3 ANPP sob a perspectiva histórica do direito ao silêncio
As raízes da garantia jurídica contra a autoincriminação são amplas, derivando do jus commune da Idade Média. No direito contemporâneo, encontra respaldo tanto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos quanto na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, tendo sido posteriormente incorporada à legislação e à jurisprudência brasileira. No âmbito internacional, o direito ao silêncio é consagrado pela máxima “nemo tenetur se detegere”, derivada do Ius Commune Europeu, o qual se bifurca entre o Direito Civil de Justiniano e o Direito Canônico, sendo este responsável pelo uso da máxima mencionada (FIGUEIREDO, 2016).
Trois Neto (2013) discorre sobre a introdução do instituto jusjurandum de veritate dicenda (juramento inquisitivo) a partir do IV Concílio de Latrão, realizado em 1215. Nesse tipo de juramento, o acusado é compelido a dizer apenas a verdade. Contudo, na mesma época, a Igreja passou a considerar que a confissão só seria válida se feita voluntariamente.
Segundo Maria Elizabeth Queijo (2012), a vedação à autoincriminação foi expressa no mais popular manual processual medieval do ius commune, o Speculum Iudiciale, compilado por William Durantis em 1296, e representada pela máxima nemo tenetur detegere turpitudinem suam, que significa que ninguém pode ser compelido a testemunhar contra si mesmo, pois ninguém é obrigado a revelar sua própria vergonha. O princípio foi acolhido pela maior parte dos comentadores medievais e reiterado nos manuais de processo penal europeus dos séculos XVI e XVII. À época, entendia-se que era vedado exigir que alguém respondesse a perguntas sobre seu comportamento ou atos da vida privada, evitando riscos de infâmia ou persecução penal. Havia a crença de que os homens deveriam confessar suas faltas apenas a Deus, não sendo obrigados a confessar seus crimes a terceiros.
Com o advento da idade moderna, e do iluminismo, inicia-se uma nova etapa do Direito Penal, pautada no reconhecimento e na elaboração de garantias penais e processuais penais. O contexto sociocultural da época fomentou debates sobre o papel processual da tortura e do juramento, antes amplamente utilizados no procedimento inquisitorial medieval. A partir da civilização moderna, considerou-se imoral compelir o acusado a proferir, de forma incriminatória, uma confissão (FIGUEIREDO, 2016).
Na obra Dos delitos e das Penas, Cesare Beccaria (2011 critica a extração forçada da confissão do acusado por meio de métodos retrógrados, como o juramento e a tortura. Segundo o autor “(...) é monstruoso e absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo, e procurar fazer nascer a verdade pelos tormentos, como se essa verdade residisse nos músculos e nas fibras do infeliz!”
A consolidação da teoria do privilégio contra a autoincriminação deriva do direito anglo-americano, expressa sob a forma do privilege against self-incrimination. Se firmou na common law inglesa, no século XVII, a partir da abolição das cortes eclesiásticas, além do procedimento do juramento ex officio, bem como através da busca pela defesa técnica. O procedimento do juramento ex officio baseava-se no comparecimento das partes perante as cortes, onde havia a obrigatoriedade na realização de um juramento a fim de responder quaisquer questões levantadas durante a inquirição. Desse modo, o privilege against self incrimination desenrolou-se, inicialmente, como uma forma de proteção às fishing expeditions, prática comum entre os magistrados, em que, através do interrogatório, eles investigavam e realizavam questionamentos distintos ao objeto da acusação. Muitos advogados da época posicionavam-se contra a realização do juramento ex officio, sob a perspectiva de que ele conduzia ao falso julgamento (FIGUEIREDO, 2016).
Nos Estados Unidos, a consolidação desse princípio superou sua importância na common law inglesa, sendo consubstanciado no direito constitucional do acusado de optar por falar ou silenciar. O direito à não autoincriminação desenvolveu-se de forma mais célere e efetiva do que na Inglaterra, sendo incorporado à Constituição dos Estados Unidos pela Quinta Emenda, ratificada em 1791, que estabelece que nenhum indivíduo pode ser obrigado a testemunhar contra si mesmo (FIGUEIREDO, 2016).
No Brasil colonial, as Ordenações Portuguesas eram de natureza inquisitória, limitando o desenvolvimento do nemo tenetur se detegere. Entretanto, com a outorga da Constituição do Império, em 25 de março de 1824, sob influência do iluminismo e do liberalismo inglês, a prática da tortura foi abolida. No tocante à matéria processual penal, as Ordenações Filipinas continuaram a viger até o nascimento do Código de Processo Criminal de Primeira Instância de 1832, inspirado no liberalismo francês e inglês e o interrogatório passou a ter status de ato de defesa, estabelecendo que o acusado não deveria prestar juramento nem era obrigado a responder às perguntas formuladas pela autoridade (YOKOYAMA, 2007).
Em 1891, através da Constituição Republicana, a plena defesa do acusado foi assegurada no processo penal, por intermédio de entendimento doutrinário que tornou proibida a realização do interrogatório realizado sob coação. Com a implantação da Constituição Federal de 1988, e, consequentemente, o prelúdio de direitos e garantias fundamentais que limitam o poder estatal, ficou assegurado, conforme o art. 5.º, inciso LXIII, o direito do preso de permanecer em silêncio (YOKOYAMA, 2007).
Embora próximos semanticamente, direitos humanos e direitos fundamentais possuem distinções conceituais. Os direitos fundamentais correspondem aos direitos humanos positivados nas Constituições dos Estados. Canotilho (1999 apud QUEIJO, 2012) explica que os direitos humanos são válidos universalmente, enquanto os direitos fundamentais são os direitos do homem garantidos juridicamente e limitados espaço-temporalmente.
O princípio nemo tenetur se detegere é um direito fundamental, consistindo em uma garantia do acusado no processo penal, com o objetivo de proteger o direito à liberdade do indivíduo frente ao Estado. Esse princípio resguarda o indivíduo contra coação física ou moral que o force a colaborar na apuração de uma infração penal.
No Brasil, o direito ao silêncio, atualmente reconhecido como norma constitucional, foi primeiramente estabelecido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, sendo incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro apenas em 1992.
O Art. 8º, n. 2, g, do Pacto de São José da Costa Rica, que foi incorporado ao no ordenamento brasileiro através do decreto nº 678, de 6 novembro de 1992, dispõe que qualquer indivíduo que esteja respondendo a processo tem certas garantias, sendo uma delas a não obrigatoriedade de produzir provas contra si (nemo tenetur se detegere), como, por exemplo, confessar a culpa, ou de proferir depoimento que comprometa a sua defesa.
No tocante à Convenção Europeia dos Direitos dos Homens (CEDH), o Art. 6º aborda a garantia de um processo equitativo, o fair trial, instituto observado em alguns julgados do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, como “Funke vs. France; Murray vs. The United Kigdom; Saunders vs. The United Kingdom”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2020).
2.4 Da confissão e do direito ao silêncio na perspectiva atual do Brasil
No panorama do Brasil atual, a proibição à autoincriminação encontra respaldo na Constituição Federal de 1988, no art. 5º, LXIII, que assegura ao acusado o direito de permanecer calado. Esse dispositivo foi inspirado na Quinta Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que veda a obrigatoriedade de o indivíduo testemunhar contra si mesmo.
No âmbito da legislação brasileira, o Código de Processo Penal reforça o direito ao silêncio no art. 186, estabelecendo que o acusado pode se recusar a responder aos questionamentos durante o interrogatório. Além disso, o art. 197 do mesmo código dispõe que a confissão, isoladamente, não é suficiente como meio de prova para fundamentar a culpabilidade do acusado, devendo ser analisada em conjunto com outras provas processuais para aferição da compatibilidade dos fatos. Já o art. 198 prevê que o silêncio do acusado pode constituir elemento de convencimento do magistrado. No Código Penal, o art. 65, inciso III, alínea “d”, trata da confissão espontânea como circunstância atenuante da pena.
No Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência reafirma a proteção ao direito ao silêncio e ao princípio da não autoincriminação. No julgamento do Recurso Extraordinário 971.959/2018, o Ministro Luiz Fux destacou precedentes que consolidam essa garantia como direito fundamental, incluindo: HC 68.929, de relatoria do Min. Celso de Mello, julgado em 22.10.1991; HC 78.708, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 09.03.1999; e RE 640.139, de relatoria do Min. Dias Toffoli, julgado em 22.09.2011. O Plenário do STF decidiu que o direito ao silêncio, como expressão do direito à não autoincriminação, assegura ao indivíduo acusado o direito de negar a prática do ato infracional (STF, 2020).
No âmbito do STJ, o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, no RHC 131.030/SP, reafirmou o entendimento de que o direito ao silêncio decorre do princípio do nemo tenetur se detegere, garantindo que nenhum indivíduo seja compelido a produzir prova contra si mesmo. Dessa forma, nenhuma autoridade ou particular pode obrigar alguém a fornecer, de maneira involuntária, informações ou declarações que possam incriminá-lo, seja direta ou indiretamente. Esse princípio possui natureza processual penal, pois está diretamente relacionado à produção de provas incriminatórias (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2020).
No contexto do ANPP, o caput do art. 28-A da Lei 13.964/2019 exige a confissão formal e circunstanciada do acusado quanto à prática do ato delituoso como pressuposto para a celebração do acordo. Tal confissão deve ser feita perante o MP, independentemente do momento de sua realização, seja perante a autoridade policial, seja diretamente ao MP. Preferencialmente, o registro deve ser feito por meio audiovisual para garantir maior fidedignidade e transparência das informações. Contudo, o acusado pode exercer seu direito ao silêncio nas fases iniciais da investigação, como no interrogatório policial, sem que isso prejudique a possibilidade de adesão ao ANPP (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS, 2020).
Entretanto, há controvérsias quanto à constitucionalidade e à convencionalidade da exigência de confissão para a formalização do ANPP. Enquanto no âmbito desse acordo a confissão tem caráter obrigatório, no Código de Processo Penal, no Código Penal, no Pacto de San José da Costa Rica e na Constituição Federal, a confissão é tratada como ato voluntário, em conformidade com o princípio do nemo tenetur se detegere. Isso levanta questionamentos sobre a compatibilidade desse requisito com os direitos fundamentais assegurados no ordenamento jurídico brasileiro.
Aury Lopes Jr. (2020) entende que o direito ao silêncio decorre do princípio do nemo tenetur se detegere, de modo que seu exercício não pode ser interpretado como presunção de culpabilidade ou ensejar qualquer prejuízo jurídico ao acusado, como a exigência de colaboração com a atividade probatória.
O Ministro Luiz Fux também se manifesta nesse sentido, destacando que o nemo tenetur se detegere se desdobra no direito ao silêncio e na autodefesa negativa, superando o modelo inquisitorial que trata o investigado ou réu como mero instrumento de produção de provas. Segundo o STF (2020), o direito de não produzir prova contra si mesmo relativiza o dogma da verdade real e assegura ao investigado tanto a possibilidade de não se manifestar sobre o mérito da acusação quanto a prerrogativa de não ser obrigado a contribuir com a produção de provas contrárias aos seus interesses, sendo ambos fundamentos essenciais das garantias do direito ao silêncio e da não autoincriminação.
3.ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
A pormenorização analítica dos elementos procedimentais que integram o ANPP, como a obrigatoriedade de formalização da confissão acerca do ato delituoso enquanto fator condicionante para a aplicabilidade do instituto, permite avaliar a plausibilidade constitucional dessa espécie de acordo legal. Tais elementos podem ser interpretados pela doutrina como vícios materiais que representam lesões a preceitos de direitos fundamentais, sobretudo no que tange à imposição do procedimento confessional como requisito para a concretização do acordo. Nesse sentido, cabe a aferição sobre uma eventual inconstitucionalidade do ANPP.
Visto que a Carta Magna brasileira é um parâmetro para todo o ordenamento jurídico pátrio, o controle de constitucionalidade exerce importante relevância no ramo jurídico, tendo como escopo evitar que normas infraconstitucionais sejam incompatíveis com a Constituição. Segundo Lenza (2020), a inconstitucionalidade por ação ocorre quando há uma disparidade vertical entre os atos que estão abaixo da Constituição e a própria Carta Magna, enquanto a inconstitucionalidade por omissão tem sentido inverso, sendo decorrente da estagnação do poder legislativo no tocante à regulamentação da legislação constitucional de eficácia limitada. Já para Canotilho (1999 apud QUEIJO, 2012), a inconstitucionalidade por ação implica a existência de leis incompatíveis com a Constituição, enquanto a inconstitucionalidade por omissão resulta da transgressão da norma por meio do "silêncio legislativo".
De acordo com Lenza (2020), a inconstitucionalidade por ação apresenta-se de duas formas distintas: através do vício material e do vício formal (parte da doutrina entende que existe uma terceira forma, o "vício de decoro parlamentar", em razão de escândalos como o chamado "mensalão"). No que diz respeito ao vício material, há uma divergência entre a matéria legislativa e a Constituição. Essa divergência caracteriza-se pela afronta que o ato normativo representa em relação aos dizeres e princípios da Lei Maior, considerando-se apenas o conteúdo.
Nessa mesma perspectiva, o entendimento de Gilmar Mendes (2016) consubstancia a ideia de que a inconstitucionalidade material não se limita ao contraste entre o ato legislativo e a Carta Magna, mas também abrange a averiguação fiscalizatória da devida conduta procedimental, no que tange à disfuncionalidade no exercício do poder e à exacerbação do poder legislativo. Assim, trata-se de verificar a adequação legislativa em relação aos objetivos constitucionais ou de confirmar a devida aplicação do princípio da proporcionalidade.
Para Gilmar Mendes (2016), o controle jurisdicional é efetivado pelo Poder Judiciário ou pela Corte Constitucional e divide-se em controle concentrado, difuso e misto.
O controle concentrado de constitucionalidade concede ao órgão jurisdicional superior a competência para julgar questões constitucionais. De acordo com Lenza (2020), nessa categoria de controle, a representação de inconstitucionalidade, em razão de se referir a um ato normativo em tese, tem por objeto principal a declaração da inconstitucionalidade da norma ou ato impugnado. O objetivo, portanto, é verificar se a lei (lato sensu) é inconstitucional ou não, manifestando-se o Judiciário de forma específica sobre o aludido objeto. Em regra, no controle concentrado, conforme entendimento de Lenza (2020), busca-se expurgar do sistema a norma ou ato normativo viciado (material ou formalmente, assim como a proposta de "vício de decoro parlamentar"), visando, por conseguinte, à sua invalidação.
Já o controle de constitucionalidade difuso, desenvolvido a partir do caso Marbury v. Madison, em 1803, adota o desígnio de atribuir a qualquer órgão judicial o dever de impossibilitar a entrada em vigor de normas incompatíveis com a Constituição. Segundo Lenza (2020), esse tipo de controle se verifica em casos concretos e de forma incidental ao objeto principal da lide.
Por fim, o controle misto de constitucionalidade caracteriza-se por coadunar os dois modelos anteriormente mencionados. De forma geral, os modelos mistos apresentam uma estrutura na qual os órgãos judiciários ordinários têm o poder-dever de afastar a aplicabilidade de normas inconstitucionais, enquanto uma instância de cúpula jurídica recebe a designação para proferir decisões em ações judiciais de caráter abstrato ou concentrado. Concretamente, podem ser apontados como exemplos do modelo misto o de Portugal, onde há uma cooperação funcional entre a Corte Constitucional e os demais órgãos ordinários do sistema judiciário, bem como o modelo adotado no Brasil, que mescla o controle difuso de constitucionalidade (instituído desde o período da República) com as chamadas ações diretas de inconstitucionalidade, das quais o Supremo Tribunal Federal é encarregado (MENDES, 2016).
Nessa concepção, sendo o STF o órgão incumbido da análise jurídica de inconstitucionalidade do arcabouço legislativo brasileiro e considerando a arbitrariedade constitucional do procedimento confessional instituído no ANPP, forma-se um direcionamento interpretativo que aponta para a confirmação da caracterização do ANPP como elemento a ser rotulado como inconstitucional perante o ordenamento jurídico brasileiro.
4. O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL À LUZ DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE
Além da análise da adequação do ANPP dentro do contexto legislativo constitucional, também é cabível ponderar sobre sua consonância pragmática no campo dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, suscitando, consequentemente, o debate acerca da convencionalidade dessa mesma ferramenta jurídica.
Nesse sentido, o controle de convencionalidade decorre da verificação da conformidade material entre as normas de direito interno e os tratados internacionais de direitos ratificados e em vigor no Brasil. É válido salientar que as normas internacionais que versam sobre direitos humanos possuem posição específica no ordenamento jurídico, situando-se abaixo da Constituição, mas acima da legislação infraconstitucional, sendo, portanto, consideradas normas supralegais, conforme o HC 95.967 (STF, 2008). Desse modo, a legislação infraconstitucional figura como objeto, enquanto os tratados internacionais representam paradigmas de controle. No contexto brasileiro, a averiguação da compatibilidade realizada pelo judiciário possui como parâmetro a Declaração Universal de Direitos Humanos, bem como as jurisprudências do CIDH (MAZZUOLI, 2020).
O controle de convencionalidade, de origem francesa, tornou-se amplamente reconhecido nos tribunais a partir do caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile, julgado em 2006 (MAZZUOLI, 2020). Nesse julgamento, ficou estabelecido que é competência do Poder Judiciário nacional exercer o controle de convencionalidade dentro de seu território, tanto em relação às normas jurídicas domésticas quanto aos tratados de direitos humanos, considerando a matéria do tratado e a interpretação das cortes internacionais, conforme suas jurisprudências (TORRES, 2019).
Ainda em 2006, o caso Trabalhadores Demitidos do Congresso vs. Peru reforçou essa compreensão, determinando que o Poder Judiciário deve exercer o controle de convencionalidade ex officio, ou seja, de forma independente, conforme sua competência e regulamentos processuais (MAZZUOLI, 2020).
Em 2011, no caso Gelman vs. Uruguai, a Corte Interamericana de Direitos Humanos alterou seu entendimento, passando a reconhecer que todos os órgãos estatais podem exercer o controle de convencionalidade, não apenas o Poder Judiciário. Dessa forma, a competência para esse controle foi estendida a juízes, Defensoria Pública, Ministério Público e Polícia Judiciária Civil. Esse desdobramento resultou na teoria do duplo controle, segundo a qual uma norma jurídica só é válida se atender simultaneamente ao controle de constitucionalidade, garantindo compatibilidade com a Constituição Federal, e ao controle de convencionalidade, assegurando conformidade com os tratados de direitos humanos (TORRES, 2019).
O controle de convencionalidade é aplicado apenas quando há incompatibilidade entre a legislação interna e os tratados internacionais de direitos humanos, ainda que a norma esteja de acordo com a Constituição. Dessa forma, a Constituição e os tratados internacionais atuam conjuntamente para estruturar, de maneira sistemática e coerente, o direito infraconstitucional, contribuindo para a consolidação de um Estado Constitucional e Humanista de Direito (VALENTE, 2016).
No contexto do Estado Democrático de Direito, os preceitos humanistas do direito penal mínimo são considerados elementos fundamentais, tendo como principal função a proteção de bens jurídicos essenciais à vida humana, tanto sob uma perspectiva individual quanto supraindividual. Esse princípio fundamenta-se na intervenção mínima, fragmentariedade, dupla face da proporcionalidade, proibição do retrocesso (efeito cliquet) e, sobretudo, na dignidade humana (VALENTE, 2016).
O controle de convencionalidade pode manifestar-se de quatro formas distintas: por meio da interpretação da legislação interna em conformidade com a lei internacional; pela correção de déficits normativos no ordenamento doméstico; pela exclusão da aplicação de normas internas materialmente incompatíveis com as leis internacionais; e pela utilização desse controle como instrumento para a implementação de sentenças interamericanas (TORRES, 2019).
A inconvencionalidade ocorre quando uma norma interna não respeita a materialidade de uma norma internacional de direitos humanos. Nesse caso, a norma perde validade e não produz efeitos jurídicos desde sua concepção, evidenciando o caráter retroativo do controle. No controle difuso, a decisão possui efeito inter partes, enquanto no controle concentrado a decisão é erga omnes (MARTINS; MOREIRA, 2011).
Diante do panorama jurídico-legislativo analisado, observa-se que, embora o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) seja considerado constitucional e convencional, a confissão exigida para sua formalização não pode ser utilizada como prova, uma vez que não há denúncia formal nesses casos.
O Código de Processo Penal reforça essa limitação ao vedar condenações baseadas exclusivamente em elementos informativos colhidos na fase pré-processual, incluindo a confissão prevista no art. 28-A do CPP. Dessa forma, a confissão revela-se insuficiente para embasar a validade do acordo.
A doutrina segue dividida quanto à constitucionalidade do ANPP, especialmente no que se refere à exigência da confissão, levantando questionamentos sobre sua legalidade no processo penal. Nesse sentido, os dados apresentados indicam um descompasso entre a estrutura do ANPP e os princípios constitucionais e convencionais de direitos humanos, fortalecendo o argumento de sua possível inconstitucionalidade e inconvencionalidade.
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Pós-graduada em Ciências Jurídicas com ênfase em Atividades de Magistratura pelo Centro Universitário Projeção (UniPROJEÇÃO). Assessor Jurídico-Administrativo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Janielly Araújo Porfirio de. A Constitucionalidade do Acordo de Não Persecução Penal e a Exigência de Confissão para Concessão do Benefício Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 mar 2025, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/68050/a-constitucionalidade-do-acordo-de-no-persecuo-penal-e-a-exigncia-de-confisso-para-concesso-do-benefcio. Acesso em: 14 mar 2025.
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