RESUMO: O presente artigo científico aprofunda a análise da complexa questão da aplicabilidade do Direito Internacional Humanitário (DIH) às operações de paz conduzidas pela Organização das Nações Unidas (ONU). Inicialmente, estabelece-se uma distinção clara entre as modalidades operacionais de manutenção e imposição da paz, detalhando a evolução histórica e a intrincada natureza de seus respectivos mandatos. Subsequentemente, examina-se a posição institucional do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) relativamente à obrigatoriedade de observância dos princípios fundamentais e das normas consuetudinárias do DIH por parte das forças de paz da ONU. Outrossim, investiga-se o posicionamento da própria ONU, evidenciando a progressiva incorporação de elementos normativos do DIH em seus regulamentos internos e diretrizes operacionais, com particular ênfase na relevância das diretrizes de 1999 destinadas às suas forças no que concerne ao respeito pelo DIH. Por fim, ponderam-se os desafios de ordem jurídica inerentes à aplicação do DIH em contextos multinacionais e a importância das diretrizes emanadas pela ONU como um instrumento crucial para mitigar tais desafios e assegurar a proteção das populações civis em cenários de conflito armado onde as operações de paz são implementadas.
Palavras-chave: direito internacional dos conflitos armados, direito internacional humanitário, operações de paz, Organização das Nações Unidas.
ABSTRACT: This scientific article delves into the complex issue of the applicability of International Humanitarian Law (IHL) to United Nations (UN) peace operations. Initially, it establishes a clear distinction between peacekeeping and peace enforcement operations, detailing their historical evolution and the intricate nature of their respective mandates. Subsequently, it examines the institutional position of the International Committee of the Red Cross (ICRC) regarding the obligation of UN peace forces to observe the fundamental principles and customary norms of IHL. Furthermore, it investigates the UN’s stance, highlighting the progressive incorporation of IHL norms into its internal regulations and operational guidelines, with particular emphasis on the 1999 guidelines concerning compliance with IHL. Finally, the article considers the legal challenges inherent in applying IHL in multinational contexts and the importance of UN-issued directives as crucial instruments to mitigate these challenges and ensure the protection of civilian populations in armed conflict scenarios where peace operations are conducted.
Keywords: international law of armed conflicts, international humanitarian law, peace operations, United Nations.
1. Introdução
A Organização das Nações Unidas (ONU) tem desempenhado, desde sua fundação em 1945, um papel de central importância na esfera da manutenção e restauração da paz e segurança internacionais. Essa atuação se materializa através de um espectro diversificado de operações de paz, que abrangem desde as tradicionais missões de manutenção da paz até intervenções mais robustas caracterizadas como imposição da paz.
Tais operações se desenvolvem em cenários geopolíticos intrincados, frequentemente marcados pela eclosão e persistência de conflitos armados, tanto de natureza internacional quanto não internacional. Nesse contexto complexo, a questão da aplicabilidade do Direito Internacional Humanitário (DIH) às forças da ONU engajadas nessas missões assume um caráter primordial.
O presente artigo científico propõe-se a realizar uma análise aprofundada dessa temática específica, considerando as nuances que distinguem as operações de manutenção e imposição da paz, bem como as perspectivas defendidas pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e pela própria ONU.
Adicionalmente, serão minuciosamente examinados os desafios de natureza jurídica que emergem da aplicação do DIH a forças constituídas por contingentes multinacionais e a significância das diretrizes estabelecidas pela ONU para suas tropas no que concerne à observância e ao respeito pelas normas humanitárias internacionalmente reconhecidas. A análise buscará, assim, contribuir para uma compreensão mais acurada das interconexões entre as operações de paz da ONU e o arcabouço normativo do DIH.
As operações de paz da ONU, desde sua concepção, têm se mostrado um instrumento flexível e adaptável para responder a uma variedade de crises e conflitos em escala global. A evolução dessas operações reflete as mudanças no cenário internacional e a crescente complexidade dos desafios à paz e segurança.
Inicialmente concebidas como missões de observação e interposição com o consentimento das partes, as operações de paz expandiram seu escopo para incluir tarefas como proteção de civis, desarmamento, desmobilização e reintegração de ex-combatentes, apoio a processos eleitorais, reforma do setor de segurança e até mesmo a imposição da paz em situações de grave ameaça à segurança internacional. Essa diversificação de mandatos implica diferentes níveis de engajamento e, consequentemente, diferentes considerações em relação à aplicabilidade do DIH.
A análise da aplicabilidade do DIH às operações de paz da ONU não pode prescindir da compreensão da natureza jurídica das próprias operações e do estatuto das forças envolvidas. As forças de paz da ONU são compostas por militares e civis cedidos por diversos Estados membros, atuando sob um comando unificado da ONU e com um mandato estabelecido pelo Conselho de Segurança. Essa estrutura multinacional levanta questões sobre a responsabilidade pela conduta das tropas e a lei a elas aplicável. Embora as forças da ONU não sejam, em si mesmas, partes contratantes das Convenções de Genebra ou de outros tratados de DIH, os Estados que fornecem contingentes são obrigados a respeitar essas normas e a garantir que suas tropas o façam. A ONU, por sua vez, tem a responsabilidade de orientar e treinar seu pessoal sobre as obrigações decorrentes do DIH.
A interação entre as operações de paz da ONU e o DIH é fundamental para garantir a proteção das vítimas de conflitos armados e para preservar os princípios de humanidade em situações de crise. O DIH estabelece um conjunto de regras que visam limitar os efeitos dos conflitos armados, protegendo pessoas que não participam ou deixaram de participar das hostilidades e restringindo os meios e métodos de guerra.
A aplicabilidade dessas regras às operações de paz da ONU é essencial para assegurar que as ações das forças de paz não agravem a situação humanitária e que contribuam para um ambiente propício à paz e à reconciliação. A análise que se segue explorará as diferentes perspectivas e os desafios relacionados a essa importante questão.
2. A natureza das operações de paz da ONU
As operações de paz da ONU constituem um instrumento multifacetado empregado para a manutenção e o restabelecimento da paz e segurança internacionais, abrangendo um amplo leque de atividades e modalidades de intervenção. Tradicionalmente, essas operações são categorizadas em duas modalidades principais: a manutenção da paz e a imposição da paz, embora a prática contemporânea revele uma crescente complexidade e sobreposição entre elas.
As operações de manutenção da paz evoluíram como um mecanismo preventivo e de acompanhamento, destinado a monitorar e facilitar a implementação de acordos de cessar-fogo ou outros arranjos de paz preexistentes.
O objetivo primordial dessas missões é fornecer suporte aos esforços diplomáticos em curso para alcançar soluções políticas duradouras para os conflitos.
Os pilares fundamentais que sustentam as operações de manutenção da paz clássicas são o consentimento das partes em conflito para a presença da missão da ONU, a estrita imparcialidade na atuação das forças de paz e o não uso da força, exceto em legítima defesa ou em defesa do mandato da missão.
Apesar de não haver uma referência explícita na Carta da ONU, a manutenção da paz tradicional é frequentemente conceituada como um mecanismo situado em um espaço cinzento entre o Capítulo VI (Solução Pacífica de Controvérsias) e o Capítulo VII (Ação Relativa a Ameaças à Paz, Rupturas da Paz e Atos de Agressão) da Carta.
Em contraste, as operações de imposição da paz caracterizam-se pela autorização do uso da força militar ou pela ameaça de seu emprego, geralmente sob um mandato emanado do Conselho de Segurança da ONU, com o objetivo de garantir o cumprimento de sanções internacionais ou de resoluções que visam a manutenção ou o restabelecimento da paz em condições definidas pela comunidade internacional. Em tais operações, as forças da ONU podem operar em ambientes onde não há consentimento de todas as partes envolvidas e detêm o direito de utilizar a força em resposta a ameaças diretas ou para proteger civis sob risco iminente, conforme o mandato estabelecido. Essas operações são tipicamente autorizadas com fundamento no Capítulo VII da Carta da ONU, que confere ao Conselho de Segurança poderes coercitivos para agir em face de ameaças à paz, rupturas da paz e atos de agressão.
Contudo, a dinâmica dos conflitos contemporâneos tem levado a uma crescente convergência e indistinção entre essas categorias operacionais. Observa-se, com frequência cada vez maior, operações de manutenção da paz que incorporam elementos de imposição, como a autorização para usar a força para proteger civis, o que antes era mais característico das missões de imposição da paz.
Intervenções na Somália e na ex-Iugoslávia exemplificam essa evolução, onde missões inicialmente concebidas como de manutenção da paz tiveram seus mandatos expandidos para incluir ações mais robustas. Essa fluidez operacional impacta diretamente a análise da aplicabilidade do DIH, uma vez que a natureza do engajamento das forças da ONU pode variar substancialmente dentro da mesma missão ou ao longo do tempo.
A própria Carta das Nações Unidas, embora não preveja explicitamente as operações de paz como as conhecemos hoje, estabelece o arcabouço legal geral para a atuação da ONU na manutenção da paz e segurança internacionais através dos Capítulos VI e VII. O conceito de manutenção da paz emergiu e se desenvolveu de forma pragmática ao longo da história da organização, em resposta a desafios específicos que não se enquadravam perfeitamente nas disposições originais da Carta.
O orçamento significativo alocado anualmente para as operações de paz da ONU, que em 2019-2020 atingiu a expressiva cifra de 6,5 bilhões de dólares (BOUVIER, 2021, p. 130), demonstra a centralidade dessas operações na agenda da organização e o vultoso investimento realizado pela comunidade internacional nesse instrumento de paz e segurança.
Compreender a natureza e a evolução das operações de paz da ONU é, portanto, um passo fundamental para analisar as complexas questões relacionadas à aplicabilidade do Direito Internacional Humanitário em seus diversos contextos de atuação.
3. A perspectiva do CICV sobre a aplicabilidade do DIH
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV, 2025) tem sustentado, de maneira consistente e inequívoca, a aplicabilidade do Direito Internacional Humanitário (DIH) às forças de manutenção da paz da ONU. Essa posição fundamenta-se na natureza das atividades desenvolvidas por essas forças em contextos de conflito armado, mesmo que atuem sob o mandato da ONU.
Em um memorando datado de 1961, o CICV dirigiu-se ao Secretário-Geral da ONU e aos Estados membros, enfatizando a imperiosa necessidade de garantir que as forças disponibilizadas à organização observassem escrupulosamente os princípios consagrados nas Convenções de Genebra.
A perspectiva do CICV reside na premissa de que os princípios fundamentais e as normas do Direito Internacional Humanitário consuetudinário são aplicáveis por natureza e devem ser integralmente respeitados por todas as forças engajadas em operações de manutenção da paz da ONU, especialmente quando estas se encontram em cenários de conflito armado ou em situações que possam evoluir para hostilidades.
Para assegurar essa observância, o CICV sublinha a indelegável obrigação dos Estados que fornecem contingentes militares e policiais de instruir de maneira adequada e abrangente suas tropas em relação às normas e princípios do DIH antes de seu destacamento para missões internacionais. Adicionalmente, o CICV enfatiza que a própria ONU possui uma responsabilidade igualmente importante no que concerne ao comando unificado das operações, devendo assegurar que suas diretrizes e regulamentos internos reflitam e promovam o respeito pelo DIH por parte de todo o seu pessoal.
O CICV também destaca a importância de que as autoridades nacionais dos contingentes assumam a responsabilidade de adotar todas as medidas necessárias para prevenir e reprimir quaisquer violações do DIH que possam ser cometidas por seus membros.
Dada a complementaridade intrínseca entre os objetivos dos mandatos das forças de paz da ONU, que visam a proteção de civis e a estabilização de situações de conflito, e a missão humanitária do CICV, este último também enfatiza a premente necessidade de uma cooperação mútua eficaz entre as duas entidades. Essa colaboração deve ocorrer sem que as atividades de manutenção da paz prejudiquem a ação humanitária independente do CICV ou questionem a sua competência e neutralidade. O CICV, em conformidade com o artigo 4, 1, “c”, dos Estatutos do Movimento Internacional da Cruz Vermelha (CICV, 2018), tem como tarefa institucional "trabalhar para a aplicação fiel" do DIH.
É relevante notar que, historicamente, o CICV tem dedicado esforços significativos para abordar a questão da aplicação do DIH em conflitos armados não internacionais. Muitas operações de paz da ONU ocorrem precisamente nesses contextos, onde a delimitação entre aplicação da lei e condução de hostilidades pode ser tênue.
As tentativas do CICV, desde o início do século XX, de desenvolver mecanismos legais para a proteção das vítimas de conflitos não internacionais demonstram seu engajamento de longa data com a temática da proteção humanitária em situações complexas, que são frequentemente o cenário das operações de paz da ONU.
A posição firme do CICV sobre a aplicabilidade do DIH às forças de paz reflete seu compromisso fundamental com a proteção da dignidade humana e a mitigação do sofrimento em todos os contextos de violência armada.
4. A perspectiva da ONU sobre a aplicabilidade do DIH
A Organização das Nações Unidas (ONU), embora sempre tenha enfatizado seu firme compromisso com a observância de elevados padrões de conduta por parte de suas forças de manutenção da paz, inicialmente manifestou certa hesitação em considerar suas forças como "partes" em um conflito armado, nos termos estritos do Direito Internacional Humanitário (DIH), colocando-se mais como uma "negociadora da paz" (ONU, 2023).
A argumentação inicial residia na premissa de que as forças da ONU atuam em nome da comunidade internacional como um todo, com o objetivo de manter ou restaurar a paz e a segurança, e não como um beligerante com interesses próprios no conflito.
Contudo, reconhecendo a inegável relevância do DIH para as operações que desenvolve, a ONU tem progressivamente incorporado seus princípios e normas em seus regulamentos internos, acordos com Estados membros e diretrizes operacionais.
Um marco significativo nesse processo de internalização do DIH foi a inclusão da denominada "cláusula da Cruz Vermelha" no Regulamento da Força da ONU (BOUVIER, 2021, p. 135). Essa cláusula estabelece que a Força deverá "observar os princípios e o espírito das convenções internacionais gerais aplicáveis à conduta do pessoal militar".
Essa disposição fundamental foi posteriormente integrada ao acordo modelo celebrado entre a ONU e os Estados membros que contribuem com pessoal militar e equipamento para as operações de manutenção da paz. O acordo modelo delineia de forma clara as obrigações das tropas cedidas e de seus respectivos governos contribuintes no sentido de garantir que os membros de seus contingentes estejam devidamente familiarizados com os princípios e o espírito das quatro Convenções de Genebra de 1949 e de seus Protocolos Adicionais de 1977, bem como com a Convenção da UNESCO sobre a Proteção de Bens Culturais em caso de Conflito Armado (Assembleia Geral da ONU, 1991).
Ademais, em resposta às reiteradas solicitações do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), a ONU concordou em inserir uma disposição similar, referenciando os princípios do DIH, nos Acordos sobre o Estatuto das Forças (SOFA, na sigla em inglês) firmados com os Estados em cujo território as forças da ONU operam (BOUVIER, 2021, p. 136).
Essa medida reforça o compromisso da ONU em promover o respeito pelo DIH em todos os seus contextos de atuação, independentemente da natureza específica da operação.
Para as operações de imposição da paz, nas quais o uso da força é explicitamente autorizado pelo Conselho de Segurança sob o Capítulo VII da Carta da ONU, a ONU desenvolveu e promulgou, em 1999, as "Diretrizes para as Forças da ONU a respeito do Direito Internacional Humanitário" (BOUVIER, 2021, p. 137).
Essas diretrizes visam a estabelecer de maneira mais precisa o conteúdo e o escopo dos "princípios e espírito" do Direito Humanitário mencionados nos acordos sobre o estatuto das forças, sendo consideradas aplicáveis a todas as operações sob o comando e controle da ONU nas quais as forças se engajem ativamente como combatentes.
As diretrizes de 1999 representam um esforço significativo da ONU para fornecer uma orientação clara e específica para suas tropas em situações nas quais o recurso à força é uma possibilidade real, alinhando sua conduta com os princípios fundamentais do DIH.
É importante ressaltar que, embora a ONU tenha adotado essas medidas importantes, a responsabilidade primária pela conduta de suas tropas ainda recai sobre os Estados membros que contribuem com os contingentes. Esses Estados são obrigados pelo direito internacional a garantir que suas forças ajam em conformidade com o DIH, e a falha em fazê-lo pode acarretar responsabilização tanto para os indivíduos quanto para o Estado perante tribunais nacionais e internacionais.
A familiaridade e o conhecimento do conteúdo das Convenções de Genebra e de seus Protocolos Adicionais são, portanto, uma obrigação não apenas para as forças da ONU, mas também e principalmente para as autoridades militares e civis dos Estados contribuintes que assumem responsabilidades em relação à aplicação do DIH em tempo de conflito armado.
A progressiva incorporação dos princípios do DIH na estrutura normativa e operacional da ONU demonstra um reconhecimento crescente da importância dessas normas para a legitimidade e a eficácia de suas operações de paz.
5. Desafios jurídicos e a relevância das Diretrizes da ONU
A aplicação efetiva do Direito Internacional Humanitário (DIH) às operações de paz da ONU apresenta desafios jurídicos consideráveis, inerentes à complexidade dessas missões e à diversidade dos atores envolvidos. Um dos principais obstáculos reside na própria natureza multinacional das forças de paz da ONU, que são compostas por contingentes militares e policiais provenientes de um grande número de Estados membros, cada um com seus próprios sistemas jurídicos, doutrinas militares e níveis de familiaridade com as normas do DIH.
Assegurar uma compreensão e uma aplicação uniformes e consistentes das intrincadas normas do DIH em um contexto operacional tão heterogêneo demanda esforços contínuos e substanciais em termos de treinamento, doutrinação e supervisão. A diversidade de culturas jurídicas e militares pode levar a interpretações divergentes das obrigações humanitárias, dificultando a adoção de padrões de conduta comuns e elevando o risco de violações.
As Diretrizes da ONU sobre o DIH, promulgadas em 1999, representam um passo crucial e significativo para mitigar esses desafios inerentes à aplicação do DIH em contextos multinacionais. Ao fornecer um código de conduta específico para as forças da ONU que se encontram envolvidas em hostilidades, essas diretrizes buscam estabelecer um denominador comum de entendimento e de prática em relação às normas humanitárias.
Embora não constituam uma lista exaustiva de todos os princípios e regras do DIH aplicáveis, elas estabelecem um padrão mínimo de conduta que se espera das forças da ONU em situações de conflito armado, oferecendo uma orientação prática para o pessoal militar e civil engajado nessas operações.
É fundamental, no entanto, reconhecer que essas diretrizes complementam, mas não substituem, as obrigações que os Estados membros têm sob o direito internacional, incluindo o DIH.
Ressalta-se que as forças de manutenção da paz da ONU permanecem sujeitas à legislação nacional de seus respectivos Estados no que concerne ao respeito pelo DIH sempre que este for aplicável. Isso significa que, mesmo atuando sob o comando da ONU, os membros dos contingentes nacionais podem ser responsabilizados por violações do DIH perante os tribunais de seus próprios países, além de potenciais mecanismos de responsabilização internacional.
A familiaridade aprofundada com o conteúdo das Convenções de Genebra e de seus Protocolos Adicionais é, portanto, uma obrigação indeclinável não apenas para o pessoal da ONU, mas também e principalmente para as autoridades militares e civis dos Estados contribuintes que assumem a responsabilidade pela aplicação do DIH em tempo de conflito armado. A falta de clareza sobre quem cumpre a obrigação e de que forma pode levar à ineficácia das normas internacionais.
As Diretrizes da ONU sobre o DIH, ao definirem o escopo e o conteúdo dos "princípios e espírito" do Direito Humanitário mencionados nos Acordos sobre o Estatuto das Forças (SOFAs), fornecem uma base normativa mais sólida para a conduta das operações de paz em situações de potencial recurso à força.
No entanto, a efetiva implementação do DIH em operações de paz multinacionais continua a depender fundamentalmente do comprometimento dos Estados contribuintes em prover treinamento adequado e contínuo às suas tropas, garantindo que estejam plenamente cientes de suas obrigações sob o DIH.
A própria ONU tem um papel crucial a desempenhar na disseminação dessas diretrizes e na criação de mecanismos eficazes para monitorar e garantir o seu cumprimento no terreno.
Em última análise, a relevância das Diretrizes da ONU reside em seu potencial para fortalecer a cultura de respeito pelo DIH dentro das operações de paz e para contribuir de forma significativa para a proteção das populações civis em cenários de conflito armado onde essas operações são implantadas.
6. Conclusão
A questão da aplicabilidade do Direito Internacional Humanitário (DIH) às operações de manutenção e imposição da paz da ONU configura uma temática de elevada complexidade, intrinsecamente ligada à natureza multifacetada dessas operações e às distintas perspectivas adotadas pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e pela própria Organização das Nações Unidas (ONU).
Enquanto o CICV tem consistentemente enfatizado a aplicabilidade geral dos princípios fundamentais e das normas consuetudinárias do DIH a todas as forças de paz da ONU, independentemente da natureza específica de seu mandato ou da autorização para o uso da força, a ONU, embora inicialmente tenha manifestado certa relutância em se considerar uma parte em conflito nos termos estritos do DIH, tem progressivamente integrado os princípios e normas desse ramo do direito internacional em seus regulamentos internos, acordos com Estados membros e diretrizes operacionais.
As Diretrizes da ONU sobre o DIH, promulgadas em 1999, representam um avanço significativo no sentido de assegurar que as forças da ONU que se encontram envolvidas em hostilidades o façam em consonância com os princípios e as normas do Direito Internacional Humanitário. Essas diretrizes fornecem um quadro de referência normativa mais claro e específico para a conduta das operações de paz em situações em que o recurso à força é uma possibilidade real, buscando alinhar as ações das forças da ONU com os padrões de humanidade e as obrigações de proteção estabelecidas pelo DIH.
Contudo, a efetiva implementação do DIH em operações de paz que envolvem contingentes multinacionais continua a depender fundamentalmente do firme comprometimento dos Estados contribuintes em prover um treinamento adequado e contínuo às suas tropas, garantindo que estejam plenamente conscientes de suas obrigações sob o DIH e capacitadas a cumpri-las no terreno.
A própria ONU desempenha um papel crucial na disseminação dessas diretrizes, na criação de mecanismos eficazes para monitorar e garantir o seu cumprimento por todo o seu pessoal e na promoção de uma cultura de respeito pelo DIH em todas as suas operações de paz.
À medida que as operações de paz internacionais e o próprio Direito Internacional Humanitário continuam a evoluir em resposta aos desafios complexos do cenário internacional contemporâneo, a internalização e o respeito pelas normas do DIH por parte de todas as forças da ONU permanecem essenciais para a proteção eficaz das populações civis em contextos de conflito armado e para a manutenção de padrões mínimos de humanidade em situações de crise em que as operações de paz são implementadas.
Em última análise, a credibilidade e a legitimidade das operações de paz da ONU estão intrinsecamente ligadas à sua capacidade de atuar em plena conformidade com os princípios e as normas do Direito Internacional Humanitário.
Referências
ABREU, Jorge Luiz Nogueira de. Direito administrativo militar. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2015.
ASSEMBLEIA GERAL DA ONU. Modelo de acordo entre a ONU e os Estados Membros que contribuem com pessoal e equipamento para as operações de manutenção da paz das Nações Unidas. Relatório do Secretário-Geral, Resolução A/46/185, 23 maio 1991. Disponível em: https://digitallibrary.un.org. Acesso em: 19 mar. 2025.
BOUVIER, Antoine A. Curso de Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Conflitos Armados. Local: Peace Operations Training Institute, 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999.
BRASIL. Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Estatuto dos Militares.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 34. ed. São Paulo: Atlas, 2020.
COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA (CICV). Declaração do presidente do CICV: Direito Internacional Humanitário deve ser uma prioridade política. 28 jan. 2025. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/declaracao/presidente-cicv-direito-internacional-humanitario-prioridade-politica. Acesso em: 19 mar. 2025.
COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA (CICV). Estatutos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. 1º jan 2018. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/document/estatutos-do-comite-internacional-da-cruz-vermelha. Acesso em: 19 mar. 2025.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 29. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
NAÇÕES UNIDAS. Secretário-geral da ONU condena ataque contra hospital em Gaza e pede investigação independente. ONU News, 18 out. 2023. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2023/10/1822097. Acesso em: 19 mar. 2025.
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
Oficial de Assessoria Jurídica do Exército Brasileiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GABRIEL BACCHIERI DUARTE FALCãO, . A aplicabilidade do Direito Internacional Humanitário às Operações de Manutenção e Imposição da Paz da ONU: desafios e perspectivas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 abr 2025, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/68421/a-aplicabilidade-do-direito-internacional-humanitrio-s-operaes-de-manuteno-e-imposio-da-paz-da-onu-desafios-e-perspectivas. Acesso em: 25 abr 2025.
Por: Diedre Gomes de Carvalho
Por: Erick Labanca Garcia
Por: SIGRID DE LIMA PINHEIRO
Por: André Eduardo Peres Stafusa
Precisa estar logado para fazer comentários.