A fusão entre os sistemas de controle de constitucionalidade no Brasil como efeito da força vinculante dos precedentes judiciais declarada no julgamento do caso “amianto crisotila”
Resumo: Analisam-se as origens, o alcance e o significado da decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto das ADIs 3406 e 3470, que operaram significativa transformação na moldura do controle de constitucionalidade no Brasil.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito processual. Controle de constitucionalidade. Controle difuso. Abstrativização do controle difuso.
Abstract: This article analyzes the origins, scope and significance of the decision of the Federal Supreme Court in the joint judgment of the ADIs 3406 and 3470, which have undergone a significant transformation in the framework of constitutionality control in Brazil.
Keywords: Constitutional law. Procedural law. Judicial review. Diffuse control. Abstractivization of diffuse control.
Sumário: 1. Introdução. 2. O modelo original de controle de constitucionalidade previsto na Constituição Federal de 1988. 2.1. Controle difuso. 2.2. Controle concentrado. 2.3 Distinção entre as modalidades de controle constitucionalidade e a atribuição do Senado Federal no controle difuso (art. 52, X, CF/88). 3. O requisito da repercussão geral no recurso extraordinário e o julgamento unificado de recursos especiais e extraordinários repetitivos. 4. A consolidação do sistema de precedentes com o Código de Processo Civil de 2015. 5 A decisão do stf no julgamento conjunto da ADI 3406 e ADI 3470, em 29/11/2017: mutação constitucional e abstrativização do controle difuso. 5.1 Do teor da decisão. 5.2 Importância do caso. 5.3 Acerto do entendimento. Conclusão. Referências. Notas.
No ano de 2008, em workshop realizado no âmbito de congresso jurídico ocorrido na cidade do Recife/PE, do qual tive a oportunidade de participar, recebi em primeira mão a notícia, da parte do então presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, de que se discutia no âmbito da Suprema Corte, ainda de forma embrionária, a mutação constitucional do art. 52, X, da CF/88. Em decisão recente, datada de 29/11/2017, no julgamento conjunto das ADIs 3406 e 3470, ambas oriundas do Estado do Rio de Janeiro, o Plenário do STF, em julgado da Relatoria da Ministra Rosa Weber, confirmou o entendimento então propugnado, para afastar a exigência de suspensão da execução, pelo Senado, da lei declarada inconstitucional incidentalmente pelo Supremo em controle difuso de constitucionalidade. Operou-se verdadeira fusão entre os sistemas de controle de constitucionalidade no Brasil, com a superação da dicotomia entre o controle concreto e o abstrato no âmbito do STF, evidenciando a força do precedente vinculante na nova sistemática do processo judicial brasileiro, tanto na esfera cível quanto na criminal.
As razões da referida decisão passam pela força vinculante dos precedentes judiciais e as transformações operadas no processo civil brasileiro desde 2004, com a instituição do requisito da repercussão geral em recurso extraordinário e a consequente sistemática de julgamento unificado de recursos extraordinários repetitivos, regulamentada pela Lei n.º 11.418/2006, que incluiu o art. 543-B, ao CPC/73. Com o advento do Novo Código de Processo Civil (CPC/2015), consolidou-se o sistema de precedentes obrigatórios, forçando o STF a uma releitura do seu papel no controle difuso de constitucionalidade.
Nesse contexto, ganharam vulto, nas últimas décadas, estratégias de racionalização da jurisdição dos tribunais superiores e de vinculação a precedentes judiciais, como forma de dinamizar a atuação das cortes e de adequar o Judiciário ao modelo da litigiosidade de massa, o que, ademais, propiciou incremento na segurança jurídica e na efetivação do princípio da isonomia. Assim é que, no Brasil, foram instituídos, nesse período, a súmula vinculante, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), o julgamento unificado de recursos especiais e extraordinários repetitivos, a súmula impeditiva de recurso de apelação, e, com o novo Código de Processo Civil, os precedentes vinculantes, tudo sem prejuízo da eficácia geral e do efeito vinculante das decisões em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC).
O fenômeno mais recente desse processo, no Brasil, mostrou ser a transformação operada no sistema de controle de constitucionalidade consistente na abstrativização do controle difuso, por mutação constitucional, fruto de decisão recente do STF, datada de 29/11/2017, objeto da presente consideração. Neste estudo, busca-se examinar as origens, o alcance e o significado dessa modificação, para o que se parte de uma breve consideração em torno do controle de constitucionalidade conforme definido originalmente na Constituição de 1988.
2 O MODELO ORIGINAL DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
No Brasil, o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos emanados do Poder Público, de natureza repressiva e de origem jurisdicional, inspirou-se tanto no modelo austríaco (concentrado, em abstrato, em caráter principal) quanto no norte-americano (difuso, em concreto, em caráter incidental), construindo-se, ao final, um modelo misto, a exemplo do que ocorre com o sistema português. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 957) Da forma como foi instituído pela CF/88, o controle de constitucionalidade no Brasil ostentava, pois, uma dualidade procedimental, na medida em que as diferentes estratégias de controle se revelavam como modalidades distintas, cujo único ponto de contato era a vinculação da magistratura ordinária às decisões proferidas em sede de controle concentrado (eficácia erga omnes e efeito vinculante).
A fiscalização da constitucionalidade poderia ocorrer, portanto, de duas formas independentes: a) o controle concentrado, efetuado pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas, a serem movidas exclusivamente pelos legitimados por lei para a instauração da instância; b) o controle difuso, efetuado incidentalmente por todos os juízes e tribunais, no exercício normal da atividade jurisdicional, em toda e qualquer ação judicial submetida à apreciação do Poder Judiciário.
Primeira forma de controle de constitucionalidade a surgir no Brasil, previsto na Constituição da República, de 1891, o controle difuso inspirou-se na experiência dos Estados Unidos da América, ante a influência exercida pelo direito norte-americano na pessoa de Rui Barbosa, jurista encarregado da formulação do projeto da primeira constituição brasileira da era republicana. Trata-se da fiscalização da constitucionalidade das leis e atos normativos estatais como questão incidental à solução de casos concretos submetidos à apreciação do Poder Judiciário, razão pela qual é também chamado de cotrole “concreto”. A questão constitucional é dita “incidental” quando, no contexto de um conflito específico judicializado, cujo mérito é um bem jurídico diverso, cogita-se do afastamento da aplicação da lei ante o argumento da incompatibilidade formal ou material do ato legislativo em relação à Constituição. A inconstitucionalidade não se revela como questão principal, mas meramente incidental. É denominado de “difuso” porquanto realizado por qualquer juiz ou tribunal do País, não constituindo poder concentrado em um único órgão estatal, mas difundido nos diversos órgãos do Judiciário nacional, incluindo a suprema corte nacional, que, no caso brasileiro, é o Supremo Tribunal Federal.
O modelo norte-americano do controle difuso tem por característica primordial o fato de que a decisão acerca da inconstitucionalidade da lei ou ato normativo vale somente para o caso concreto no qual foi a questão apreciada de forma incidental. Significa dizer que, apesar da declaração de inconstitucionalidade da lei por um órgão do Poder Judiciário nacional, o qual pode afastar, no todo ou em parte, sua aplicação no caso concreto, ou, ainda, conferir interpretação conforme a Constituição ou proceder à declaração de nulidade parcial sem redução de texto, a lei continua válida e aplicável aos demais casos não abrangidos pelo processo.
Ainda que, por força da sucessiva interposição de recursos, o caso venha a ser apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, no formato tradicional do modelo concreto, a decisão faz coisa julgada somente inter partes, não alcançando sujeitos não integrantes da demanda. Da forma como projetado pelo constituinte originário, no controle concreto de constitucionalidade, a decisão somente alcança as partes do processo, tanto assim que o art. 52, X, da CF/88, assegura ao Senado Federal a possibilidade de “suspender a execução” da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em controle concentrado – evidentemente, como forma de estender os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal, produzindo o resultado prático equivalente ao de atribuição de eficácia erga omnes a uma declaração de inconstitucionalidade cujo efeito era exclusivamente inter partes.
Incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição de 1946, que criou a figura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), o controle concentrado, por sua vez, consiste na fiscalização da constitucionalidade de leis ou atos normativos em tese, por meio de ação direta movida perante o Supremo Tribunal Federal, o qual aprecia a constitucionalidade da lei em abstrato, sem referência a qualquer caso concreto, produzindo decisão com eficácia erga omnes e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário nacional. (BRASIL, 1999, p. 1) Diferentemente do controle difuso, no qual a decisão vincula apenas as partes do processo, no controle concentrado, a decisão alcança, com igual força, também, quem não participou do processo, dado que a lei é declarada inconstitucional em abstrato, ante o mero cotejo do texto legal com a norma constitucional, sem que a decisão se refira a um conflito concreto de interesses. O objeto da ação é a questão constitucional em si, de modo que compreende o próprio mérito do processo.
A ação voltada ao controle concentrado da constitucionalidade somente pode ser movida pelos legitimados previstos no art. 103, da CF/88. No curso do processo, a defesa do ato impugnado é efetuada pelo Advogado-Geral da União. Admite-se a participação do amicus curiae, consubstanciado na pessoa de sujeitos ou entidades com autoridade no assunto e representatividade adequada, que podem se manifestar a favor ou contra a declaração de inconstitucionalidade. Tal como ocorre no controle difuso, pode a declaração abranger o todo ou parte do ato normativo, sendo técnicas admissíveis a imposição de interpretação conforme a Constituição e a pronúncia de nulidade parcial sem redução de texto. (BRASIL, 1999, p. 1)
No modelo brasileiro, são três as ações diretas que materializam o controle concentrado de constitucionalidade, todas de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal: a) ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade), cujo pedido é a declaração de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos federais ou estaduais, incluindo a inconstitucionalidade por omissão; b) ADC (Ação Declaratória de Constitucionalidade), voltada para a declaração de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, nos casos em que haja comprovação de divergência judicial relevante; e c) ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), que, segundo a doutrina, pode ter por objeto lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, direito pré-constitucional, atos do poder público, atos privados e atos jurisdicionais. (BARROSO, 2012, p. 329 -338) ADI e ADC são regulamentados pela Lei 9.868/99, ao passo que a ADPF é objeto da Lei 9.882/99.
Como se vê, as duas modalidades de controle de constitucionalidade no Brasil foram projetadas, na visão do constituinte originário, de modo autônomo e independente. Somente a decisão em sede de controle concentrado ostentava eficácia geral, ao passo que o controle difuso, reservado à declaração incidental de inconstitucionalidade, operava efeitos apenas inter partes, vinculando unicamente os sujeitos participantes do processo, em cujo bojo havia sido declarada incidentalmente a inconstitucionalidade, ainda que desse julgamento viesse a participar, pela via recursal, o Supremo Tribunal Federal, que detém competência para o controle concentrado de inconstitucionalidade.
Nesse último caso, nos termos do art. 52, X, da Constituição Federal, caberia ao Senado Federal, por decisão política e discricionária, suspender a execução da lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF, o que se convencionou realizar mediante o ato normativo primário denominado “Resolução”. Consoante se extrai do endereço eletrônico oficial do Senado Federal, em texto divulgado pela assessoria de publicidade, datado de 29/06/1998:
Entre as atribuições do Senado Federal mantidas pela Constituição de 1988, destaca-se a competência privativa de suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF). Para que isso ocorra, é necessária comunicação do presidente do STF, representação do procurador-geral da República e projeto de resolução de iniciativa da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Tanto a comunicação como a representação e o projeto deverão ser instruídos com o texto da lei cuja execução deve ser suspensa, o acórdão do Supremo, o parecer do procurador-geral da República e a versão do registro taquigráfico do julgamento. Depois de lida em plenário, a comunicação ou representação é encaminhada à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), que formulará projeto de resolução suspendendo a execução da lei, no todo ou em parte. Apenas as decisões do Supremo Tribunal Federal sobre ações de controle indireto são remetidas para apreciação do Senado. Essas ações são aquelas em que uma das partes alega que a lei que está sendo aplicada é inconstitucional e a matéria vai tramitando de instância em instância até chegar ao Supremo. Nos casos de ações diretas, a decisão do Supremo passa a valer para todos os casos. Se o STF decidiu pela inconstitucionalidade, a lei passa automaticamente a ser considerada inconstitucional.Mas o Senado não está obrigado a suspender uma lei considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Quando isso ocorre, e o plenário do Senado assume uma posição contrária à tomada pelo Supremo, a decisão do STF permanece válida apenas para as causas julgadas em última instância pelo próprio Supremo. Apesar de a última palavra ser do Senado nos casos de controle indireto, as decisões do Supremo não são invalidadas, apenas não se tornam regra e a lei não é suspensa. (BRASIL, 2018, p. 1)
Tal entendimento era compartilhado pela doutrina especializada e vigorou na prática jurisprudencial e legislativa pelos primeiros 30 (trinta) anos de vigência da Constituição Federal de 1988. Apenas as decisões do STF em sede de controle concentrado ostentavam eficácia geral; no âmbito do controle difuso, ainda que decidida a questão em única ou última instância pelo Supremo Tribunal Federal, ostentava a decisão eficácia somente em relação aos sujeitos do processo, salvo suspensão da execução por Resolução do Senado Federal, após proposta da Comissão de Constituição e Justiça, na forma do regimento interno.
As transformações operadas no processo judicial brasileiro, contudo, que ocasionaram o fortalecimento da jurisprudência como fonte do Direito e culminaram, com o novo Código de Processo Civil, na criação de precedentes vinculantes no direito brasileiro (cuja força obrigatória, segundo entendimento das cortes superiores, transcende os limites do processo civil, alcançando, inclusive, ações de natureza penal), resultariam em uma mudança no quadro de distribuição de competências, com a racionalização da jurisdição das cortes superiores e, no âmbito do STF, a superação da dualidade entre os controles difuso e concentrado de constitucionalidade. Ante a perspectiva de que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça devem atuar, em nível recursal, primordialmente, como tribunais de teses, cuja manifestação transcende os limites da causa, operando, pela via do precedente, a vinculação da magistratura ordinária à ratio decidendi, iniciou-se um processo de superação do regramento segundo o qual as decisões do STF em controle difuso de constitucionalidade produziriam efeitos apenas inter partes.
A mudança, que aqui se optou por denominar de “abstrativização” do controle difuso de constitucionalidade, iniciou-se com a criação do requisito específico da repercussão geral para os recursos extraordinários e a sistemática do julgamento unificado de recursos especiais e extraordinários repetitivos, e acabou por ser formalmente reconhecida em decisão recente do Supremo Tribunal Federal, datada de 29/11/2017.
A Emenda Constitucional n.º 45, de 30 de dezembro de 2004, introduziu um § 3º ao art. 102, da CF/88, o qual restringiu o cabimento do recurso extraordinário para as hipóteses em que fosse demonstrada a “repercussão geral” das questões discutidas no caso concreto. (BRASIL, 1988, p. 1) A norma constitucional relegou à legislação ordinária a definição do que viria a ser o conteúdo do novo requisito de admissibilidade, tendo a matéria sido regulamentada pela Lei n.º 11.418, de 19 de dezembro de 2006, que incluiu o art. 543-A ao CPC/73, segundo o qual, “Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.” (BRASIL, 1973, p. 1) O requisito encontra-se hoje previsto no art. 1.035, § 1º, do Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015).
O instituto procedeu a verdadeiro corte na competência do Supremo Tribunal Federal, que deixou de ser instância regular de julgamento para os casos que comportem questão constitucional para, tão somente, admitir controvérsias cujo interesse discutido ultrapasse os limites subjetivos da causa. Passou a ser ônus do recorrente demonstrar, em preliminar do recurso, e para a apreciação exclusiva do STF, a existência da repercussão geral. O encargo se manifesta inclusive sob o aspecto formal: nos termos do art. 327, caput, do Regimento Interno do STF, inexistindo preliminar explícita nas razões do extraordinário sustentando a ocorrência da repercussão geral, o recurso não será conhecido. (BRASIL, 2013, p. 148)
A repercussão geral foi uma estratégia de objetivação da jurisdição superior (WOLKART, 2013, p. 35), fundada na necessidade de desafogar o Supremo Tribunal Federal, o qual, pela abrangência nacional de sua competência territorial, encontrava-se, à época da edição da EC n.º 45/2004, sobrecarregado com um número excessivo de recursos oriundos de todas as regiões do País. A irracionalidade do quadro se mostrava ainda mais evidente quando se considerasse que os recursos que obstruíam a pauta do STF tinham por objeto, no mais das vezes, questões jurídicas já resolvidas em pronunciamentos anteriores da corte, nas denominadas demandas de massa ou repetitivas, a exemplo das questões tributárias, previdenciárias, relativas ao direito do consumidor, a procedimentos administrativos e à competência legislativa de estados e municípios.
Como resultado de diversas transformações ocorridas nos cenários social e econômico, nos últimos anos, ocorreu verdadeira crise material do Judiciário brasileiro, o qual viu aumentar sobremaneira os índices de litigiosidade da população, forçando tribunais e juízos de primeira instância a elevarem a produção e a produtividade, tanto pela ampliação do quadro de pessoal quanto pela adoção de técnicas mais aprimoradas de gestão. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, o reflexo dessa elevação drástica na carga de trabalho foi a verdadeira supressão da atividade primordial do pretório excelso, o qual praticamente deixou de exercer o papel de corte constitucional para pronunciar, repetidas vezes, a mesma ratio decidendi, ante a resistência de partes e advogados em deixar de provocar a última instância na forma do recurso extraordinário, apesar de cientes do provável insucesso da pretensão, à luz da jurisprudência dominante da corte.
Tornou-se necessário, pois, limitar o acesso das partes ao Supremo Tribunal Federal, de sorte a permitir um exercício racionalizado da jurisdição da Corte Maior em face dos novos contornos assumidos pelos litígios sociais. O desiderato somente poderia ser alcançado pela instituição de um sistema de precedentes, nos quais as decisões prolatadas pelo Supremo em sede de demandas comprovadamente repetitivas fossem aplicáveis aos demais feitos que tivessem por objeto questão idêntica de direito. Uma solução nesses moldes, para além de promover evidente economia processual, com reflexos na celeridade da prestação jurisdicional, proporcionaria maior previsibilidade e unidade ao direito.
Assim é que, paralelamente à instituição do novo requisito de admissibilidade que foi a repercussão geral, criou-se um regime unificado de julgamento de recursos extraordinários repetitivos e um sistema que favorecia a aplicação do precedente pelas cortes locais, ante a possibilidade de reexame do acórdão prolatado pelos tribunais de segunda instância, de modo a adequá-lo à decisão proferida pelo Supremo. Na nova sistemática, o tribunal local ficou com a incumbência de selecionar um ou mais recursos representativos da questão jurídica e os remeter ao STF, sobrestando os demais na origem até o julgamento definitivo pelo Supremo. Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados consideram-se inadmitidos por expressa disposição legal, em interessante eficácia extraprocessual da decisão relativa à repercussão geral. Caso entenda o STF, contudo, pela satisfação do requisito de admissibilidade, o resultado do juízo de mérito seria publicado para apreciação dos tribunais de segunda instância, os quais, retomando o andamento dos feitos sobrestados, poderiam “declarar prejudicados” os recursos extraordinários (caso de a decisão do STF ser consentânea com o acórdão recorrido) ou “retratar-se” (hipótese de o decidido no julgamento do RE contrariar a decisão do tribunal local), já que essa última situação, ante a vinculação horizontal do precedente sobre a repercussão geral, apontaria para o necessário provimento do extraordinário caso viessem os autos a subir para a apreciação do Supremo. (BRASIL, 1973, p. 1)
A mesma Lei n.º 11.418/2006, que definiu no plano infraconstitucional o significado da repercussão geral, incluiu o art. 543-B, ao CPC/73, estatuindo que, havendo “multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia”, a análise da repercussão geral será efetuada por amostragem, a exemplo do que já ocorria com os recursos do Juizado Especial Federal. Ocorre que não se contentou o legislador com isso, tendo a lei avançado para assegurar a ampliação da eficácia da tese firmada no julgamento do mérito dos recursos representativos da controvérsia para os processos sobrestados, pois, nos termos do art. 3º, do recém criado art. 543-B, do CPC/73, “Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.” (BRASIL, 1973, p. 1)
Isto é: não apenas a existência da repercussão geral para uma determinada questão jurídica seria decidida por amostragem como também o próprio mérito dos recursos extraordinários repetitivos seria julgado de forma unificada e com base nos feitos representativos da controvérsia. A imbricação entre o julgamento unificado do mérito do recurso e o exame por amostragem do requisito da repercussão geral foi tamanha que, tanto na praxe do STF quanto na própria legislação, houve certa confusão terminológica, de modo que a expressão “sistemática da repercussão geral” passou a significar o regime de julgamento por amostragem de recursos repetitivos, com sobrestamento de processos e formação de precedente de alta força persuasiva – ainda que, a rigor, tal opção se mostre tecnicamente incorreta, vez que o requisito de admissibilidade da repercussão geral não se confunde com a metodologia de apreciação por amostragem da existência desse requisito e, muito menos, com o julgamento unificado do mérito dos recursos extraordinários repetitivos que foram técnicas instituídas contemporaneamente à definição infraconstitucional do significado do novo requisito de admissibilidade.
Assim, desde 2006 que o julgamento pelo pleno do STF somente ocorre, diretamente, para os feitos representativos da controvérsia, sendo que os demais processos que versem sobre questão idêntica permanecem sobrestados na origem, aguardando, no caso de concordância do acórdão local com a orientação proclamada pelo Supremo, a aplicação da decisão do STF pelo tribunal de segunda instância, o qual declarará prejudicado o recurso e, em caso de divergência entre o entendimento do tribunal local e o precedente de mérito da Corte Maior, uma forma especial de efeito regressivo do RE, consistente na possibilidade de retratação do acórdão já publicado pelo membros do tribunal a quo. (DIDIER JÚNIOR; CUNHA, 2009, p. 340) Sob a égide desse regime, houve redução significativa no número de processos submetidos ao crivo do STF e maior uniformidade do direito, principais objetivos da reforma.
No âmbito do STJ, dado o sucesso da sistemática de julgamento por amostragem do recurso extraordinário, adotou-se método semelhante para o julgamento de recursos especiais repetitivos. A inovação veio um ano e meio depois da edição da norma infraconstitucional que regulamentou a repercussão geral, na forma da Lei n.º 11.672, de 8 de maio de 2008, que acrescentou o art. 543-C, ao CPC/73, criando procedimento praticamente idêntico ao do julgamento dos recursos extraordinários repetitivos pelo STF. [1]
4 A CONSOLIDAÇÃO DO SISTEMA DE PRECEDENTES COM O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Em 18 de março de 2016, após vacatio legis de 1 (um) ano, entrou em vigor o Novo Código de Processo Civil, Lei n.º 13.105/2015, fruto de amplo debate no Congresso Nacional, com participação de diversos setores da sociedade, em especial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que se debruçaram sobre o pré-projeto elaborado por comissão de juristas nomeada no âmbito do Senado Federal, liderada pelo Ministro do STF e Docente Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professor Doutor Luiz Fux.
Um dos aspectos centrais do novo código é, precisamente, o sistema de precedentes judiciais obrigatórios que institui, consolidando a sistemática do julgamento por amostragem de recursos extraordinários repetitivos (“regime da repercussão geral”) e o julgamento unificado de recursos especiais repetitivos, além da criação de outros institutos aptos à formação de precedentes obrigatórios, como o Incidente de Assunção de Competência (IAC) e o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), no âmbito dos tribunais locais, tendo conferido, ainda, força vinculante aos entendimentos sumulados do STF e STJ. [2]
No plano do STF – que mais interessa ao presente estudo – a diferença primordial passou a ser a imposição da autoridade do precedente formado em controle difuso de constitucionalidade com força vinculante aos demais juízos e tribunais do País. Sob o CPC/73, o entendimento firmando no julgamento de um recurso extraordinário, embora sob a sistemática da repercussão geral, ainda não se mostrava formalmente obrigatório, na medida em que a lei apenas facultava aos tribunais locais retratar-se, caso o acórdão da segunda instância discordasse da decisão proferida pelo STF. (BRASIL, 1973, p. 1) [3] Isto é: inobstante toda a lógica do sistema estivesse voltada para a aplicação do precedente, inclusive por revelar-se praticamente inútil decisão diversa, dado que o recurso já estava interposto e já havia sido decidido em sentido contrário pela corte superior através do feito representativo da controvérsia, não tinha o legislador ainda avançado ao ponto de conferir eficácia vinculante ao precedente, de sorte que, nos estritos termos da lei, não havia verdadeiro dever funcional de aplicação do entendimento pela corte inferior, à semelhança do chamado regime de stare decisis, usual nos países de common law.
Com o Novo Código de Processo Civil de 2015, contudo, avança-se sobremaneira no tema, na medida em que o art. 927 é categórico ao afirmar a obrigatoriedade de observância das teses jurídicas firmadas em julgamento de recursos especiais e extraordinários repetitivos, além de outros casos que especifica. In verbis:
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. (BRASIL, 2015, p. 1)
Por conseguinte, sob o CPC/2015, todo precedente do STF (e não apenas o formado em decisão de controle concentrado de constitucionalidade) passou a ter, de certa forma, aplicação geral, na medida em que a tese firmada se mostra vinculante para todos os demais juízes e tribunais do País. Trata-se de regramento significativamente diverso do que prevalecia na vigência do CPC/73, pois, ali, a força do precedente – afirmada ainda de forma tímida – somente ocorria, formalmente, para o processo no bojo do qual havia sido interposto recurso extraordinário, o qual, uma vez sobrestado para o julgamento da questão jurídica no feito representativo da controvérsia, atrairia, por força da própria lógica do sistema, a incidência do entendimento firmado pelo tribunal superior. Para as ações que viessem a ser propostas posteriormente à fixação da tese pelo STF, contudo, à luz da estrita disposição legal, ainda não havia vinculação formal da magistratura, o que passa expressamente a ocorrer com o art. 927, do CPC/2015.
Atualmente, a tese jurídica firmada pelo STF no julgamento de um recurso extraordinário individual, eleito como representativo da controvérsia, além de ser aplicada de imediato aos processos sobrestados, aplica-se, também, obrigatoriamente, aos processos futuros, que venham a ser submetidos à apreciação do Judiciário, e versem sobre idêntica questão de direito.
É nesse contexto de vinculação precedencial formal imposta pelo CPC/2015 que o Plenário do STF, em decisão recente, datada de 29/11/2017, reconheceu a produção de efeitos erga omnes pela decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso de constitucionalidade, sem necessidade de suspensão da execução da norma pelo Senado Federal. No julgamento conjunto das ADIs 3406 e 3470, ambas oriundas do Estado do Rio de Janeiro, o Plenário do STF, em julgado da Relatoria da Ministra Rosa Weber, declarou a ocorrência de mutação constitucional do art. 52, X, da CF/88, ante a incompatibilidade de sua interpretação literal com o regime de precedentes vinculantes instituído a partir da EC 45/2004, que criou o requisito da repercussão geral.
Inobstante a ausência de previsão expressa no texto constitucional, dada a redação sintética e até omissa do art. 102, § 3º, CF/88, um dos sentidos do requisito da repercussão geral, para além do corte na competência do STF, que não mais iria apreciar questões menores ou provincianas, mas apenas as que tivessem o condão de abalar interesses relevantes de uma inteira coletividade, era o julgamento por amostragem dos recursos extraordinários que versassem sobre idêntica questão de direito, na medida em que, se ao STF não mais competia julgar sequer recursos não repetitivos que não ostentassem transcendência em relação às partes do processo, quanto mais inadmissível seria que permanecesse se pronunciando repetidas vezes sobre idêntica questão de direito, nas questões de massa que produzissem grande repetição de recursos extraordinários. A própria ideia de uma repercussão “geral” da questão jurídica, consubstanciada na existência de elementos que suponham haver interesse na apreciação da matéria por sujeitos não integrantes da específica relação processual, já revela, de per si, o viés coletivo atribuído ao recurso extraordinário pelo instituto e, por conseguinte, a estreita ligação do novel requisito com a formação de um sistema de precedentes.
Essa relação foi explicitada pela Lei n.º 11.418/2006, que incluiu o art. 543-B, ao CPC/73, criando o sistema de julgamento por amostragem do mérito de recursos extraordinários, a partir da apreciação por amostragem do requisito da repercussão geral. O julgamento por amostragem do recurso parte do pressuposto lógico da cisão entre o caso concreto e a tese jurídica, precisamente para que a tese possa ser julgada em abstrato e possa ser aplicada a processos futuros, segundo os preceitos da doutrina dos precedentes, consubstanciada na regra do stare decisis, conhecida de longa data dos países que integram o sistema jurídico da common law.
Com a previsão, pelo CPC/2015, da força obrigatória das decisões do STF em “recursos extraordinários repetitivos” (art. 927, III), e considerando que, desde 2006, já não mais se aprecia qualquer recurso extraordinário a não ser pela sistemática dos recursos repetitivos – vale dizer, nos termos da Lei 11.418/2006, todo recurso extraordinário é, presumivelmente, uma demanda recursal repetitiva –, havendo, por conseguinte, a apreciação por amostragem do requisito da repercussão geral e a declaração de suspensão em todo o território nacional dos processos que versem sobre questão idêntica ainda que não se saiba se, de fato, existem outras demandas de igual teor em trâmite no País, tem-se que, como resultado, o julgamento de qualquer recurso extraordinário pelo STF é apto à formação de precedente vinculante. E, por ser vinculante à magistratura ordinária, é evidente que sua ratio deve regular a vida social, o que equivale, em termos práticos, à eficácia erga omnes do controle concentrado.
A decisão foi noticiada no Informativo 886 do STF. Até a data de encerramento deste estudo, em março de 2018, o acórdão ainda se encontrava pendente de publicação – o que, contudo, por óbvio, não impede a absorção do entendimento pelos juízes e tribunais do País, sobretudo quando se considere que a íntegra da gravação da sessão plenária encontra-se disponível no endereço eletrônico do Supremo Tribunal Federal, com a exposição sumária das razões dos votos na forma oral. Nesse sentido, é de se registrar que casos há em que a publicação do acórdão pelos setores administrativos do STF demora cerca de 1 (um) ano. Inobstante, ainda nesse interregno, o STJ já passa a aplicar o entendimento do Supremo, o que evidencia ser a orientação vinculante, do ponto de vista prático, independentemente da publicação do acórdão. Exemplo do que se afirma foi a equiparação entre casamento e união estável para fins sucessórios, operada pelo Supremo no julgamento do RE 878.694/MG, assimilado e referido pelo STJ de imediato, ainda antes da publicação do acórdão.
Segundo o Informativo, a questão principal debatida em Juízo era a alegação de inconstitucionalidade da Lei n.º 3.579/2001 do Estado do Rio de Janeiro, que proíbe a extração do amianto em todo território daquela unidade da federação e prevê a substituição progressiva da produção e da comercialização de produtos que o contenham. O Plenário do STF, por maioria, julgou improcedentes os pedidos formulados nas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas contra a mencionada Lei, declarando, também por maioria e incidentalmente, a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei Federal nº 9.055/1995, que regulava a possibilidade de utilização do amianto na modalidade crisotila, e reconhecendo, quando a esta declaração incidental, a existência de efeito vinculante e eficácia erga omnes.
Ressalte-se que tal eficácia geral jamais foi admitida em julgados anteriores, porquanto a questão estava sendo debatida em sede de controle incidental de constitucionalidade, ainda que no bojo de uma ação direta de inconstitucionalidade. A ADI é uma ação judicial como qualquer outra e permite o controle incidental como razão de decidir da questão principal, que, no caso, coincide em ser também uma questão constitucional. Nessa hipótese, a questão constitucional principal, por expressa disposição legal, faz coisa julgada erga omnes e produz efeito vinculante, mas a questão incidental, ainda que resolvida no seio de uma ação de controle direto, segundo a jurisprudência até então existente no STF, não produz eficácia geral, mas apenas inter partes. Logo, ao decidir conferir eficácia vinculante e efeito geral à decisão em controle difuso, o STF rompeu com uma tradição histórica, avançando em campo ainda não explorado pela jurisprudência e superando a literalidade do art. 52, X, da CF/88.
A questão processual objeto do presente estudo surge, no referido julgado, por iniciativa do Min. Gilmar Mendes, que enxergou no caso a oportunidade de reconhecer, no plano jurisprudencial, as transformações operadas pelo sistema de precedentes no controle de constitucionalidade. É que o art. 2º da Lei 9.055/1995 já havia sido declarado inconstitucional, incidentalmente, no julgamento da ADI 3.937/SP (relator originário Min. Marco Aurélio, redator para o acórdão Min. Dias Toffoli, julgamento em 24/08/2017), e, por força da interpretação literal atribuída ao art. 52, X, da CF/88, não tendo havido a suspensão da execução da norma pelo Senado Federal, a decisão não ostentava eficácia geral, o que permitia a aplicação do dispositivo por quem não tinha sido integrante do processo anterior. Por se tratar de questão grave e relevante, atinente aos limites do exercício da atividade econômica e à saúde da coletividade, em curto espaço de tempo, foi o Supremo instado a manifestar-se novamente sobre a mesma questão constitucional, frustrando o intuito de racionalização da jurisdição superior do sistema de precedentes, iniciado desde a instauração da repercussão geral e da sistemática de julgamento unificado de recursos extraordinários repetitivos.
Segue a transcrição do trecho de interesse do Informativo:
A partir da manifestação do ministro Gilmar Mendes, o Colegiado entendeu ser necessário, a fim de evitar anomias e fragmentação da unidade, equalizar a decisão que se toma tanto em sede de controle abstrato quanto em sede de controle incidental. O ministro Gilmar Mendes observou que o art. 535 do Código de Processo Civil reforça esse entendimento. Asseverou se estar fazendo uma releitura do disposto no art. 52, X (3), da CF, no sentido de que a Corte comunica ao Senado a decisão de declaração de inconstitucionalidade, para que ele faça a publicação, intensifique a publicidade.O ministro Celso de Mello considerou se estar diante de verdadeira mutação constitucional que expande os poderes do STF em tema de jurisdição constitucional. Para ele, o que se propõe é uma interpretação que confira ao Senado Federal a possibilidade de simplesmente, mediante publicação, divulgar a decisão do STF. Mas a eficácia vinculante resulta da decisão da Corte. Daí se estaria a reconhecer a inconstitucionalidade da própria matéria que foi objeto deste processo de controle abstrato, prevalecendo o entendimento de que a utilização do amianto, tipo crisotila e outro, ofende postulados constitucionais e, por isso, não pode ser objeto de normas autorizativas. A ministra Cármen Lúcia, na mesma linha, afirmou que a Corte está caminhando para uma inovação da jurisprudência no sentido de não ser mais declarado inconstitucional cada ato normativo, mas a própria matéria que nele se contém. O ministro Edson Fachin concluiu que a declaração de inconstitucionalidade, ainda que incidental, opera uma preclusão consumativa da matéria. Isso evita que se caia numa dimensão semicircular progressiva e sem fim. E essa afirmação não incide em contradição no sentido de reconhecer a constitucionalidade da lei estadual que também é proibitiva, o que significa, por uma simetria, que todas as legislações que são permissivas — dada a preclusão consumativa da matéria, reconhecida a inconstitucionalidade do art. 2º da lei federal — são também inconstitucionais. Em divergência, o ministro Marco Aurélio afirmou que o fenômeno previsto no inciso X do art. 52 da CF — regra que atende a independência e harmonia entre os poderes — é constitutivo e não simplesmente declaratório, visto que diz respeito à suspensão da execução da lei no território nacional. (STF, Informativo 886)
A análise do vídeo da sessão de julgamento disponibilizado na Internet pelo perfil oficial do STF revela que a questão foi bastante debatida como obiter dictum no bojo do julgamento das mencionadas ADIs. Em sede de aparte ao voto do Min. Alexandre de Moraes, os ministros discutiram a problemática inerente à repetição do tema na Corte, e, por conseguinte, a possibilidade de, reinterpretando o art. 52, X, da CF/88, admitir-se que os efeitos da decisão proferida em sede de controle difuso alcançassem também as partes não integrantes do processo. Em decorrência, a declaração de constitucionalidade de uma lei estadual que veda o uso do amianto na modalidade crisotila imporia a solução da questão para todos os demais Estados da federação, não se fazendo necessário novo pronunciamento do Supremo relativamente a leis de outros entes federados.
Após o voto da Min. Rosa Weber na condição de relatora, o Min. Alexandre de Moraes iniciou a exposição de seu voto com a indagação acerca do conteúdo da decisão do colegiado na ADI 3937/SP, na qual restou vencido, solicitando do plenário esclarecimento quanto a se a Corte havia conferido interpretação conforme a Constituição para declarar inconstitucional a utilização de toda forma de amianto ou apenas excluir do ordenamento o art. 2º, da Lei n.º 9.055/1995, que versava sobre a possibilidade de utilização do amianto da modalidade crisotila, abrindo, com isso, espaço, para a atuação legislativa estadual, nos termos da competência concorrente do art. 24, da CF/88. Pondera que, caso se tivesse obtido quórum de maioria absoluta no julgamento da ADI 4066, que apreciou como questão principal a inconstitucionalidade da lei federal que permite o uso do amianto crisotila, afirmando-se, por conseguinte, a vedação constitucional da utilização do referido minério, todas as demais ADIs que versassem sobre a constitucionalidade de leis locais proibitivas ou permissivas do uso do amianto estariam prejudicadas, na medida em que a decisão possuiria eficácia erga omnes e efeito vinculante. Contudo, como não se alcançou tal quórum, tendo a lei sido reputada inconstitucional por 5 votos contra 4, não se tendo atingido o número mínimo de 6 ministros, a declaração de inconstitucionalidade existente era a da ADI 3937, quando se julgou Lei do Estado de São Paulo, e na qual a lei federal foi declarada inconstitucional apenas incidentalmente, sem ostentar, portanto, eficácia erga omnes, solução que estava novamente sendo apresentada pela relatora, Min. Rosa Weber, desta feita em relação a lei do Estado do Rio de Janeiro.
A este ponto [4], o Min. Gilmar Mendes intervém:
“Vossa Excelência me permite uma consideração? Falando um pouco desta questão, mas, também, projetando-a para além dos casos, desse caso, para outros casos, nós podemos ter situações, realmente, muito delicadas, a meu ver. Nesse caso, Vossa Excelência está mostrando que pode haver divergência entre as legislações estaduais. Esse é um ponto que precisa ser considerado. E, a partir daí, em se tratando de um produto de fabricação nacional, nós vamos gerar problemas e, inclusive, nichos locais onde isso pode estar proibido e outros em que isto será aceito, dificultando e colocando até um tipo de proibição, no que diz respeito à produção e consumo. Já discutimos essa questão aqui em relação a rótulos. Min. Fux foi autor de um belíssimo precedente em relação à questão da cana, à queima da palha em São Paulo, onde essa questão se coloca. Você acaba por não uniformizar. Isso é um problema, que, inclusive, na Europa, projeta relações para além do Estado-Nação, porque, de fato, se você discute regras, por exemplo, sobre dejetos em determinado rio, Danúbio, ou coisas do tipo, você, na verdade, precisa ter uma regra que seja abrangente para além de fronteiras de dados países, do contrário, isto acaba... Portanto, essa é uma questão delicada, que nós temos de uniformizar. E, mais uma vez, aí – mas aí eu pontuaria essa angústia de Vossa Excelência, e acho que o CPC, neste ponto, talvez sinalize, uma superação, ponto em que eu tenho insistido –, que nós não temos outra alternativa, pelo menos no âmbito do Supremo, senão equalizar a decisão que se toma em sede de controle abstrato e a decisão que se toma em sede de controle incidental. E, agora, me parece que o CPC vem em reforço, quando a norma não distingue mais a declaração de inconstitucionalidade em uma ou outra situação. Na prática, nós já fazemos isso, um pouco. Nós não esperamos que o Senado suspenda. E, como sabemos, é um pouco sazonal, a suspensão por parte do Senado. Às vezes ele faz, até faz com certa diligência – isso depende muito da atividade da Comissão de Constituição e Justiça –, às vezes esse assunto é negligenciado, e o Senado não se debruça sobre esse tema, porque é um tema assaz técnico, vamos dizer assim, e considerando a formação da casa legislativa. Então, essa questão, me parece, nós vamos ter que enfrentar, ou agora, ou em outro momento, porque, de fato, a meu ver, não faz muito sentido fazer-se essa distinção. Um caso que passou por todas as instâncias, desde o primeiro grau vem sendo discutido, portanto, bastante moroso – certamente todos esses REs têm lá mais de 10 anos –, o que estou projetando, então, é a necessidade de nós encaminharmos uma solução, sob pena de nós, em verdade, investirmos em um impasse, quer dizer, vamos ficar a... E, na prática, nós já estamos, um pouco, fazendo isso, até indo além. Se nós olharmos o que fazemos hoje no controle de lei municipal, Presidente, nós vamos ver que temos decisões de todos os ministros, em um dado momento, de que aquilo que se assentou sobre IPTU progressivo, sobre taxa de iluminação pública, em relação a um dado município, nós projetamos para o outro, embora sejam leis diferentes, acabamos nem..., e não temos outra alternativa. Do contrário, teríamos, que em alguns casos, ter aqui 5.600 [Min. Cármen Lúcia: quase 6.000 ações para discutir o mesmo conteúdo].”
O Min. Luiz Fux acrescenta:
“Senhora presidente, se me permite, isso é um caso típico de uma questão prejudicial de mérito. É um caso típico de uma questão que forma um prejuízo sobre a questão consequente. Se, efetivamente, a lei federal é inconstitucional, tanto faz, as leis locais são absolutamente indiferentes, não pode amianto de forma alguma, de sorte que as leis locais também não podem regular aquilo que, na essência, já foi declarado inconstitucional. Agora, o contrário, ou seja, se nós entendermos que é constitucional a exploração de amianto crisotila, aí, as leis locais teriam competência concorrente para, naquele território, permitir também o amianto crisotila. Agora, se for declarada inconstitucional com quórum suficiente, eu acho que a eficácia é erga omnes, todos nós estamos animados. Agora, é preciso atender esse quórum.”
O debate prossegue com a participação de diversos ministros:
Min. Cármen Lúcia: “O Min. Alexandre de Moraes chamou bem a atenção sobre isso, nesta matéria, acho que é um pouco diferente, e o Min. Gilmar Mendes vai além. Se eu bem entendi, o que o Min. Gilmar põe é que nós estamos caminhando na jurisprudência constitucional brasileira para algo que era inédito em nossa história, é declarar a inconstitucionalidade de matéria, e não de uma lei específica.”
Min. Gilmar Mendes: “Isso é um segundo aspecto, que seria o efeito vinculante do fundamento determinante, mas, antes, o que estou dizendo é que, a força do precedente que o CPC quer trazer, na verdade, é abrangente dessa....”
Min. Luiz Fux: “O código, inclusive, agora, por exemplo, na fase de execução, quando se quer alegar que a sentença que é objeto do cumprimento ou da execução antiga se baseou em lei inconstitucional, diz que a lei pode ter sido considerada inconstitucional em controle concentrado ou em controle incidental. Qualquer dos controles é suficiente para que a parte possa se escusar de cumprir uma sentença inconstitucional.”
Min. Rosa Weber: “Mas, de qualquer forma, Min. Fux, se Vossa Excelência me permite, a questão continua de enorme complexidade, porque não há sequer um pensamento único quanto ao que sejam as normas gerais e quanto ao que sejam as normas especiais. Por isso que eu até trouxe a definição do Diogo de Figueiredo para partir, pelo menos para mim, eu acolhi para fazer uma delimitação e continuo com o meu juízo de improcedência, ainda que sem declarar a inconstitucionalidade incidental da Lei 9.055, porque eu entendo que o Estado pode, sim, no exercício da competência suplementar, ele pode disciplinar naquilo em que ele não afasta o comando da norma geral, naquilo em que ele não se contrapõe ao comando da norma geral, que é a federal, e, na linha, por isso que trouxe, até, aquele precedente do próprio Supremo, da lavra da Min. Ellen Gracie, mas não há, digamos assim, unanimidade quanto a esses conceitos, quanto a essas definições.”
Min. Luiz Fux: “O Min. Marco Aurélio e eu, por exemplo, entendemos que a norma protege mais do que esses valores, protege comércio exterior, protege bens que são tutelados por uma norma nacional.”
Min. Gilmar Mendes: “Pois é, essa é a dificuldade, gerando, então, algumas ilhas no sistema, [Min. Fux aparta: alguns Estados poderão, outros não poderão], isso é uma dificuldade para todo o sistema. Levando, inclusive, a um conflito que a própria constituição, de ‘iure constituendo’, quer evitar, por exemplo, quando, em matéria tributária, se veda, tributação especial no que diz respeito a produtos, e tudo o mais, que dificulte o transporte de pessoas ou bens, porque acaba tendo esse tipo de repercussão.”
O Min. Alexandre de Moraes retoma a palavra e reitera na dúvida, ao tempo em que, o Min. Edson Fachin pede a palavra para raciocinar que:
“Não há dúvida alguma que o Supremo Tribunal Federal, por maioria qualificada, na ADI da relatoria do Min. Marco Aurélio, redator para o acórdão Min. Dias Toffoli, essa a ADI 3937, declarou a inconstitucionalidade do art. 2º, da Lei 9.055. Esse é um fato jurídico normativo inequívoco. E com um quórum qualificado apto a declarar a inconstitucionalidade. Alcançamos os 6 votos. Na declaração incidental. E, portanto, à luz, do parágrafo único, do art. 28, da Lei 9868, somado com o dispositivo do nosso regimento interno, que consta do art. 101, é possível depreender a direção daquilo que, num dos segmentos da intervenção do Min. Gilmar Mendes acabou emergindo. Isto é, essa declaração de inconstitucionalidade, não há como, para resolver eventual anomia e fragmentação da unidade, não há como não depreender a possibilidade, com todas as cautelas possíveis, de isto se projetar para a compreensão das demais demandas, sob pena de nós, efetivamente, ficarmos numa metodologia semicircular progressiva, onde pensando por problemas nós só criamos mais problemas e declaremos inconstitucional uma ideia legislativa que ainda não se materializou. O que nós temos é o presente, e esse presente é o art. 2º, da Lei n.º 9055, que foi declarado inconstitucional por maioria qualificada.”
O Min. Marco Aurélio, que, ao final, apresenta entendimento contrário à inovação, afirma [5] que, na declaração de inconstitucionalidade do art. 2º, da Lei 9.055/95, havida por maioria absoluta dos membros do STF da ADI 3.937/SP, em sede de controle difuso, “porque não houve a suspensão da execução prevista na Carta da República pela casa legislativa”, referido dispositivo “continua com eficácia no território nacional”. Em resposta, o Min. Gilmar Mendes coloca: “O que estou querendo propor é que a gente faça uma revisão disso para equalizar, e, agora, reforçado por esse dispositivo, o 927, do CPC”.
O Min. Luiz Fux intervém para afirmar que é uma “boa proposta”, e acrescenta que o art. 535, § 2º, do novo CPC, equipara as decisões de controle concentrado e de controle difuso do STF para efeito de inexigibilidade do título executivo judicial, o que reforça a conclusão quanto à eficácia geral da decisão em controle difuso.
O Min. Gilmar Mendes retoma palavra e procede à leitura do art. 927, III, do CPC/2015, reiterando, ao final, que:
“A nossa prática, de alguma forma, caminha nesse sentido. Nós não ficamos aguardando a suspensão [pelo Senado]. Na verdade, o velho art. 557, do Código de Processo Civil antigo, já vinha sendo aplicado nessa perspectiva, da decisão dos precedentes, de modo que é uma forma de desatar uma controvérsia que, do contrário, pode produzir, de fato, aquilo que o Min. Fachin chamou de um ‘semicírculo permanente’. Porque nós nunca trouxemos. Veja, vamos admitir isto (embora os discursos, às vezes, variem na concretização): declarada uma inconstitucionalidade, normalmente – aqui, na verdade, nós tivemos um certo imbróglio, porque misturaram-se os procedimentos, mas, normalmente – declarada a inconstitucionalidade de uma lei em um controle difuso, aqui, nós, nunca mais, trazemos o debate para o Plenário. Em tese, se nós estivéssemos esperando o 52, X, nós teríamos que fazer. Tem até um precedente do Min. Menezes Direito em que ele julgou prejudicada uma ADIn porque a matéria já havia sido julgada em repercussão geral, considerou, portanto, que a matéria já estava resolvida. Quer dizer, nenhum de nós espera que, tendo sido a matéria pacificada em sede de controle de constitucionalidade, seja difuso, seja concentrado, que isso se reedite.”
O Min. Marco Aurélio rebate: “Quanto ao inciso X do art. 52, na redação originária do constituinte de 1988, eu ainda considero que a lei das leis do País é a Constituição Federal, e não o Código de Processo Civil.” O Min. Gilmar Mendes contra-argumenta: “A proposta que eu já tinha feito em outro momento, é que – é claro que nós não estamos fazendo uma interpretação ablativa do texto constitucional, do art. 52, X, mas, fazendo uma releitura –, era dizer, nós comunicamos ao Senado, para que o Senado faça a publicação, para que intensifique a publicidade, mas a decisão já é bastante em si.” Responde o Min. Marco Aurélio: “Senhora presidente, eu insisto no que diz o art. 52, X, da Constituição Federal, no que firma a atribuição do Senado. E esse fenômeno não é simplesmente declaratório, é constitutivo. Diz respeito à suspensão da execução da lei no território nacional.”
Após, segue-se debate envolvendo os Ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Marco Aurélio acerca do alcance do julgamento anterior, quanto a se implicaria a interpretação conforme a Constituição para proibir o uso do amianto em todas as suas modalidades no território nacional ou somente a declaração de inconstitucionalidade da norma permissiva, sem alusão à vedação geral como decorrente da própria Constituição. Discute-se, também, por iniciativa do Min. Alexandre de Moraes, acerca dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade do art. 2º, da Lei 9.055/95, a saber, se, por se tratar de lei federal sobre normas gerais, editada com fundamento na competência concorrente prevista no art. 24, CF/88, sua remoção do ordenamento pela declaração de inconstitucionalidade abriria espaço normativo para os Estados legislarem permitindo a utilização do amianto na modalidade crisotila.
A discussão, novamente, colocou em evidência a necessidade de uniformização da interpretação da matéria para os demais entes federados, evitando a reiteração do tema na tão disputada pauta do STF, de modo que o Min. Celso de Mello coloca: “Eu acho que, no fundo, a proposta do Min. Gilmar Mendes é que se declare inconstitucional a matéria que compreenda a extração, industrialização, comercialização, utilização, em ordem a conferir eficácia vinculante à própria ‘ratio’, à própria razão de decidir. Isso estabeleceria uma eficácia geral.” [6] A Min. Cármen Lúcia, presidindo o julgamento, afirma: “Por isso que eu disse que nós estamos caminhando para uma inovação na nossa jurisprudência no sentido de não ser declarada mais a inconstitucionalidade de cada ato normativo na sua forma, mas na matéria que ele contém.”
Após a conclusão do voto do Min. Alexandre de Moraes, o Min. Edson Fachin, ao proferir o seu voto pela constitucionalidade da lei estadual do Rio de Janeiro que veda o uso do amianto, julgando improcedente a ADI por afastar as alegações de inconstitucionalidade tanto formal, quanto material, nos termos do voto da relatora Min. Rosa Weber, afirma, ao final, no que importa à presente consideração: [7]
“Reitero, neste momento, quanto às consequências desta apreciação, e, naquilo que levou as preocupações do Min. Alexandre de Moraes a estimular esse diálogo que acabamos de aqui verificar e travar, entendo que, nos termos do voto do Min. Dias Toffoli, redator para o acórdão na ADI 3937, declarou-se incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 2º, da Lei n.º 9.055/95, e essa declaração, ainda que incidental, opera uma preclusão consumativa da matéria, e, portanto, nesta medida, o fato de ter sido incidental não afasta o conjunto das observações que o Min. Gilmar já fez e que utilizou o verbo ‘equalizar’, nesta direção de encontrarmos, obviamente, uma solução razoável para evitar que caiamos numa dimensão semicircular progressiva e sem fim. E esta afirmação não me parece que incide em contradição no sentido de reconhecer a constitucionalidade da lei estadual, que também é proibitiva, o que significa, por uma simetria, que todas as legislações que forem ou são permissivas, dada a preclusão consumativa da matéria, reconhecida a inconstitucionalidade do art. 2º, são, também, inconstitucionais.”
Em seguida, votou o Min. Luiz Fux, nos seguintes termos:
“No primeiro julgamento, da relatoria do Min. Dias Toffoli, eu fiquei vencido, porque entendi que havia uma divergência científica na academia e, diante da nossa incapacidade técnica ou institucional, nós deveríamos manifestar deferência ao Legislativo, que fez audiências públicas e votou a lei federal. Mas, a partir do momento em que o Min. Dias Toffoli obteve adesão da maioria no sentido da inconstitucionalidade da lei federal, eu acho que a questão está resolvida pró e contra. As que são permissivas são inconstitucionais e as leis locais que são proibitivas são constitucionais. Porque a questão já está decidida. De sorte que eu, adotando essa equivalência do controle difuso e do controle concentrado, entendendo que o art. 52, X, apenas permite uma chancela formal do Senado, o Senado não pode alterar a essência da declaração de inconstitucionalidade do Supremo, eu, então, acompanho integralmente o voto da Min. Rosa Weber, agora, baseado nos fundamentos que o Plenário, por maioria, acolheu, de modo que eu me submeto à colegialidade, decidindo pela inconstitucionalidade da lei federal.”
O Min. Dias Toffoli, ao votar o mérito da ADI 3470, afirma que:
“Também subscrevo, senhora presidente, todo esse debate que aqui aconteceu na data de hoje – é um dia muito importante no que diz respeito à jurisdição constitucional, a decisão que, imagino, vai ser a conclusão, com a devida vênia do Min. Marco Aurélio, que sei que pensa em contrário, em razão do 52, X, e também foi dito pelo Min. Alexandre de Moraes que compartilha dessa preocupação do Min. Marco Aurélio, mas, com a devida vênia de Vossas Excelências – eu subscrevo o que foi inicialmente levantado pelo Min. Gilmar Mendes e que agora há pouco o Min. Luiz Edson Fachin discorreu, de uma maneira bastante clara, a respeito da dimensão da decisão que nós estamos tomando aqui, qual seja, a aplicação do controle difuso, dando este efeito erga omnes e praticamente vinculante, também, às deliberações deste plenário – nem poderia ser diferente, porque se decide no controle abstrato, tem uma consequência, se decide no controle concreto, teria outra, por quê? O sentido do art. 52, X, da Constituição, é para uma época em que o Diário Oficial levava três meses para chegar nos rincões do Brasil, uma época em que as decisões do Supremo, do Judiciário, não eram publicadas nos diários oficiais. Hoje, a TV Justiça transmite ao vivo e em cores, para todo o País, o que nós estamos decidindo aqui. Não tem sentido ter que se aguardar uma deliberação futura, para dar uma eficácia, e nós ficamos aqui, depois, a bater carimbo em relação a inúmeros processos que aqui chegam. Toda a evolução da jurisdição constitucional do STF, no Brasil, foi, exatamente, no sentido de superarmos essa necessidade, por isso eu subscrevo essas manifestações (também, porque isso não estava anteriormente no meu voto, mas, até para fins de se evitar entendimentos diferentes ou interpretações a respeito do voto), subscrevo que a decisão tomada na ação direta da qual eu fiquei redator para o acórdão, de relatoria originária do Min. Marco Aurélio, ação direta 3937, que a decisão ali tomada tem eficácia geral plena, para todo o território nacional, e não apenas em relação ao âmbito do Estado de São Paulo, ali, a legislação que ali se julgava, que era uma lei do Estado de São Paulo. E também subscrevo a ideia da preclusão em relação à decisão da matéria, que foi inicialmente aventada pelo Min. Gilmar e agora também já acompanhada pelo Min. Luiz Edson Fachin, pelo Min. Luiz Fux, e penso que, talvez, a Min. Rosa, não sei se explicitou, mas também se pôs de acordo, e, assim, acompanho a relatora, no dispositivo, e farei juntada de voto.”
A este ponto, intervém o Min. Alexandre de Moraes: “Ministro Toffoli, me permite 28 segundos?” “Já votei, a palavra agora está com a Presidente”, responde. “Por favor, está com a palavra”, manifesta-se a Min. Cármen Lúcia. E afirma Moraes:
“A questão ora colocada, se coloca, se colocou na discussão, a meu ver – e a maioria, pelo que percebo, já aderiu, a questão de uma nova interpretação do art. 52, X –, é uma questão que não foi colocada nem como questão de ordem, por que digo isso? Até hoje, o Supremo Tribunal Federal entende que, no controle difuso, o Senado Federal não está obrigado a estender os efeitos intra partes para erga omnes das declarações incidentais do Supremo. Isso é um debate histórico e é sempre uma proposta do Min. Gilmar, mas, até hoje, o entendimento é de que ao Supremo cabe declarar, para o caso concreto, e ao Senado cabe, se entender necessário, suspender, dando efeitos gerais e, inclusive, a grande diferença do controle concentrado é que a suspensão dá efeitos, sempre, ex nunc, não retroativos. Poderíamos até evoluir nesse sentido, mas eu quero dizer que eu não votei em relação a isso, porque não era isso que estava em questão, só para deixar claro.”
O voto seguinte foi o do Min. Gilmar Mendes, in verbis:
“Senhora presidente, eu tinha voto, em relação à lei federal, divergindo, em parte, do Min. Dias Toffoli, entendendo que, talvez, nós pudéssemos fazer uma recomendação, numa declaração de inconstitucionalidade, uma declaração de inconstitucionalidade progressiva, um apelo ao legislador, mas essa questão já está vencida, a meu ver, esse tema, portanto, já está encerrado com esses votos que se formaram. E me parece, a rigor, que o Min. Alexandre tem razão no que diz respeito aos aspectos formais. Mas, em verdade, há muito, nós não estamos prestando atenção ao art. 52, X, de fato. E vou pegar um exemplo que é prova aritmética (o que é muito difícil no direito), que é a modulação de efeitos no controle incidental. Nós fazemos, com naturalidade, hoje, e temos muitos pedidos aqui, de modulação de efeitos em sede de controle incidental, para casos outros, obviamente. Estamos regulando não para o caso concreto, que muitas vezes tem eficácia ex tunc, mas para outros casos. E assim fizemos no caso dos vereadores, do número de vereadores; fizemos no caso da previdência, que são 5 anos o caso de prescrição da cobrança; da Fundação Chico Mendes; matéria tributária, vários. Portanto, quando nós fazemos essa atribuição, claramente, nós estamos assumindo que a nossa decisão não depende do Senado e estamos fazendo com eficácia geral. Portanto, me parece que essa questão está resolvida, me parece que é justo que o tribunal se pronuncie nesse sentido, para resolver, inclusive, um impasse, que, do contrário, nos leva a essa situação semicircular de que falou o Min. Fachin. Isso me parece extremamente importante. Nós já discutimos isso várias vezes. Um dos autores críticos desse tema no passado foi, ninguém mais, ninguém menos, do que Lúcio Bitencourt, que chamava a atenção para que se comunicasse ao Senado para a publicização da decisão – é o que falou, agora, o Min. Dias Toffoli. Mas não foi a posição que, inicialmente, assumiu o Supremo. Mas o que aconteceu? Sob a Constituição de 1988, notoriamente, nós tivemos a expansão do controle de constitucionalidade, especialmente do controle direto de constitucionalidade. E do efeito vinculante e da eficácia erga omnes, que vem com a ADC. É curioso que não se tenha percebido, na prática, que a situação toda mudou. Porque o controle, que, a rigor, é o mais demorado, em tese, o mais meditado, aquele continua, continuava a ser aquele que tinha eficácia menor – embora, na prática, com o advento da repercussão geral, isso também perdeu sentido, porque, de fato, se estendeu o efeito. Com, agora, o Novo Código de Processo Civil – já discutimos isso com o Min. Fux – essa questão se estendeu e projetou efeitos de maneira muito clara. Na prática, portanto, isso passa a ocorrer, e me parece, portanto, que essa questão está resolvida. E, claro, também o efeito vinculante, já vem acompanhado, tanto é que nós temos aqui – e já discutimos isso no semestre passado – uma certa contradição, porque hoje nós misturamos situações da repercussão geral com o controle concentrado e há coisas que estão na repercussão geral, inclusive questões de ordem que nós encaminhamos – suspensão de processos, provimento ou não provimento automático de recursos – e nós não aplicamos isso no controle abstrato, que já é dotado de efeito vinculante e eficácia erga omnes, e nós dissemos que também precisamos fazer esse acoplamento. Assim me parece que, também é correta aquela expressão que Vossa Excelência usou, que, nesses casos, nós declaramos a inconstitucionalidade não apenas da norma, mas da matéria, e de normas idênticas que também são afetadas pela repercussão, de modo que eu também acompanho o voto da eminente relatora, mas entendendo que nós estamos fixando essa orientação.”
Em seguida, manifestou-se novamente o Min. Marco Aurélio contrariamente à evolução processual aventada.
“Senhora presidente, como tenho dito, ultimamente, tempos estranhos, aonde vamos parar? Somos 11, presidente, a integrar o Supremo. E temos, realmente, a última palavra sobre o direito positivo. Mas, temos a última palavra sobre o direito positivo considerado um grande sistema, que é o sistema revelado pela Carta da República. E, aí, não posso ignorar o que se contém nessa mesma carta da república, não posso desconsiderar que 81 são os Senadores e 513 são os Deputados, eleitos, representantes do povo brasileiro. O que nos vem da Constituição Federal quanto à eficácia vinculante? Temos dois dispositivos a versarem essa eficácia vinculante e dispositivos que encerram, a meu ver, algo que deve ser tomado de forma estrita, não ampliativa. O primeiro é o parágrafo 2º do art. 101, a revelar que as decisões definitivas de mérito proferidas pelo STF nas ações diretas de inconstitucionalidade, nas ações declaratórias de constitucionalidade, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente, aí vem, aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Nada impede, senhora presidente, que o Supremo hoje declare inconstitucional um diploma legal e o Congresso, amanhã, venha a editar uma nova lei versando a matéria, a matéria que ensejou a declaração de inconstitucionalidade. É o sistema, um sistema que homenageia a representatividade do Congresso Nacional, em que os integrantes são eleitos, mediante sufrágio direto, mediante eleições. O segundo preceito, o verbete vinculante. Mais uma vez, o art. 103-A refere-se a essa eficácia quanto aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, na esfera federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. Recuso-me, senhora presidente, a dizer que o Senado da República é um verdadeiro Diário Oficial; que, simplesmente, deve publicar as decisões do Supremo formalizadas num controle concreto de constitucionalidade, formalizadas no âmbito do controle difuso de constitucionalidade. Não interpreto literalmente, gramaticalmente, o que se contém no inciso X, do art. 52, mesmo porque a interpretação gramatical é a que mais seduz, é aquela que chegamos ao objetivo da norma numa visão superficial. Entendo o inciso X do art. 52 como uma regra que atende à independência e harmonia entre os Poderes, que sinaliza que o sistema nacional é um sistema equilibrado, ao prever, e ao prever em bom vernáculo, que compete ao Senado não somente publicar a decisão tomada pelo Supremo, mas compete ao plenário ‘suspender a execução, no todo ou em parte, da decisão definitiva tomada pelo Supremo Tribunal Federal’ – claro e evidente! Se a inconstitucionalidade ocorre em controle objetivo, presente em controle concentrado de constitucionalidade, não cabe acionar o disposto no inciso X, do art. 52 e não cabe porque aí o pronunciamento judicial fulmina e fulmina de forma liminar, a norma atacada, não a matéria atacada. Mas, se o controle se faz de forma limitada, consideradas as balizas subjetivas do processo, evidentemente, para que haja a extensão maior, e tenha-se o direito como uno no território brasileiro, prevê-se não a declaração de inconstitucionalidade pelo Senado da República – não chego a esse ponto –, prevê-se que o Senado, segundo está no inciso X, irá ‘suspender a execução, no todo ou em parte, da decisão definitiva tomada pelo Supremo Tribunal Federal.’ Homenageio, presidente, e entendo que é básico na República, a harmonia e independência entre os Poderes, não potencializando possível desgaste no Congresso Nacional, porque, acima de tudo, eu tenho, como eu disse, a lei das leis, que busco amar cada dia mais, que é a Constituição Federal. Feita essa consideração, não vou tomar o tempo dos colegas, mesmo porque a fila de processos que aguarda inclusão em pauta dirigida, com data específica, precisa andar, e há de se conciliar conteúdo e celeridade, quanto à entrega da prestação jurisdicional. Reporto-me, simplesmente, ao voto que proferi na ADI por mim relatada, 3937, que farei transcrever nos dois processos que estão na bancada, e eu concluo, portanto, pelo acolhimento dos dois pedidos formalizados nas ações diretas de inconstitucionalidade, é como voto.”
Após, votou o Min. Celso de Mello. No mérito, acompanhou integralmente o voto da relatora para julgar improcedentes as ações diretas de inconstitucionalidade, ante a inconstitucionalidade do art. 2º, da Lei n.º 9.055/95. Quanto à questão processual, afirmou que “a proposta que aqui resultou do debate, ainda que havendo posições diversas, divergentes, eu entendo que a sugestão, a proposta do eminente Min. Gilmar Mendes, deve ser acolhida.”
O Min. Celso de Mello procede a ampla análise da questão, recordando que o Senado Federal foi incumbido pela primeira vez de exercer a competência que lhe é dada hoje no inciso X do art. 52 já pela Constituição de 1934, que lhe outorgou competência para, mediante resolução, suspender a execução de lei ou ato estatal que a Corte Suprema declarasse inconstitucional. Pontua que, na evolução da prática da jurisdição constitucional brasileira, contudo, houve um momento em que surgiu do Supremo, já na década de 70, a dúvida quanto a se o Supremo tribunal Federal, quando julgasse uma representação de inconstitucionalidade (designação formal que se dava então à atual ação direta de inconstitucionalidade) deveria, também, observar a regra estabelecida no art. 42 da Constituição de 1969. No Processo Administrativo n.º 4.477/1972, Rel. Min. Moreira Alves, fixou-se a interpretação, em torno do art. 42, inciso VII, da Constituição de 1969, a chamada Emenda n.º 1 da Constituição de 1967, tendo o STF concluído que as suas decisões em sede de representação de inconstitucionalidade, portanto, em fiscalização normativa abstrata, quando eventualmente declaratórias de inconstitucionalidade, não mais deveriam ser comunicadas ao Senado para suspensão. Consoante esclarecido por aparte do Min. Marco Aurélio, no caso, foi admitida a dualidade de procedimentos entre o controle concentrado e o controle difuso. Inobstante, aduziu o Min. Celso de Mello que se entendeu, naquele momento, que a comunicação só se impunha em face de controle incidental, de fiscalização concreta, representando isso um passo nesse processo evolutivo a respeito dos poderes do Senado da República.
Continua o Min. Celso de Mello registrando que houve grande debate, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência do STF, a respeito do conteúdo dessa competência dada pela Constituição ao Senado Federal. O Senado Federal estaria obrigado a suspender a execução de um ato estatal que o Supremo Tribunal Federal houvesse declarado inconstitucional? Alguns autores, como Lúcio Bitencourt, o Prof. Alfredo Buzaid, na sua conhecida monografia escrita em 1958 sobre a ação direta de inconstitucionalidade no direito brasileiro, e o Prof. Celso Ribeiro Bastos, sustentaram a tese de que o Senado, efetuando um controle apenas formal, deveria, sim, obrigatoriamente, promulgar a resolução suspensiva, cabendo à Câmara Alta do Congresso Nacional tão somente verificar 1) se a declaração foi oriunda do Supremo Tribunal Federal, 2) se observou o postulado da reserva de plenário, 3) se houve maioria absoluta e 4) se transitou em julgado – portanto, apenas aspectos meramente formais. Superados esses aspectos formais, impunha-se, segundo esses autores, ao Senado, suspender a execução da lei. Portanto, o Senado seria órgão de divulgação da decisão de inconstitucionalidade do Supremo, com o objetivo de proceder a uma extensão subjetiva, impedindo a utilização daquele ato por qualquer autoridade pública ou qualquer órgão do Poder Judiciário.
Prossegue ponderando que, por outro lado, autores como o Min. Mário Guimarães, o Min. Aliomar Baleeiro, o Prof. Josaphat Marinho e o Min. Paulo Brossard, com estudo completo e abrangente sobre a questão, entendiam que o Senado não estava obrigado ao ato, dado que exercia controle de natureza política, em razão do qual poderia ou não efetuar a suspensão. Conforme asseverado pelo Min. Alexandre de Moraes, a posição, hoje, do STF, é de que o Senado não está obrigado a promulgar a resolução suspensiva. Contudo, há precedentes antigos, relativos a casos de matéria tributária do Estado de São Paulo, no qual o Senado, comunicado pelo Supremo, exerceu a prerrogativa de suspensão e suspendeu a execução de leis paulistas declaradas incidenter tantum inconstitucionais pelo Supremo. Porém, em face de pressão da classe empresarial paulista sobre o Senado, revogou-se a resolução, restaurando a aplicabilidade das leis estaduais que haviam sido declaradas inconstitucionais pelo Supremo. Essa questão chegou ao STF e foi decidido que o Senado não está obrigado a suspender a execução, mas, uma vez fazendo-o, voluntariamente, mediante avaliação discricionária, tal prerrogativa se exaure, não podendo mais o Senado revê-la, por revogação da execução. Afirma, a este ponto, que:
“Agora, propõe-se, mediante sugestão do eminente ministro Gilmar Mendes, o reconhecimento de que estamos a proceder uma verdadeira mutação constitucional, e estamos, não há dúvida, expandindo os poderes do STF em tema de jurisdição constitucional. Esse é um passo, realmente, muito significativo, extremamente relevante, e, historicamente, projeta-se no sentido dessa progressiva evolução, desse progressivo tratamento que a jurisprudência constitucional do Supremo vem dando aos poderes do Senado em matéria de suspensão mediante resolução de decisões de atos estatais que o Supremo haja declarado inconstitucionais em sede de controle concreto, em sede de controle incidental. Em um primeiro momento, era ampla essa competência do Senado, abrangendo, inclusive, as decisões do STF em controle abstrato de constitucionalidade; a partir de 70, o STF restringiu o alcance da cláusula constitucional e, agora, o que se propõe é uma outra interpretação que confira ao Senado a possibilidade de, simplesmente, mediante publicação, divulgar a decisão do Supremo, mas, no fundo, a eficácia vinculante resulta da decisão do Supremo Tribunal Federal. É nesse ponto que me parece fundamental, digamos, o acolhimento dessa proposta. E, daí, nós estaríamos a reconhecer da inconstitucionalidade, agora, da própria matéria que foi objeto deste processo de controle abstrato, em ordem a prevalecer o entendimento de que a utilização do amianto tipo crisotila, tanto quanto do outro tipo mais severo, que essa utilização ofende postulados constitucionais, e, portanto, não pode ser objeto de normas autorizativas.”
O Min. Gilmar Mendes intervém para acrescentar:
“É interessante que essa fórmula do Senado ela é adotada em 1934, como Vossa Excelência já destacou. E ela segue uma perspectiva que já estava, de alguma forma, na Constituição Alemã de 1919, que falava que determinadas decisões da Corte Suprema tinham eficácia geral, ‘rechtskraft’, ‘força de lei’. E, depois, veio a Constituição Austríaca de 1920 que adota a mesma percepção, e, para isso, determina que se comunique ao Chanceler, primeiro ministro, para que ele publique no Diário Oficial, para, portanto, dar forma de lei. Depois, agora, a Constituição Alemã adota a mesma perspectiva, e na legislação, a lei orgânica da Corte Constitucional alemã, se fala, claramente, que a corte constitucional vai comunicar ao Chanceler, e, portanto, agora, Ministro da Justiça, para que ele providencie a publicação no Diário Oficial. Foi, de certa forma, isso, que o Lúcio Bitencourt dizia: no Brasil, se pensou, mais ou menos, a mesma coisa, até porque o Senado era um coordenador de poderes, na Constituição de 1934, portanto, era um pouco esse o espírito que norteava. E, por isso, o Lucio Bitencourt disse estranha essa ideia, de substancializar a decisão. Na prática, dizia ele, só faz sentido o Senado entrar para publicizar a decisão, e não para dar eficácia suspensiva à decisão do Supremo.”
E o Min. Celso de Mello finaliza:
“Então, senhora presidente, nesses termos, eu peço vênia para acompanhar integralmente o voto da Ministra relatora, julgando improcedentes os pedidos nas duas ações diretas de inconstitucionalidade. E, também, eu entendo que se impõe o acolhimento dessa proposta que o Min. Gilmar Mendes formulou, no sentido de reconhecer aqui presente uma situação caracterizadora de mutação constitucional, em ordem a orientar a decisão no sentido proposto por Sua Excelência.”
A última a votar foi a Min. Cármen Lúcia:
“Eu também acompanho a eminente ministra Rosa Weber nos dois casos, tenho voto escrito, cuja juntada eu farei, no sentido do que já votamos antes e reconhecendo, como já foi feito por muitos dos senhores ministros, que verdadeiramente já se tinha uma decisão a partir da ação direta 3937 pela inconstitucionalidade, ainda que declarada incidentalmente, do art. 2º, da Lei 9.055/95, e, portanto, neste caso, improcedentes os pedidos, aos mesmos fundamentos apresentados, de forma tão douta pela eminente ministra que foi seguido, ou seja, aplicando-se não apenas o princípio, reconhecimento, do direito à saúde, mas, também, os princípios da precaução, princípio da prevenção, que, nesse caso, se mostravam de uma maneira evidente, até mesmo pelas condições em que foram apresentados pela ministra, que já haviam sido também apresentados pelo Min. Dias Toffoli naquele outro caso, a partir das evidências apresentados na audiência pública sobre o matéria. Estou acompanhando no sentido de julgar improcedentes os pedidos formulados nas ações, com a declaração incidental de inconstitucionalidade, e, quanto à proposta apresentada neste caso pelo Min. Gilmar Mendes, que foi objeto de considerações finais agora, em que pese não ser o objeto específico das ações diretas, eu diria que, talvez, Min. Celso, nós estejamos caminhando, como eu disse, para um reconhecimento de que as matérias, sendo idênticas, sejam declaradas inconstitucionais, até porque nós falamos muito em doutrina e jurisprudência em controle concentrado e controle difuso e, em controle concreto e controle abstrato como se fossem sinônimos. Na verdade, o que é concentrado é a competência para julgamento e, aí, se tem o controle abstrato.”
Na sequência, há debate suscitado pela contrariedade manifestada pelo Min. Marco Aurélio:
Min. Marco Aurélio: “Interessante este ponto. Porque, em última análise, estamos transmudando o pronunciamento no controle difuso em um pronunciamento no controle concentrado e, com isso, há uma consequência seriíssima. O Congresso não poderá legislar repetindo a lei declarada inconstitucional em controle difuso e, se o fizer, quem sabe, talvez caiba reclamação ao Supremo.”
Min. Dias Toffoli: “É que, a rigor, nós estamos no controle abstrato e, num caso concreto do controle abstrato, não no controle difuso, num caso concreto do controle abstrato, para analisar, no meu voto, a lei estadual, eu precisei declarar inconstitucional a lei federal.”
Min. Marco Aurélio: “Senhora presidente, me permite, mais uma observação, apenas. É que só há um móvel para chegar-se à declaração de que o que previsto no inciso X do art. 52, da CF/88, quanto à atribuição do Senado de suspender a execução, revela uma atuação simplesmente formal, e não uma atuação constitutiva, como eu disse, ou seja, uma situação declaratória, simplesmente declaratória. Os autores, a maioria dos autores que escreveram sobre a matéria vão ter que rever o que escreveram.”
Min. Alexandre de Moraes: “Só uma observação. O Min. Celso de Mello, falou uma questão que é importantíssima, se é uma questão de mutação constitucional, eu só gostaria de lembrar que esse tema específico foi tratado recentemente pelo Congresso na Emenda 45. A Emenda 45, quando tratou da questão de tentar aproximar o controle difuso do concentrado, inclusive, excluindo o art. 52, X, fez uma opção por duas medidas que resolvem esse problema. Uma é a edição de súmulas vinculantes, que falam sobre validade, interpretação e eficácia das leis. E esta Casa já fez isso em relação a várias ações diretas de inconstitucionalidade [Marco Aurélio aparta: E, mesmo assim, não é vinculante ao Legislativo, no poder ínsito ao Legislativo, que é de editar normas] em relação à Súmula Vinculante n.º 2, quando declarou várias leis estaduais sobre o jogo, leis estaduais que estabeleciam jogo e loterias, mesmo sendo controle concentrado em relação às leis estaduais, editou a súmula. E a repercussão geral. Obviamente, a partir da repercussão geral, os casos decididos em repercussão geral tornam totalmente desnecessário o art. 52, X, que se repetem em relação aos demais. Só para refletirmos que, na verdade, o próprio Congresso já ampliou, extensamente, o controle difuso. Nós estaríamos aqui, aniquilando totalmente o art. 52, X.”
Min. Luiz Fux: “Ministro Toffoli, só uma observação, Vossa Excelência, com essa sua solução, até inaugurou um outro aspecto muito interessante, que nós, aqui, demoramos um pouco, mas depois passamos a admitir a fungibilidade das ações de controle concentrado (ADPF para ADI, etc.), agora Vossa Excelência traz, com essa sua solução, de uma cumulação de pedidos em uma ação de controle concentrado, de pedido de declaração de inconstitucionalidade da premissa da questão prejudicial.”
Min. Cármen Lúcia: “Continuando no meu voto eu diria que esse encaminhamento que foi feito foi exatamente no sentido já aqui encarecido pelo Min. Celso de Mello, de que cada vez mais houve uma aproximação, até do sistema do civil law com o common law, e o precedente passou a ganhar tal envergadura que hoje, na repercussão geral, por exemplo, nós temos que extrair uma tese, que é o que é vinculante para todos.”
Min. Marco Aurélio: “Não acreditemos no Senado da República.”
Min. Cármen Lúcia: “Não, acreditamos em todos os Poderes, porque estamos numa democracia e dependemos de todos, pelo menos, da minha parte, nenhuma dúvida. Agora, é preciso que a Constituição, sendo viva, ela acompanhe. Quando Paulo Brossard escreveu sobre qual era o papel do Senado Federal na aplicação desta atribuição, ele, que foi, inclusive, senador, ele dizia, exatamente, que o Senado não poderia – naquele trabalho publicado na Revista de Informação Legislativa –, rever o que foi feito pelo Supremo Tribunal; o que ele poderia fazer era, exatamente, o aspecto formal, uma vez que, como nós dissemos, ele pôde inclusive deixar de desempenhar aquela função. Mas é certo que o advento do Novo Código de Processo Civil, principalmente, a lei que trouxe a repercussão geral, e este encaminhamento, deu uma outra conotação.
Min. Marco Aurélio: “O Senado, então, tem uma função inócua.”
Min. Cármen Lúcia: “Não é a minha opinião. Respeito integralmente a opinião de Vossa Excelência.”
Min. Marco Aurélio: “Simplesmente formal? E o que está escrito como suspensão da execução? ‘Magister dixit’, para mim, não prevalece.”
Min. Cármen Lúcia: “Para mim, conta muito.”
Min. Marco Aurélio: “Não, prevalece a Constituição Federal.”
Min. Cármen Lúcia: “Claro, e ele estava interpretando a Constituição.”
Min. Marco Aurélio: “Eu só devo obediência à Constituição Federal. Nem ao Supremo eu devo obediência.”
Min. Cármen Lúcia: “Com toda certeza. E o que estou dizendo apenas é que o ministro Paulo Brossard, ao escrever, foi grande senador e um grande constitucionalista.”
Min. Marco Aurélio: “Não me coloque contra a família Brossard.”
Min. Cármen Lúcia: “Tenho certeza de que Vossa Excelência jamais diria algo parecido. Estou apenas dizendo que a minha citação é de alguém que teve experiência, mas que, como doutrinador, labutou muito, exatamente, no sentido do que aqui estou acolhendo. E estou acolhendo, no sentido do que foi proposto, de que, a cada vez mais, num mundo que pede mais eficiência, e aqui nós estamos caminhando para dar uma jurisdição constitucional que promova não a repetição de temas que já foram tratados, uma acolhida que me parece extremamente coerente com o que se propõe o controle de constitucionalidade, quer em controle concreto, quer em controle abstrato, até porque é em caso concreto que, nós, nos casos com repercussão geral, tornamos uma abstração o que se contém na tese, que é aplicado e vinculante a todos.”
Min. Marco Aurélio: “Foi construção essa eficácia vinculante dos pronunciamentos sob o ângulo da repercussão geral, foi construção da jurisprudência, não veio com a Emenda à Constituição.”
Por fim, a Min. Cármen Lúcia proclamou o resultado: “O Supremo Tribunal, por maioria, julgou improcedentes os pedidos e, incidentalmente, a inconstitucionalidade do art. 2º, da Lei 9.055/1995, com efeitos erga omnes e vinculante, vencidos o Min. Marco Aurélio e, em parte, o Min. Alexandre de Moraes, que divergia para julgar parcialmente procedentes os pedidos, dando interpretação conforme, na forma do seu voto.” Declarou, em seguida, haver três outros processos com matéria idêntica, já pautados para o pleno. O Min. Luiz Fux sugeriu que, em face do entendimento acerca do efeito geral e vinculante, poderiam os demais ministros atuar monocraticamente, o que foi acolhido pela Presidente, que apenas agendou para a sessão seguinte o julgamento dos processos, já pautados, dado que se trataria de mera repetição de votos por parte dos ministros.
O julgamento, como se vê, é histórico, e marca importante passo na jurisdição constitucional brasileira, dada a reconhecida expansão dos poderes do Supremo Tribunal Federal, que passa a não mais depender da atuação do Senado Federal para a atribuição de eficácia geral e efeito vinculante aos seus pronunciamentos em controle difuso de constitucionalidade. Operou-se verdadeira fusão entre os sistemas de controle de constitucionalidade no Brasil, com a superação da dicotomia entre o controle concreto e o abstrato no âmbito do STF. De fato, embora permaneça existindo a divisão entre controle concentrado (formalizado por meio de ações diretas) e controle difuso (processado incidentalmente no bojo das diferentes ações judiciais), a partir do referido julgamento, rigor, não mais se pode falar na ocorrência de controle “concreto” ou “abstrato” pelo STF, pois todas as formas de controle realizadas são abstratas. Houve, pois, o que se pode denominar de “abstrativização” do controle difuso. A questão constitucional, ainda que trazida no seio de um caso concreto, é analisada sob uma perspectiva abstrata, tendo em vista a aplicabilidade das razões de decidir à inteira coletividade.
Ademais, para usar expressão da lavra do Min. Roberto Barroso, em sua clássica obra sobre o controle de constitucionalidade no direito brasileiro, evidencia-se, do julgamento, a “sagacidade política” do tribunal constitucional brasileiro, em nítida semelhança com o que ocorreu no emblemático caso Marbury v. Madison, julgado em 1803 pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Nesse precedente histórico, para afirmar primeira vez o poder do tribunal de afastar a aplicação de uma lei que contrariasse a Constituição, ampliando, assim, sobremaneira, os seus próprios poderes em um cenário político desfavorável (quase todos os membros da Suprema Corte haviam sido nomeados pelo presidente anterior, de orientação política diversa da do então no governo), o fez em sede de obiter dictum e em um julgado cujo mérito foi favorável ao Executivo, impedindo, por conseguinte, qualquer questionamento formal acerca do conteúdo da decisão. As palavras de Barroso quanto ao precedente que abriu caminho para o controle de constitucionalidade nos EUA e no mundo são lapidares:
A decisão trazia, no entanto, um toque de inexcedível sagacidade política. É que as teses nela veiculadas, que, em última análise, davam poderes ao Judiciário sobre os outros dois ramos de governo jamais seriam aceitas passivamente por Jefferson e pelos republicanos do Congresso. Mas, como nada lhes foi ordenado – pelo contrário, no caso concreto foi a vontade deles que prevaleceu – não tinham como descumprir ou desafiar a decisão. (BARROSO, 2012, p. 31)
No julgamento conjunto das ADIs 3406 e 3470, o STF demonstrou “sagacidade” semelhante, na medida em que: a) o reconhecimento formal da eficácia geral e do efeito vinculante das decisões proferidas em controle difuso de constitucionalidade, que, a rigor, expandem o poder do Supremo Tribunal Federal em relação ao Legislativo, ocorreu na forma de obiter dictum, inviabilizando, por conseguinte, um debate amplo e aprofundado da questão sob o crivo do contraditório, como questão principal (não houve participação da Procuradoria Jurídica do Senado no caso, por exemplo, sendo de grande valor, por isso mesmo, a opinião contrária do Min. Marco Aurélio, que forneceu o contraponto necessário à construção dialética do novo entendimento); b) uma vez que se tratava de mera reiteração de tema já apreciado anteriormente, isto é, de verdadeira repetição de entendimento anterior já esposado, o desgaste político foi minimizado, dado que a decisão final de mérito pouco impacto causou, e a extensão da eficácia já era esperada pelo governo e pela sociedade civil; c) o fato de se tratar da reiteração de um julgamento reforçou aos expectadores a noção de que a mutação constitucional se revela necessária, porquanto evidenciou o desperdício de tempo com a reapreciação de demandas idênticas na disputada pauta do Supremo Tribunal Federal; d) a afirmação da eficácia erga omnes e do efeito vinculante de uma decisão em sede de controle difuso ocorreu, pela primeira vez, para uma questão constitucional incidental apreciada no bojo de uma ação de controle concentrado, que, por expressa disposição legal, produz efeitos gerais e vinculantes, situação essa que, ante a mescla entre os institutos, suavizou a compreensão, na medida em que torna mais palatável a ideia de que a questão incidental possa ostentar eficácia geral, vez que o próprio mérito, fundado na questão prejudicial, indiscutivelmente, atingiria eficácia geral e efeito vinculante. Sem dúvida, uma construção de inegável inteligência política.
Quanto ao mérito da proposta, registro posicionamento pessoal que se alinha ao entendimento majoritário firmado pela Suprema Corte e que poderia afastar a preocupação que assolou o eminente Min. Marco Aurélio, representante da divergência. Com a devida vênia ao ilustre ministro, e embora compartilhe de seu enorme respeito pelas atribuições constitucionalmente colocadas para os Poderes da República, mormente quando se possa nelas vislumbrar alguma manifestação do sistema de freios e contrapesos, entendo – e creio ser esse o sentido absorvido pelos demais ministros, ainda que por eles não explicitado, talvez em razão da forma incidental e informal com que a matéria veio a ser apreciada no plenário – que a interpretação proposta pelo ministro Gilmar Mendes e acolhida pelos ministros Edson Fachin, Dias Toffoli, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia, formando, pois, maioria absoluta do Supremo Tribunal Federal, em nada viola a autoridade e autonomia do Senado Federal ou o princípio da separação dos Poderes.
A uma, e principalmente, porque as transformações que conduziram a essa interpretação foram legislativas, isto é, passaram pelo crivo do Congresso Nacional, inicialmente pela forma da sistemática da repercussão geral, trazida pela EC n.º 45/2004 e pela Lei n.º 11.418/2006, conforme já delineado supra, e, posteriormente, pelo Novo Código de Processo Civil, todas essas normas amplamente debatidas e aprovadas tanto pela Câmara dos Deputados quanto pelo Senado Federal. Apenas não se verificou que, com essas transformações, que outorgaram força ao precedente em controle difuso, necessário se fazia, também, uma atualização do art. 52, X, que se tornou anacrônico, assistemático e contraditório dentro do novo sistema. A mutação do art. 52, X, da CF/88 não se constitui criação livre da jurisprudência, mas efeito lógico e obrigatório do sistema de precedentes criado pelo próprio legislador. Em decorrência, o ajuste interpretativo que torna a atribuição constante do art. 52, X inócua em nada viola a competência do Senado Federal, pois foi o próprio Senado Federal que criou normas evidentemente incompatíveis com a redação literal do mencionado dispositivo. Apenas, como costuma ocorrer nos diversos ramos do direito positivo, por descuido – ou ante a evidente impossibilidade de acompanhar os efeitos um sem-número de normas produzidas no calor dos debates democráticos em um vasto e inflado ordenamento jurídico positivo – não atentou o legislador para a antinomia que seria criada, para o anacronismo que resultaria da redação literal do art. 52, X, da CF/88. E, como sói ser, é da atribuição do Judiciário resolver tais antinomias.
Ainda, em segundo lugar, não representa a nova interpretação ameaça alguma à função constitucional do Senado, na medida em que, como bem pontuado pelo Min. Marco Aurélio, inobstante a decisão do STF, permanece o Legislativo com autonomia para produzir normas – a meu ver, nesse caso, somente normas de estatura constitucional, como emendas à constituição ou tratados internacionais aprovados sob o rito que permita integrarem o bloco de constitucionalidade – que contrariem o entendimento do Supremo, no exercício da chamada “reação legislativa”. O fato é que, ante o novo cenário legislativo criado, tanto de ordem constitucional quanto infraconstitucional, e tendo em vista, ademais, a alta disputa de processos e matérias do interesse nacional por um apertado espaço na pauta plenária do STF, não há qualquer motivo de ordem lógica ou jurídica para se distinguir os efeitos das decisões do Pleno do STF em controle de constitucionalidade concentrado e difuso, pois o que interessa para os demais membros do Judiciário, a Administração Pública e a sociedade civil é saber o entendimento predominante do Supremo sobre uma dada matéria, o qual, por isso mesmo, não deve ser materializado na forma de um precedente sem força cogente. A manutenção da sistemática anterior representaria evidente perda de tempo e de esforço jurisdicional, mormente quando se considere a similitude entre os procedimentos de controle concentrado e difuso, no âmbito do STF, que assinalam inegável objetivação e atribuição de viés coletivo ao recurso extraordinário.
Há, porém, questão importante que poderia ter integrado a linha de argumentação da divergência, a qual, contudo, não chegou a compor o debate, que é a atinente à legitimidade para a propositura da ação que ensejaria a decisão com eficácia erga omnes e efeito vinculante. No caso das ações de controle direto, previstas pelo legislador como aptas a produzir eficácia erga omnes e efeito vinculante, a legitimidade ativa é restrita aos integrantes do rol do art. 103, da CF/88, repetido no art. 2º, da Lei n.º 9.868/99, ao passo que, para deflagrar o controle difuso, qualquer pessoa detém legitimidade, dado que esta se confunde com a legitimidade genérica para demandar no Judiciário, que, pela via recursal, chegaria ao Supremo Tribunal Federal. Não me parece, contudo, que esse argumento – o qual, à primeira vista, poderia sensibilizar o leitor à tese da divergência, já que foi esse o quadro criado pelo legislador – possa, ao fim e ao cabo, infirmar a proposta que acabou por prevalecer no Supremo. Isso porque, com o requisito da repercussão geral, o recurso só será admitido no STF se a matéria transcender os interesses subjetivos da lide, revelando-se de cunho coletivo. E, à luz do disposto no CPC/73 com a reforma de 2006, e, depois, no CPC/2015, a decisão produzida nesse tipo de julgamento produz efeitos extraprocessuais, dada a sua aplicabilidade aos demais processos sobrestados (na vigência do código antigo) e tanto aos processos sobrestados quanto aos processos futuros (sob a égide do código atual). Assim, parece evidente que, para o legislador, desde 2006, com a lei que regulamentou a repercussão geral no CPC/73 (Lei 11.418/2006), a relevância da matéria para a coletividade e a possibilidade de prevenção da insegurança jurídica consistente na multiplicidade de decisões em processos sobre idêntica controvérsia prevalecem sobre o requisito da legitimidade para efeito de instauração de um processo cujo resultado final seja uma decisão com eficácia geral.
No mais, os argumentos trazidos pelos ministros, no sentido do contexto histórico da atribuição conferida ao Senado e do anacronismo da função no atual cenário, da forma como a questão é conduzida no direito comparado, da crítica doutrinária que sucede de longa data, e da necessidade de evolução da perspectiva, à luz do papel central do STF no sistema de precedentes paulatinamente instaurado no direito brasileiro, notadamente a partir da criação do instituto da repercussão geral, sinalizados ao longo deste estudo, tornam estreme de dúvidas o acerto da posição, que, ao fim e ao cabo, representa medida de racionalidade da jurisdição do Supremo Tribunal Federal e incremento na eficiência da prestação jurisdicional, no interesse da inteira coletividade.
No Brasil, consoante o modelo outorgado pelo constituinte originário, a fiscalização da constitucionalidade sempre ocorreu de duas formas independentes: a) o controle concentrado, efetuado pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas, a serem movidas exclusivamente pelos legitimados por lei para a instauração da instância; b) o controle difuso, efetuado incidentalmente por todos os juízes e tribunais, no exercício normal da atividade jurisdicional, em toda e qualquer ação judicial submetida à apreciação do Poder Judiciário.
Inspirado no modelo norte-americano, o controle difuso caracteriza-se primordialmente pelo fato de que a decisão acerca da inconstitucionalidade da lei ou ato normativo valer somente para o caso concreto no qual foi a questão apreciada de forma incidental, com efeitos apenas inter partes, ainda que proferida, por força da instauração de demanda recursal, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Diversamente, no controle concentrado, movido exclusivamente pelos legitimados diretamente no Supremo Tribunal Federal, a decisão alcança, com igual força, também, quem não participou do processo, dado que a lei é declarada inconstitucional em abstrato, ante o mero cotejo do texto legal com a norma constitucional, sem que a decisão se refira a um conflito concreto de interesses. Essa foi a moldura original do controle de constitucionalidade brasileiro.
Ocorre que ganharam vulto, nas últimas décadas, estratégias de racionalização da jurisdição dos tribunais superiores e de vinculação a precedentes judiciais, como forma de dinamizar a atuação das cortes e de adequar o Judiciário ao modelo da litigiosidade de massa, o que, ademais, propiciou incremento na segurança jurídica e na efetivação do princípio da isonomia. Assim é que, no Brasil, foram instituídos, nesse período, a súmula vinculante, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), o julgamento unificado de recursos especiais e extraordinários repetitivos, a súmula impeditiva de recurso de apelação, e, com o novo Código de Processo Civil, os precedentes vinculantes, tudo sem prejuízo da eficácia geral e do efeito vinculante das decisões em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC).
Especialmente relevantes para os fins do fenômeno ora em apreço foram as mudanças operadas pelo requisito da repercussão geral em recurso extraordinário, criado pela Emenda Constitucional n.º 45, de 30 de dezembro de 2004, e regulamentado pela Lei n.º 11.418, de 19 de dezembro de 2006, que incluiu o art. 543-A ao CPC/73. Referido instituto consolidou-se por meio de uma sistemática de julgamento por amostragem de recursos extraordinários repetitivos (estabelecendo, a rigor, verdadeira presunção de multiplicidade) solucionada pela formação de uma decisão matriz a ser aplicada a um sem-número de processos sobrestados. Com o advento do Novo Código de Processo Civil (CPC/2015), essa sistemática foi aperfeiçoada como integrante de um sistema de precedentes vinculantes, formalmente obrigatórios não somente para os processos sobrestados em função da interposição de recurso com matéria idêntica à do feito representativo da controvérsia, mas, também, para demandas futuras a serem apreciadas pelo Poder Judiciário, forçando o STF a uma releitura do seu papel no controle difuso de constitucionalidade.
A questão foi amplamente discutida como obiter dictum no bojo do julgamento das mencionadas ADIs, em que se discutia a constitucionalidade de uma lei do Estado do Rio de Janeiro que proibia a utilização do amianto tipo crisotila. Em sede de aparte ao voto do Min. Alexandre de Moraes, os ministros discutiram a problemática inerente à repetição do tema na Corte, e, por conseguinte, a possibilidade de, reinterpretando o art. 52, X, da CF/88, admitir-se que os efeitos da decisão proferida em sede de controle difuso alcançassem também as partes não integrantes do processo. Em decorrência, a declaração de constitucionalidade de uma lei estadual que veda o uso do amianto na modalidade crisotila imporia a solução da questão para todos os demais Estados da federação, não se fazendo necessário novo pronunciamento do Supremo relativamente a leis de outros entes federados.
Houve intenso debate, sobretudo em face da posição divergente do eminente Min. Marco Aurélio, mas, ao final, foi alcançada a maioria absoluta no posicionamento, pelo que a declaração da inconstitucionalidade do art. 2º, da Lei n.º 9.055/1995, efetuada em caráter incidental no bojo do julgamento das ADIs 3406 e 3470, foi proclamada com eficácia erga omnes e efeito vinculante, impedindo, por conseguinte, a edição de novas leis estaduais que permitam a utilização de amianto em quaisquer de suas modalidades.
A forma como a questão foi abordada no Supremo deu mostras de intensa “sagacidade política”, na medida em que: a) o reconhecimento formal da eficácia geral e do efeito vinculante das decisões proferidas em controle difuso de constitucionalidade, que, a rigor, expandem o poder do Supremo Tribunal Federal em relação ao Legislativo, ocorreu na forma de obiter dictum, inviabilizando, por conseguinte, um debate amplo e aprofundado da questão sob o crivo do contraditório, como questão principal (não houve participação da Procuradoria Jurídica do Senado no caso, por exemplo, sendo de grande valor, por isso mesmo, a opinião contrária do Min. Marco Aurélio, que forneceu o contraponto necessário à construção dialética do novo entendimento); b) uma vez que se tratava de mera reiteração de tema já apreciado anteriormente, isto é, de verdadeira repetição de entendimento anterior já esposado, o desgaste político foi minimizado, dado que a decisão final de mérito pouco impacto causou, e a extensão da eficácia já era esperada pelo governo e pela sociedade civil; c) o fato de se tratar da reiteração de um julgamento reforçou aos expectadores a noção de que a mutação constitucional se revela necessária, porquanto evidenciou o desperdício de tempo com a reapreciação de demandas idênticas na disputada pauta do Supremo Tribunal Federal; d) a afirmação da eficácia erga omnes e do efeito vinculante de uma decisão em sede de controle difuso ocorreu, pela primeira vez, para uma questão constitucional incidental apreciada no bojo de uma ação de controle concentrado, que, por expressa disposição legal, produz efeitos gerais e vinculantes, situação essa que, ante a mescla entre os institutos, suavizou a compreensão, na medida em que torna mais palatável a ideia de que a questão incidental possa ostentar eficácia geral, vez que o próprio mérito, fundado na questão prejudicial, indiscutivelmente, atingiria eficácia geral e efeito vinculante. Sem dúvida, uma construção de inegável inteligência política.
Trata-se de precedente histórico, a partir do qual as decisões em controle difuso de constitucionalidade passarão a ostentar eficácia erga omnes e efeito vinculante, desde que satisfeito o quórum qualificado consistente na maioria absoluta dos membros do STF para a deliberação pela inconstitucionalidade, ante a propugnada mutação constitucional do art. 52, X, da CF/88. A função do Senado, reinterpretada à luz do novo contexto normativo do sistema de precedentes, passou a se limitar a conferir maior publicidade à decisão do STF, mas a eficácia geral e o efeito vinculante passam a decorrer do puro e simples julgamento da questão pelo Supremo, independentemente de o controle ocorrer na modalidade difusa ou concentrada.
No mérito, os argumentos trazidos pelos ministros, no sentido do contexto histórico da atribuição conferida ao Senado e do anacronismo da atribuição no atual cenário, da forma como a questão é conduzida no direito comparado, da crítica doutrinária que sucede de longa data, e da necessidade de evolução da perspectiva, à luz do papel central do STF no sistema de precedentes paulatinamente instaurado no direito brasileiro, notadamente a partir da criação do instituto da repercussão geral, sinalizados ao longo deste estudo, tornam estreme de dúvidas o acerto da posição, que, ao fim e ao cabo, representa medida de racionalidade da jurisdição do Supremo Tribunal Federal e incremento na eficiência da prestação jurisdicional, no interesse da inteira coletividade.
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise da jurisprudência. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.
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NOTAS
[1] Nos termos do art. 543-C, do CPC, verificando a multiplicidade de recursos especiais sobre idêntica questão de direito, o Presidente ou Vice-Presidente do tribunal local admitirá um ou mais recursos representativos da controvérsia, que serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça. Os demais processos devem ficar sobrestados na origem, até pronunciamento definitivo do tribunal superior. Caso o tribunal local não proceda ao acautelamento dos autos, o relator, no Superior Tribunal de Justiça, tomará uma das seguintes medidas: a) se, sobre a matéria, já existir jurisprudência dominante no STJ, aplicará o art. 557, do CPC, efetuando julgamento liminar de mérito do recurso; b) se a questão já estiver afeta ao colegiado, sobrestará o feito em análise e poderá determinar a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais se discuta o tema repetitivo (BRASIL, 1973, p. 1).
[2] Os institutos do IRDR e da Assunção de Competência são nitidamente inspirados na sistemática de julgamento unificado de recursos repetitivos criado contemporaneamente à introdução do requisito da repercussão geral no STF (sobrestamento de processos, julgamento da causa mediante feitos representativos da controvérsia, aplicação do precedente pelos juízos submetidos à jurisdição do tribunal).
[3] CPC/73: “Art. 543-B (...) § 3º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.”
[4] Ao tempo de 46min e 10 segundos de duração da sessão plenária.
[5] Manifestação ocorrida ao tempo de 1 hora, 3 minutos e 23 segundos de duração da sessão plenária.
[6] Iniciada ao tempo de 1 hora, 29 minutos e 26 segundos de duração da sessão plenária.
[7] Ao tempo de 1 hora 34 minutos e 16 segundos da sessão.
Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Pós-Graduado em Direito Empresarial pela Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Ex-Assessor judicial da Justiça Federal da 5ª Região (TRF-5). Ex-Assessor jurídico do Ministério Público Federal (MPF) na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CLáUDIO RICARDO SILVA LIMA JúNIOR, . A abstrativização do controle de constitucionalidade difuso no Supremo Tribunal Federal e a mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição Federal de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 abr 2018, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/51529/a-abstrativizacao-do-controle-de-constitucionalidade-difuso-no-supremo-tribunal-federal-e-a-mutacao-constitucional-do-art-52-x-da-constituicao-federal-de-1988. Acesso em: 22 nov 2024.
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