RESUMO: O presente estudo visa examinar os principais aspectos doutrinários e jurisprudenciais acerca da responsabilidade civil do Estado e dos agentes públicos. Inicia-se com uma análise das teorias que versam sobre o tema, à luz do contexto histórico em que cada uma se desenvolveu, culminando na teoria do risco administrativo. Esta última é alvo de enfoque por ser a que tem maior incidência no contexto brasileiro. Pelo viés prático que a matéria possui, o artigo é desenvolvido com base em entendimentos consolidados no âmbito dos tribunais superiores. Ao final, o objeto de estudo é particularizado para a responsabilidade civil dos agentes públicos, mormente à luz da teoria da dupla garantia.
PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade civil do Estado. Agentes públicos. Risco administrativo. Dupla garantia.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Responsabilidade civil do Estado. 2.1. Evolução histórica. 2.2. Aplicação no ordenamento jurídico brasileiro 2.3. A responsabilidade civil do agente público. 3. Considerações finais. 4. Referências.
1.Introdução
A vida em comunidade envolve riscos. Trata-se de condição indissociável da lógica de desenvolvimento contínuo que impulsiona a sociedade globalizada. Embora sejam indesejáveis, bem como sejam louváveis os esforços no sentido de mitiga-los, uma coisa é certa: eles se manifestarão e causarão prejuízos.
Além dos danos perpetrados por indivíduos, por sociedades empresárias e pelo acaso, merece atenção aqueles que têm origem na atividade estatal. Em um regime pautado no Estado Democrático e Social de Direito, a figura do Poder Público se faz bastante presente, de modo que inevitavelmente gerará danos na esfera dos particulares.
Desta feita, faz-se necessário refletir sobre como tais danos, uma vez concretizados, devem ser reparados. Como se detalhará adiante, já foram muitos os avanços em direção à responsabilização civil do Estado, conquista que pode ser associada ao fortalecimento da teoria da reparação integral que tem origem no direito privado.
Frise-se que o tema em epígrafe deve ser analisado sob as lentes de um ordenamento jurídico que visa impor limites ao poder estatal. Nesse sentido, a fixação de balizas claras à responsabilidade estatal está diretamente relacionada à efetivação de uma ordem constitucional que visa a proteger e concretizar garantias fundamentais.
2.Responsabilidade civil do Estado
Antes de enfrentar o tema da responsabilidade civil do servidor público é necessário perquirir a forma como se dá a responsabilidade civil da Administração. Após longo percurso histórico, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) adotou, para os atos comissivos, a teoria do risco administrativo que implica na responsabilidade objetiva do Estado.
A doutrina costuma distinguir as seguintes etapas da responsabilidade civil do estado: (i) irresponsabilidade civil do Estado; (ii) responsabilidade em situações expressas na lei; (iii) responsabilidade subjetiva; (iv) teoria da falta do serviço ou culpa anônima; (v) teoria do risco administrativo e (vi) teoria do risco integral.
2.1 Evolução histórica
Em um primeiro momento vigia a máxima the king can do no wrong. Em um regime absolutista entendia-se que o Estado, personificado no monarca, não poderia ser responsabilizado por seus atos, já que estava munido de um poder supremo. Com o advento da Revolução Francesa passou-se a questionar essa máxima. Assim, tornou-se possível vislumbrar a responsabilidade do Estado, mas apenas em situações pontuais especificamente delimitadas na lei.
O reconhecimento da responsabilidade do Estado, à margem de qualquer texto legislativo e segundo princípios de Direito Público, conforme tradicional lição da doutrina, teve por marco relevante o famoso aresto Blanco, do Tribunal de Conflitos, proferido em 1º. de fevereiro de 1873.
A menina Agnès Blanco, ao atravessar uma rua em Bordeaux, foi atropelada por uma vagonete da Cia. Nacional de Manufatura do Fumo. Seu pai promoveu ação civil de indenização, com base no princípio de que o Estado é civilmente responsável por prejuízos causados a terceiros, em decorrência de ação danosa de seus agentes.
Suscitado conflito de atribuições entre a jurisdição comum e o contencioso administrativo, o Tribunal de Conflitos decidiu que a controvérsia deveria ser solucionada pelo tribunal administrativo, porque se tratava de apreciar a responsabilidade decorrente de funcionamento do serviço público.
Entendeu-se que a responsabilidade do Estado não pode reger-se pelos princípios do Código Civil, porque se sujeita a regras especiais que variam conforme as necessidades do serviço e a imposição de conciliar os direitos do Estado com os diretos privados. Ainda que nesse caso tenha se fixado que a responsabilidade do Estado ‘não é nem geral nem absoluta’ e que se regula por regras específicas, desempenhou a importante função de reconhecê-la como um princípio aplicável mesmo à falta de lei.
A teoria pautada na responsabilidade subjetiva do Estado procurava distinguir, para esse fim, dois tipos de atitude estatal: os atos de império e os atos de gestão. Aqueles seriam coercitivos porque decorrem do poder soberano do Estado, ao passo que estes mais se aproximariam dos atos de Direito Privado. Se o Estado produzisse um ato de gestão, poderia ser civilmente responsabilizado, mas se fosse a hipótese de ato de império não haveria responsabilização, pois que o fato seria regido pelas normas tradicionais de direito público, protetivas da figura estatal.
Ainda na seara da responsabilidade subjetiva é de relevo a teoria da falta do serviço ou da culpa anônima. Para a sua incidência basta que a vítima prove que o serviço não foi prestado, não foi prestado de forma eficiente ou foi prestado de forma atrasada. Essa responsabilidade surgiu entre os franceses e foi denominada faute du service. Por dispensar a identificação da pessoa culpada, também recebeu o nome de culpa anônima.
Embora comumente a doutrina narre cada uma dessas teorias de forma estática e cronológica não é esse o melhor sentido que deve se dar a tal classificação. Embora haja uma inspiração histórica é possível identificar a sobreposição dessas teorias no tempo e até mesmo a complementação entre elas dentro de um mesmo ordenamento jurídico.
A teoria do risco administrativo tem como fundamentos os princípios da isonomia (art. 5o, caput, e inciso I, da CF/88) e da solidariedade (art. 3o, I, da CF/88). Entende-se que o Estado age em nome e no interesse de toda coletividade. Assim, da mesma forma que os bônus beneficiam a todos, os ônus também deverão ser suportados de forma coletiva, devendo haver verdadeira repartição dos encargos sociais. Desse modo, caso sobrevenham danos causados pela atividade estatal, lícita ou ilícita, culposa ou dolosa, o Estado deverá ressarcir o particular.
A teoria do risco integral se aproxima da teoria do risco administrativo, salvo por uma importante distinção: não admite excludentes de responsabilidade. É a teoria adotada pelos Tribunais Superiores, mormente pelo STJ, em casos de danos nucleares, atos terroristas e danos ambientais[1].
2.2 Aplicação no ordenamento jurídico brasileiro
No que tange aos atos comissivos, a teoria do risco administrativo foi acolhida pela CF/88, sendo a responsabilidade civil do Estado objetiva, ou seja, independe de dolo ou culpa e só poderá ser afastada caso demonstrada uma excludente de responsabilidade. É o que se extrai da literalidade do §6o do art. 37 da CF/88[2] ao consignar que tanto as pessoas jurídicas de direito público quanto as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, sendo assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
A interpretação a contrario sensu da parte final do referido dispositivo conduz à conclusão de que é desnecessária a averiguação do dolo ou culpa do agente para fins de configuração da responsabilidade estatal, sendo o elemento subjetivo relevante apenas na ação de regresso em face do servidor público que causou o dano. Desse modo são elementos da responsabilidade civil do Estado: a conduta, o dano e o nexo de causalidade.
Desse modo, ao pleitear determinada indenização a vítima terá que se desincumbir do ônus de comprovar a existência do dano suportado, da conduta estatal que gerou o dano e do nexo de causalidade como fator aglutinante entre os dois primeiros. Ressalte-se que, em regra, o ônus é de quem alega, ou seja, cabe ao autor comprovar os fatos constitutivos de seu direito. Nesse sentido é o disposto no art. 373, I, do Código de Processo Civil (CPC).
Sem prejuízo da regra geral é plenamente possível – e inclusive frequente – que o juiz inverta o ônus da prova, seja pela aplicação da teoria da carga dinâmica (art. 373, §1o, do CPC), seja por expressa disposição de lei[3]. Como exemplo desta última hipótese tem-se a incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC) na prestação de serviços públicos remunerados por tarifa ou por taxa (art. 6o, X), uma vez que, o diploma consumerista, positiva tal instituto (art. 6o, VIII)[4]. Importante referir que a inversão do ônus da prova é regra de instrução, em respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa e não regra de decisão[5].
Caso haja a inversão do ônus da prova caberá ao Estado comprovar a ocorrência de alguma causa excludente de sua responsabilidade, como o fato exclusivo da vítima, o fato exclusivo de terceiro, caso fortuito ou força maior.
Noutro giro, quando o Estado debilita, enfraquece, ou até mesmo sacrifica um direito de outrem, exercitando um poder que a ordem jurídica lhe confere, não haverá responsabilidade civil do Estado. Nessas situações o Estado age munido de autorização para praticar um ato cujo conteúdo jurídico intrínseco consiste precisa e exatamente em ingressar na esfera alheia para incidir sobre o direito de alguém. É o caso, por exemplo, de uma desapropriação.
Outro ponto relevante é a aferição do grau de responsabilidade do Estado em determinada situação concreta. A responsabilidade será primária quando o Estado, por meio de seus agentes, causar de forma direta o dano. É o caso por exemplo de um dano causado por uma obra pública executada diretamente pelo Estado ou de um dano causado por um agente de segurança pública estatal.
Além dessa espécie vislumbra-se cenários em que há mais de um agente envolvido na produção do dano. Em caso de concessões de serviços públicos o Estado delega a terceiros, mais comumente pessoas jurídicas de direito privado, a prestação dos serviços. Nesses casos, a responsabilidade do Estado será, em regra, subsidiária, podendo responder quando a concessionária não o fizer ou não puder adimplir a obrigação. É o que se extrai do teor do art. 2o, II, da Lei no 8.987/95[6].
À luz da atual jurisprudência do STJ essa parece ser a regra[7], mas é possível identificar casos em que a responsabilidade do Estado é reconhecida como solidária em razão da deficiência no desempenho de seu papel de Poder Concedente. Destaque-se ainda, os casos de responsabilidade civil por dano ambiental em que o STJ entende que os responsáveis pela degradação ambiental são coobrigados solidários, formando-se, em regra, nas ações civis públicas ou coletivas litisconsórcio facultativo. Frise-se que, nesses casos, embora a responsabilidade seja solidária, a execução em face do ente público será subsidiária[8].
Ademais, há responsabilidade civil do Estado quando a omissão de cumprimento adequado do seu dever de fiscalizar for determinante para a concretização ou o agravamento do dano causado[9].
Cumpre fazer uma breve digressão, pois escapa ao escopo da presente exposição, quanto à responsabilidade civil do Estado por atos omissivos. A jurisprudência dos tribunais superiores firmou entendimento ao longo dos últimos anos no sentido de ser subjetiva a responsabilidade por atos omissivos, sob o argumento de que o estado não poderia ser um “salvador universal”. Assim, não é porque uma pessoa é acometida por um dano que, em tese, poderia ser evitado pela ação estatal, que o Estado deverá necessariamente repará-lo. Para que haja direito à indenização o requerente deverá demonstrar que o Estado agiu com dolo ou ao menos com culpa em sua inação.
Em que pese parecer ser ainda esse o posicionamento prevalecente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF)[10] vem caminhando para uma tendência de ampliação da responsabilidade objetiva por atos omissivos. Assim, há julgados no sentido de que se o Estado se omite em situação na qual tem o dever específico de agir a responsabilidade pela omissão será objetiva. É o caso, por exemplo, da morte de detento ocorrida no interior de estabelecimento penitenciário.
Conforme mencionado, o Estado fica obrigado a indenizar terceiros pelos danos causados, seja por atos ilícitos quanto lícitos. Quanto aos atos ilícitos aplica-se o art. 186, combinado com o art. 927, caput, ambos do Código Civil (CC). Em relação aos atos lícitos incide a previsão do parágrafo único do art. 927 do CC[11], seja por se tratar de um caso especificado em lei, seja porque a atividade normalmente desenvolvida pelo Estado implica, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Vale citar o clássico exemplo de um dano suportado pelo particular em razão de uma obra de infraestrutura regularmente licenciada desenvolvida pelo Estado. Trata-se de ato lícito, mas que gera risco de danos aos particulares, que, com espeque no princípio da solidariedade, deverão ser indenizados.
Outro ponto relevante quanto à indenização é a sua quantificação. Os danos podem ser de diversas espécies, sendo os danos materiais, morais e os estéticos as espécies mais corriqueiras. A primeira espécie tem como elementos os danos emergentes – aquilo que efetivamente se perdeu – e os lucros cessantes – aquilo que se deixou de ganhar[12].
A segunda espécie é de quantificação mais tormentosa para a jurisprudência por faltarem critérios objetivos para a reparação de danos causados à integridade psicofísica da vítima. Por isso, o STJ desenvolveu o critério bifásico para quantificação dos danos morais pelo qual em um primeiro momento se fixa um valor básico para a indenização com base na jurisprudência que examinou casos semelhantes. No segundo momento são consideradas as circunstâncias do caso concreto para a fixação definitiva da indenização[13].
Quanto aos danos estéticos cumpre sublinhar que é firme a jurisprudência do STJ quanto à possibilidade de cumulá-los com os danos morais por serem de espécies distintas. O entendimento encontra-se expresso na Súmula 387, que assim dispõe: É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral.
A culpa concorrente entre Estado e vítima não afasta a responsabilidade, mas a jurisprudência firmou-se no sentido de que a indenização deve ser reduzida de acordo com a participação de cada um. Quando não for possível medir a participação de cada um aplica-se o percentual de 50%. Trata-se da incidência do sistema da compensação das culpas previsto no art. 945 do CC[14].
Os danos oriundos de atos estatais podem ser os mais diversos. Em razão dessa variedade, distintas também são as possibilidades de reparação. A mais conhecida é a reparação em dinheiro. Quando essa obrigação extrapolar o valor fixado para Requisição de Pequeno Valor (RPV) fixado no âmbito do respectivo ente, a indenização será adimplida mediante precatório[15].
Também é possível que seja prestado diretamente serviço que vise à reparação do dano (v.g. serviços médicos prestados na rede pública de saúde) ou ainda o pagamento de pensão mensal. Quanto a esta última espécie é firme a jurisprudência do STJ no sentido de que pode ser cumulada com a indenização por danos morais e com benefício previdenciário, já que não possui caráter indenizatório[16].
Consoante entendimento do STF e do STJ, a prescrição para ação de responsabilidade civil em face do Estado é, em regra, quinquenal, na esteira do disposto no art. 1o do Decreto nº 20.910/32[17]. Entretanto, o STJ tem posição firme no sentido de que tal regra não se aplica às ações de indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura ocorridos durante o Regime Militar de exceção, que são imprescritíveis[18].
2.3 A responsabilidade civil do agente público
O ordenamento jurídico brasileiro adotou a teoria do órgão de Otto Gierke, de modo que os agentes públicos atuam como presentantes do Estado, manifestando, através do desempenho de suas funções, a vontade estatal. Após extenso debate doutrinário e jurisprudencial culminou-se na atual redação do §6o do art. 37 mencionada alhures. De seu texto não há dúvida quanto à responsabilidade objetiva do Estado, por um lado, e da responsabilidade subjetiva de seus agentes, por outro.
À luz da teoria do risco administrativo, acarretam responsabilidade do Estado não só os danos produzidos no próprio exercício da atividade pública do agente, mas também aqueles que só puderam ser produzidos graças ao fato de o agente prevalecer-se da condição de agente público.
Assim, não importará, para tais fins, o saber se os poderes que manipulou de modo indevido continham-se ou não, abstratamente, no campo de suas competências específicas. O que importará é saber se a sua qualidade de agente público foi determinante para a conduta lesiva.
Entretanto, o texto não deixa claro se a vítima está autorizada a ajuizar a ação apenas em face do Estado, em face do Estado e do servidor em litisconsórcio passivo, ou ainda apenas contra o servidor. Trata-se de questão processual da mais alta relevância considerando os impactos práticos que a sua conclusão gera na esfera das vítimas, dos servidores públicos e do Estado.
Durante longo período houve divergência entre o STJ e o STF. O Tribunal da Cidadania entendia que era uma faculdade da vítima ingressar com a ação apenas em face do Estado[19]. Para essa corrente o dispositivo constitucional não vedaria a possibilidade de a vítima acionar diretamente o servidor público causador do dano.
Nesse sentido, caberia à vítima avaliar as vantagens e desvantagens na composição do polo passivo. Tendo apenas o Estado como réu não terá que comprovar dolo ou culpa, mas se ganhar o pagamento será em precatório. Tendo o servidor no polo passivo terá que comprovar o dolo ou a culpa e é possível que não haja patrimônio suficiente para a reparação do dano. Por outro lado, a execução irá tramitar de forma mais célere a execução será mais simples.
Em complemento, essa corrente sustentava que a denunciação da lide seria possível, mas não seria obrigatória. A decisão quanto à intervenção de terceiros seria do Estado, ou seja, a não denunciação não geraria nulidade nem comprometeria a ação de regresso[20].
Com a máxima vênia, entende-se que essa posição é equivocada. A interpretação mais consentânea com o referido dispositivo constitucional é de que a ação deve ser ajuizada exclusivamente em face da pessoa jurídica. Desse modo protege-se a vítima na medida em que o Estado tem patrimônio suficiente para pagar a indenização e há a aplicação da teoria objetiva, bem como o agente público, já que, devido ao princípio da impessoalidade, seus atos não podem ser imputados à sua pessoa, mas sim ao ente público em nome do qual atua[21], assim a responsabilização do agente seria somente perante a Administração Pública.
Trata-se da chamada teoria da dupla garantia: uma em favor do particular; outra, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional pertencer. Assim, uma vez condenado a pagar, o Estado ajuíza ação regressiva contra o agente, na qual a responsabilidade será subjetiva. Essa tese foi encampada pelo STF em sede de repercussão geral no julgamento do RE 1027633/SP, relatado pelo Ministro Marco Aurélio e julgado em 14/8/2019. Com isso, ao que tudo indica, a aludida controvérsia encontra-se superada.
Embora não se discuta que a responsabilidade dos agentes públicos é subjetiva, há grande dificuldade em se delimitar o elemento subjetivo que conduz as condutas praticadas no exercício da função, principalmente em se tratando de culpa conceituada de forma mais genérica e casuística do que o dolo. A fim de reduzir o campo de insegurança jurídica que incide na matéria, o legislador acrescentou, por meio da Lei no 13.655/2018, o art. 28 à LINDB dispondo que “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.
No que tange ao termo a quo para o ajuizamento da ação regressiva, prevalece na jurisprudência que é o momento do trânsito em julgado da ação principal. Há autores, por todos José Santos Carvalho Filho, cujo entendimento é de que o momento inicial do prazo prescricional é o do pagamento feito pelo Estado. Vale sublinhar que o STJ já entendeu que não é necessário o deslinde da ação indenizatória contra o Estado para que este venha a exercer seu direito de regresso contra o seu agente[22].
Os servidores públicos sujeitam-se a três principais espécies de responsabilidade: penal, civil e administrativa. Em regra, essas instâncias são independentes, mas poderão, excepcionalmente, se comunicar. Caso o agente seja absolvido na seara penal por inexistência do fato ou por negativa da autoria se estará diante de uma hipótese de absolvição geral, ou seja, o agente deverá ser absolvido em todas as instâncias. Importante atentar para o fato de que qualquer outro fundamento para a absolvição não justifica a comunicação das instâncias[23].
Além disso, se no processo penal for reconhecida uma excludente de ilicitude essa questão fará coisa julgada no processo civil, mas isso não significa que o resultado será o mesmo em ambas as instâncias.
A decisão condenatória na esfera penal só causa reflexo se o fato ilícito penal se caracterizar como fato ilícito civil, ocasionando prejuízo aos cofres públicos. Em relação aos reflexos na seara administrativa, há que se distinguir os crimes funcionais dos não funcionais.
Nos crimes funcionais a condenação necessariamente refletirá na seara administrativa, já a absolvição segue a regra geral supra referida[24]. Já nos crimes não funcionais a condenação só repercutirá nos casos em que a pena impuser a perda da liberdade. Se por tempo inferior a 4 anos, o servidor poderá ficar afastado do cargo, recebendo o benefício de auxilio-reclusão. Se superior a 4 anos, poderá perder o cargo, sendo certo que se trata de efeito não automático (art. 92, I, b, do CP)[25].
Ademais, entende o STJ que não deve ser paralisado o curso de processo administrativo disciplinar exclusivamente em razão de ajuizamento de ação penal destinada a apurar criminalmente os mesmos fatos investigados administrativamente. Isso porque as esferas administrativa e penal são independentes, não havendo razão suficiente para a suspensão do processo administrativo[26].
Uma vez constatado o dano, o Estado poderá regredir em face de seus agentes, caso esses o tenham causado culposa ou dolosamente. Essa cobrança poderá se dar na via administrativa ou na judicial. Na via administrativa, o pagamento da indenização pelo agente será resultado de um processo administrativo que deverá observar as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5o, LV, da CF/88)[27].
O pagamento de indenização ao final do processo administrativo dependerá de acordo entre as partes ou, pelo menos, de anuência do agente público. Ao Estado é vedado estabelecer qualquer regra administrativa que obrigue o agente, por seus próprios meios, a pagar o débito. É ilegal, por exemplo, qualquer norma que autorize o Estado a descontar, por sua exclusiva iniciativa, parcelas indenizatórias dos vencimentos do servidor.
A depender da gravidade do dano causado e do elemento subjetivo que o motivou o agente público poderá ser sancionado. Nesse caso deverá ser instaurado processo administrativo disciplinar (PAD), no qual também serão necessariamente observados contraditório e ampla defesa.
Sublinhe-se que a necessidade de observância do contraditório e da ampla defesa não se confunde com a obrigatoriedade da presença de advogado, sendo esse o entendimento constante da Súmula Vinculante no 5: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. Desse modo, a presença de advogado em PAD é facultativa, ou seja, caso haja auxílio de advogado, tal circunstância não gera a nulidade do PAD.
Ademais, a pena fixada deverá ser proporcional à gravidade do ato e acompanhada de motivação. O STJ possui entendimento consolidado no sentido de que não cabe a revisão do conjunto fático-probatório apurado no PAD, com a incursão no mérito administrativo, por ser questão estranha à competência do Judiciário. Por outro lado, admite-se o exame da proporcionalidade e da razoabilidade da penalidade imposta ao servidor, porquanto se encontra relacionada com a própria legalidade do ato administrativo[28].
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, constata-se que o aprofundamento dos estudos relativos à responsabilidade civil do Estado e de seus agentes é fundamental para que o instituto venha a ser interpretado e aplicado em consonância com a ordem constitucional vigente. Embora seja possível identificar uma sequência histórica atinente à responsabilidade civil do Estado, identifica-se a sobreposição dessas teorias, de modo a se complementarem. É dizer, é possível que se aplique diferentes teorias em um mesmo recorte temporal, a depender das circunstâncias que se apresentem de forma concreta.
Considerando a redação do §6o do art. 37 da CF/88, a teoria que incide com maior frequência é a do risco administrativo. Neste trabalho foram elencados diversos entendimentos dos tribunais superiores que têm aplicado essa teoria considerando determinadas particularidades de situações específicas.
Por fim, aludiu-se ao tema da responsabilidade civil do agente público. Até agosto de 2019 pairava grande insegurança jurídica acerca do tema. Embora houvesse relativo consenso quanto à responsabilidade civil do Estado, STJ e STF divergiam quanto à possibilidade de inclusão do agente público no polo passivo da ação.
A questão foi pacifica pela Suprema Corte prevalecendo o entendimento estribado na teoria da dupla garantia. Com efeito, pode-se afirmar que, no contexto atual, há uma garantia em favor do particular e outra em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional pertencer. Assim, uma vez condenado a pagar, o Estado ajuíza ação regressiva contra o agente, na qual a responsabilidade será subjetiva.
REFERÊNCIAS
CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Forense, 2017.
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: Maleiros, 1998.
PEREIRA, Caio Mário da Silva; atualizador Gustavo Tepedino. Responsabilidade civil. 10. ed. rev. atual. - Rio de Janeiro: GZ ed., 2012. p. 55.
STEIGLEDER, Annelise Monteiro, MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso Leme (Orgs.). Doutrinas essenciais de direito ambiental: responsabilidade em matéria ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. v, 2011, p. 43-48.
[1] STJ. 2ª Seção. REsp 1374284-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 27/8/2014 (Info 545).
[2] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
[3] Art. 373. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. § 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. § 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.
[4] Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...)VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências; IX - (Vetado); X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
[5] STJ. Segunda Seção. EREsp 422.778-SP, Rel. originário Min. João Otávio de Noronha, Rel. para o acórdão Min. Maria Isabel Gallotti (art. 52, IV, b, do RISTJ), julgados em 29/2/2012.
[6] Art. 2o Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se: (...) II - concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado;
[7] Nesse sentido o STJ já entendeu que a autarquia responsável pela conservação das rodovias responde pelos danos causados a terceiros em decorrência da má conservação, contudo remanesce ao Estado a responsabilidade subsidiária, não havendo que se falar em responsabilidade solidária deste. (AgRg no AREsp 539057/MS. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2014/0157052-6. Relator (a) Ministro HERMAN BENJAMIN).
[8] Nesse sentido é o teor da recente Súmula 652 do STJ: A responsabilidade civil da administração pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária.
[9] Trata-se de entendimento do STJ publicados na edição no 30 de Jurisprudência em Teses. No caso de omissão no dever de fiscalização a responsabilidade será de caráter solidário, mas de execução subsidiária (STJ. 2a Turma. AgInt no REsp 1362234/MS, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 05/11/2019).
[10] A título de exemplo veja-se: STJ. 2ª Turma. AgRg no REsp 1305259-SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 2/4/2013 (Info 520); STF. Plenário. RE 580252/MS, rel. orig. Min. Teori Zavascki, red. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgado em 16/2/2017 (repercussão geral) (Info 854).
[11] Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
[12] Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
[13] Nas palavras do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino ao julgar o REsp 1.152.541: “Na primeira etapa, deve-se estabelecer um valor básico para a indenização, considerando o interesse jurídico lesado, com base em grupo de precedentes jurisprudenciais que apreciaram casos semelhantes. Na segunda etapa, devem ser consideradas as circunstâncias do caso, para fixação definitiva do valor da indenização, atendendo à determinação legal de arbitramento equitativo pelo juiz”.
[14] Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.
[15] Art. 100 da CF/88. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
[16] STJ. AgRg no AREsp n. 541.568, Min. Ricardo Villas Bôas Cueva.
[17] Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.
[18] STJ. 2ª Turma. REsp 1.374.376-CE, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 25/6/2013 (Info 523).
[19] Posição adotada pela 4a Turma do STJ no REsp 1.325.862-PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 05/09/2013. Também era posição defendida por parte da doutrina, como Celso Antônio Bandeira de Melo e José dos Santos Carvalho Filho.
[20] Havia ainda outras correntes quanto à possibilidade de denunciação à lide, da quais se destacam: A súmula 50 do TJRJ que não admite a denunciação da lide. O fundamento principal é de que a denunciação da lide traz a discussão da culpa para a demanda. A vítima fica esperando a discussão da culpa do agente, entre o estado e servidor, perdendo o efeito do artigo 37, parágrafo 6º da CRFB que tinha uma pretensão célere; Para Yussef Cahali e Di Pietro caberá dependendo do caso concreto. Se a vítima não imputa a culpa ao agente público na inicial, o estado estaria proibido de denunciar a lide. Ao contrário, se ela identifica, lhe imputa uma culpa, o estado poderia lhe denunciar a lide. Se a vítima não discutiu a culpa do servidor, não poderia o estado trazer em momento posterior trazer esse elemento novo ao processo.
[21] Essa é a opinião, por exemplo, de José Afonso da Silva. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: Maleiros, 1998.
[22] Foi o que estou decidido no REsp 236.837, de 03/02/2000.
[23] É o que extrai dos seguintes dispositivos legais: Art. 66, CP. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato. Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. Nesse sentido veja-se ainda: STF. 2ª Turma. RMS 32357/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 17/3/2020 (Info 970).
[24] Sobre o tema o STF editou a Súmula 18: Pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público.
[25] Art. 92 - São também efeitos da condenação: I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo: a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública; b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.
[26] STJ. 1ª Seção. MS 18090-DF, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 8/5/2013 (Info 523).
[27] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
[28] Nesse sentido: STJ. AgInt no MS 20.515/DF, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28/06/2017, DJe 01/08/2017.
Advogado. Pós-graduado pela Escola Superior de Advocacia Pública e Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEHL, Jonas Veprinsky. A responsabilidade civil do Estado e dos agentes públicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 abr 2022, 04:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58231/a-responsabilidade-civil-do-estado-e-dos-agentes-pblicos. Acesso em: 24 nov 2024.
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