ANTÔNIO CÉSAR MELLO
(Coautor)
RESUMO: O presente estudo trata-se de uma análise no tocante às diversas formas de violência doméstica enfrentada por mulheres em razões do gênero, dando ênfase ao processo histórico e para o que motivou o crescimento de vítimas. Por outro lado, observa-se as consequências trazidas, demonstrando a aplicabilidade da Lei nº 11.340, de 2006, além das inovações legislativas presentes na atualidade, destacando, ainda, o avanço introduzido através da Lei nº 13.104, de 2015, tipificando o crime de feminicídio, bem como os fatores determinantes para sua prática. Observa-se, ainda, a aplicação da tese de legítima defesa da honra nos Tribunais do Júri, dificultando a devida punição de acusados por feminicídio, demonstrando a lentidão da aplicabilidade normativa. Em contraposição, é dada sua inconstitucionalidade perante decisão do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Violência contra a mulher. Feminicídio. Legítima defesa da honra.
ABSTRACT: The present study is an analysis regarding the various forms of domestic violence faced by women for reasons of gender, emphasizing the historical process and what motivated the growth of victims. On the other hand, the consequences brought are observed, demonstrating the applicability of Law No. femicide, as well as the determining factors for its practice. It is also observed the application of the thesis of legitimate defense of honor in the Jury Courts, making it difficult to properly punish those accused of femicide, demonstrating the slowness of normative applicability. In contrast, its unconstitutionality is given by a decision of the Federal Supreme Court.
Key words: Violence against women. Femicide. Self-defense of honor.
Sumário: 1. Introdução. 2. A história no decurso da conquista dos direitos da mulher. 2.1 A construção dos direitos da mulher. 2.2 Conquista de direitos e a luta por igualdade. 3. Violência contra a mulher na atualidade. 4. Lei nº 11.340 (Lei Maria da Penha). 5. Lei 13.104/2015 (Lei do Feminicídio). 6. A utilização da tese de legítima defesa da honra em crimes de feminicídio.
1 INTRODUÇÃO
A pesquisa visa adentrar o contexto da violência contra a mulher, que, apesar de ser uma temática arcaica, ainda é vivenciada nos dias atuais. Essa violência se dá, em maior parte, dentro do ambiente familiar, resultando na violência doméstica, tratativa que por muito tempo foi ignorada e considerada normal perante a sociedade, desencadeando o sofrimento da vítima, que considerava a referida atitude como comum.
Os capítulos têm como objetivo contextualizar o passado, quando a questão era inferiorizada em razão da mulher ser considerada submissa ao homem, exposta a padrões ditados pela sociedade com a finalidade de preservar sua conduta, mas, principalmente, a honra de seu pai, cônjuge ou quem estivesse no controle.
Além disso, o estudo demonstra que, devido ao aumento de casos relacionados à violência doméstica, fazem-se necessários avanços trazidos pela inclusão da mulher em condição de igualdade perante o homem. Sendo assim, o que antes era considerado declínio diante dos direitos das mulheres, agora a legislação passou a dedicar-se e a incluir suas garantias em seu rol.
Dessa maneira, mostra-se que, apesar de recente, foi criada a Lei nº 11.340, de 2006, explicitando o crime de violência doméstica contra a mulher em razão de seu gênero. A referida lei deu esperança para que as vítimas denunciassem agressões sofridas, além de tipificar como forma de violência a física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Posteriormente, no ano de 2015, a Lei nº 13.104 trouxe em seu rol taxativo a qualificadora do crime de homicídio, o feminicídio, incluso ao Código Penal Brasileiro, referindo-se a assassinatos de mulheres motivados por seu gênero.
O problema da pesquisa elaborada consiste no questionamento: qual seria a motivação para que a violência doméstica contra a mulher, mesmo após anos, com legislações específicas resguardando seus direitos, ainda seja uma questão controversa a ser superada?
O estudo objetiva ampliar a análise quanto aos fatores motivantes da violência doméstica, além de explicar a tratativa do discurso da legítima defesa da honra, demonstrando a motivação de sua inconstitucionalidade.
A metodologia utilizada na pesquisa ocorreu por meio de consultas a doutrinas, artigos com aporte científico e jurisprudência, que demonstravam a tratativa de forma ampla, desde o contexto histórico à criação de leis, bem como dados demonstrados por instituições responsáveis no âmbito da violência doméstica.
2. A HISTÓRIA NO DECURSO DA CONQUISTA DOS DIREITOS DA MULHER
A luta por direitos atrelados às mulheres data um longo processo histórico, ao qual, por muito tempo, houvera sua falta. Apesar disso, a garantia desses direitos terem sido interrompidas por um sistema patriarcal que perdurou por anos na história do Brasil, vem aos poucos progredindo, no entanto, ainda com falhas.
As leis impostas às mulheres eram dadas por homens, que, por sua vez, tinham a visão de que o dever da mulher perante a sociedade deveria ser de resguardar a honra de sua família, posteriormente, após se casar, seguir ordens de seu cônjuge, além de cuidar da casa e dos filhos (SILVA, 2021).
Houve o tempo em que mulheres eram proibidas de estudar e trabalhar, dessa forma, não haveria como conquistar sua independência. Além disso, as leis direcionadas ao grupo eram promulgadas diante de uma visão misógina, ao qual teriam que defrontar o negacionismo exposto pelos legisladores (SILVA, 2021).
2.1 A construção dos direitos da mulher
A história da humanidade é detalhada por conceitos populares caracterizados por aversão ao sexo feminino. No Brasil, não foi diferente, sendo, desde sua colonização, um Estado marcado pela ausência de leis que resguardassem os direitos da mulher. Sob essa ótica, é importante ressaltar a relevância acerca da garantia de leis destinadas às pessoas, que, principalmente no passado, estavam vulneráveis a diversas situações perigosas.
Tendo em vista que mulheres não teriam acesso à educação, suas atividades eram destinadas apenas à vida matrimonial e materna. Nesse sentido, “Ao tempo do Brasil Colônia (1500 a 1822) reinava no País um sistema patriarcal. As mulheres eram destinadas ao casamento e aos afazeres domésticos, com total submissão e obediência aos homens” (FERNANDES, 2021, p. 12).
O sistema legislativo vigente no Brasil Colônia era as Ordens e leis do Reino de Portugal, também chamado de Código Filipino, no qual, inclusive, havia pena de morte a mulheres que praticassem adultério, além de pena de morte aos homens que as abusassem sexualmente. (FERNANDES, 2021).
Observa-se que a honra do marido sempre foi preservada pela legislação, pois o dever da mulher era zelar pelo seu casamento e sua família. Além disso, mesmo não estando casada, sua honra deveria ser preservada para que assim a de sua família também fosse.
Diante disso, no Brasil Império, os avanços não foram resolutos, o período data os anos de 1829 a 1889, havia a vigência da Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824. Verificou-se grande avanço na conquista dos direitos das mulheres, passaram ter acesso à escolaridade, conforme menciona Valéria Diez Scarance Fernandes:
Já no início do Império, foi reconhecido o direito ao estudo, restrito ao ensino de primeiro grau e com conteúdo diverso daquele ministrado aos meninos. Nas escolas, o estudo destinado às meninas era voltado principalmente para “atividades do lar (trabalhos de agulha), em vez da instrução propriamente dita (escrita, leituras e contas). Na aritmética, por exemplo, as meninas só podiam aprender as quatro operações, pois para nada lhes servia o conhecimento de geometria”. Somente em 1881, uma mulher frequentou curso superior e, em 1887, formou-se em medicina Rita Lobato Velho Lopes (FERNANDES, 2021, p. 15).
Ante o exposto, analisa-se que a história sempre esteve voltada aos homens, como sendo o único que possuiria deveres e capacidade para determinados assuntos, um deles, a educação. Mesmo havendo inclusão social, os direitos das mulheres foram suprimidos, sendo a única intenção o aperfeiçoamento de práticas que já realizavam rotineiramente em seu cotidiano.
Vale a pena ressaltar que, durante o período imperial, não houvera grandes avanços, inclusive, o acesso à área educacional com disciplinas associadas à matemática e à gramática continuaram como papel masculino. A inteligência da mulher fora subestimada muitas vezes. A visão patriarcal era de ser um sexo frágil, que não tinha capacidade de desenvolver as mesmas habilidades que homens realizavam.
Sob o mesmo ponto de vista, a misoginia era visível também nas relações pessoais, nas quais as mulheres deveriam prestar todo suporte ao seu marido. Caso fosse constatado que já havia desonrado seu cônjuge, o homem poderia dispensála, em casos com resultados fatais, havendo prevalência da legítima defesa da honra (FERNANDES, 2021).
Durante o período Republicano, as leis ganharam brechas à inovação, mulheres passaram a ser aceitas em um ambiente de trabalho. No entanto, sua atenção à honra e à família não poderia ser deixada, sendo sua prioridade zelá-las.
Em síntese, mulheres passaram a ter direito ao voto durante o período Republicano, com a exceção de que deveriam ocupar cargo público e este ser opcional. Acrescenta-se que a visibilidade feminina passa ser vista, igualmente seus direitos. Nesse viés, Fernandes (2021) destaca:
Os primeiros sinais de mudança vieram com o Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962) que revogou expressamente a incapacidade relativa da mulher casada (art. 6º, II), bem como estabeleceu novas regras: o marido ainda era o “chefe da sociedade conjugal”, mas exercia essa função com a colaboração da mulher e no interesse comum do casal e filhos (art. 233); a mulher podia recorrer ao juiz para fixar domicílio conjugal (art. 233, III); foi revogada a necessidade de autorização do marido para a mulher trabalhar (art. 233, IV) (FERNANDES, 2021, p. 19).
Assim sendo, todo o processo de conquista por igualdade foi marcado por lutas pelo sexo feminino, por outro lado, desconhecimento e falta de importância por parte da população em razão do patriarcado que foi instaurado desde primórdios. Como resultado, mulheres passaram anos sendo privadas de seus direitos, que aos poucos vêm sendo conquistados até os dias atuais.
2.2 Conquista de direitos e a luta por igualdade
A Constituição Federal de 1988 trouxe, em seu art. 5º, I, a redação que se segue:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (BRASIL, 1988).
Em contraste ao que havia sido árduo, a Carta Magna expressamente firma a igualdade entre homens e mulheres. É importante mencionar que a legislação passou a vigorar com outros olhos, principalmente a partir do século XXI, tendo muito o que ser superado e resguardado, mas com avanços significativos.
Paralelamente, a Constituição foi marcada por inovações. É relevante ressaltar que, ainda no século XX, mulheres adquiriram direitos, dentre eles, o de não precisar da autorização do marido para que pudessem trabalhar, ainda acerca do divórcio, o qual passou a ser permitido, por meio da Lei nº 6.515, do ano de 1977 (BRASIL, 1977).
Observa-se a conquista tardia de direitos imprescindíveis para o sexo feminino. Nesse passo, apenas no ano de 2007 a Lei nº 11.340 foi sancionada. A chamada Lei Maria da Penha alude à farmacêutica que sofreu violência doméstica vinda de seu marido por anos, o que na época não era amparado por lei, tornou-se um ato sem punibilidade adequada.
Ainda em 2005, o Código Penal brasileiro sofreu alteração em seu art. 215, que tinha a seguinte redação “Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude”. Verifica-se o termo de honestidade, o qual refere-se à mulher que seria casada ou de boa família. Sendo assim, aquele que o praticasse com mulheres que eram solteiras ou sem histórico acerca de sua reputação, não seria punido (MARCÃO, 2005).
Por conseguinte, a nova redação trazida pela Lei nº 11.106/2005 renovou a letra da lei, que passou a ser: “Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude”. Assim, foi assegurado a todas as mulheres o direito de ser vítima de atos graves como esse (MARCÃO, 2005).
Além do Código Penal, o que ganhou grande destaque foi a legislação voltada ao público feminino no Código Civil de 2002, instituído mediante a Lei nº 10.406, na qual houve uma mudança significativa em seu ordenamento (BRASIL, 2002). Com efeito, foram instituídos artigos que seguiam a Carta Magna.
Dentre os progressos, a nova orientação trouxera consigo a igualdade entre homem e mulher e esta passou a possuir mais independência sobre seus atos. No que se refere à menoridade, sua concessão passou a ser autorizada mediante autorização de ambos os pais. Além disso, o sobrenome adotado no matrimônio poderia ser realizado pelo marido ou pela sua esposa (AIRES, 2017).
Nesse passo, acrescenta-se que a sociedade conjugal passou a ser exercida pelos cônjuges, sem distinção de sexo ou subordinação. Por conseguinte, a moradia seria escolhida por ambas as partes, e, na falta de um, em razão de acidente ou prisão, o companheiro ficaria responsável pelos seus bens (AIRES, 2017).
3. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER NOS DIAS ATUAIS
Precipuamente, o patriarcado é o principal influenciador para a diminuição das mulheres dentro da sociedade, e, com o passar dos anos, a violência doméstica sempre esteve presente, vinda principalmente do cônjuge. Ocorre que, além da violência sofrida em seu lar, eram ocasionadas também nas ruas, em seu trabalho, vinda de outros familiares e até mesmo amigos.
Acrescenta-se que anos foram e são marcados pela agressão, que, infelizmente, perdura até os dias atuais. Estatísticas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, levantadas pelo Datafolha, mostram que apenas em um ano, entre 2020 e 2021, uma em cada quatro mulheres sofreram algum tipo de violência no Brasil, equivalente a 17 milhões, havendo aumento desde a última pesquisa realizada (BUENO et al., 2021).
Além disso, ainda conforme o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o maior percentual de violência foi a doméstica, que passou de 42% da última pesquisa, para 48,8% para a mais recente (BUENO et al., 2021). O principal fator que causou esse aumento foi a pandemia. Desde que pessoas se viram na situação de ter que ficar em isolamento social, em razão da pandemia da covid-19, inúmeras tiveram que ficar em casa, assim, a convivência passou a sofrer uma drástica modificação, ocasionando agressões.
Paralelamente, homens experienciaram que trabalhar de forma remota, provocando o aumento da violência doméstica familiar contra a mulher. A pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra, também, que 52,6% das pessoas afirmaram passar mais tempo em casa durante a pandemia (BUENO et al., 2021).
4 A HISTÓRIA DA LEI Nº 11.340 (LEI MARIA DA PENHA)
A Lei nº 11.340, do ano de 2006, foi um grande avanço para o público feminino. Após anos, a mulher finalmente teve acesso ao direito básico de sua proteção. No entanto, é sabido que, apesar do avanço, muitos anos e casos de violência se passaram para que finalmente pudesse haver essa garantia (BRASIL, 2006).
Em suma, Maria da Penha Maia Fernandes foi uma farmacêutica que, no ano de 1983, sofreu duas tentativas de homicídio de seu marido, Marco Antonio Heredias Viveiros, o crime ocorreu por meio de um tiro disparado contra a vítima enquanto dormia, e, como consequência, ficou paraplégica. Como se não bastasse, seu marido ainda tentou eletrocutá-la enquanto tomava banho (INSTITUTO MARIA DA PENHA, 2022).
A luta que Maria da Penha passaria a enfrentar nos próximos anos não seria fácil. Após o auxílio de seus familiares, finalmente pôde deixar seu lar e recorrer à justiça. De início, no ano de 1991, o julgamento resultou em uma pena de 15 anos ao acusado, que logo após saiu em liberdade. Posteriormente, em 1996, houve outra sentença de 10 anos e 6 meses, com o mesmo resultado. No ano de 1998, houve uma denúncia perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (MARTINS, 2019).
A partir de então, no ano de 2001, foi determinada a condenação do Brasil pelo pagamento de 20 mil dólares à Maria da Penha. O pagamento foi realizado no ano de 2008. A referida lei possui vantagens voltadas aos casos de violência contra a mulher, como o caso de possuir cinco hipóteses de violência, sendo essas: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral (MARTINS, 2019).
Nesse passo, conforme a Lei nº 11.340/2006:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual (BRASIL, 2006).
Desse modo, considera-se o incentivo quanto à denúncia e punibilidade dos agentes de violência doméstica, o que anteriormente era considerado como crime de menor potencial ofensivo, conforme a Lei nº 9.099/95, passa a ser motivacional para que mulheres tenham a iniciativa de denunciarem qualquer tipo de violência que vierem sofrer (MARTINS, 2019).
Em vista disso, os crimes ocorridos anteriormente à Lei nº 11.340/06 eram considerados de menor potencial ofensivo, tendo como base a Lei nº 9.099/95. Sendo assim, o Supremo Tribunal Federal tratou como constitucional a tratativa de que os casos de violência doméstica contra a mulher não podem ser julgados pelos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (MARTINS, 2019).
Ainda, conforme a Lei nº 11.340/06:
Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher (BRASIL, 2006).
Na medida em que a Lei nº 11.340/2006 passou a ser reconhecida, sua aplicabilidade trouxe inovações para a legislação vigente. Uma nova possibilidade com a vigência da lei foi a do afastamento do agressor para as vítimas e filhos que possuírem. Como consequência do descumprimento da determinação, o agressor poderá responder em detenção, de três meses a dois anos (BRASIL, 2006).
A Lei Maria da Penha permitiu que fossem criados juizados especiais para tratar de assuntos relacionados à violência doméstica contra a mulher. De fato, foram criadas equipes, formadas por profissionais desde a área psicológica ao suporte jurídico, com o objetivo de instruírem a vítima.
Concomitantemente, o Estado deverá zelar pela vítima de violência, evitando que sofra violação aos direitos básicos à vida, tal qual é estabelecido pelo Art. 3º, § 1º da referida Lei (BRASIL, 2006).
Faz-se imperioso mencionar que a violência contra a mulher está inserida no contexto de gênero, dessa forma, a agressão deverá ser motivada pelo fato da vítima ter sido mulher. Em muitos casos, a iniciativa parte do familiar inserido em seu cotidiano, no qual, após um longo ciclo de violência verbal, patrimonial, dentre outras, é alcançada a física.
Do mesmo modo, em conformidade com a Lei nº 11.340, de 2006, as tratativas quanto ao procedimento são dadas inicialmente por meio do requerimento de medidas protetivas, onde este pode ser realizado pela vítima, pelo Ministério Público ou seu procurador perante a Delegacia de Polícia. Será elaborado um pedido sucinto, apenas com qualificação das partes, nome e idade dos dependentes, descrição dos fatos e na medida que vier a ser adotada (FERNANDES, 2021).
Dentre os procedimentos aplicados aos casos de violência doméstica, o acesso facilitado à denúncia trouxe consigo o conhecimento, por parte da população, a respeito de um crime que por muitas vezes foi inferiorizado. O embate por meio da luta contra a agressão ocorreu de modo a mostrar à sociedade que essa violência não deve ser considerada algo do cotidiano, mas sim ser combatida.
No que se refere à fase posterior, quanto ao procedimento adotado, tendo como referência a “Lei Maria da Penha”, no que tange à celeridade processual, após a colheita de documentos comprobatórios, assim deverão ser encaminhados ao juiz competente, para o atendimento emergencial da vítima, é estipulado o prazo de 48 horas para o estabelecimento de medidas de urgência.
Posteriormente, após as medidas protetivas, é requerida a audiência de justificação ou o deferimento por parte do magistrado. O autor será intimado e poderá apresentar recurso contra a decisão. Destaca-se que, com o proferimento, poderá ser alterada a qualquer momento, ainda, faz-se necessária a reavaliação quanto à medida protetiva periodicamente (FERNANDES, 2021).
É de suma importância que o referido prazo de 48 horas seja cumprido, em razão de ser recorrente a desistência da vítima em dar continuidade à denúncia, devido ao desamparo.
Conforme o estabelecido pela legislação vigente:
Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:
I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência;
II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso, inclusive para o ajuizamento da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união estável perante o juízo competente;
III - comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis.
IV - determinar a apreensão imediata de arma de fogo sob a posse do agressor (BRASIL, 2006).
Quanto à atuação do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, este tem atuação no âmbito da formação de uma equipe multidisciplinar, na qual seu objetivo é alcançado diante da recuperação daqueles que estão compreendidos ao caso.
A atuação do Estado se torna primordial ao amparo das vítimas de violência doméstica. São prestados atendimentos multidisciplinares, auxiliando no amparo das mulheres, que, na maioria dos casos, são dependentes financeiramente do companheiro e não têm um lugar para onde retornar. É assim a conduta de instituições sociais e serviços de proteção, onde receberão a contribuição necessária.
5 A LEI 13.104/2015 (LEI DO FEMINICÍDIO)
O contexto social de violência contra a mulher denota o difícil espaço de voz, no qual, por muito tempo, perpetuou a submissão da mulher perante o homem. Junto à violência doméstica, nada era feito, quanto mais a situação se agrava, resultados como homicídios eram mais frequentes.
Sobretudo, o contexto social é um fator relevante para o femicídio. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que, no ano de 2020, houve o total de 3.913 homicídios no país, dos quais 1.350 foram feminicídios. Inclusive, 14,7% dos homicídios cometidos tiveram autoria do parceiro da vítima.
A “Lei do Feminicídio” instituiu diante do Código Penal a característica de crime exclusivamente voltado a mulheres. Dessa forma, o feminicídio consiste no homicídio cometido contra o publico feminino em razão de seu sexo.
Diante da situação preocupante, fez-se necessária a criação de uma lei que fosse voltada à referida tipificação criminal. À vista disso, houve a qualificadora ao crime de homicídio:
Homicídio simples
Art. 121. Matar alguem:
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
Feminicídio
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I - violência doméstica e familiar;
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher (BRASIL, 1940)
Com a referida inovação, a justiça e celeridade para crimes contra a mulher foram unificados. Destaca-se que os crimes de feminicídio cometidos são, em sua grande maioria, ocorridos dentro de sua própria residência, pelo seu companheiro ou ex-companheiro, ocorrendo também com outros familiares.
Com efeito, muitas mulheres morrem devido à violência doméstica. Observase que é um ciclo, no qual a vítima sofre todos os tipos de agressões, muitas vezes, sem nenhum apoio. Por essa razão, quando há iniciativa para denunciar, acaba desistindo e omitindo os fatos. Acrescente-se que, nos casos, a população ou familiares encobrem as agressões que presenciam, ocasionando o desencorajamento da vítima, que não encontra suporte.
A Lei nº 13.104, de 2015, considera que há razões para o crime cometido contra o sexo feminino quando envolver fatores de violência doméstica e familiar, além do menosprezo ou descriminação à condição de mulher (BRASIL, 2015).
Consoante o que menciona Valéria Diez Scarance Fernandes:
Este crime peculiar envolve alguns aspectos que justificavam uma postura diferenciada do legislador: o sofrimento da vítima normalmente é silenciado, oculto, assim em julgamento pelo Tribunal do Júri, as testemunhas desconhecem o histórico de dominação e violência que antecederam a morte da mulher; os criminosos passionais são muitas vezes primários e de bons antecedentes, tidos como “bons cidadãos” (fatores que podem levar ao reconhecimento de um privilégio ou até mesmo absolvição, em se tratando de juízes leigos); se as vítimas procuraram ajuda, mas não houve instauração de inquérito ou indiciamento, não constará registro de agressões anteriores. Em resumo: não há testemunhas ou provas de que a violência não se deu em um momento de infortúnio, mas sim, foi resultado de um processo de violência e humilhação (FERNANDES, 2021, p. 150).
Portanto, é visível que a violência doméstica contra a mulher é um fator, que na maioria das vezes, antecede o crime de feminicídio. Noutro raio semântico, mostra-se a esfera acerca do Estado, na falha da tratativa e punibilidade aos agressores, resultando na morte de muitas mulheres, esse contexto refere-se à violência institucional. Além disso, a condição social a qual a população feminina está inserida, herdando consequências de um passado patriarcal, no qual a mulher era submissa ao homem.
6. A UTILIZAÇÃO DA TESE DE LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA EM CRIMES DE FEMINICÍDIO
A legítima defesa é resguardada pelo Código Penal, no qual preceitua “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” (BRASIL, 1940, art. 25).
Como requisitos para constatação da legítima defesa a agressão injusta, atual ou iminente, o uso moderado dos meios necessários, a proteção do direito próprio ou de outrem e o conhecimento da situação de fato justificante.
A agressão injusta é caracterizada por colocar em risco bem jurídico de outrem, dessa forma, em face do conhecimento de situação de ameaça, a pessoa poderá utilizar de meios necessários para repelir caso fortuito. Sob a mesma égide, a agressão pode dar-se de forma atual ou iminente, ocorrendo no primeiro caso, no momento presente, em contrapartida a segunda, dá-se em situação que está para acontecer (CUNHA, 2015).
Os meios necessários serão aqueles à disposição para repelir a eventual agressão, devendo esses serem utilizados de forma moderada, mas que sejam suficientes para interromper o acontecimento (CUNHA, 2015).
Por outro lado, a legítima defesa será aplicada aos casos em que será repelida injusta agressão sua ou de outrem. Diante disso, deverá ter plena convicção de que estará agindo de forma que o ato esteja por ocorrer ou está acontecendo (CUNHA, 2015).
Nesse âmbito, é sabido que, diante do contexto histórico marcado por desigualdade, principalmente de gênero, o sexo feminino foi inferiorizado e continua sendo até os dias atuais. Inclusive, a violação de direitos básicos são ocorrências diárias, que, por muitas vezes, são consideradas normais pela sociedade.
Por trás desse contexto, está inserida a honra, que, desde o patriarcado, vem sendo fator principal para a preservação da dignidade masculina. Em contrapartida, a honra seria defendida por meio da própria legislação brasileira, na qual, até pouco tempo, o Código Penal não considerava como criminoso aquele que tivesse falta de conhecimento do ato que estaria cometendo o crime (BRASIL, 1890).
A referida legislação deixava impune aqueles que argumentassem estar sem seus sentidos diante da ocorrência de um crime. Nos casos em que havia adultério por parte da mulher, era considerado normal o marido agredir ou até mesmo tirar a vida da companheira.
Por esse motivo, com ocorrências relacionadas à violação da honra do seu pai ou de seu marido, mulheres eram punidas. Igualmente, o Título XXXVIII das Ordenações Filipinas mostrava que, nos casos de adultério, o homem poderia tirar a vida de sua companheira. Diante da vigência do Código Penal do ano de 1890, fora implementada a condição de legítima defesa para os casos de feminicídio, ocorre que muitos feminicídios, crime que à época ainda não era vigente, passaram impunes e despercebidos diante do excludente de ilicitude (SILVA, 2021).
A partir de então, a tese de legítima defesa da honra ganhou destaque na defesa do homem que praticasse homicídio contra mulher, diante da alegação de que aquela lhe feriu, muitos foram inocentados da prática no tribunal do júri.
Nesse passo, Fernando Capez (2013) menciona:
[...] todos os direitos são suscetíveis de legítima defesa, tais como a vida, a liberdade, a integridade física, o patrimônio, a honra etc., bastando que esteja tutelado pela ordem jurídica. Dessa forma, o que se discute não é a possibilidade da legítima defesa da honra e sim a proporcionalidade entre a ofensa e a intensidade da repulsa. Nessa medida, não poderá, por exemplo, o ofendido, em defesa da honra, matar o agressor, ante a manifesta ausência de moderação. No caso de adultério, nada justifica a supressão da vida do cônjuge adúltero, não apenas pela falta de moderação, mas também devido ao fato de que a honra é um atributo de ordem personalíssima, não podendo ser considerada ultrajada por um ato imputável a terceiro, mesmo que este seja a esposa ou o marido do adúltero (CAPEZ, 2013, p. 309-310).
Somente no ano de 2021 a tese foi argumentada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), e o houve ajuizamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) nº 779, diante do fundamento de que a nefasta tese fere a Constituição Federal, bem como os arts. 23, II e 25, do Código Penal e art. 65, do Código de Processo Penal. A partir de então, o Ministro Dias Tofoli, aprovou de forma parcial a medida cautelar (FERNANDES, 2021).
Referendada medida cautelar:
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, referendou a concessão parcial da medida cautelar para: (i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência, (iii) obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento, nos termos do voto do Relator. Os Ministros Edson Fachin, Luiz Fux (Presidente) e Roberto Barroso acompanharam o Relator com ressalvas. A ressalva do Ministro Gilmar Mendes foi acolhida pelo Relator. Falaram: pelo requerente, o Dr. Paulo Roberto Iotti Vecchiatti; pelo interessado, o Ministro José Levi Mello do Amaral Junior, Advogado-Geral da União; e, pelo amicus curiae Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica, a Dra. Eliana Calmon. Plenário, Sessão Virtual de 5.3.2021 a 12.3.2021. (STFADPF: 779 DF 0112261-18.2020.1.00.0000, Relator: Dias Toffoli, Data de Julgamento: 15/03/2021, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 20/05/2021).
Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a utilização da legítima defesa da honra nos casos de feminicídio é considerada inconstitucional por violar os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.
A referida decisão declarou:
Ementa Referendo de medida cautelar. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Interpretação conforme à Constituição. Artigos 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e art. 65 do Código de Processo Penal. “Legítima defesa da honra”. Não incidência de causa excludente de ilicitude. Recurso argumentativo dissonante da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF). Medida cautelar parcialmente deferida referendada. 1. “Legítima defesa da honra” não é, tecnicamente, legítima defesa. A traição se encontra inserida no contexto das relações amorosas. Seu desvalor reside no âmbito ético e moral, não havendo direito subjetivo de contra ela agir com violência. Quem pratica feminicídio ou usa de violência com a justificativa de reprimir um adultério não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma desproporcional, covarde e criminosa. O adultério não configura uma agressão injusta apta a excluir a antijuridicidade de um fato típico, pelo que qualquer ato violento perpetrado nesse contexto deve estar sujeito à repressão do direito penal. 2. A “legítima defesa da honra” é recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra a mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões. Constitui-se em ranço, na retórica de alguns operadores do direito, de institucionalização da desigualdade entre homens e mulheres e de tolerância e naturalização da violência doméstica, as quais não têm guarida na Constituição de 1988. 3. Tese violadora da dignidade da pessoa humana, dos direitos à vida e à igualdade entre homens e mulheres (art. 1º, inciso III , e art. 5º, caput e inciso I, da CF/88), pilares da ordem constitucional brasileira. A ofensa a esses direitos concretiza-se, sobretudo, no estímulo à perpetuação da violência contra a mulher e do feminicídio. O acolhimento da tese tem a potencialidade de estimular práticas violentas contra as mulheres ao exonerar seus perpetradores da devida sanção. 4. A “legítima defesa da honra” não pode ser invocada como argumento inerente à plenitude de defesa própria do tribunal do júri, a qual não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. Assim, devem prevalecer a dignidade da pessoa humana, a vedação a todas as formas de discriminação, o direito à igualdade e o direito à vida, tendo em vista os riscos elevados e sistêmicos decorrentes da naturalização, da tolerância e do incentivo à cultura da violência doméstica e do feminicídio. 5. Na hipótese de a defesa lançar mão, direta ou indiretamente, da tese da “legítima defesa da honra” (ou de qualquer argumento que a ela induza), seja na fase pré-processual, na fase processual ou no julgamento perante o tribunal do júri, caracterizada estará a nulidade da prova, do ato processual ou, caso não obstada pelo presidente do júri, dos debates por ocasião da sessão do júri, facultando-se ao titular da acusação recorrer de apelação na forma do art. 593, III, a, do Código de Processo Penal. 6. Medida cautelar parcialmente concedida para (i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa; e (iii) obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento. 7. Medida cautelar referendada (STF-ADPF: 779 DF 0112261-18.2020.1.00.0000, Relator: Dias Toffoli, Data de Julgamento: 15/03/2021, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 20/05/2021).
Nesse sentido, a utilização da tese se tornou inconstitucional, deixando de ser adotada por tribunais que ainda a aceitavam. No entanto, ainda é cotidiano a utilização da tese arguida pela defesa do acusado, envolvendo alegações sobre a vida e comportamento da vítima. Diante disso, a Lei nº 14.245, de 2021, estabelece entendimento quanto à tratativa das vítimas de violência ou agressão em audiências, evitando que haja coação e violação à sua dignidade, por parte de todos os sujeitos presentes.
Pois bem. Em referência à tese de “legítima defesa da honra”, Fernandes (2021) alude:
A decisão do STF extrapola o âmbito dos processos de feminicídio e impõe uma regra: a tese de legítima defesa da honra é inconstitucional e não está inserida no âmbito jurídico da excludente de ilicitude. Restringir a aplicação da decisão aos processos de feminicídio levaria ao absurdo jurídico de a mesma tese ser constitucional para alguns casos e inconstitucional para outros. Ora, se a legítima defesa da honra afronta a dignidade da pessoa humana nos processos de feminicídio, também produz o mesmo efeito para os demais processos de violência contra a mulher (FERNANDES, 2021, p. 160).
Assim sendo, a chance de a tese ser utilizada e aplicada aos demais casos de violência doméstica teria de permanecer como excludente de ilicitude. Deste modo, conforme o que foi destacado a princípio, o processo histórico de valorização da honra masculina é contundente para que a alegação fosse utilizada nos tribunais, mesmo que nos dias atuais.
Ainda, a “legítima defesa da honra” influenciava para que a violência contra a mulher ocorresse sem que a devida punição fosse aplicada. Os agressores teriam sabedoria de que tal atitude seria desconsiderada em julgamento, pois teriam ciência de que realizou a agressão apenas em própria defesa, levantando a tese.
Um dos casos mais emblemáticos do país, no qual a tese foi levantada, ocorreu com Ângela Diniz, morta com quatro tiros disparados pelo seu namorado à época, Doca Street. O julgamento ocorreu ainda nos anos 70, quanto a até então excludente de ilicitude poderia ser arguida. A defesa utilizou-se da legítima defesa da honra, afirmando, ainda, que o comportamento da vítima motivou o crime, o que é muito comum nesses casos (BESSA, 2021).
Portanto, o levantamento da legítima defesa da honra em crimes de feminicídio nos Tribunais do Júri não se tratam de cerceamento de defesa, mas do repúdio à apresentação de uma excludente de ilicitude incompatível com a legislação vigente e os direitos das mulheres, vítimas de feminicídio ou violência doméstica. Ora, é sabido que a legislação não retroage, assim, diante da alegação, seria conspícuo a aplicação prática do ordenamento jurídico vigente à época colonial.
7 CONCLUSÃO
O trabalho teve por objeto demonstrar a temática acerca da violência contra a mulher em ambiente doméstico. Sendo exemplificada a situação de vulnerabilidade feminina mediante a dificuldade para alcançar normas que lhe resguardassem direitos básicos.
A pesquisa cita que o contexto histórico é um fator determinante para que o patriarcado fosse influenciador, sendo repassado durante gerações, desencadeando o machismo e a normalização da violência contra a mulher.
Além disso, a pesquisa mostra que, devido à carência de normas, foi criada pela defesa dos agressores a excludente de ilicitude denominada “legítima defesa da honra”. Aplicada aos casos de feminicídio, com o advento da legítima defesa inserida ao Código Penal, foram inocentados diversos acusados ao longo das décadas, até o Supremo Tribunal Federal, em 2021, considerá-la inconstitucional.
Como resultado de sua inconstitucionalidade, a “legítima defesa da honra” deixou de ser aplicada em Tribunais Superiores. Sendo assim, não se trata de cerceamento de defesa, mas sim de salvaguardar mulheres de agressões ínfimas perante o Júri, no qual eram colocadas como fator de proteção não a honra do acusado, mas a da vítima, que muitas vezes tinha sua vida exposta.
Diante do estudo, considera-se que a tese, além do valor inconstitucional, fere a dignidade da mulher e se esquiva do objetivo de garantia de preservar a vítima. Além disso, sua ilegitimidade perante o Tribunal do Júri alcança a confiança da vítima ao denunciar casos de violência doméstica, no qual há grande um número de desistência para o prosseguimento, justamente pela falta de aplicabilidade ou agilidade da lei.
Por fim, com o avanço da legislação, é resguardado o amparo à vítima de violência doméstica, além da punibilidade ser aplicada de forma eficaz e justa. Dessa forma, são resguardados princípios e direitos humanos, evitando a regressão da legislação. Imperioso mencionar, ainda, que a construção dos direitos da mulher é realizada de forma contínua e a sociedade é determinante para que crimes como a violência doméstica contra a mulher e o feminicídio não sejam considerados os maiores crimes cometidos contra o gênero.
REFERÊNCIAS
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BESSA, Caroline Ribeiro Souto. Legítima Defesa da honra não é mais desculpa para matar mulher. In: Migalhas. [S. l.], 13 maio 2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/345376/legitima-defesa-da-honra-nao-e-maisdesculpa-para-matar-mulher>. Acesso em: 05 dez. 2021.
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