RESUMO: O presente trabalho objetiva analisar como se deu o processo histórico de previsão constitucional do direito indígena na América Latina, principalmente a partir da década de 70 do século XX. Neste objetivo, utilizou-se o método dedutivo, com as técnicas de pesquisa documental e bibliográfica, partindo de uma análise exploratória e qualitativa. A pesquisa está centrada num estudo de caso julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos envolvendo o Povo Indígena Xucuru e o Brasil, com sentença proferida em 2018. Como resultado, tem-se a inicial dificuldade de reconhecimento da do direito à diferença como legítimo instrumento garantidor da cidadania plena do povo indígena. A investigação possibilitou entender que o processo histórico de constitucionalização do direito indígena foi marcado pelo excesso de formalismo que não possibilita exercer, de fato, o direito à pluralidade. Todavia, a experiência da Constituição da Bolívia indica um norte a ser seguido na garantia dos direitos indígenas.
Palavras-chave: Direito indígena. Constitucionalização. América Latina.
THE CONSTITUTIONALIZATION OF INDIGENOUS LAW IN LATIN AMERICA
ABSTRACT: The present work aims to analyze how the historical process of constitutional prediction of indigenous law took place in Latin America, mainly from the 70's of the twentieth century. In this objective, the deductive method was used, with the techniques of documental and bibliographical research, starting from an exploratory and qualitative analysis. The research is centered on a res judicata study at the Inter-American Court of Human Rights involving the Xucuru Indigenous People and Brazil, with a sentence handed down in 2018. As a result, there is an initial difficulty in recognizing the right to difference as a legitimate guaranteeing instrument. full citizenship of the indigenous people. The investigation made it possible to understand that the historical process of constitutionalization of indigenous law was marked by an excess of formalism that does not make it possible to actually exercise the right to plurality. However, the experience of the Constitution of Bolivia indicates a direction to be followed in guaranteeing indigenous rights.
Keywords: Indigenous law. Constitutionalization. Latin America.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. ABORDAGEM CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA. 2. ESTUDO DE CASO: CASO POVO INDÍGENA XUCURU E SEUS MEMBROS VS. BRASIL. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO.
Este artigo trata sobre o processo histórico de constitucionalização do direito indígena na América Latina, principalmente a partir da década de 70 do século XX. Além disso, trás um estudo de caso sobre julgado relacionado à controvérsia entre envolvendo o Povo Indígena Xucuru e o país Brasil, realizado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2018.
A diversidade cultural na América Latina passou a ser tratada como matéria constitucional desde os anos 70 do século passado, com crescente protagonismo. Países como Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai passaram a incluir nas suas constituições nacionais o reconhecimento da diversidade cultural indígena através da internacionalização de instrumentos jurídicos internacionais.
O reconhecimento dos direitos nas Constituições veio acompanhado de muita luta dos povos indígenas pela previsão de instrumentos jurídicos que possibilitassem o exercício pleno da sua cidadania. Neste conceito, deverá ser incluído o direito de diferenciação, para haver uma verdadeira proteção de suas condições próprias. Assim, o objetivo almejado foi dotar estes povos com a possibilidade de exercer plenamente sua cidadania sem abandonar a condição de membro pleno de suas sociedades.
Assim, a constitucionalização dos direitos não pode significar a perda da livre autonomia para os povos indígenas se organizarem. Ao contrário, o reconhecimento como direito constitucional será legitimado sempre que disponibilize a cidadania plena e possibilite a preservação de sua cultura e sentimento cidadão próprio.
O direito à cidadania prevista na Carta Magna deve servir para a preservação de conflitos entre indígenas e não indígenas. Isto somente se dará com a hermenêutica constitucional comprometida com a efetividade dos direitos coletivos dos povos indígenas. As Constituições devem assegurar não apenas o pluralismo jurídico, mas investirem num verdadeiro Estado plural, que dê espaço de voz e poder para aqueles que nunca tiveram, não como minorias ou subalternos, mas em igualdade de importância aos atuais detentores do poder político e econômico.
Na análise metodológica, aplica-se o método dedutivo, com as técnicas de pesquisa documental e bibliográfica, por intermédio de uma análise exploratória e qualitativa. O presente ensaio também estuda o caso, submetido a julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que tem como partes de um lado o Povo Indígena Xucuru e o país do Brasil, de outro lado, tendo sido julgado a favor do povo indígena.
De tal modo, este trabalho foi desenvolvido em duas seções. De abertura, analisou-se o contexto histórico da constitucionalização dos direitos indígenas na América Latina para, em seguida, trazer os contornos práticos e debates realizados quando do julgamento do caso envolvendo o Povo Indígena Xucuru e o país do Brasil na CIDH.
1. ABORDAGEM CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA.
A partir do final da década de 80, países da América do Sul passaram a modificar suas normas locais para adequá-las ao ordenamento internacional de reconhecimento da diversidade cultural. Sobre a luta dos povos indígenas pelo reconhecimento de seus direitos, a professora Élida Lauris (2007, p. 73) nos informa que:
A luta indígena e sua plataforma de reconhecimento é um bom exemplo do que Santos denomina globalização contra-hegemônica. O reconhecimento de seus direitos coletivos desafia não só as bases de sustentação do Estado-nação como também os interesses do capitalismo global, está a se falar, não só do reconhecimento de sua identidade como também na garantia de direitos coletivos à terra, recursos naturais e conhecimento tradicional. Não é difícil perceber que a luta indígena se contrapõe aos interesses do capitalismo global, sobretudo, das corporações transnacionais.
Na mesma direção, a constituição político epistémica do movimento, sustentada nas reivindicações de interculturalidade e plurinacionalidade, aparece como uma alternativa ao projeto universalizante da globalização neoliberal. O movimento indígena também é um bom exemplo de ação política orientada através da manipulação de diferentes escalas já que sua atuação conta com coalizões transnacionais entre ONGS indígenas e não indígenas e a pressão internacional é muitas vezes importante para a vitória do movimento.
Nas décadas de 60 e 70, viu-se a eclosão, em países como Brasil, Argentina e Chile, de movimentos de ruptura institucional, com a ascensão dos militares ao poder, implantando regimes ditatoriais. Nesta seara de forte repressão, violência e desrespeito com os direitos humanos, foi muito forte o etnocídio contra os povos indígenas, com a tentativa de aniquilar sua cultura em prol de uma suposta pacificação, com a tentativa de extermínio das sociedades indígenas por meio de enfermidades e epidemias e legislações de exceção opressoras dos direitos humanos, obrigando os movimentos sociais a buscar amparo na legislação internacional. Sobre a internacionalização de direitos pelos países da América Latina, o professor Christian Courtis (2009, p. 53) trouxe um contexto histórico:
A região da América Latina e do Caribe foi onde se registrou a maior quantidade de ratificações da Convenção 169 – catorze, até a data de elaboração deste trabalho. Isso não é casual: muitos países da região são multilíngues e multiculturais e, em alguns casos, a população indígena constitui a maioria da população, ou uma porcentagem significativa dela. Além da ratificação da Convenção 169, e acompanhando o processo de reformas constitucionais que ocorreram a partir do final da década de 1980, um grande número desses países incorporou em suas constituições disposições sobre direitos dos povos e comunidades indígenas.
Sob o pretexto de integração nacional, no Brasil, abriram-se rodovias cortando comunidades indígenas, violando o direito a preservação da cultura e da forma de vida. A luta das comunidades indígenas marca a inclusão dos marcadores sociais da diferença nas legislações locais, principalmente na seara constitucional, revelando novas maneiras de produzir e apresentar o discurso da diversidade cultural.
No caso da coletividade indígena, a cidadania deve considerar sua legítima diferenciação, ao ponto que possibilite o exercício da cidadania plena, que não comprometa a soberania da comunidade indígena e evite conflitos entre indígenas e não indígenas. Em inovação legislativa, as constituições da Bolívia e Equador, estabeleceu não só o pluralismo jurídico, como também providenciou a existência de um Estado de cultura plural, onde os indicadores sociais da cidadania incluíram vozes antes não ouvidas, revitalizando a possibilidade de existência para diferentes noções de cidadania, que devem conviver em harmonia no cenário político-territorial.
A constitucionalização dos direitos indígenas sinaliza a modificação da interação do Estado, sociedade e mercado com as coletividades indígenas. Dentre os fatores, ao final da década de 80 do século XX, temos os processos de redemocratização acorridos após os regimes militares, uma maior participação política da sociedade, a dificuldade econômica advinda dos modelos neoliberais e o desenvolvimento de identidades coletivas na sociedade. No limiar deste movimento, temos a constituição Guatemalteca, de 1986, que pode ser considerada a primeira constituição multicultural da América Latina.
É possível fazer um estudo sobre a constitucionalização dos direitos indígenas entre os diferentes países da América Latina, quais sejam:
Argentina: reconhece a pré-existência étnica e cultural, garantindo educação bilíngue e participação na gestão de seus recursos naturais; |
Brasil: garante a educação de nível fundamental em caráter bilíngue e com respeito a cultura dos povos indígenas, reconhecendo organização social, cultura, língua e direitos originários a terra, direito de consulta para utilização dos seus recursos naturais e capacidade civil e judicial plena; |
Chile: dever de respeitar os direitos dos povos indígenas, inclusive aqueles reconhecidos em tratados internacionais ratificados; |
Colômbia: reconhece a identidade étnica e cultural, protege as terras tradicionalmente ocupadas, respeito aos tratados e convenções internacionais ratificados, requisitos específicos para compor o grupo de circunscrição nacional especial vinculados as comunidades indígenas; |
Paraguai: reconhece a existência dos povos indígena como povos ocupantes e anteriores a própria existência do Estado, reconhecer o direito de preservar e desenvolver sua identidade étnica, cultural, social, econômica e religiosa, garantia do uso de direitos consuetudinários indígenas nos julgamentos do Poder Judiciário, direito as terras tradicionalmente ocupadas, dispensa da prestação do serviço militar obrigatório aos indígenas, ensino na língua materna, sendo o guarani um dos idiomas oficiais do país; |
Peru: reconhece sua identidade étnica e cultural, com direito a utilização do seu próprio idioma perante qualquer autoridade e sob a presença de um intérprete, busca da erradicação do analfabetismo, promoção da integração nacional, com existência legal e garantia da personalidade jurídica a coletividade indígena. |
Como visto, a constitucionalização dos direitos indígenas foi fomentada sob o discurso do multiculturalismo e da ratificação de tratados internacionais, possibilitando reconhecer o caráter pluricultural do Estado, a igual dignidade entre as culturas, confirmação dos povos indígenas como sujeitos políticos, detentores de autonomia e autodeterminação, reconhecimento de diversas formas de participação direta e o reconhecimento dos direitos consuetudinários indígenas e da jurisdição especial.
Em que pese os avanços, ainda temos um cenário de forte limitação dos direitos indígenas no Brasil, como a língua portuguesa como única oficial, competência privativa para legislar da União, autorização do Congresso Nacional para exploração das riquezas naturais, competência dos juízes federais para julgar matérias que envolvam direitos indígenas e a função do Ministério Público de defender judicialmente os direitos inerentes às populações indígenas.
A criminalização das práticas judiciais dos povos indígenas demosntra uma espécie de confrontação, com a característica colonial e moderna da exclusividade estatal da função jurisdicional, causando sequelas nos procedimentos diferenciados realizados pelas culturas indígenas locais e impossibilitar a existência de jurisdição indígena com força jurídica e competência legal.
A nova conjuntura constitucional apresentada pelo Equador e pela Bolívia representa um novo arranjo no constitucionalismo multicultural. Sobre a constitucionalização dos direitos indígenas na Bolívia, ficamos as didáticas palavras dos professores Jane Beltrão e Assis Oliveira (2010, p. 728):
A radicalidade da proposta plurinacional boliviana representa a inscrição normativa dos marcadores sociais da diferença pela lógica do protagonismo político e livre determinação, combinados com os valores relativos ao pluralismo jurídico, à participação social, à autonomia e à sustentabilidade, o que, de certo, reordena as correlações de força e as possibilidades de efetiva inclusão social das coletividades indígenas.
O Estado passa a ser o guarda-chuva furado das diferentes formas de nações, porque se propõem a valorizá-las, respeitando suas autonomias e autodeterminações impossíveis de serem questionadas ou sofrer interferências do próprio Estado, sob pena de infração aos preceitos constitucionais.
Com origem histórica comum, de rompimento político com o poder da metrópole, que se utilizava do sistema colonial de administração, constituindo um Estado expressamente multicultural. O discurso plurinacional consistiu no reconhecimento das identidades étnicas originárias como nacionalidade, igualando os coletivos étnicos com a nação, ampliando o valor conferido para o valor da diversidade cultural.
Temos nestes países a ideia de democracia plural, com fundamentos pos-colonialismo e na interculturalidade. Assim, o respeito a livre determinação democrática dos povos indígenas é o primeiro indício de diálogo com os grupos étnicos. A Justiça plurinacional, instalada nestes Estados, permite o exercício da função jurisdicional pelas autoridades indígenas, com utilização de tradições ancestrais e sistema jurídico próprio, sustentados nos princípios do pluralismo jurídico e interculturalidade.
A jurisdição indígena se iguala a jurisdição ordinária. Em arremate, é possível identificar dois modelos de cartas constitucionais, a que segue a tradição colonial europeia, e o segundo é orientado pela participação da comunidade indígena, com mudanças relevantes na percepção política dos direitos étnicos.
Em conclusão é possível notar que a movimentação política dos povos indígenas vem assumindo protagonismo, com ampliação das fronteiras do conhecimento e da possibilidade de organização dos Estados, inclusive alardeando sua força para além das fronteiras dos Estados Nacionais, visando atingir a proteção internacional conferida por medidas reparadoras ou restauradoras nacionais.
2. ESTUDO DE CASO: CASO POVO INDÍGENA XUCURU E SEUS MEMBROS VS. BRASIL.
Trata-se da submissão a Corte Interamericana de Direitos Humanos o caso do povo indígena Xucuru versus a República Federativa do Brasil. O caso referia-se a uma presumida violação do direito a propriedade coletiva e a integridade pessoal do povo Xucuru, tendo como justificativas: a) a demora de mais de uma década para a demarcação e delimitação das terras tradicionalmente ocupadas por estes povos; e b) a dificuldade do povo Xucuru exercer o domínio pacífico destas terras enquanto não houver a sua definição pelo Brasil.
Com esta mora na demarcação e reconhecimento dos direitos ao povo Xucuru, a Comissão Internacional vislumbrou que o Brasil violou os direitos de propriedade, integridade pessoal, as garantias e proteções judiciais. No dispositivo da decisão constam os seguintes comandos a serem cumpridos pelo Estado brasileiro (CIDH, 2018, p. 54):
8. O Estado deve garantir, de maneira imediata e efetiva, o direito de propriedade coletiva do Povo Indígena Xucuru sobre seu território, de modo que não sofram nenhuma invasão, interferência ou dano, por parte de terceiros ou agentes do Estado que possam depreciar a existência, o valor, o uso ou o gozo de seu território, nos termos do parágrafo 193 da presente Sentença.
9. O Estado deve concluir o processo de desintrusão do território indígena Xucuru, com extrema diligência, efetuar os pagamentos das indenizações por benfeitorias de boa-fé pendentes e remover qualquer tipo de obstáculo ou interferência sobre o território em questão, de modo a garantir o domínio pleno e efetivo do povo Xucuru sobre seu território, em prazo não superior a 18 meses, nos termos dos parágrafos 194 a 196 da presente Sentença.
Na ordem cronológica dos acontecimentos, a petição inicial foi apresentada em outubro de 2002, pelo Movimento Nacional dos Direitos Humanos, com juízo de admissibilidade aprovado em 2009.
Em julho de 2015, a Comissão aprovou um documento com recomendações a serem cumpridas pelo Estado brasileiro, que foi responsabilizado internacionalmente por violação do direito de propriedade e identidade pessoal do povo indígena Xucuru, além da violação as garantias e proteções judiciais conferidas pela Convenção Americana.
Com isso, foi recomendado pela Comissão adotar todas as medidas necessárias para o reconhecimento e demarcação do território tradicionalmente ocupado pelo povo indígena Xucuru, de acordo com seus costumes, usos e valores, com a finalização dos processos judiciais iniciados por pessoas não indígenas que tenham relação com o território do povo Xucuru. Ainda, o Brasil deveria reparar os danos individuais e coletivos causados pela violação dos direitos indígenas dos Xucurus, causados pela demora no reconhecimento, demarcação e delimitação da terra tradicional indígena, além de adotar medidas preventivas que evitem futuras violações similares aos territórios tradicionais dos povos indígenas no Brasil. Sobre as atribuições da CIDH pudemos entender sua função com o seguinte magistério (BASSETTO; KONNO, 2019, p. 33):
A Comissão Interamericana, além da apreciação dos fatos, deve analisar, no caso concreto, a compatibilização da legislação de cada Estado com as regras do sistema interamericano, operando-se um controle de convencionalidade em uma atividade quase-jurisdicional.
Conforme dispõe o artigo 44 da Convenção Americana, qualquer pessoa, grupo de pessoas ou organização não-governamental, reconhecida em um ou mais países membros da OEA, pode peticionar à Comissão acerca de violações de direitos humanos.
Conforme dispõe o artigo 25, § 1º, do Regulamento, a Comissão Interamericana pode solicitar que o Estado adote medidas cautelares para prevenir danos irreparáveis às pessoas ou ao objeto do processo.
Com prazo de dois meses para demonstrar o cumprimento da decisão, o Brasil manteve-se inerte, sendo requerida a sua responsabilização no caso. Submetido a julgamento, cinco amici curiae foram apresentados para auxiliar no julgamento, sendo reconhecida a competência da Corte Interamericana pelo fato do Brasil ser signatário da Convenção Americana dos Direitos Humanos, conforme art. 7º do ADCT. O Brasil reconheceu a competência da Corte Interamericana em 10 de dezembro de 1998, declarando a competência do Tribunal para feitos posteriores a esta data, declarando-se a incompetência da Comissão para o julgamento de fatos anteriores a esta data.
No Informe de Fundo, a Comissão limitou-se a utilização da Convenção 169 da OIT para estabelecer o alcance da propriedade coletiva do povo indígena Xucuru através da Convenção Americana, sem impor violações diretas a Convenção 169 da OIT, que foi utilizada como esforço argumentativo. Quanto ao esgotamento dos recursos internos nacionais, antes de atingir as cortes internacionais, a Comissão estabeleceu que não há previsão que mecanismos internacionais devam ser esgotados para que as vítimas de violações de direitos humanos obtenham proteção internacional.
A tese do esgotamento dos recursos internos colocaria uma carga desproporcional de prova sobre as vítimas, contrária a Convenção e a instituição da reparação. Dessa forma, caberia ao Estado Brasileiro apresentar quais eram os recursos internos disponíveis e se foram esgotados pelo povo Xucuru, sob pena de submeter a Comissão e a parte violada a produzir prova impossível ou de difícil comprovação.
Nessa medida, a Corte Interamericana fará a valoração, controle e exame das provas apresentadas pelas partes, sendo cabível a apresentação de documentos, testemunhas, audiências públicas, dentre outras formas de produção probatória lícita. As referências históricas ao povo Xucuru remontam ao século XVI, no estado de Pernambuco, com organização e formas de poder próprias.
Igualmente, a legislação que toca no tema da demarcação, reconhecimento e titularidade das terras indígenas no Brasil, principalmente a Constituição da república de 1988, estabeleceu direitos aos povos indígenas sobre suas terras, territórios e recursos tradicionalmente pertencentes aos povos indígenas. As terras indígenas ficam na propriedade da União, embora a posse permanente seja conferida aos indígenas, em conjunto com o usufruto exclusivo dos recursos nela existentes.
No Brasil, o processo de demarcação tem cinco etapas, coordenadas pela FUNAI – Fundação Nacional do Índio, com o ato final vinculado a competência exclusiva do Presidente da República. O processo tem início com o reconhecimento, pela FUNAI, de uma terra indígena que deva ser demarcada ou por um pedido realizado pelos próprios indígenas, quando serão reconhecidos os pedidos e a urgência da demarcação, dotando a Administração Pública com o poder discricionário de iniciar ou não o processo.
Na execução da demarcação física, é necessária a realização de estudo detalhada na área, com a localização exata das terras tradicionalmente ocupadas. Superada esta fase, inicia-se a etapa de homologação, na qual será elaborada por decreto presidencial, ato final do procedimento de reconhecimento da nova terra indígena. Trata-se de ato administrativo declaratório, que reconhece a ocupação da terra indígena e a nulidade de atos anteriores que tenham relação com a ocupação, domínio ou posse das terras, extinguindo qualquer título de propriedade constituído sobre a área demarcada, que passa a ser de propriedade da União, com a possibilidade da retirada de ocupantes não indígenas das terras demarcadas.
Por fim, numa última etapa, consistente no registro, nos trinta dias posteriores a publicação do decreto de homologação, a FUNAI promoverá o registro imobiliário no município de localização da área demarcada e na Secretaria do Patrimônio da União, órgão atualmente integrante do Ministério da Economia.
O processo de demarcação das terras do povo indígena Xucuru foi iniciado em 1989. Em 1992, foi proposta ação de reintegração de posse por particulares em relação à terra tradicionalmente pelo povo Xucuru, colocando em risco o vínculo existente com o território. O conflito pela terra trouxe graves consequências, como o assassinato do cacique Xicão, chefe do povo Xucuru, em 1998, demonstrando não só a dificuldade de demarcação, como também a incompetência do Brasil em preservar a integridade física dos povos indígenas.
Em 2001 foi assinado, pelo Presidente da República, o decreto homologando a demarcação do território indígena Xucuru, registrada, no ano de 2005, como titulação territorial de propriedade da União, com posse permanente do povo indígena. Iniciado em 1989, o processo de regularização de terras para cadastrar os ocupantes não indígenas foi finalizado em 2007, com indenizações para a saída dos posseiros que fizeram benfeitorias de boa-fé.
Durante o processo de demarcação, o povo Xucuru sofreu com a violência e enfrentou forte repressão e assassinatos de seus membros. No julgado analisado, a Corte Interamericana trata da temática da propriedade coletiva, a segurança jurídica e o prazo razoável para a efetividade do processo administrativo.
O artigo 21 da Convenção Americana protege a vinculação que os povos indígenas guardam com as suas terras, seus recursos naturais e os elementos incorpóreos que compõem o exercício deste direito. Neste cenário, existe a cultura da propriedade coletiva da terra, pertencente a um grupo, devendo ser dispensada a mesma proteção dada à propriedade privada, com respeito as suas especificidades, culturas e costumes.
A jurisprudência da Corte reconhece o direito de propriedade dos povos indígenas sobre os territórios tradicionais e seu dever de proteção. Ainda neste entendimento, a ocupação das terras tradicionais equivale a título de pleno domínio outorgado pelo Estado, com o direito de reconhecimento oficial da sua propriedade, com cadastro registral. Caso tenha perdido a posse de suas terras por condições alheias a sua vontade, o povo indígena mantém o direito de propriedade coletiva sobre as mesmas, sendo competência do Estado delimitar as áreas indígenas.
Nessa toada, a violação a integridade física e psíquica abarca desde a tortura até outros tratos cruéis e degradantes, causando danos ao povo indígena Xucuru. A Corte indicou que a violação a obrigação internacional que haja causado dano deve repará-lo imediatamente, fruto de uma norma costumeira que disciplina o princípio da responsabilidade civil do Estado, com a plena restituição da situação ao ponto anterior a violação do direito. Na medida do possível, reparação civil do Estado significa restaurar a situação das coisas ao estado anterior do dano.
Em conclusão do julgado, a Comissão solicitou a Corte que ordene ao Estado adotar as medidas necessárias para efetivar o direito de propriedade coletiva e a posse do povo indígena Xucuru e seus membros ao seu território ancestral. Também, recomendou adotar medidas administrativas para finalizar as ações judiciais interpostas por pessoas não indígenas sobre parte do território do povo Xucuru, devendo o Estado garantir o cumprimento dos direitos indígenas. Com viés preventivo, o Estado Brasileiro ainda ficou obrigado a agir preventivamente, evitando novos incidentes de violência pela ocupação das terras indígenas.
Reconheceu-se, ainda, a necessidade de reparação individual e coletiva pelas consequências advindas da violação dos direitos reconhecidos. Por fim, restou decidido que o Estado é responsável pela razoável duração do processo judicial e administrativo e pelo direito a propriedade coletiva das terras tradicionalmente ocupadas pelo povo Xucuru, sendo a sentença uma forma de reparação, restituindo as terras para seu legítimo ocupante.
CONCLUSÃO.
Este artigo procurou estudar o desenrolar histórico do processo de luta pela constitucionalização dos direitos indígenas na América Latina. Como resultado foi possível notar a dificuldade dos países latino-americanos pesquisados de, a uma só tempo, possibilitar a cidadania plena com a autoridade constitucional do direito e reconhecer o exercício da autonomia cidadã no âmbito de suas próprias sociedades.
Princípio que rege as relações internacionais do Brasil, o direito a autodeterminação dos povos foi reconhecido no artigo 4º, inciso III da CRFB/88. A busca pela constitucionalização de direitos faz parte da luta dos povos indígenas em busca do exercício da cidadania plena, sempre com o respeito à organização e forma de vivência própria nas suas respectivas sociedades. O exercício da cidadania plena e da livre determinação não é uma luta restrita aos povos indígenas, mas é bastante ampla para abranger todos os grupos de vulneráveis, que não possuem lugar de fala ou poder.
Na proteção dos direitos culturais, o Estado velará pelas manifestações culturais indígenas, bem como pelos processos próprios de aprendizagem e a utilização de suas línguas maternas na promoção da educação indígena, nos termos dos artigos 210 e 215 da CRFB/88. O reconhecimento de direitos aos povos indígenas é fator que aflora conflitos com grupos antagônicos, não deixando espaço para construir um ambiente sadio em reconhecimento ao direito à diferença e autodeterminação dos povos.
No Brasil, mesmo o art. 232 da CRFB/88 assegurando a capacidade civil plena e a legitimidade ativa e passiva, coletiva ou individual, para se fazer presente em juízo, ainda se faz latente o conceito de incapacidade dos povos indígenas. Estas celeumas na internacionalização dos direitos constitucionais aos povos indígenas gera uma tentativa de proteção a um comportamento necessariamente preso as tradições do passado, que não é alvo de segurança pela evolução do viver indígena.
Em caso paradigma, a Corte Interamericana de Direitos Humanos o direito do Povo Indígena Xucuru a razoável duração do processo e a propriedade coletiva sobre as terras tradicionalmente ocupadas. Ambos os direitos já são reconhecidos a todos os cidadãos brasileiros pelos artigos 5º, inciso LXXVIII e 231, §§ 1º e 2º, todos da CRFB/88. A própria necessidade de recorrer a uma corte internacional para fazer valer um direito que seria garantido a todo cidadão brasileiro já projeta a situação de desigualdade cidadã a qual os povos indígenas são submetidos.
Pelo exposto, a conclusão é pela necessidade não só de inclusão dos direitos dos povos indígenas nos Textos Constitucionais, mas também a criação de mecanismos que efetivem o exercício da cidadania plena e reconheça o direito de manter, ao mesmo tempo, os laços com sua própria sociedade. Nesse sentido, a constitucionalização dos direitos dos povos indígenas é mais um instrumento de luta para a construção de um futuro com espaço de voz, poder, participação social, protagonismo político e respeito à diferença tanto para os povos indígenas quanto aos demais grupos de vulneráveis.
REFERÊNCIAS.
BASSETTO, Marcelo Eduardo Rossitto; KONNO, Alyne Yumi. O caso do povo indígena Xucuru perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Revista da Defensoria Pública da União, n. 12, p. 27-50, 2019.
BELTRÃO, Jane Felipe; OLIVEIRA, Assis da Costa. Povos indígenas e cidadania: inscrições constitucionais como marcadores sociais da diferença na América Latina. Revista De Antropologia, v. 53, n. 2, p. 715-744, 2010.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em 04 de julho de 2022.
CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. CASO DO POVO INDÍGENA XUCURU E SEUS MEMBROS VS. BRASIL. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/ docs/casos/articulos/ seriec_346_por.pdf. Acessado em: 05 de jul. 2022.
COURTIS, Christian. Anotações sobre a aplicação da Convenção 169 da OIT sobre povos indígenas por tribunais da América Latina. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 6, n. 10, p. 52-81, 2009.
LAURIS, Élida. Pluralismo emancipatório? Uma abordagem a partir dos movimentos indígenas da América Latina. Cronos, v. 8, n. 1, p. 57-80, 2007.
Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco em 2016. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Maurício de Nassau em 2019.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MORAIS, Ana Roberta Silva de. A constitucionalização do direito indígena na América Latina Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jan 2023, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/60814/a-constitucionalizao-do-direito-indgena-na-amrica-latina. Acesso em: 26 dez 2024.
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