RESUMO: Em consonância com a nova ótica ideológica de técnicas alternativas de resolução de conflito, que já é identificada em algumas alterações legislativas nacionais, como o Código de Processo Civil de 2015, buscar-se-á explicitar os desafios e aspectos positivos que o empregos de tais práticas pode gerar ao adolescente que causou certo dano, bem como à vitima lesada, contribuindo, assim, com a restauração dos danos ao ofendido e a possibilidade de proporcionar ao infrator um futuro restaurativo e promissor, sem que permeie à sociedade a sensação de impunidade. A essência do trabalho objetiva demonstrar de que maneira é possível verificar o emprego de práticas da justiça restaurativa no vigente ordenamento jurídico brasileiro, especificamente frente à ocorrência de um ato infracional, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente
Palavras-chave: Estatuto da Criança e do Adolescente. Justiça Restaurativa. Medida Protetiva. Menor infrator.
Sumário – Introdução. 1. Considerações gerais acerca da justiça restaurativa. 2. A justiça restaurativa no âmbito da justiça criminal brasileira. 3. A aplicabilidade da justiça restaurativa no âmbito do estatuto da criança e do adolescente frente ao cometimento de um ato infracional. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Este trabalho visa discutir, de forma crítica e problematizada, a temática da Justiça Restaurativa e a possibilidade de sua utilização no âmbito dos atos infracionais cometidos pelo menor infrator. Em princípio, poder-se-ia falar em existência de conflito na aplicação de tal medida, pois o legislador constituinte determinou que frente ao cometimento de um ato infracional a autoridade competente poderá aplicar aos adolescentes medidas que predominantemente não envolvem o contato com a vítima. Todavia, o objetivo do trabalho será demonstrar de que maneira efetiva a Justiça Restaurativa se apresenta como modelo mais efetivo à recuperação do cidadão e composição dos danos da vítima.
O Código de Processo Civil em seu art. 3º, §§ 2º e 3º explicitamente demonstra que um dos fins da máquina judiciária deve ser o impulsionamento à solução dos conflitos por meios alternativos. Contudo, sua aplicação tem se restringido às demandas cíveis, de modo geral. Dessa forma, o debate neste trabalho se restringe à alocação de tais medidas alternativas em conjunto com os atos que o legislador dispôs no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Ainda, é necessário verificar quais são os parâmetros que circundam a Justiça Restaurativa, bem como sua origem e início de aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, de modo que se conclua pela possibilidade ou incompatibilidade de princípios norteadores com as medidas corretivas apresentadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Dessa maneira, será possível também verificar quais seriam as implicações práticas, cuja Justiça Restaurativa está inserida.
Para tanto, inicia-se o primeiro capítulo do trabalho apresentando considerações gerais acerca da Justiça Restaurativa, sendo delineado o seu aspecto histórico e destacando os pontos negativos e positivos de seu sistema.
O segundo capítulo trata sobre a específica utilização da Justiça Restaurativa no âmbito da Justiça Criminal Brasileira, haja vista a inovação referente à utilização de métodos alternativos às penas dentro do regime criminal instituído pelo Código Penal e demais legislações que dispõem sobre os meios de aplicação da pena.
O terceiro capítulo abrange a questão restrita da Justiça Restaurativa no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como o apontamento de medidas que já podem ser tomadas no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo se tratando de uma nova proposta. No que diz respeito às técnicas metodológicas, o método hipotético-dedutivo é adotado para a produção deste artigo científico.
Frente ao exposto, o objeto será abordado de maneira qualitativa e crítica, haja vista que buscar-se-á o apoio em um vasto acervo literário, científico e experimental de casos pertinente ao tema que será analisado, bem como a utilização de jurisprudência, resoluções do Conselho Nacional de Justiça, que corroboram com a crítica suscitada.
1. CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Iniciada a proposta de discorrer acerca da Justiça Restaurativa e a possibilidade de sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no tratamento com o menor infrator, é necessário verificar a origem de tal instituto e quais fatores históricos impulsionaram o surgimento desta prática. Dessa forma, o modo de reflexão acerca da aplicação de tal instituto de forma prática será construído de maneira mais fluida.
Segundo Castro[1], a origem da Justiça Restaurativa é:
[...] relativamente recente, a Justiça Restaurativa surge em meados da década de 1970 como resultado de antigas tradições pautadas em diálogos pacificadores e construtores de consensos originários de culturas africanas e das primeiras nações do Canadá e da Nova Zelândia. A denominação justiça restaurativa é atribuída a Albert Eglash, que, em 1977, escreveu um artigo intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution, publicado numa obra por Joe Hudson e Burt Gallaway, denominada “Restitution in Criminal Justice”. Assim, algum tempo depois, por ocasião de uma conferência sobre os processos penais nos países europeus, alguns participantes perceberam de fato o surgimento de um novo modelo de justiça – restaurativa – cujo nome foi criado para diferenciá-la dos modos convencionais: a retributiva, baseada na punição e a distributiva, focada na reeducação. O Movimento se reafirmou ainda mais quando em 1989, o governo da Nova Zelândia decidiu formalizar processos restaurativos como uma via para tratar infrações de adolescentes, reformulando todo o seu sistema de justiça da infância e juventude segundo princípios restaurativos, com impacto favorável já no primeiro ano de implantação [...].
Dessa forma, verifica-se que, não obstante observar-se-á mais adiante que a implantação da Justiça Restaurativa no Brasil teve início com sua aplicação em demandas cíveis, sua deflagração internacional baseou-se em uma demanda envolvendo ato infracional de adolescente. Assim, desde já se constata ser viável a possibilidade da aplicação desta prática com base no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Avançando nesta corrente histórica identifica-se que, a partir do momento em que a Nova Zelândia formalizou processos restaurativos para tratar infrações de adolescentes, a Justiça Restaurativa começou a ser conhecida e financiada.[2]
No que tange ao crescimento desta prática, Castro[3] afirma que “nos anos 90, houve uma explosão de muitos projetos ao redor do mundo, tanto na Justiça como em escolas e delegacias de polícia. Alguns trabalhavam crimes graves, outros só crimes leves [...]”. O ganho de espaço desta nova prática deveu-se ao fracasso do caráter retributivo de justiça, até então aplicado hodiernamente no ordenamento jurídico mundial, cuja aplicação visa tão somente que o agente seja punido pela falha cometida, sendo incapaz de responder adequadamente ao crime cometido, bem como aos específicos problemas, seja dos infratores ou das vítimas.
Importante ressaltar que além da aderência à essa pratica por países do continente europeu, houve também nesse mesmo momento a aplicação por países do continente africano, principalmente na África do Sul, no pós-apartheid.
Conforme continua elucidando Castro[4]:
[...] o sucesso de muitas iniciativas restaurativas ao redor do mundo deu ensejo a uma resolução do Conselho Econômico e Social da ONU (24 jul. 2002), propondo “inserir a abordagem restaurativa a todas as práticas judiciárias”, tornando-as “disponíveis em todas as fases do processo legal”, mas utilizadas somente “com o consentimento livre e voluntário das partes”. Segundo a resolução, na fase preparatória os programas devem “promover pesquisa e avaliação”, visando “melhorar a extensão dos resultados, se as intervenções representam alternativa concreta e viável no contexto do processo, e se propiciam benefícios para todas as partes envolvidas, incluindo para o próprio sistema de justiça” [...].
A Resolução de que trata a explicação acima é Resolução 2002/12, cujo objetivo é o de trazer os princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal, aprovada pela 37ª Sessão Plenária em 24 de julho de 2002[5].
Por conseguinte, como conceito de Justiça Restaurativa, o Conselho Nacional de Justiça[6] dispõe que:
[...] é uma prática que está buscando um conceito. Em linhas gerais poderíamos dizer que se trata de um processo colaborativo voltado para resolução de um conflito caracterizado como crime, que envolve a participação maior do infrator e da vítima. Surgiu no exterior, na cultura anglo-saxã. As primeiras experiências vieram do Canadá e da Nova Zelândia e ganharam relevância em várias partes do mundo. Aqui no Brasil ainda estamos em caráter experimental, mas já está em prática há dez anos. Na prática existem algumas metodologias voltadas para esse processo. A mediação vítima-ofensor consiste basicamente em colocá-los em um mesmo ambiente guardado de segurança jurídica e física, com o objetivo de que se busque ali acordo que implique a resolução de outras dimensões do problema que não apenas a punição, como, por exemplo, a reparação de danos emocionais [...].
O Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução Nº 225, de 31 de maio de 2016, dispôs sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário Brasileiro. Nesta resolução, o Conselho Nacional de Justiça[7] considera a necessidade de buscar uniformidade, no âmbito nacional, do conceito de Justiça Restaurativa, para evitar disparidades de orientação e ação, assegurando uma boa execução da política pública respectiva.
Esclarece, ainda, o Conselho Nacional de Justiça[8] que não é o juiz que realiza a prática, e sim o mediador que faz o encontro entre vítima e ofensor (...). Apoiar o ofensor não significa apoiar o crime, e sim apoiá-lo no plano de reparação de danos.
Apesar de a Resolução anteriormente citada não restringir o âmbito de aplicação da prática da Justiça Restaurativa, essa instrumento de resolução de conflitos tem sido majoritariamente utilizado frente aos crimes mais leves. Isso porque, tendo em vista o início da aplicação de tal prática, ainda não há estrutura apropriada para os crimes mais graves.
Em consequência, vale ressaltar a diferença existente entre o método da conciliação e da prática de Justiça Restaurativa. O juiz Asiel Henrique de Sousa[9], do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), reconhecido como pioneiro na implantação da prática no país explica:
[...] a conciliação é mais voltada para resolver questões de interesse econômico. Os conciliadores se permitem conduzir um pouco o processo para resultados mais efetivos; a conciliação acontece com hora marcada na pauta do tribunal. Já na mediação realizada pela Justiça Restaurativa não é possível estabelecer quando vai acabar, pode demorar dias, meses, até se construir uma solução. Na medida em que você tem um conflito de maior gravidade, que traz uma direção maior de problemas afetados, é preciso dedicar mais tempo. A vítima tem espaço para sugerir o tipo de reparação. O crime gera uma assimetria de poderes: o infrator tem um poder maior sobre a vítima, e a mediação que fazemos busca reequilibrar esses poderes, mas não invertê-los. Os envolvidos podem ir com advogados, embora ao advogado seja reservado um papel muito mais de defesa da voluntariedade de participação e dos limites do acordo, para que este represente uma resposta proporcional àquela ofensa [...].
Ainda, importante salientar a possibilidade de coexistência entre a aplicação da prática da Justiça Restaurativa frente ao direito do ofendido de recorrer à justiça tradicional. É o que afirma o juiz Asiel Henrique de Sousa[10]:
[...] A intervenção restaurativa é suplementar: de par com o processo oferecemos um ambiente para resolver demais problemas relacionados com o conflito. Nada impede que você tenha uma iniciativa, como com adolescentes infratores, que exclua o processo. Primeiro buscamos uma persuasão, depois dissuasão e só depois mecanismos de interdição, que seria a internação. Persuasão significa abrir o ambiente para uma negociação direta entre as partes. Se isso não for alcançado, usamos mecanismos dissuasórios, que seriam um misto de acordo com possibilidades de uma resposta punitiva e, se isso tudo não funcionar, daí sim partimos para outros mecanismos [...].
Neste diapasão, é possível verificar que o foco do método da Justiça Restaurativa é na responsabilização ativa daqueles que contribuíram para a ocorrência do dano e no fortalecimento da comunidade, destacando a necessidade de reparação e recomposição do tecido social rompido pelo conflito.
2. A ANÁLISE DA RECEPÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO ÂMBITO DA JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRA
Viu-se que a prática de Justiça Restaurativa consiste em um método alternativo de resolução de conflitos que, com base nas diretrizes cooperativas do Novo Código de Processo Civil, concentra suas orientações em um diálogo baseado na conciliação. Agora, sob a ótica de Direito Penal, o presente artigo aduzirá os meios que possibilitam a inserção desta prática no âmbito criminal, notadamente no direito brasileiro.
Segundo Luz[11]:
Numa primeira aproximação, a Justiça Restaurativa pode ser explicitada como novo paradigma de resolução dos conflitos criminais, fundado, em linhas gerais, na inclusão da vítima, do ofensor e, quando apropriado, da comunidade, em um processo de diálogo conciliatório, que busca outra resposta para o crime, distinta da comumente oferecida pelo sistema retributivista.
Dessa forma, verifica-se que o método restaurativo tende a alterar alguns pressupostos acerca do que seria punição no direito criminal brasileiro, propondo uma maneira diferente de reação ao cometimento do delito. Isso porque tal modelo não terá seu foco estritamente na retribuição do condenado pela prática do crime cometido, mas a centralidade estará na resolução de qualquer conflito baseado nos interesses prevalecentes da vítima, bem como nas possibilidades de reparação dos prejuízos causados, sejam eles financeiros, materiais ou de outra categoria.
Desde já, deve-se fazer a ressalva a respeito da barreira que a aplicação da prática da justiça restaurativa encontra no direito brasileiro, haja vista a necessidade de superar o entendimento que a teoria absoluta da pena traz, qual seja o de que a pena consistiria em pura retribuição pelo mal causado com base na ocorrência de um ilícito penalmente definido. Assim, baseado nessa teoria da pena, a justiça só se considera aplicável a partir do momento em que o malfeitor recebeu sua penitencia frente ao que cometeu.
O que o sistema penal brasileiro precisaria enfrentar seria a quebra de tal paradigma, de modo que fosse oportunizada a inserção de práticas consubstanciadas não na extinção do sofrimento de uma vítima pelo sofrimento do delinquente, mas sim na composição de danos advindos da prática delitiva, que pudessem de forma consensual atribuir valor à atitude de ambas as partes envolvidas.
Explicitados os desafios brasileiros, compete expor a inserção, ainda que de maneira tímida, da aplicação da justiça restaurativa no âmbito criminal. Deve-se assinalar, de início, que não há na legislação brasileira dispositivos com práticas totalmente restaurativas. Existem, contudo, determinados diplomas legais que podem ser utilizados para sua implementação, ainda que parcial.
De acordo com Pedro Scuro Neto, um programa efetivo de justiça restaurativa requer que sejam estabelecidos:
[...] por via legislativa, padrões e diretrizes para a implementação dos programas restaurativos, bem como para a qualificação, treinamento, avaliação e credenciamento de mediadores, administração dos programas, níveis de competência e padrões éticos, salvaguardadas as garantias individuais.[12]
Um dos marcos inicial para a justiça restaurativa no Brasil foi o I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, em abril de 2005, no qual foi formulada a Carta de Araçatuba, que enuncia os princípios do modelo restaurativo. Tal carta foi ratificada dois meses depois pela Carta de Brasília, assinada na Conferência Internacional “Acesso à Justiça por meios restaurativos de solução de conflitos”, organizada em Brasília pela Secretaria de Reforma do Judiciário, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Contudo, a implementação de experiências restaurativas no Brasil se deu por meio do por meio do projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro” (Ministério da Justiça/PNUS), que por ocasião do Fórum Social Mundial, indicou três cidades como sedes para projetos pilotos, a saber: São Caetano do SUL (SP), Brasília, (DF) e Porto Alegre (RS). O objetivo desse projeto era o de acompanhar e avaliar o impacto da aplicação dos princípios da justiça restaurativa na abordagem das relações entre infrator, vítima e comunidade, além de fundamentar as práticas junto ao Sistema de Justiça Juvenil.
Desde a década de 90, a justiça restaurativa é adotada no Brasil. No entanto, somente em 2005 ela chegou formalmente no país. Embora não exista uma lei que regulamente o processo, a Resolução nº 225, do Conselho Nacional de Justiça trata sobre o procedimento. No Brasil, a justiça restaurativa vem sendo conduzida dentro dos tribunais. [13]
Assim, ratificando a tendência do sistema brasileiro em inserir tal prática, nota-se que a aprovação da Resolução nº 225, de 31 de meio de 2016 corrobora com esse pensamento. A resolução busca definir o que seria justiça restaurativa, bem como a importância da participação da vítima e da conferencia de espaço durante o procedimento de apuração criminal. Ainda, o mesmo espaço deve também ser concedido à comunidade e ao autor do fato.
Por conseguinte, a Resolução nº 225/2016 indica a possibilidade de aplicação da prática da justiça restaurativa no contexto dos juizados especiais criminais, de acordo com os artigos 72, 77 e 89, da Lei nº 9.099/95[14], que dispõe acerca da composição civil dos danos, do procedimento simplificado em crimes de menor potencial ofensivo, da transação e da suspensão do processo, respectivamente.
Ainda, nota-se que a supracitada resolução, em seus artigos 5º e 6º, incentiva a implantação de programas de justiça restaurativa nos Tribunais de Justiça de cada estado. Diretrizes como a formação e manutenção de equipe de facilitadores restaurativos, que atuarão com dedicação exclusiva ou parcial e voluntários que serão acompanhados por equipe técnica de apoio interprofissional fazem parte do modelo de justiça restaurativa a que o Conselho Nacional de Justiça visa aplicar.[15]
Com efeito, a partir do artigo 7º até o artigo 12, a resolução direciona o modo pelo qual a prática da justiça restaurativa deve ser aplicada no Âmbito judicial. O que se verifica, na prática, é aplicação da justiça restaurativa pelos Tribunais de Justiça de forma isolada, como é o caso do estado de Recife, Maranhão, São Paulo e Brasília. Verificar-se-á que é possível encontrar a aplicação da justiça restaurativa no Estatuto da Criança e do Adolescente, tópico do próximo capítulo deste trabalho.
Assim, é possível notar que, não obstante já exista no Brasil certa regulamentação acerca da inserção da prática da justiça restaurativa, existe, ainda, a necessidade de maior incentivo e demonstração prática desse meio alternativo de solução de conflito. Sob a ótica da necessidade de mudança de paradigma acerca da aplicação da pena, o sistema brasileiro deve voltar sua atenção aos métodos que priorizem o restabelecimento dos prejuízos ocasionados à vítima, cuja mensuração vai além de mera imposição de uma pena ao infrator.
3. A APLICABILIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO ÂMBITO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE FRENTE AO COMETIMENTO DE UM ATO INFRACIONAL
Após a necessária explanação acerca das características gerais da Justiça Restaurativa, bem como a exemplificação no que diz respeito à sua aplicação na esfera criminal brasileira, passa-se à exposição relativa aos meios possíveis e práticos da inserção deste instituto na apuração de um ato infracional. Dessa forma, será analisado de que maneira a aplicação da justiça restaurativa pode ser benéfica ao adolescente infrator e às vitimas atingidas.
Desde já, vale dizer que a proposta de aplicação deste instituto no âmbito do cometimento de um ato infracional se coaduna, principalmente, com o novo viés que o sistema jurídico brasileiro vem perseguindo, principalmente após o advento do Código de Processo Civil de 2015, qual seja o da primazia da resolução do mérito. Isso porque, não obstante o Estatuto da Criança e do Adolescente preveja aplicação de certas “punições” ao menor infrator, em muitos casos retribuir tal conduta com uma medida socioeducativa já positivada não tem trazido qualquer reparo à vítima.
Assim, as práticas restaurativas objetivam a reparação dos danos causados à vítima, precipuamente. Com efeito, restará demonstrado que tais práticas poderão também influenciar, pela via reflexa, na redução da taxa de reincidência na prática do ato infracional, embora a discussão sobre a justiça restaurativa no direito brasileiro seja novel.
Atualmente, no momento em que há a constatação sobre o cometimento de um ato infracional, o art. 112, do Estatuto da Criança e do Adolescente[16] dispõe que poderão ser aplicadas as medidas de advertência, prestação de serviços à comunidade, obrigação de reparar o dano, inserção em regime de semiliberdade, internação em estabelecimento educacional ou qualquer outra medida igualmente prevista nos casos de ameaça ou lesão aos direitos reconhecidos à criança e ao adolescente. Ocorre que tais medidas, quando aplicadas de alguma forma que possa ensejar na composição de danos patrimoniais sofridos pela vítima, negligencia no cuidado com aspectos tão importantes quanto esse, como as vertentes de caráter emocional e psíquico da vítima. [17]
A justiça restaurativa atua justamente neste viés, por meio de um diálogo que será construído para a obtenção da reparação necessária de ambas as partes, seja ofendida ou ofensora. Dessa forma, indo de encontro ao caráter puramente retributivo cuja percepção é nítida frente à atual maneira de aplicação de uma medida socioeducativa, a justiça restaurativa visará recompor danos não só da vítima, como também do adolescente, o que influenciará diretamente na redução do índice de reincidência.
No momento em que se procurou verificar as causas para que tenha havido um aumento tão brusco no número de jovens autores de atos violentos, constatou-se que a origem de muitos deles tem íntima relação com a deficiência no relacionamento dos jovens com instituições que, em princípio, deveriam servir como núcleos capazes de proporcionar seu desenvolvimento como pessoa, como as escolas e as famílias. E, como tais instituições são reconhecidamente vistas como representantes de normais sociais, éticas e morais, a deficiência neste relacionamento influencia diretamente na visão de mundo que o jovem constrói.
Nesse sentido, Zappe e Dias[18] aduzem que:
A família corresponde a um grupo social que possui uma organização complexa e interage com o contexto cultural mais amplo, sendo que a importância da família, no desenvolvimento de adolescentes que cometem atos infracionais, fica nítida quando consideramos o seu papel no desenvolvimento humano. O processo de socialização primária de crianças e adolescentes ocorre no contexto familiar, que estabelece formas e limites para as relações interpessoais e assim prepara o indivíduo para o convívio social mais amplo. O grupo familiar tem um papel fundamental na constituição dos indivíduos, atuando na construção da personalidade e influenciando no comportamento individual através das práticas educativas adotadas no âmbito familiar. Apesar das mudanças que a família vem apresentando ao longo dos anos, com o surgimento de novas composições familiares e alterações nos papéis de seus integrantes, a família ainda é uma instituição sólida e influente, mas flexível. É no ambiente familiar que os jovens continuam buscando referências para construir sua identidade, tendo os pais como modelos de identificação primária.
Assim, possível verificar a importância da instituição família no processo construtivo de um ser humano. Todavia, no momento em que se nota a deficiência neste relacionado essencial para a definição do caráter do adolescente, o Estado, com fulcro no art. 226, da Constituição Federal, deve atuar com viés protetivo desse menor.
Desta maneira, a aplicação de práticas restaurativas como forma de resolver conflitos originados por atos infracionais cometidos por adolescentes poderá se tornar um meio eficaz de garantir a esse jovem uma mudança no seu futuro como verdadeiro cidadão livre. De modo prático, a partir do momento em que a prática restaurativa propõe o estabelecimento do diálogo entre o infrator e a vítima, o primeiro tem a oportunidade de edificar uma identidade mais saudável, por meio do embate de valores de ambos, ou seja, a vítima tem sua capacidade de entender os motivos que levaram o jovem ao cometimento de tal ato infracional e, a partir daí, tentar processá-los de forma que esse dano emocional possa ser acalentado ao tomar ciência do contexto em que o adolescente cresceu inserido.[19]
Por outro lado, ao ser colocado em frente a quem causou o dano, o jovem, além de poder por iniciativa própria opinar sobre o melhor meio de recompor o dano – conforme medida socioeducativa já disposta no art. 122, II, do ECA – tem também a oportunidade de trabalhar o seu lado humanitário, como um ser que feriu outro ser. Tais reflexões advirão de um contato presencial abrangido com valores acerca da solidariedade humana, cooperação, respeito mútuo, responsabilidade e empatia.
Vale ressaltar que, conforme aduz a Promotora de Justiça Vanessa Harmuch[20], além da aplicação durante o processo judicial, as técnicas restaurativas também podem ser usadas de forma preventiva, para promover a pacificação em um ambiente, solucionando dissensos e evitando a evolução do conflito. Por meio dos círculos restaurativos, as pessoas se aproximam e se conhecem, ocorrendo uma experiência de alteridade e empatia. Dessa forma, a técnica pode então ser usada para a solução de conflitos ainda não judicializados.
Assim sendo, inserir práticas restaurativas antes mesmo que o conflito se instaure possibilita àquele infrator a oportunidade de restabelecer seus critérios e escolhas acerca da vida, bem como oportuniza a esse a adoção de uma postura diferente a partir daquele momento, sem que existam as sequelas advindas da aplicação de uma medida socioeducativa de internação ou semiliberdade, por exemplo. Isso porque, é notório e de conhecido geral os ambientes a que os adolescentes infratores são expostos e colocados quando a medida imposta é a de passar determinado tempo internado em algum centro de socioeducação. Trata-se de lugares inóspitos e que sofrem de problemas gravíssimos de superlotação, conforme ratificado em audiência pública pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro[21].
Impende salientar que a execução desta prática não terá como objetivo afastar em sua totalidade o cometimento de atos infracionais por adolescentes. O caminho a ser percorrido com essa implementação é longo e demanda investimentos na seara de políticas públicas a longo prazo. O início dessa prática em todos os estados do Brasil significaria o começo de uma transformação no tratamento das partes no processo de apuração do ato infracional.
Dessa forma, verifica-se que a prática da justiça restaurativa é uma forma de resolução de conflitos contemporânea que visa o resguardo da dignidade da pessoa humana de ambas as partes envolvidas no acontecimento delitivo, seja a vítima ou o ofensor. O seu maior objetivo, especificamente no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente, sempre será a propositura de uma forma eficaz de também resguardar o princípio do melhor interesse do menor. E, não obstante, os estudos e debates sobre esse instituto sejam recentes, é possível notar que a proposta deste consiste em um dos modelos que mais poderiam se aproximar do proposto pela Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
CONCLUSÃO
A pesquisa exposta objetivou verificar de que forma as práticas restaurativas podem se coadunar com o Estatuto da Criança e do Adolescente, de modo que a solução do conflito pudesse envolver a colaboração de ambas as partes – ofendida e ofensora – para o alcance da alternativa mais plausível, por meio da análise da introdução destas práticas no ordenamento jurídico brasileiro de forma efetiva. Inicialmente, por se tratar de tema pouco explorado nacionalmente, abordou-se, sinteticamente, considerações gerais acerca da justiça restaurativa, trazendo à baila informações atinentes à origem e aos fatores históricos que ensejaram no surgimento das práticas restaurativas mundialmente. A tomada de conhecimento desses aspectos iniciais e gerais sobre a justiça restaurativa revelou-se crível, haja vista ter se verificado que o início das práticas restaurativas se deu justamente com a sua aplicação na ocorrência de atos infracionais internacionais, de forma que a ciência destas questões está diretamente ligada ao tema que foi analisado pelo presente artigo científico.
Buscou-se, ainda, realizar um paralelo para demonstra que, enquanto na justiça retributiva – por meio de um modelo tradicional de aplicação de pena – o Estado pega o conflito para si, a justiça restaurativa devolve o conflito para os principais envolvidos na situação. Assim, a vítima terá a oportunidade de falar diretamente com o ofensor acerca dos impactos do dano sofrido em sua vida e, concomitantemente, a possibilidade de ouvir do causador do dano sua versão acerca dos fatos, assim como o que o fez chegar até aquele ponto.
A partir destes fatos, passou-se a centralizar os apontamentos das práticas restaurativas no que tange à justiça criminal brasileira. Dessa forma, foi explicado que ideal de justiça restaurativa é que tais práticas vão de encontro à cultura brasileira da judicialização. Assim, não obstante o Brasil tenha evoluído no que diz respeito ao seu ordenamento jurídico, principalmente por meio da Constituição Federal, há ainda a necessidade de progredir culturalmente quando se pensa sobre pena e suas funções. Com efeito, demonstrou-se que práticas relacionadas à justiça restaurativa já vêm sendo aplicadas, apesar da forma tímida, pelas Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, no estado de São Paulo, por exemplo.
Já no terceiro capítulo o foco restringiu-se na aplicação da justiça restaurativa no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente no momento em que seja praticado um ato infracional. Assim, por meio da análise das medidas socioeducativas dispostas pelo art. 122, do ECA, foi atestado que a inserção de práticas restaurativas são plenamente compatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro, bem como está em consonância com a disposição constitucional do art. 227, cujo alcance principal é o resguardo principiológico da busca pelo melhor interessa da criança e do adolescente. Agregou-se, também, a informação de que a aplicação da prática restaurativa envolvendo adolescentes pode gerar diversos efeitos positivos correspondentes à formação de seu caráter e dignidade como cidadão brasileiro, pois tais práticas inserem ao menor o senso de responsabilização não por meio de punição somente, mas coadunada com uma experiência de alteridade e empatia.
Por óbvio, por meio dessas práticas, a vítima ofendida também não é deixada de lado, tendo em vista o fato de que se buscará atender a ambos os interesses, para que os danos sejam restaurados.
Sendo assim, restou claro para esta pesquisadora a possibilidade de implantação das práticas restaurativas na resolução de conflitos envolvendo atos infracionais cometidos por adolescentes, haja vista a tendência no ordenamento jurídico brasileiro de trazer tais técnicas de resolução de conflitos já expressamente positivados pelo Código de Processo Civil, por exemplo, de modo que em união de esforços que devem ser despendidos por autoridades judiciárias e auxiliares, como psicólogos e assistentes sociais, é plenamente possível que a justiça restaurativa corresponda a um efetivo modo que mudança do futuro da sociedade, que são os adolescentes.
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[1] CASTRO, Gabriela. Surgimento da Justiça Restaurativa. Disponível em: <https://justicarestaurativa.weeb
ly.com/origem.html>. Acesso em: 23 out. 2018.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[5]ONU. Conselho Econômico e Social. Disponível em: <http://www.juridica.mppr.mp.br/arquivos/File/MP
RestaurativoEACulturadePaz/Material_de_Apoio/Resolucao_ONU_2002.pdf>. Acesso em: 23 out. 2018.
[6] CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Justiça Restaurativa: O que é e como funciona. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/62272-justica-restaurativa-o-que-e-e-como-funciona>. Acesso em: 23 out. 2018.
[7] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 225. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3127>. Acesso em: 23 out. 2018.
[8] Ibid.
[9] Ibid.
[10] Ibid.
[11] LUZ. Ilana Martins. O acordo restaurativo e o princípio da culpabilidade. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/o-acordo-restaurativo-e-o-principio-da-culpabilidade>. Acesso em: 29 abr.2019.
[12] NETO. Pedro Scuro. Modelo de Justiça para o Século XXI. Revista da Escola da Magistratura Regional Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: <https://www.academia.edu/2365535/Modelo_de_justi% C3%A7a_para_o_s%C3%A9culo_XXI>. Acesso em: 29 abr. 2019.
[13] SAJ ADV. Equipe. Justiça Restaurativa: Um novo olhar no Direito Criminal e Penal. Disponível em:< https://blog.sajadv.com.br/justica-restaurativa/>. Acesso em 10 jun. 2019.
[14] BRASIL. Lei dos Juizados Especiais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099
.htm>. Acesso em: 18 out. 2019.
[15] BRASIL. op. cit., nota 7.
[16] BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l8069.htm>. Acesso em:18 out. 2019.
[17] AQUINO. Leonardo Gomes. Criança e Adolescente: o ato infracional e as medidas socioeducativas. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11414>. Acesso em: 10 jun. 2019.
[18] ZAPPE, Jana Gonçalves; DIAS, Ana Cristina Garcia. Violência e fragilidades nas relações familiares: refletindo sobre a situação de adolescentes em conflito com a lei. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/epsic/v17n3/06.pdf>. Acesso em 19 mar. 2019.
[19] ERLICH. Vanessa Harmuch Perez. 27 anos do ECA: Práticas restaurativas na área da infância e juventude são discutidas em seminário. Disponível em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/2017/07/7618,37/>. Acesso em 10 mar. 2019.
[20] Ibid.
[21] BARREIRA. Gabriel. Unidades para menores infratores do RJ têm superlotação de até 250%. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/04/unidades-para-menores-infratores-do-rj-tem-superlotacao-de-ate-250.html.> Acesso em: 19 mar. 2019.
Pós-graduada em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ. Graduada pela Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense – UFF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Nicole Castro dos. O emprego da justiça restaurativa e sua eficácia na observância no sistema de aplicação das medidas socioeducativas previsto no estatuto da criança e do adolescente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jun 2024, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/65652/o-emprego-da-justia-restaurativa-e-sua-eficcia-na-observncia-no-sistema-de-aplicao-das-medidas-socioeducativas-previsto-no-estatuto-da-criana-e-do-adolescente. Acesso em: 22 dez 2024.
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