Em outras publicações fiz rápidas referências à questão do dolo e da culpa ante a teoria finalista da ação. Nestes não há mais o sentido de reprovação da conduta, mas de elemento do tipo penal. Assim, o crime será doloso se o agente quis o resultado. Será culposo se agiu por alguma das formas de culpa: imprudência, imperícia ou negligência.
O fato de querer o resultado, por exemplo, querer matar, não significa que deva ser condenado, porquanto há circunstâncias que podem excluir o crime ou isentar de pena, como na morte em legitima defesa ou na não punibilidade do aborto necessário.
Também a falta do dever de cuidado, caracterizador da culpa, pode redundar em não punição, se não há previsão daquele crime na forma culposa, ou se o resultado lesivo era imprevisível para o cidadão comum.
Há várias formas de se analisar essas condutas e sua classificação, inclusive o crime preterdoloso, quando o agente age com dolo, mas não quer o resultado que era previsível. Por exemplo, um simples soco em pessoa frágil, que cai e bate a cabeça, ou um corte na perna, com hemorragia e morte. O exemplo clássico é o crime de lesão corporal seguido de morte. É um crime agravado pelo resultado. Há dolo no fato antecedente e culpa no consequente.
Deixei passar a comoção causada pelo julgamento da tragédia da Boate Kiss para me atrever a comentar o assunto que foi a questão central daquele julgamento: o dolo eventual.
Coloquei o tema em linha gerais para tornar acessível ao leitor que logo se dá conta que a questão é muito complexa, pois para decidir o julgador deve buscar elementos concretos para avaliar o íntimo do acusado.
É fácil entender o querer o resultado, característico do dolo, da falta de cuidado, característica da culpa. No entanto, é muito difícil distinguir o dolo eventual da culpa consciente.
A definição clássica diz que no dolo eventual o agente não quer produzir o resultado, mas aceita o risco de produzi-lo.
E o que seria a culpa consciente?
Para a facilitar a compreensão dos meus alunos eu utilizava um exemplo comparativo examinando o íntimo do acusado.
No dolo direto fica evidente que o agente quer matar, atira e mata a vítima.
No crime culposo o agente atua com falta de cuidado, ou porque não tem o conhecimento técnico, sendo imperito; age com descaso, sendo negligente; ou é afoito, imprudente, descuidado, causando o dano. Exemplo clássico: dá um tiro em local habitado, numa floresta onde caminham pessoas, e sem querer acaba atingindo alguém.
Na chamada culpa consciente, o agente não quer o resultado e não o aceita como possível de ocorrer. Acredita sinceramente que não ocorrerá. Dá o tiro e tem plena confiança em sua pontaria. Tem certeza que não vai errar e não vai atingir ninguém. Se vislumbrasse a possibilidade de atingir uma pessoa, desistiria imediatamente de sua ação.
Ai o ponto central que faz distinguir o dolo eventual da culpa consciente. No dolo eventual o agente prevê o resultado lesivo como possível e anui a ele. Embora não o queira, aceita-o, ou seja, não se importa. Prefere correr o risco do resultado do que desistir da ação.
Parece que foi a essa conclusão que chegou o corpo de jurados ao condenar os acusados, entendendo que, embora não quisessem o resultado, com sua conduta assumiram o risco de produzi-lo. Não queriam, mas o resultado era previsível.
Se o previram como possível e preferiram correr o risco de que viesse a ocorrer do que desistir da ação, essa a caracterização do dolo eventual a que chegaram os jurados, que o distingue da culpa consciente.
O tema é difícil e, no caso de embriaguez ao volante, por exemplo, tem sido ora acolhido, ora rejeitado, decidindo o Superior Tribunal de Justiça recentemente que a embriaguez ao volante não é o único elemento apto a caracterizar o dolo eventual, sendo necessário levar em consideração outros fatores, como por exemplo a velocidade excessiva.
Ao proferir a sentença, que condenou os réus a penas superiores a quinze anos, o magistrado determinou sua prisão com base no art. 492, do CPP, na redação da Lei nº 13.964/2019, que retirou o efeito suspensivo de eventual apelação, ordenando o imediato início do cumprimento da pena.
Nesse momento aportou decisão proferida pelo Des. Manuel José Martinez Lucas, do Tribunal de Justiça, concedendo liminar em Habeas Corpus impetrado por uma das defesas, para suspender a prisão, tendo o Juiz Presidente do Júri estendido os efeitos aos demais condenados. Na decisão o Relator invoca precedentes do STJ, que aplicam orientação repetida pelo STF de presunção constitucional de inocência, considerando que a prisão só pode ocorrer após o trânsito em julgado da condenação.
Em decisão excepcionalíssima de contracautela, aplicada em raros casos de risco de grave lesão à ordem, à saúde, segurança e à economia públicas no cumprimento da decisão impugnada, o Presidente do STF, Min. Luiz Fux, acolheu pedido do Ministério Público para suspender a liminar, ordenando a imediata prisão dos réus. Na decisão o Ministro invoca precedente de 2016, do saudoso Min. Teori Zavascki, sobre a soberania do Júri, e a recente alteração do Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/2019 (Denominada de “Pacote Anticrime”) que incluiu no referido diploma o artigo 492, § 4º, possibilitando a imediata prisão nas condenações pelo Júri a penas superiores a 15 anos.
Ressalte-se que em alguns casos expressamente previstos, de razoabilidade do recurso, pode o próprio Juiz Presidente ou o Desembargador Relator do Tribunal, suspender a prisão imediata.
Inobstante a decisão do Presidente do STF tenha causado surpresa, ante a expressa presunção constitucional de inocência, afirmada pela Corte, já na ocasião eu tinha alertado que a decisão do STF não dava o princípio como absoluto e admitia muitas exceções.
No entanto, a aplicação retroativa da lei a fato anterior, certamente será questionada.
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