A palavra “violência” se origina do latim “vis”, derivando do adjetivo “violentus” e do substantivo “violentia” e também da raiz indo – europeia “weie” em alusão a pretender pegar ou tomar algo com tenacidade. Enfim, indica o emprego da força de uma pessoa sobre outra em variadas formas e contextos. [1]
Percebe-se que a palavra pode ser empregada em variadas situações e não tem um sentido unívoco relacionado à violência física. Também, embora se faça normalmente menção do emprego ilegítimo da força de uma pessoa sobre outra numa relação horizontal, é plenamente possível falar em violência perpetrada contra uma pessoa ou grupos de pessoas por parte de instituições ou órgãos públicos em uma relação impositiva vertical.
Interessa-nos aqui o sentido de violência que já se encontra em Aristóteles, enquanto “ação contrária à ordem ou à disposição da natureza”. O movimento “segundo a natureza” conduz “os elementos ao seu lugar natural”. Já o movimento informado pela “violência” afasta as coisas de sua natureza. Em suma, a violência é, neste sentido, a “ação contrária à ordem moral, jurídica ou política”. [2]
Seja sob o ponto de vista moral, jurídico ou político, o movimento natural numa alegada “democracia” é que os representantes eleitos regularmente pelo povo sejam devidamente empossados nos cargos respectivos, sem intervenção de qualquer espécie. Esse é o rumo natural das coisas a seus lugares. O desvio desse caminho é o movimento imposto por meio da “violência” e afasta as coisas de sua natureza, contrariando a ordem sob os três aspectos acima mencionados.
Assim sendo, se há um desvio desse rumo natural, seja por lei positiva estatal, seja por decisão judicial (a norma individual para o caso concreto – Kelsen) [3], verifica-se uma hostilidade entre a norma e a reta razão. E a norma deve ser algo próprio da razão reta (“aliquid pertinens ad rationem”). Nessas condições a “lei” em um sentido amplo aqui empregado, abrangendo a decisão judicial, não merece o nome de “lei”, de cuja essência, na realidade, se afasta mais se adequando ao que se pode chamar de “legis corruptio”. São “leis” (em amplo sentido) que “magis sunt violentiae quam legis” (“mais são violências que leis”). [4]
Como bem destaca Jürgen Baumann a respeito da correlação mínima entre o Direito e a Moral:
No puede existir un orden socialmente correcto y moralmente reprochable; una comunidad que para su convivência ha fijado normas con cominaciones penales contrarias a la ley moral, no es una comunidad jurídica, sino una cuadrilha de ladrones. [5]
Eis que surge a repentina notícia de que o Ministro do STF, Alexandre de Moraes, encaminha à PGR um pedido formulado por advogados de um grupo ligado a movimentos de esquerda, que se autodenomina “Prerrogativas”, com a espúria pretensão de suspender a posse de 11 deputados federais da oposição, dentre eles o mais votado no último pleito (Nikolas Ferreira – PL/MG). O fundamento para tal ato de violência política, jurídica e moral não poderia ser mais pueril. A imputação de suspeita de participação de tais deputados, ainda que indiretamente, em atos de vandalismo ocorridos em Brasília no dia 08 de janeiro deste ano. A demanda se dá às pressas, já que a posse está marcada para o próximo dia 1º.02.2023, de modo que o prazo dado para manifestação da PGR são exíguas 24 horas. [6]
A fundamentação é de extrema puerilidade vez que tais deputados sequer são ainda formalmente investigados, muito menos condenados com trânsito em julgado por qualquer crime. Nem mesmo as apurações dos fatos genericamente mencionados estão terminadas e dependem de muitas e muitas diligências ainda na fase investigatória da persecução penal. Na verdade consta do próprio petitório dos advogados a solicitação de instauração de Inquérito Policial para a devida apuração, [7] ou seja, não há absolutamente nenhuma justa causa para a suspensão da posse de representantes políticos eleitos pelo povo. A única coisa existente é a manifestação de um voluntarismo apartado das normas e princípios legais, o qual deveria ter sido coibido “in limine” pelo Ministro, dada sua indigência política, moral e jurídica. Basta relembrar episódios de parlamentares tomando posse presos já denunciados e até condenados em primeira instância, não por discutíveis posicionamentos políticos, ideológicos e manifestações oposicionistas mais ou menos duras, mas por crimes de homicídio, tráfico de drogas, corrupção etc. Inexistindo condenação transitada em julgado, em respeito à Presunção de Inocência, é inviável coartar os direitos políticos do indivíduo e pior, por reflexo, os direitos políticos da população que o elegeu. Isso é tão basilar que deveria ter motivado o indeferimento da petição de imediato. Poderia ser acatada a solicitação de instauração de investigação quanto a eventual ilícito penal perpetrado, seja pelos deputados ou por qualquer pessoa. Mas pretender obstar a posse dos políticos com esse tipo de fundamentação e haver o acatamento inicial desse pleito com encaminhamento à PGR é algo inconcebível.
Parece que devemos dar razão a Lassale quando afirma que questões constitucionais, na realidade, não são de Direito, mas de poder. [8] O poder, ou melhor, a “vontade de poder”, está expulsando o Direito junto com a Justiça pela porta dos fundos a pontapés.
Atuações como esta por parte de supostos cultores do Direito constituem aquilo que Dip denomina de “operações disparatadas” que, conforme escólio citado pelo autor, de Humberto Ávila, servem para encobrir “um caprichoso decisionismo” com emprego de proposições gerais com ares principiológicos, buscando “justificar o injustificável, inibindo a aferição racional das argumentações”, mediante a invocação de “tópicos” aleatórios como se fossem realmente a defesa de princípios caros ao Direito e à Justiça. Daí singelas e perfunctórias referências a expressões esvaziadas e gastas de “respeito aos valores democráticos” ou “salvaguarda dos direitos humanos”. [9] Esvaziadas e gastas porque empregadas sem contextualização e fundamentação adequadas, apenas mencionadas como palavras ao vento, as quais, despidas de suas substâncias reais, podem servir para qualquer fim, por mais ilegítimo, até mesmo para sua autodestruição.
Estamos aqui a falar de extremismo e violência em seus mais amplos e abrangentes sentidos, de modo que é altamente apropriado trazer à baila o conceito de Boaventura de Sousa Santos que se refere ao que ele denomina de “violência sacrificial”:
Mas a forma mais perturbadora de extremismo é o que designo violência sacrificial. A violência sacrificial significa a imolação do que é mais precioso sob o pretexto ou com o propósito de o salvar. Destrói-se a vida para salvar a vida; violam-se os direitos humanos para defender os direitos humanos; elimina-se a democracia para a salvaguardar (grifo nosso). [10]
Essa “violência sacrificial” tem marcado fortemente muitas atuações de repressão e opressão a todo espectro ideológico que se designe de “Direita” ou mais comumente e levianamente de “Extrema Direita”, mas que, na verdade, se trata tão somente de qualquer espécie de pessoa ou grupo cujas ideias divirjam, por mínimo que seja, do “establishment” que tem sido denominado de “Progressista” e muito raramente chamado de “esquerda”, “esquerda ideológica” e quase nunca (para não dizer nunca) identificado como “extrema esquerda”. A “violência sacrificial” corrompe a “Democracia” e cria algo que chama pelo mesmo nome, mas que não permite a diversidade de ideias, as divergências ou críticas, impondo, ao reverso, verticalmente uma espécie de pensamento único, sob pena de estigmatização de qualquer pessoa que se desvie, seja por meio dos chamados “cancelamentos” ou mesmo de medidas coercitivas judicialmente impostas de forma arbitrária.
Resta ainda a esperança de que a Procuradoria Geral da República se oriente pelo bom – senso e pela razoabilidade, bem como pela constitucionalidade e legalidade de forma a rechaçar essa absurda, autoritária e parcial violação do processo eleitoral democrático.
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAUMANN, Jürgen. Derecho Penal – conceptos fundamentales y sistema. Trad. Conrado A. Finzi. Buenos Aires: Depalma, 1981.
DIP, Ricardo. Segurança Jurídica & Crise do Mundo Pós – Moderno. 3ª. ed. São Luís: Resistência Cultural, 2019.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LASSALE, Ferdinand. Que é uma Constituição? Trad. Leandro Farina. Campinas: Minelli, 2003.
MORAES envia à PGR pedido de suspensão da posse de deputados. Disponível em https://revistaoeste.com/politica/moraes-envia-a-pgr-pedido-de-suspensao-da-posse-de-deputados/ , acesso em 28.01.2023.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Direitos Humanos na Zona de Contato Entre Globalizações Rivais. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 64, p. 313 – 337, jan./fev., 2007.
VESCHI, Benjamin. Etimologia de Violência. Disponível em https://etimologia.com.br/violencia/ , acesso em 28.01.2023.
[1] VESCHI, Benjamin. Etimologia de Violência. Disponível em https://etimologia.com.br/violencia/ , acesso em 28.01.2023.
[2] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 1002.
[3] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 165.
[4] Essas não são novidades, mas lições que se encontram desde antanho nos ensinamentos de São Tomás de Aquino em sua Suma Teológica (Questões 90, 95 e 96) e que jamais perderam ou perderão sua atualidade. Apud, DIP, Ricardo. Segurança Jurídica & Crise do Mundo Pós – Moderno. 3ª. ed. São Luís: Resistência Cultural, 2019, p. 146.
[5] BAUMANN, Jürgen. Derecho Penal – conceptos fundamentales y sistema. Trad. Conrado A. Finzi. Buenos Aires: Depalma, 1981, p. 3.
[6] MORAES envia à PGR pedido de suspensão da posse de deputados. Disponível em https://revistaoeste.com/politica/moraes-envia-a-pgr-pedido-de-suspensao-da-posse-de-deputados/ , acesso em 28.01.2023.
[7] Op. Cit.
[8] LASSALE, Ferdinand. Que é uma Constituição? Trad. Leandro Farina. Campinas: Minelli, 2003, p. 35 e 78. “Essa é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem um país”. “Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder...”.
[9] DIP, Ricardo. Segurança Jurídica & Crise do Mundo Pós – Moderno. 3ª. ed. São Luís: Resistência Cultural, 2019, p. 95.
[10] SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Direitos Humanos na Zona de Contato Entre Globalizações Rivais. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 64, jan./fev., 2007, p. 328 – 329.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós - graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Tempos de Violência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 fev 2023, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3524/tempos-de-violncia. Acesso em: 22 nov 2024.
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