O Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) é uma obrigação tributária de natureza anual, incumbida ao proprietário do veículo. Entretanto, um cenário controverso se apresenta quando o veículo se encontra apreendido e sob custódia estatal. Surge, então, o questionamento: é lícito o Estado cobrar o IPVA de um bem que o proprietário não tem disponibilidade de uso?
1. A Natureza do IPVA
O IPVA é um tributo de competência dos Estados e do Distrito Federal, destinado a incidir sobre a propriedade de veículos automotores. Seu fato gerador é a propriedade do veículo, independentemente de seu uso. No entanto, uma análise mais aprofundada sobre a lógica do imposto nos leva a questionar se essa cobrança seria justa em todos os contextos.
No Distrito Federal, a Lei nº 6.466, de 27/12/19, indica como fato gerador do IPVA, “a propriedade, o domínio útil ou a posse legítima do veículo automotor.” (art. 1º, § 5º)
2. A Apreensão do Veículo e a Indisponibilidade de Uso
A apreensão de um veículo e sua consequente guarda pelo Estado retira do proprietário a disponibilidade de uso, gozo e disposição da coisa. Se considerarmos que o IPVA, embora tenha como fato gerador a propriedade, é influenciado pela potencial utilização do bem nas vias públicas, essa cobrança torna-se contraditória quando o bem está indisponível ao proprietário por ação estatal.
3. O Princípio da Capacidade Contributiva*
Quando um veículo é apreendido e mantido sob a guarda do Estado, o proprietário não apenas perde a capacidade de uso do bem, como também pode enfrentar prejuízos econômicos decorrentes dessa apreensão. Nesse contexto, cobrar o IPVA pode ofender o princípio constitucional da capacidade contributiva, previsto na Constituição Federal, segundo o qual, determina que os tributos devem ser cobrados de acordo com a capacidade econômica do contribuinte.
4. Jurisprudência e Posicionamentos Atuais*
Diversos tribunais têm se posicionado sobre a matéria, e uma tendência observada é a de que a cobrança de IPVA de veículos apreendidos fere o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade. O entendimento é que, sem a efetiva possibilidade de uso do veículo, a cobrança do imposto torna-se indevida.
No Distrito Federal, o § 10 do art. 1º da Lei nº 6.466, de 27/12/19, prevê que:
§ 10. Desde que o fato seja objeto de ocorrência policial, o IPVA não incide sobre a propriedade de veículo roubado, furtado ou sinistrado e prevalece, nos casos de roubo e furto, até o momento em que o veículo for recuperado, observado o disposto no § 16”
A lei é omissa quando o veículo é apreendido pelo Estado envolvidos algum tipo de infração penal, como por exemplo o tráfico de drogas. Da mesma forma nada fala quando há a perda judicial do veículo, como efeito de condenação. Neste contexto, noticiaremos dois casos para melhor compreensão do tema.
Caso 1 – ocorrido no Distrito Federal.
No TJDFT, citamos o caso decidido na 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do DF (processo n. 0713936-02.2021.8.07.0016) que manteve a sentença que declarou inexistente os débitos do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores - IPVA de veículo que foi devolvido ao autor quase três anos depois de ter sido recuperado administrativamente. O carro havia sido furtado. O Colegiado destacou que a cobrança do imposto durante o período em que esteve sob a aguarda da administração pública é indevida.
Segundo consta do pedido do autor, o veículo foi furtado em 25 de fevereiro de 2016, e que o carro só lhe foi devolvido em maio de 2019 - 3 anos após o furto. Apesar disso, conta que, no período em que esteve sem o veículo, o Distrito Federal realizou cobranças referentes ao IPVA. Assim, requereu que os débitos e tributos referentes ao período do furto e da recuperação sejam declarados inexistentes.
Em primeira instância, o juiz do 3º Juizado Especial da Fazenda Pública do DF observou que o fato gerador do IPVA ocorre em 1ª de janeiro de cada ano e que, no caso, o imposto não deve ser cobrado a partir de 2017. O magistrado declarou a inexistência dos débitos do imposto de 2017 a 2019.
O Distrito Federal recorreu sob o argumento de que a não incidência do IPVA deve ser aplicada somente durante o período que perdurou o roubo - de 25 de fevereiro a 27 de julho de 2016 - e asseverou que o lançamento dos tributos devidos foi feito logo após a recuperação administrativa do veículo. Pediu a reforma da sentença para que fosse reconhecida a incidência tributária proporcional no exercício de 2016, a partir da data da recuperação do veículo, e integral nos três anos seguintes.
Ao analisar o recurso, a Turma explicou que a Lei federal 7.431/85 prevê que, “desde que o fato seja objeto de ocorrência policial, o IPVA não incide sobre a propriedade de veículo roubado, furtado ou sinistrado e prevalece até o momento em que o veículo for recuperado ou reparado”. No caso, segundo o Colegiado, as provas dos autos mostraram que o carro só foi restituído ao proprietário em 2019 e que não há provas de que o autor tenha sido comunicado anteriormente da apreensão administrativa.
“Verifica-se que o autor não contribuiu para a demora na restituição do bem. Dessa forma, a parte requerente faz jus à isenção tributária durante o período em que a administração pública se manteve na posse do bem e inerte quanto à comunicação da apreensão do veículo”, pontuou o relator.
Dessa forma, a Turma negou provimento ao recurso do Distrito Federal e manteve a sentença que julgou procedente o pedido inicial para declarar inexistência dos débitos de IPVA de 2017 a 2019 do veículo de propriedade do autor. A decisão foi unânime.
Caso 2 – Ocorrido em São Paulo.
Em São Paulo, mais precisamente na cidade de Piracicaba, o juiz de Direito Wander Pereira Rossette Júnior, da 2ª vara da Fazenda Pública decidiu que o Estado não pode cobrar o pagamento de IPVA de dono de carro que ficou apreendido em pátio de Delegacia, pois no seu entendimento, o recolhimento do veículo descaracteriza a posse e domínio, inviabilizando a sua circulação.
Na referida ação (Processo: 1003891-85.2021.8.26.0451) o motorista requereu a suspensão da exigibilidade do IPVA e inscrição no Cadin referente ao período em que seu carro ficou apreendido em pátio por falta de licenciamento.
O magistrado observou que restou comprovado que o proprietário do veículo perdeu a sua posse quando houve a apreensão, tornando inexigível o tributo, referente ao IPVA, a partir deste momento, nos termos da lei 13.296/08, art. 14, parágrafo 2º:
Artigo 14 - Fica dispensado o pagamento do imposto, a partir do mês da ocorrência do evento, na hipótese de privação dos direitos de propriedade do veículo por furto ou roubo, quando ocorrido no território do Estado de São Paulo, na seguinte conformidade:
I - o imposto pago será restituído proporcionalmente ao período, incluído o mês da ocorrência em que ficar comprovada a privação da propriedade do veículo;
II - a restituição ou compensação será efetuada a partir do exercício subsequente ao da ocorrência.
§ 1° - A dispensa prevista neste artigo não desonera o contribuinte do pagamento do imposto incidente sobre fato gerador ocorrido anteriormente ao evento, ainda que no mesmo exercício.
§ 2° - O Poder Executivo poderá dispensar o pagamento do imposto incidente a partir do exercício seguinte ao da data da ocorrência do evento nas hipóteses de perda total do veículo por furto ou roubo ocorridos fora do território paulista, por sinistro ou por outros motivos, previstos em regulamento, que descaracterizem o domínio ou a posse.
Neste sentido, segundo a sentença, o recolhimento do veículo descaracteriza a posse e domínio, pois inviabiliza sua circulação, impedindo consequentemente a cobrança do IPVA, cujo fato gerador é a propriedade, no entanto, ressaltou que tal entendimento não se aplica em relação ao licenciamento obrigatório, pois é perfeitamente exigível do proprietário do bem, independente da perda da posse.
No caso concreto, concluiu que: "Assim, considerando a ausência da posse do veículo a partir de julho de 2017, de rigor afastar a incidência apenas do IPVA, referente aos exercícios 2018 e seguintes", deferindo a tutela de urgência para determinar que o Estado de São Paulo suspendesse a cobrança do IPVA referente ao período de 2018 a 2021.
Conclusão
A cobrança de IPVA de veículos apreendidos e sob custódia estatal levanta questionamentos importantes sobre a equidade e justiça fiscal. À luz dos princípios constitucionais e da lógica que permeia a instituição desse imposto, torna-se imperativo reavaliar essa prática, visando a uma tributação mais justa e alinhada com os direitos e deveres do contribuinte.
Mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada - Espanha. Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UNICEUB. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo ICAT/UDF. Pós-graduado em Gestão Policial Judiciária pela ACP/PCDF-FORTIUM. Professor Universitário de Direito Penal e Orientação de Monografia. Advogado. Delegado de Polícia da PCDF (aposentado). Já exerceu os cargos de Coordenador da Polícia Legislativa da Câmara Legislativa do Distrito Federal (COPOL/CLDF), Advogado exercendo o cargo de Assessor de Procurador-Geral da CLDF. Chefe de Gabinete da Administração do Varjão-DF. Chefe da Assessoria para Assuntos Especiais da PCDF. Chefe da Assessoria Técnica da Cidade do Varjão - DF; Presidente da CPD/CGP/PCDF. Assessor Institucional da PCDF. Secretário Executivo da PCDF. Diretor da DRCCP/CGP/PCDF. Diretor-adjunto da Divisão de Sequestros. Chefe-adjunto da 1ª Delegacia de Polícia. Assessor do Departamento de Polícia Especializada - DPE/PCDF. Chefe-adjunto da DRR/PCDF. Analista Judiciário do TJDF. Agente de Polícia Civil do DF. Agente Penitenciário do DF. Policial Militar do DF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COIMBRA, Valdinei Cordeiro. Pode o Estado cobrar IPVA de veículo apreendido, ou seja, sob a guarda do Estado? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 out 2023, 04:52. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3621/pode-o-estado-cobrar-ipva-de-veculo-apreendido-ou-seja-sob-a-guarda-do-estado. Acesso em: 11 out 2024.
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