1. Introdução
Tratarei aqui de um princípio constitucional, assim expresso no art. 5º da Constituição Federal:
XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;
No título deste texto, que será sucinto, optei pela denominação princípio da personalização da pena. No entanto, poderia ter optado por outra denominação, conforme passarei a demonstrar.
2. Alcance do princípio
O texto constitucional merece algum reparo, eis que o princípio não se aplica unicamente ao condenado, não sendo um princípio exclusivo do Direito de Execução Criminal. Ele se estende ao Direito Processual Criminal, retirando a legitimidade passiva de qualquer pessoa pelo fato de outrem, salvo nos casos de concurso de pessoas, em que a autoria, coautoria ou participação será própria.
É um princípio, também, de direito material que impede que o legislador infraconstitucional edite alguma lei que preveja pena a terceira pessoa que não concorreu para o fato, assim é, também, um princípio de Direito Criminal. Portanto, o texto constitucional deve ser interpretado extensivamente, eis que enuncia menos do que gostaria de dizer, assegurando a todos os réus, a todos os condenados, enfim, a todas as pessoas que não serão responsabilizadas criminalmente por delitos de outrem.
3. Denominações e relevância do estudo
O ponto central da análise está na própria justificativa de manutenção da pena e do Direito Criminal. Nesse sentido, defendendo a denominação princípio da transcendência mínima, Rodrigo Duque Estrada Roig sustenta:
Estabelece o princípio da intranscendência (pessoalidade) que a pena não poderá passar da pessoa do criminoso (art. 5º, XLV, da VF e art. 5º, item 3, da Convenção Americana de Direitos Humanos). Uma visão mais realista do sistema penal entende, que não existe a intranscendência dos efeitos penais, posto que a pena criminal, de algum modo, sempre afeta outras pessoas (ex.: familiares de presos). Por essa razão, dá-se a ele o nome de princípio da transcendência mínima. Seja qual for a denominação conferida, fato é que o princípio possui importante função limitadora, tanto no Direito Penal quanto no Direito de Execução Penal.[1]
Vê-se no texto transcrito as denominações princípios da intranscendência e princípio da pessoalidade, bem como a opção por princípio da transcendência mínima.
O saudoso administrativista José Cretella Júnior (1920-2015), comentando o inc. XLV do art. 5º da Constituição Federal expõe:
A pena é pessoal, individualizada, intransferível, adstrita à pessoa do delinquente. Mors ominia solvit. A morte rompe todos os vínculos. Na época do Brasil Colônia, a pena transmitia-se aos parentes do réu, como aconteceu com Tiradentes, (...) a Carta Política do Império do Brasil de 1824, no art. 179, 20, firmou a regra da intransmissibilidade ou não-ultrapassagem da pena, pela qual a pena se fixa na pessoa do delinquente e a nota de infâmia do réu não se transmite aos parentes em qualquer grau que seja, cabendo à lei a regulamentação da individuação (e não individualização) da pena.[2]
Vê-se novas denominações ao princípio em comento (intransmissibilidade, não ultrapassagem e individuação), distinguindo-o do princípio da individualização da pena, este expresso em diversos incisos do art. 5º da Constituição Federal, especialmente, no XLVI, que estabelece: “a lei regulará a individualização da pena...”.
Desde o advento da Lei n. 9.268, de 1.4.1996, defendo a possibilidade da execução da multa, desde que a pena tenha transitado em julgado durante a vida do delinquente até as forças da herança, isso porque, a multa é dívida de valor (Código Penal, art. 51) e, em face do princípio da saisina, na abertura da sucessão, o autor da herança transmite direitos e obrigações. Com isso, a obrigação de pagar poderá ser habilitada nos autos do processo de inventário e partilha, uma vez que não atingirá o sucessor, mas a herança deixada pelo de cuius sucetione agitur.
Veja-se que não estou contrariando o princípio da personalização da pena, visto que a multa estará recaindo sobre a pessoa condenada e respeitará a regra da sucessão em benefício do inventário, pela qual o herdeiro só responderá pelas obrigações até as forças da herança.[3]
Juarez Cirino dos Santos denomina o princípio em discussão de princípio da responsabilidade penal pessoal. Ele vincula tal princípio ao da [não] culpabilidade, o qual enuncia, em apertadíssima síntese, que somente o agente criminalmente capaz (imputável), que tenha consciência potencial da ilicitude e do qual seja exigível conduta conforme o direito (diversamente da concretizada), poderá ser responsabilizado criminalmente.[4]
Dentre os princípios fundamentais do Direito Criminal, Luiz Regis Prado conjuga os princípios da pessoalidade e da individualização da pena. Com isso, ensina que a responsabilidade criminal é pessoal, dosada segundo a gravidade do fato e indicativos do autor.[5] Não é à toa que autor afirma:
Desse caráter estritamente pessoal decorre que a sanção criminal – pena e medida de segurança – não é transmissível a terceiros. Tal princípio, em sentido amplo, pode ser definido: “a responsabilidade penal é pessoal. Ela é determinada, a título do autor, instigador ou cúmplice, segundo o comportamento da pessoa processada e em razão da própria culpa”.[6]
A vinculação dos princípios da personalização da pena e da individualização da pena se dá na própria estrutura da Constituição, a qual os menciona no art. 5º, incisos XLV e XLVI. Comentando o inciso XLV, Alexandre de Moraes fala em princípio da pessoalidade ou da incontagiabilidade ou intransmissibilidade da Pena. De todo modo, a sua posição não diverge totalmente da minha, no tocante à possibilidade de atingir bens alcançados por coisas julgadas durante a vida do condenado, in litteris:
O princípio da incontagiabilidade ou da intransmissabilidade da pena também se aplica em relação à obrigação de reparação do dano, bem como à decretação do perdimento de bens. A norma constitucional só permite que essas duas medidas sejam estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do patrimônio transferido em virtude da herança, nunca, portanto, com prejuízo do patrimônio próprio e originário dos mesmos.[7]
Falar em princípio da transcendência mínima em matéria criminal, visto que a pena atinge quem está no entorno do condenado, ao meu sentir, não é exclusividade do Direito Criminal, visto que a demissão, enquanto sanção administrativa (própria do Direito Administrativo) atingirá a família do servidor público. Do mesmo modo, a dispensa do empregado por justa causa, do Direito do Trabalho, atingirá sua família etc. O fato é que as intervenções mais drásticas – a do Direito Criminal é a mais severa delas – não se restringirão ao condenado. Seria, portanto, absurda a pretensão de abolir a pena tão somente porque tem efeitos diretos sobre terceiros.
Quando aprendo, com Alexy, que todos os princípios e todas as normas são ponderáveis, até porque princípios e normas se diferenciam apenas qualitativamente,[8] verifico que não se pode negar a possibilidade de intervenção jurídico-criminal unicamente porque o princípio da personalização da pena estaria afetado pelos reflexos limitadores da pena.
4. Reflexão a ser colocada em discussão
Não é uma última reflexão porque o assunto deverá ser revisitado diversas vezes, sendo este texto apenas uma provocação. Com efeito, entendo razoável falar em princípio da individuação da pena, da pessoalidade da pena, da personalização da pena e da intranscendência.
Parece-me excesso de zelo falar em transcendência mínima, visto que todos os direitos fundamentais e todos os princípios são ponderáreis. Eles orientam o legislador e o aplicador da lei sobre os limites de atuação, sem gerar a necessária extinção imediata do Direito Criminal ou da pena.
Sabemos que nenhuma teoria da pena a justifica adequadamente e que o Direito Criminal vem sendo colocado em xeque desde o fim do Século XIX. De todo modo, não tendo nada menos pior a oferecer, o Direito Criminal e a pena vêm se perpetuando nos diversos sistemas sociais modernos. Outrossim, nos vários ramos do Direito, a sanção reflete em pessoas próximas e até na coletividade, visto que, por exemplo, uma demissão gera mais um desempregado no mercado de trabalho. De todo modo, não podemos eliminar o Direito, um instrumento para a pacificação social.
Referências:
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. v. 1.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
PRADO, Luiz Regis. Tratado de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. v. 1.
______. Direito Penal Brasileiro: parte geral. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. v. 1.
ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2022.
ROSSETO, Enio Luiz. Teoria e aplicação da pena. São Paulo: Atlas, 2014.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2006.
[1] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2022. p. 56-57.
[2] CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. v. 1, p. 497.
[3] Em sentido contrário: NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 91; ROSSETO, Enio Luiz. Teoria e aplicação da pena. São Paulo: Atlas, 2014. p. 99. Este último trata do caráter personalíssimo da pena, não se podendo transferir a outrem. Isso é equivocado, eis que se a multa integra o patrimônio negativo do morto, deve alcançar por inteiro a herança (não o sucessor).
[4] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2006. p. 31-32.
[5] PRADO, Luiz Regis. Tratado de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. v. 1, p. 178-179.
[6] Idem. Direito Penal Brasileiro: parte geral. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. v. 1, p. 90.
[7] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 329.
[8] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
Procurador Federal; Concluiu o Curso de Formação de Oficiais (APMG) e Graduou-se em Direito (UniCEUB); Especialista em Direito Penal e Criminologia (UniCEUB); e em Metodologia do Ensino Superior (UniCEUB); Mestre (UFPE) e Doutor em Direito (UNZL); Professor, Procurador Federal e Advogado; Autor dos livros "Prescrição Penal", "Execução Criminal: Teoria e Prática" e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (Editora Atlas); e de vários artigos jurídicos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SIDIO ROSA DE MESQUITA JúNIOR, . Algumas considerações sobre o princípio da personalização da pena Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 dez 2023, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3645/algumas-consideraes-sobre-o-princpio-da-personalizao-da-pena. Acesso em: 13 dez 2024.
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